1. Introdução
Em «Mental Events» Davidson propõe uma forma de materialismo não
reducionista a que chama de monismo anómalo. De acordo com o monismo
anómalo, existe uma identidade entre certos acontecimentos mentais e
certos acontecimentos físicos, apesar de os acontecimentos mentais não
se reduzirem aos físicos. Deste modo, Davidson fornece uma teoria
identitativa a qual nega a existência de leis que regulem essa
identidade entre a mente e o corpo, ao contrário das teorias
materialistas clássicas. Se a teoria do monismo anómalo estiver
correcta, a identidade não se dá entre tipos mentais e tipos físicos,
mas entre espécimes mentais e físicos. Isto é, a identidade não é
entre estados mentais e estados físicos em geral, mas entre
acontecimentos mentais e físicos particulares. Por exemplo, o meu
desejo de beber um copo de água é também uma realização de um certo
acontecimento físico, ou seja, o meu desejo de beber água é idêntico
a um certo estado físico do meu cérebro. Mas deste facto não se segue
que exista uma identidade entre acontecimentos mentais do mesmo tipo,
isto é, entre o desejo de outras pessoas de beberem água ou entre o
meu desejo de beber água em ocasiões diferentes, e acontecimentos do
mesmo tipo físico. Logo, uma vez que nega a existência de uma
identidade entre tipos físicos e tipos mentais, Davidson nega que
certos estados mentais tipo, como crenças, recordações, decisões,
etc., possam se reduzir a estados físicos tipo.
O objectivo único destas páginas é expor de forma clara alguns dos
argumentos fornecidos por Davidson a favor do monismo anómalo, para
depois o confrontar com a chamada ameaça epifenomenista.
2. O Monismo Anómalo
Davidson apresenta a sua teoria do monismo anómalo a partir de três
premissas aparentemente contraditórias entre si. Estas são:
(P1) Pelo menos alguns acontecimentos mentais interagem causalmente
com acontecimentos físicos. (Princípio de interacção causal)
(P2) Onde houver causalidade deve haver lei, isto é, os
acontecimentos ligados através de uma relação de causa e efeito devem
obedecer a leis estritas. (Princípio do carácter nomológico da
causalidade)
(P3) Não existem leis deterministas estritas a partir das quais se
possam explicar e prever os acontecimentos mentais. (Princípio do
anomalismo do mental).
Aparentemente, (P1) e (P2) implicam a negação de (P3), (P2) e (P3)
implicam a negação de (P1) e (P1) e (P3) a negação de (P2). O
argumento de Davidson consiste em defender que as três premissas são
compatíveis entre si. Uma vez que a teoria do monismo anómalo se segue
destas, visto que se caracteriza pelos três princípios assumidos nas
premissas, se ele provar que as premissas são compatíveis entre si,
prova a admissibilidade da sua teoria. É claro que não basta
argumentar que o argumento é válido, caso em que bastaria provar que a
teoria se segue de (P1)-(P3), pressupondo que a teoria é consistente.
Temos também de provar que as premissas são, senão verdadeiras, pelo
menos plausíveis. Caso contrário, o argumento não é sólido. Iremos
então começar por mostrar a plausibilidade das premissas, para depois
provar a correcção do argumento.
