Diário de Notícias

17/01/2000

A Laicidade do Ensino Público - condição para a Democracia

Luis Manuel MATEUS*

“O crepúsculo dos grandes sistemas de alienação, com ou sem deus, fundados na negação do homem, constitui o desafio determinante da nossa época. As mulheres e os homens aspiram à liberdade de se autodeterminarem. O século XXI dá-nos a escolher entre o humanismo ou a barbárie. É tempo do despertar da laicidade.”

É desse modo que Patrick Kessel termina o seu livro “Marianne, je t’aime” ** (1996), um manifesto de afirmação da actualidade e perenidade dos valores do humanismo e da laicidade que enformam a concepção moderna e republicana do Estado.

Com algum (porventura excessivo) optimismo, constato aqui que, neste início de século, quer na Europa, quer em Portugal - este ano a celebrar os 90 anos da instauração da sua República - a laicisação do Estado, isto é, a sua conformação independente da influência mais ou menos totalitária de organizações ideológicas, confessionais, religiosas, etc., constitui uma das vias por que se desenham com maior nitidez os processos de aprofundamento dos respectivos regimes democráticos.

Efectivamente, estamos cada vez mais cientes de que é em quadros sociais de aceitação tolerante da diversidade, é em espaços assumidos de multiculturalidade que se podem manifestar, promover e reforçar expressões plurais e abertas de intervenção e participação cívicas, de vivências de cidadania. As democracias não se podem hoje constituir como “ditaduras de maiorias” (ainda que conjunturais) legitimadas pelo voto, antes têm de se conceber e estabelecer como campos largos e disponíveis para as interacções positivas e criativas de todos os grupos sociais e culturais em presença (mesmo dos mais minoritários) e essa situação só é viável onde se estabeleça uma separação clara entre um espaço público assumido como ideológica e religiosamente neutro - ou seja, laico - e um domínio privado para onde se remetam todas as opções confessionais.

Nesta conjuntura, esperamos que seja à luz de um desejável processo de laicisação da sociedade portuguesa que a Assembleia da República proceda à discussão da chamada “Lei da liberdade religiosa”, contrariando naturalmente o projecto apresentado por Vera Jardim nos aspectos que visam a perpetuação dissimulada do actual “status quo” - muito especialmente a intenção de manter uma (qualquer) “concordata” com a Santa Sé -, procurando integrar o estatuto das associações religiosas no quadro mais vasto do associativismo livre e autónomo dos cidadãos, garantindo, simultaneamente, a equidade completa entre todos eles (crentes e não crentes) e, evidentemente, assegurando a neutralidade confessional do Ensino Público.

A laicidade da Escola Pública é efectivamente uma questão essencial da construção do Estado Democrático. Na verdade, sendo a família - espaço determinante da socialização primária dos indivíduos e domínio privado por excelência - natural e tendencialmente confessional, cabe à Escola - instrumento privilegiado da socialização secundária dos indivíduos e domínio público institucional - veicular o projecto de uma sociedade aberta e participada, multicultural e tolerante, em suma, da sociedade mais democrática que se pretende para o presente século.

Étienne Pion, no seu livro “L’Avenir Laïque” (1992), sublinha que “A tolerância recíproca e a liberdade de consciência têm em comum o não serem mais espontâneas que a democracia: umas e outras são conquistas da civilização em períodos de equilíbrio e desenvolvimento. O que hoje denominamos Laicidade não é mais conforme ao instinto social ou individual que os outros valores democráticos: ela resulta de uma evolução esclarecida da consciência pública e individual.”

Portanto, de um modo politicamente deliberado e determinado, há que promover a tolerância, estabelecer a laicidade, aprender a cidadania e edificar a democracia; há que formar as posturas, quer individuais, quer colectivas, de expressão humanista e cívica, requeridas pela sociedade mais equitativa, mais plural e mais aberta a que almejamos para o século XXI e, em primeira instância, só à Escola Pública poderá ser institucionalmente cometida tal tarefa.

(*)Luis Manuel Mateus é membro do CAEDEL - Centre d’Action Européenne Démocratique et Laïque; Mouvement Europe et Laïcité (delegação portuguesa)


Movimento «Europa e Laicidade»