Diário de Notícias
18/12/1999
Líder do movimento Europe et Laïcité alerta: interdições de carácter religioso não podem influenciar a legislação comunitária
Licínio Lima
Direito à diferença, sim, mas sem diferença de direitos: esta é a posição assumida pelo presidente do movimento Europe et Laicité. "A lei tem de ser igual para todos. Não é possível constituir-se um sistema relativo a cada religião", afirma Étienne Pion, defensor do humanismo laico na Europa. Objectivo do laicismo é separar as crenças dos poderes públicos.
Tem andado pela Europa a falar de laicidade. O que defende, concretamente?
A nossa proposta, exposta já na Carta Europeia da Laicidade, que o movimento Europe et Laicité tem divulgado, assenta no seguinte princípio: as interdições de carácter religioso não poderão ser tomadas em conta pela legislação comunitária.
O objectivo é institucionalizar a laicidade?
Pretendemos que não existam, por um lado, sociedades laicas e, por outro, sociedades religiosas. Aliás, estas, para nós, não existem. O que existe é toda uma comunidade laica que assegura aos cidadãos os mesmos direitos e deveres, independentemente da opção individual no quadro de uma religião ou ideologia.
Essa ideia foi reivindicada em 1789, aquando da Revolução Francesa. A secularização que entretanto foi sendo assumida pelos Estados e pelas Igrejas não institucionalizou já a laicidade?
Na Europa actual, subjacente a todos os conflitos graves, continua a existir o confronto inter-religioso. Na Irlanda, os anglicanos não se dão bem com os católicos. Quanto aos Balcãs, nem vale a pena adiantar pormenores... Toda a gente sabe que o confronto entre nações é a exteriorização do confronto entre religiões. O que nós propomos é uma modalidade de coexistência pacífica que assegure a harmonia e a paz civil.
Não está a pôr em causa o direito à diferença?
O direito à diferença, sim, mas com direitos e deveres iguais para toda a gente. Se não, caímos no comunitarismo. E sempre que há comunitarismos, há confrontos.
A cultura religiosa na Europa é bastante diversificada. A sua mensagem chega mais facilmente aos habitantes dos países nórdicos ou dos mediterrâneos?
Nos países nórdicos predomina uma cultura religiosa protestante, onde as pessoas não estão habituadas a falar de laicidade. Nos países mediterrâneos, fala-se mais facilmente, porque há uma tradição de luta pelo poder entre a Igreja Católica, ou a Igreja Ortodoxa, e os poderes civis. A Suécia, no entanto, já adoptou, há alguns meses, uma lei que estabelece o princípio de separação entre as igrejas e o Estado. Começam a verificar-se progressos ao Norte.
A França, país de onde é natural, é exemplo de laicidade?
Seria um erro apresentar o meu país como modelo, dado que a experiência de laicidade é ainda muito recente. No entanto, houve um século de paz civil em França, graças, essencialmente, às instituições laicas. Caso contrário, teriam continuado os confrontos, não só entre protestantes e católicos, como também entre estes e os movimentos de esquerda, que são geralmente anticlericais, e mesmo contra os judeus.
Várias comunidades religiosas, nomeadamente a magrebina, têm reivindicado o direito à exteriorização de sinais que identificam uma cultura religiosa nos espaços públicos. Isso preocupa-o?
Toda a sociedade francesa é laica, o que permite dizer que todos os cidadãos são franceses, independentemente de se ser muçulmano, judeu ou outra coisa. O que é necessário é assegurar-se a coexistência pacífica, de forma a evitarem-se os confrontos. Quando aparecem a reivindicar certos direitos relacionados com a religião, nós tentamos explicar-lhes que o direito à diferença é bom, mas não a diferença de direitos.
Os calendários das religiões não coincidem uns com os outros. Não põe sequer a hipótese de que os crentes tenham direito de faltar ao trabalho para cumprirem os seus actos de culto?
A lei tem de ser igual para todos. Não é possível constituir-se um sistema relativo a cada religião. As pessoas podem viver a sua própria cultura religiosa na esfera privada a que pertencem, sem reivindicarem interferências nos domínios público e político. Neste campo, a reivindicação é insuportável. Este aspecto é importante para a unidade nacional.