Ao argumentar a favor do monismo anómalo, Davidson fala de
acontecimentos mentais e de acontecimentos físicos. Para ele os
acontecimentos são entidades particulares não repetíveis que se
encontram localizados espacio-temporalmente. Outra característica dos
acontecimentos é o facto de eles poderem ser descritos de várias
formas. Por exemplo, se eu tropeçar num tapete e cair em cima de um
rato atingindo-o mortalmente, apesar de este ser um acontecimento
particular, pode ser descrito como, «A Célia tropeçou e caiu» ou «A
Célia matou um rato», etc. Mas Davidson não defende apenas que os
acontecimentos podem ser descritos de várias formas, o que é
inegável. Ele defende que os acontecimentos, ele próprios, não são
físicos nem mentais. Aquilo que faz com que um acontecimento seja
classificado como físico ou mental é a existência de uma descrição
que o descreva como físico ou mental. O que nos permite distinguir
então entre uma descrição física e uma descrição mental de um
acontecimento? O critério usado para distinguir o mental do físico é
a presença ou ausência de termos intencionais nas descrições. A
intencionalidade é aquela característica das nossas descrições de
estados mentais que faz com que sejam acerca de, ou a propósito de,
certos objectos ou estados de coisas. Deste modo, desejos, decisões,
crenças, etc., são estados descritos intencionalmente e logo são
mentais. Assim, um acontecimento é mental se for descrito por meio de
uma descrição que contenha essencialmente expressões intencionais e
físico, caso contrário. Por exemplo, o acontecimento descrito como,
«O João deseja beber água», é descrito intencionalmente, uma vez
que contém a expressão intencional «deseja x». Mas o mesmo
acontecimento descrito como «João levantou um copo com água» é
físico, uma vez que não faz uso de expressões intencionais.
2.1. Princípio de Interacção Causal (P1)
Após este esclarecimento, torna-se bastante fácil defender a
plausibilidade da premissa (P1), a qual enuncia o princípio de
interacção causal. Esta diz que, em certas ocasiões, um acontecimento
físico, como por exemplo, o cair da chuva, pode causar um certo
acontecimento mental, como o meu desejo de beber água. O contrário
também é verdade, isto é, um certo acontecimento mental, como o meu
desejo de beber água, pode causar um certo acontecimento físico, como,
por exemplo, o levantar do meu braço com um copo de água na mão.
Penso que (P1) é suficientemente plausível para dispensar argumentos.
Além disso, em Mental Events Davidson também não o defende, limita-se
a assumi-lo como hipótese.
2.2. Princípio do Carácter Nomológico da Causalidade (P2)
Quanto a (P2), isto é, o princípio do carácter nomológico da
causalidade, a sua verdade não é tão evidente. Este princípio deriva
da filosofia de David Hume, o qual defende que sempre que um
acontecimento a causa um acontecimento b, existe uma lei causal que
relaciona acontecimentos do tipo de a com acontecimentos do tipo de b,
sendo a conjunção destes uma instância da lei. Uma crítica óbvia a
este tipo de doutrina (que consiste em defender a contraditória desta),
é a de que, apesar de um acontecimento a causar um acontecimento b,
daí não se segue que exista uma lei que relacione estes
acontecimentos. Por exemplo, que lei causal relaciona o acontecimento de
eu deixar cair um copo de água com o acontecimento de este se partir?
Aparentemente nenhuma. No entanto, segundo Davidson isto não é
incompatível com (P2). Apesar de a causalidade ser uma relação entre
acontecimentos, as leis não são acontecimentos mas itens
linguísticos. Assim, dois acontecimentos relacionados causalmente
instanciam leis quando descritos de uma certa forma mas não de outra.
Tomando o exemplo supra, apesar de ser verdade que não existe nenhuma
lei com base na qual possamos explicar e prever o acontecimento de o
copo se ter partido por eu o ter deixado cair, uma vez que não existe
nenhuma lei que fala de copos, existe, no entanto, uma lei causal que
relaciona estes dois acontecimentos quando descritos de um modo mais
adequado a servir os propósitos em causa, como, por exemplo, «o
objecto de massa m foi deixado cair a uma velocidade v, etc.» Logo,
apesar de ser verdade que quando existe uma relação causal existe uma
lei que a explica, tais leis podem ser formuladas recorrendo a
descrições completamente diferentes daquelas que normalmente usamos
para descrever acontecimentos simples, como o partir do copo.
Podemos assim concluir, que se (P2) estiver correcto, então apesar
de podermos descrever uma relação causal entre dois acontecimentos
através de expressões intencionais, daí não se segue que a lei que
os relacione faça uso dessas mesmas expressões intencionais. Afinal, o
que o princípio do carácter nomológico da causalidade diz é que,
quando dois acontecimentos se encontram relacionados causalmente, existe
uma descrição dessa relação que instancia uma lei. O princípio não
diz que qualquer descrição dessa relação serve como instância de
uma lei causal. Apesar de a verdade de (P2) ser plausível, pelo menos
debaixo desta interpretação, Davidson nunca apresenta quaisquer
argumentos a seu favor, limitando-se, tal como em (P1), a tomá-la como
hipótese.