VATICANO É BAIRRO DE ROMA BAPTIZADO DE ESTADO
O estatuto da Santa Sé junto da ONU tem sido motivo de algumas críticas. Porquê?
Somos contra o estatuto de observador privilegiado que detém a Santa Sé junto da ONU. É tida como um Estado _ e nem sequer cumpre os critérios que uma condição dessas exige, ao não ter assinado, nomeadamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Há critérios que têm de ser respeitados.
Mas a organização da Santa Sé é semelhante à de um governo. Tem ministérios...
O Vaticano é uma teocracia, a única que actualmente existe no mundo. Havia outra, no Tibete, mas acabou mal. Com o seu estatuto privilegiado, está a bloquear algumas iniciativas que as mulheres têm vindo a reivindicar, como é o caso da contracepção, do uso do preservativo, do controlo dos nascimentos, etc....
Nas conferências internacionais, as posições dos Estados são fundamentalmente políticas. Acha que o Vaticano tem aí algum poder de influência?
Tem influência sobretudo nos modelos de vida. Por exemplo, foi discutido em várias conferências o modo de combater a sida. O representante da Santa Sé opôs-se à divulgação do preservativo. Isso é grave.
Nesse caso, defendeu valores, não políticas.
Mas é difícil aceitar que só uma religião, e não as outras, tenha o direito, não de bloquear, mas de influenciar.
Na realidade, o estatuto oficial da Santa Sé é apenas de obervador, e não o de uma entidade governamental. Na ONU, não têm assento muitas outras organizações?
Mas elas têm um pé dentro que está a mais. Uma organização não governamental (ONG) representa normalmente uma força intelectual, moral, ideológica. Logo, é normal que se apresentem organizadas. Mas é um absurdo que se esteja integrado na ONU sob o pretexto de que há um bairro em Roma que se baptizou de "Estado". Joga-se sob o duplo estatuto de Estado e de religião. É um abuso.
O reconhecimento que diz privilegiado parece também acontecer dentro dos Estados. Afinal, os núncios apostólicos não são embaixadores da Santa Sé?
É verdade. É, inclusive, escandaloso que o núncio apostólico seja considerado sistematicamente o decano de todo o corpo diplomático.
Não significa isso um sinal de credibilidade?
Os embaixadores têm a ilusão de que o núncio apostólico assume uma posição de neutralidade relativamente aos problemas. No entanto, a história demonstra que não é bem assim. Veja o caso de monsenhor Pacelli, que mais tarde se tornou no Papa Pio XII. Sabe-se que não escondia uma certa simpatia pelo regime hitleriano.
Tem ouvido ecos das suas reivindicações dentro das instituições europeias?
Neste momento, as instituições europeias estão mudas em relação a este assunto. Mas não vão esperar eternamente para se confrontarem com o problema das rivalidades entre religiões. Isso é inevitável.
ESCOLA DEVE ESTAR LIVRE DE INFLUÊNCIAS RELIGIOSAS
É possível falar-se de laicidade numa Europa que cresceu cristã?
A civilização europeia já existia antes do cristianismo. Ainda vivemos as heranças das antigas Roma e Grécia. Estas estão, aliás, na origem do pensamento contemporâneo. Sem negar a influência cristã, este continente, contudo, é o resultado de múltiplas influências culturais. Quanto ao cristianismo, já assumiu diferentes formas de expressão.
Podemos separar valores laicos de valores religiosos? Uns não informam os outros?
Porquê separá-los? Desde o momento em que aceitamos que a crença seja livre para cada um, e que a vida pública seja livre de todas as dominações religiosas, a coexistência realiza-se sem confrontos. Os que em França lançaram as primeiras ideias para a construção de uma república laica não eram ateus, eram gente de cultura cristã católica ou protestante, havia muito poucos ateus.
O que pretenderam foi colocar a religião na esfera privada das pessoas e das famílias?