2.3. Princípio do Anomalismo do Mental (P3)
O princípio do anomalismo do mental é o princípio basilar da
filosofia da mente de Davidson. (P3) afirma que não há leis que
relacionem as descrições mentais (isto é, que não há leis
psicológicas) e que não há leis que relacionem descrições mentais e
descrições físicas (isto é, que não há leis psico-físicas).
Assim, se queremos defender (P3) temos que provar a não existência de
leis psico-físicas e psicológicas.
O argumento de Davidson contra a existência de leis psicológicas
tem por base duas ideias: (i) a ideia de que toda a explicação
psicológica tem de ser holista, no sentido em que a atribuição de um
certo estado mental a um agente só pode ser feito com base na
atribuição ao agente de outros estados mentais, e (ii) a ideia de que
as descrições psicológicas não constituem um corpo fechado.
Considere-se a seguinte situação. Imagine-se que eu tinha comprado
um filme de terror. Este comportamento poderia ser explicado de várias
formas. Eu poderia ter comprado o filme de terror porque desejava ter
emoções fortes, porque desejava impressionar os meus amigos, porque
acreditava que ver filmes de terror era algo de bom, etc. Estas
explicações são, no entanto, demasiado vagas e difusas para poderem
fazer parte de uma lei estrita. Por exemplo, eu poderia antes ter
comprado uma comédia, por ter acordado bem disposta nesse dia. É
porque existem inúmeros factores que interferem numa explicação de um
certo comportamento racional que Davidson argumenta a favor do carácter
holista das explicações psicológicas. E é porque existem demasiados
factores difusos nas explicações psicológicas, tornando impossível a
tarefa de os especificar, que Davidson argumenta a favor da não
existência de leis psicológicas. O máximo que podemos ter, segundo
ele, são generalizações que nos ajudam a compreender certas
situações, e não leis estritas, isto é, leis deterministas, que as
expliquem e prevejam. Além disso, segundo Davidson, os predicados
usados para descrever o comportamento dos agentes racionais não são
passíveis de ser usados na formação de uma lei estrita, uma vez que
não constituem um sistema fechado.
Davidson fornece um argumento bastante claro contra a existência de
leis psicológicas na seguinte passagem:
É um erro comparar um truísmo como «Se um homem deseja comer uma
omeleta de bolota, então ele em geral fá-lo-á, se a oportunidade
existir e nenhum outro desejo suplantar este» com uma lei que diz o
quão rápido um corpo irá cair no vácuo. É um erro, porque no
último caso, mas não no primeiro, podemos logo dizer se a condição
é satisfeita, e sabemos como explicar se não for satisfeita.
[Davidson, «Psychology as Philosophy», pp. 233]
Se o truísmo descrito fosse uma lei psicológica, então para que o
antecedente obtenha, o agente teria de desejar comer uma omeleta de
bolota. Mas o nosso conhecimento dos desejos de um agente depende
essencialmente da nossa atribuição de outros estados mentais. Além
disso, é só quando conhecemos a acção de um agente que, em geral,
conseguimos interpretar quais os seus desejos e crenças. É por isso
que tanto o antecedente como a consequente da suposta lei psicológica
estão interligadas pelo holismo da interpretação. E é por isso que
não existem leis psicológicas estritas.
Para provar (P3), temos ainda que provar a não existência de leis
psico-físicas, isto é, de leis estritas que liguem as propriedades
físicas às mentais. Dado o argumento da não existência de leis
psicológicas, torna-se agora bastante mais simples extrair o argumento
contra a existência de leis psico-físicas. Segundo Davidson, a não
existência de leis psico-físicas deve-se ao facto de o mental ser
regulado por princípios gerais de racionalidade que não se aplicam,
pelo menos não do mesmo modo, ao domínio do físico. Princípios
normativos como o de coerência e de consistência, que são
características do mental, não desempenham qualquer papel no domínio
da explicação dos acontecimentos físicos. Se existissem leis que
relacionassem o domínio mental com o domínio do físico, aquelas
características do mental que não são características do físico
teriam também de entrar em consideração aquando da formulação e
aplicação das leis psico-físicas. E se esse fosse o caso, teríamos
de aplicar o Princípio da Caridade, com a sua regra de maximização da
coerência e racionalidade, aos acontecimentos físicos. O que é
absurdo. É por este motivo que Davidson argumenta que:
Não existem leis psico-físicas estritas uma vez que existem
compromissos distintos entre os esquemas mentais e físicos. É uma
característica da realidade física que as mudanças físicas possam
ser explicadas por meio de leis que as conectam com outras mudanças e
condições fisicamente descritíveis. É uma característica do
mental que a atribuição de fenómenos mentais tenha de ter por base
o background de razões, crenças, e intenções do indivíduo. Não
podem existir conexões estreitas entre os dois domínios se estes
têm de se submeter às suas fontes próprias de evidência.
[Davidson, «Mental Events», pp.222]
Dados estes argumentos contra a não existência de leis psico-físicas
e de leis psicológicas, prova-se a plausibilidade de (P3).
2.4. Conclusão: O Monismo Anómalo
Como já tivemos oportunidade de dizer, a doutrina do monismo
anómalo segue-se de (P1)-(P3). Provada a plausibilidade de cada uma das
premissas, temos ainda de provar como as conciliar, visto serem,
aparentemente, contraditórias entre si. Por (P1), um certo
acontecimento mental M (por exemplo, o meu desejo de beber água) é a
causa de um acontecimento físico F (por exemplo, o levantar do meu
braço com um copo de água). Por (P2), estes acontecimentos, segundo
certas descrições, instanciam uma lei causal estrita. Mas dado o
carácter anómalo do mental, (P3), as descrições que instanciam uma
lei estrita que relaciona causalmente os dois acontecimentos, não podem
conter termos mentais. Logo, a descrição do acontecimento mental M que
irá instanciar a lei causal estrita tem de ser uma descrição física,
caso em que M é um acontecimento físico.
Apesar de existir uma identidade entre acontecimentos mentais e
acontecimentos físicos, daqui não se segue que os acontecimentos
mentais possam ser reduzidas aos mentais, isto porque, num certo
sentido, não há senão acontecimentos físicos. O monismo anómalo
afirma assim a identidade entre espécimes (tokens) de acontecimentos
mentais e espécimes de acontecimentos físicos, rejeitando a identidade
dos tipos ou propriedades mentais e físicas. Note-se que todo o
argumento é estabelecido com base na distinção entre o carácter
intensional da explicação causal e o carácter extensional da
relação causal.
3. Superveniência
Vimos que apesar de o mental não ser redutível ao físico, os
acontecimentos mentais podem ser emparelhados com os físicos. Isto é,
toda a descrição mental de um acontecimento pode ser emparelhada com
uma descrição física de outro acontecimento. Isto leva Davidson a
introduzir a noção de superveniência que nos diz que, uma propriedade
mental M é superveniente em relação a uma propriedade física F, se
não puder existir uma mudança em M sem que haja uma mudança em F;
isto é, as propriedade mentais são supervenientes em relação às
propriedades físicas. É este expediente que permite a Davidson
defender uma posição monista (um monismo ontológico) não
reducionista.