Pretenderam separar a crença do domínio político, de modo a que a organização civil escape à influência religiosa. O objectivo do laicismo é preservar, ao mesmo tempo, a liberdade da crença e das práticas, e a independência dos poderes públicos. A partir do momento em que aceitamos isto, aceitamos a ideia de laicidade.
As religiões estarão dispostas a abdicar da sua influência junto dos poderes políticos?
Isso figura bem nos textos cristãos: devolver a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. E o que César aceita é objecto da acção laica. Sempre é preferível, por exemplo, que as crianças convivam pacificamente nos estabelecimentos educativos, e vivam, nos planos pessoal, familiar, a sua cultura religiosa, se assim desejarem. Mas, na escola, não deve haver influência religiosa.
E se as crianças quiserem, não terão direito a receber formação da sua cultura religiosa na escola?
A escola deve proporcionar, sobretudo, que a criança cresça livre, se construa a si própria com os outros, sem se lhe perguntar se crê ou não em Deus. Nós temos crianças que nascem numa cultura cristã, católica ou protestante, mas temos também minorias judaicas, magrebinas, sem contar com todas as sensibilidades africanas. Todas elas têm de ser respeitadas. Por isso, na escola pública não há influência religiosa que se aguente.
Acredita mesmo que, na Europa, as igrejas têm uma forte influência sobre os Estados?
Sim e não. Isso varia segundo os Estados. É certo que, onde há separação de poder, a influência das igrejas é menos importante do que nas nações onde há uma religião de Estado. Nos países nórdicos, e especialmente na Grécia, que é talvez o Estado mais clerical da Europa, no sentido próprio da palavra, o domínio da religião afasta toda a gente.
Como se educa, então, para a tolerância?
Para nós, a laicidade legal significa tolerância universal. Então, temos de habituar as pessoas, através da educação e informação, a respeitar o outro, a praticar a tolerância. Não só uma tolerância recíproca mas também uma tolerância que não suporta o intolerável. É difícl ser tolerante com um integrista, um estalinista ou um nazi. Então, tendo consciência de que haverá cada vez mais religiões diferentes, vamos desejar que todas coexistam em paz, mas sem que ninguém venha reivindicar privilégios. Isso seria a negação do espírito laico.
As pessoas poderão esquecer a sua identidade religiosa quando estabelecem relações sociais?
A vida social é a célula vital que faz com que se respeitem as práticas dos outros. Isto parece um facto evidente, mas não é assim em todo o lado. Quando abordei esta questão na Grécia, muitos gregos manifestaram a superioridade da sua religião e consideraram o islamismo o inimigo hereditário, e rival o catolicismo.
Gostaria de ver a ONU envolvida neste assunto?
É preciso que a ONU actue quando as leis cívicas limitam as acções dos cidadãos. Foi neste sentido que criámos e propomos a Carta Europeia da Laicidade.
A cara da notícia: ÉTIENNE PION, Presidente do Movimento Europa e Laicidade
Étienne Pion é, aos 71 anos, o rosto de um movimento de cidadãos que pretende instituir na Europa o humanismo laico. Casado e pai de dois filhos, a sua militância iniciou-se no ainda existente Centre d'Action Européene Démocratique e Laique (Caedel), quando então era director de um colégio. O Caedel mantém-se activo, em França, estando actualmente envolvido numa acção de sensibilização para que se altere o artigo F1 do Tratado de Maastricht, em que se afirma o respeito pela "identidade nacional dos Estados membros cujos sistemas de governo estejam fundados em princípios democráticos". Defendem os promotores da petição que, àquele articulado, se deve acrescentar uma outra premissa que garanta o "princípio da estrita separação entre as instituições e as comunidades religiosas". O documento encontra-se disponível na Internet. Étienne Pion considerou que os ideais que regem o Caedel, fundado em 1952, deveriam estender-se a todo o continente europeu. E, neste contexto, surgiu o actual movimento Europe et Laïcité. Presidente empenhado, tem-se desdobrado em contactos por todos os países, defendendo sempre a institucionalização do humanismo laico. Recentemente esteve em Portugal, a "convite de um grupo de cidadãos que comungam dos mesmos ideais".