Uma tal superveniência pode ser vista como dizendo que não podem
existir dois acontecimentos idênticos no que diz respeitos às suas
características físicas, mas que diferem no que diz respeito a
alguma característica mental, ou que um objecto não pode diferir em
relação a uma certa característica mental sem diferir numa certa
característica física. [Davidson, Mental Events, pp. 214]
Esta definição de superveniência tem o problema de ser ambígua, o
que suscitou algumas críticas entre alguns dos comentadores de
Davidson, uma vez que parece implicar duas coisas distintas: (i) que uma
mudança das propriedades mentais de um certo acontecimento leva a uma
mudança nas propriedades físicas desse mesmo acontecimento ou (ii) que
uma mudança nas propriedades físicas de um acontecimento leva a uma
mudança nas suas propriedades mentais. No entanto Davidson rejeita
(ii). Num artigo retrospectivo onde Davidson pretende dissipar algumas
das dúvidas que surgiram em volta da sua doutrina do monismo anómalo,
é-nos dada uma definição mais clara de superveniência:
Um predicado p é superveniente em relação a um conjunto de
predicados S se, e só se, p não distingue quaisquer entidades que
não possam ser distinguidas por meio de S. [Davidson, «Thinking
Causes», pp.4]
Esta definição afirma que uma mudança das propriedades (ou
predicados) mentais de um acontecimento implica uma mudança nas
propriedades físicas desse mesmo acontecimento. Mas daqui não se segue
que as mesmas propriedades físicas mudem com as mesmas propriedades
mentais. Pois, se tal fosse o caso, é porque existia uma identidade
entre certos tipos de acontecimentos físicos e certos tipos de
acontecimentos mentais, o que é algo que Davidson recusa. O que esta
definição de superveniência pretende bloquear é a possibilidade de
termos dois acontecimentos mentalmente distintos mas fisicamente
indistinguíveis. No entanto, podemos ter dois acontecimentos
fisicamente distintos mas mentalmente indistinguíveis. Ao suplementar o
monismo anómalo com a noção de superveniência, Davidson pretende
mostrar que apesar de existir uma identidade entre acontecimentos
mentais e físicos daqui não segue que esta identidade possa ser tomada
como uma forma de reducionismo, ou que existam leis causais estritas que
liguem as propriedades mentais de um certo acontecimento com as suas
propriedades físicas. «O monismo anómalo assemelha-se ao materialismo
na medida em que afirma que todos os acontecimentos são físicos, mas
rejeita a tese, usualmente vista como essencial ao materialismo, de que
os fenómenos mentais podem ser inteiramente explicados por meios
físicos.»
4. A Ameaça Epifenomenista e o problema Qua
O principal problema que se costuma associar à teoria de Davidson,
é o facto de ela, aparentemente, implicar o epifenomenismo. O
epifenomenismo é a doutrina que afirma que apesar de certos
acontecimentos físicos causarem certos acontecimentos mentais, eles
próprios (os acontecimentos mentais) não têm poderes causais. É
claro que o grande problema que qualquer teoria acerca da relação
entre a mente e o corpo pretende explicar, é como certos acontecimentos
mentais (portanto não físicos) causam certos acontecimentos físicos.
Uma reposta imediata, mas que Davidson rejeita, é aquela que é dada
pelas teorias materialistas: os acontecimentos mentais causam certos
acontecimentos físicos porque aqueles acontecimentos não são mais do
que estados cerebrais, isto é, eles são acontecimentos físicos ¾ ou
seja, existe uma identidade entre acontecimentos mentais tipo e
acontecimentos físicos tipo. O problema que a doutrina epifenomenista
levanta, é o de que, ao negar quaisquer poderes causais aos
acontecimentos mentais, faz com que se torne impossível fornecer uma
teoria da acção credível. Isto é, nega que certos acontecimentos
mentais possam levar alguém a agir. Quanto ao monismo anómalo, o
problema é que ele parece implicar directamente o epifenomenismo. Pois
apesar de certos acontecimentos mentais causarem certos acontecimentos
físicos (P1), eles não os causam qua acontecimentos mentais, mas qua
acontecimentos físicos. Logo, os acontecimentos mentais são
causalmente inertes (epifenoménicos). Note-se que esta consequência de
epifenomenismo não é algo que se extrai de uma mera interpretação
das palavras de Davidson, é algo que ele afirma quase literalmente. Eis
um exemplo:
Suponha-se que m um acontecimento mental, causa p, um acontecimento
físico; então debaixo de uma certa descrição m e p instanciam uma
lei estrita. Esta lei só pode ser física, de acordo com o parágrafo
anterior. Mas, se m cai debaixo de uma lei física, é porque tem uma
descrição física; o que é o mesmo que dizer que é um
acontecimento físico. […] Assim, todo o acontecimento mental que se
encontra causalmente ligado com um acontecimento físico é um
acontecimento físico. [ Davidson, Mental Events, pp. 224]
O epifenomenismo não é apenas uma ameaça para o monismo anómalo por
ser uma consequência deste e por assim impossibilitar uma explicação
da acção. Ele é uma ameaça para o monismo anómalo de Davidson
porque, a partir de (P1), conjuntamente com outras considerações, se
segue o epifenomenismo dos acontecimentos mentais que é a negação de
(P1). Logo, aparentemente, o monismo anómalo implica uma contradição
e logo, por reductio ad absurdum, é falso. A acusação de que o
monismo anómalo de Davidson implica o epifenomenismo é algo que muitos
filósofos têm feito. Pessoas como Jaegwon Kim, Ted Honderich, Ernest
Sosa, Brian P. McLaughlin e muitos outros são disso exemplo. Em
Thinking Causes, Davidson defende-se desta acusação argumentando que,
apesar do que ele próprio diz, mas que ele próprio não reconhece que
diz, não faz sentido dizer que a relação causal dá-se debaixo desta
ou daquela descrição. Os acontecimentos são particulares concretos
espácio-temporalmente localizados, não são coisas abstractas que só
se substancializam debaixo de certas descrições. As relações causais
são relações extensionais que se dão entre acontecimentos, sendo
indiferente o modo como são descritos. A função única das
descrições, ou pelo menos de algumas delas (isto é, as físicas), é
a de permitirem que se possa inferir de uma lei estrita que, se um
acontecimento ocorreu, então outro lhe irá suceder. As descrições
mentais não permitem uma tal inferência. São as leis, que são
linguísticas, que regulam a relação de causalidade, não os
acontecimentos eles mesmos. E é por isso que se diz que os
acontecimentos instanciam leis estritas, quando descritos por meio de
termos fisicalistas. Logo, descrever um acontecimento desta ou daquela
maneira não altera em nada aquilo que ele causa.
Dizer que o mesmo acontecimento pode ser descrito de várias formas,
isto é, segundo descrições mentais ou físicas, é dizer que esse
acontecimento tem várias características ou propriedades. Por exemplo,
o acontecimento de eu ter bebido um copo de água, tem a propriedade de
eu ter desejado beber um copo de água, de eu ter levantado o copo, etc.
Um acontecimento a e um acontecimento b são o mesmo acontecimento se, e
só se, a e b possuem exactamente as mesmas propriedades. Mas se o
monismo de Davidson é um monismo materialista, então para que servem
as propriedades mentais, que papel é que estas desempenham nas
relações causais? Ou será que as propriedades mentais são de facto
epifenoménicas? É para responder a esta questão que a noção de
superveniência é importante. Afirma Davidson,
A superveniência, tal como eu a defini [faz com que as propriedades
mentais tenham importância na relação causal], pois como vimos, esta
implica que se dois acontecimento diferem no que diz respeito às suas
propriedades psicológicas [(ou mentais)], então diferem no que diz
respeito às suas propriedades físicas (as quais assumimos serem
causalmente eficazes). Se a ideia de superveniência estiver correcta,
as propriedades mentais desempenham um papel na relação causal de um
acontecimento, pois elas são importantes para as propriedades físicas,
e as propriedades físicas são importantes para as relações causais.
[Davidson, «Thinking Causes», pp. 14]
Não penso que este tipo de argumentos responda inteiramente às
críticas de epifenomenalismo. Afinal o que Davidson está a dizer é
que certas propriedades de um certo acontecimento desempenham um papel
causal e outras não ¾ sendo estas (as que desempenham um papel causal)
as usadas nas descrições que instanciam as leis causais estritas. O
que é absolutamente correcto. Para exemplificar o que está em causa
vou usar um exemplo de Ted Honderich. Imagine-se o acontecimento da
pesagem de umas pêras. É irrelevante para o acontecimento de o
ponteiro da balança ter-se movido para apontar 2 Kg o facto de as
pêras serem verdes e francesas. É claro que se as pêras não fossem
verdes mas amarelas o acontecimento não seria o mesmo. E Davidson aí
tem razão. Mas daí não se segue, como ele deseja, que todas as
propriedades sejam igualmente relevantes para este acontecimento.
Afinal, apesar de ser verdade que se as pêras fossem amarelas o
acontecimento não seria o mesmo, é falso que só pelo facto de serem
amarelas não pesassem 2 Kg. Daqui segue-se que, como argumenta
Honderich, há propriedades causalmente relevantes e propriedades
causalmente irrelevantes. E apesar de também ser verdade que se as
pêras não fossem verdes a causa não seria a mesma, daí também não
se segue que essa propriedade das pêras seja causalmente relevante.
No caso dos acontecimentos mentais, e uma vez que estes só
instanciam leis causais estritas debaixo de descrições fisicalistas,
então é porque só as propriedades físicas é que são causalmente
relevantes. No entanto, Davidson poderia argumentar, como aliás o faz,
que o acontecimento não seria o mesmo acontecimento senão tivesse as
propriedades que tem, as físicas e as mentais. Contudo, isto não faz
com que as propriedades mentais sejam causalmente relevantes, assim como
o verde das pêras também o não é para o peso. Uma forma de fugir a
estas objecções é argumentar a favor da relevância das propriedades
mentais por estas serem supervenientes em relação às físicas. Se a
noção de superveniência estiver correcta, penso que, talvez, Davidson
consiga escapar a este tipo de objecções e a crítica de Honderich
não colha. No entanto, há um diferença crucial para a qual Jaegwon
Kim chama a atenção em «Can Supervenience Save Anomalous Monism», e
que nem Davidson nem Honderich têm em consideração.
Uma coisa é dizer que as propriedades mentais são causalmente
relevantes uma vez que, dada a noção de superveniência, se as
propriedades mentais mudarem as físicas também terão de mudar. Outra
é dizer que elas são causalmente eficazes. Segundo Kim, «Davidson
deve muito provavelmente precisar de eficácia causal e não apenas de
relevância causal, para as propriedades mentais. A mera relevância
causal parece demasiado fraca para suportar a explicação-causal do
'porque' nas explicações das racionalizações. E parece-me a mim que
a maioria dos filósofos que acreditam na causalidade mental quereriam
também a eficácia causal, e não mera relevância». Parece-me
evidente que não se segue do facto de dois acontecimentos E1 e E2, se
encontrarem causalmente ligados em virtude da propriedade p1 de E1 e da
propriedade p2 de E2, e do facto de existirem outras propriedade como f1
e f2 que são causalmente relevantes na medida em que sem elas este
acontecimento não seria este acontecimento, que f1 e f2 tenha qualquer
eficácia causal. Assim como também me parece evidente que do facto de
o verde das maçãs ser relevante para o peso, na medida em que se estas
não fossem verdes a causa não seria a mesma, que o verde seja
causalmente eficaz. Mas se as propriedades mentais não são causalmente
eficazes é porque são epifenoménicas, mas se são epifenoménicas a
premissa (P1) do argumento do monismo anómalo é falsa, e logo também
o é a teoria do monismo anómalo. Logo, ou Davidson mostra em que
medida é que as propriedades mentais são causalmente eficazes ou terá
de rejeitar a sua teoria.
5. Bibliografia
Davidson D. (1970): «Mental Events» in Essays on Action and Events.
Oxford: Claredon Press, 1980, pp. 207-27.
«Psychology as Philosophy» in Essays on Action and Events. Oxford:
Claredon Press, 1980, pp.229-44.
«The Material Mind» in Essays on Action and Events. Oxford: Clarendon
Press, 1980, pp. 245-59.
«Thinking Causes» in John Heil & Alfred Mele (ed.), Mental
Causation. Oxford: Clarendon Press, 1995, pp.3-17
Evnine, S. (1991): Donald Davidson. Oxford: Polity Press.
Kim, J. «Can Supervenience Save Anomalous Monism» in John Heil &
Alfred Mele (ed.), Mental Causation. Oxford: Clarendon Press, 1995,
pp.19-26.
Honderich, T. «The Argument for Anomalous Monism» in Analysis, 42:1,
Janeiro, 1982, pp. 59-64.
Célia Teixeira
celia.teixeira@clix.pt