O Atomismo Lógico e a Função Referencial da Linguagem
Adriana Silva Graça


1. O Problema Básico

Este ensaio, dirigido a um público interessado em filosofia mas não necessariamente com um grande background filosófico, tem um duplo objectivo. Em primeiro lugar, caracterizar aquilo que ficou conhecido como sendo a Filosofia do Atomismo Lógico de Bertrand Russell, em segundo, mostrar como algumas das ideias cruciais daquela filosofia inspiram a corrente da semântica contemporânea segundo a qual não é eliminável da linguagem a função semântica puramente referencial. Note-se que esta ideia contraria a forma mais comum de interpretar a Filosofia do Atomismo Lógico. Segundo esta forma, a mais usual, de interpretar a Filosofia do Atomismo Lógico, extraem-se da filosofia de Russell argumentos que mostram justamente o resultado inverso daquele que queremos estabelecer, a saber, que é possível eliminar a função referencial da linguagem. A seu tempo justificaremos como se torna, aparentemente, possível que a Filosofia do Atomismo Lógico conduza à extracção de dois resultados contraditórios.


2. Análise Lógica da Linguagem

A designação Filosofia do Atomismo Lógico foi a designação que Russell deu aos resultados da sua filosofia - em particular, nos domínios da Filosofia da Linguagem, da Filosofia do Conhecimento e da Ontologia - compreendidos entre os anos de 1905, data da publicação de "On Denoting" 1, e 1918, data da publicação de "The Philosophy of Logical Atomism" 2. Assim, esta designação cobre na verdade um conjunto vasto de doutrinas e de teses que no entanto se entrecruzam para constituir um certo ponto de vista filosófico consistente. De entre estas doutrinas e teses, vamos seleccionar aquelas que nos parecem ser as mais importantes para atingir o nosso objectivo. Em particular, a conecção que nos parece ser determinante para a nossa temática é a que obtém entre a Filosofia da Linguagem e a Filosofia do Conhecimento, que caracteriza de resto um dos pontos cruciais da Filosofia do Atomismo Lógico russelliana.

A concepção básica que preside à Filosofia do Atomismo Lógico é a concepção segundo a qual é possível e desejável fazer uma análise lógica da linguagem corrente de tal forma que se determinem quais os 'átomos' linguísticos, quais aqueles termos que são simples e já não mais analisáveis, que por sua vez correspondem a entidades, a 'átomos', igualmente simples, no mundo extralinguístico. Dizíamos que esta análise é possível e desejável dado que

a)- existe uma identidade estrutural entre a estrutura da nossa linguagem (quando completamente analisada) e a estrutura da realidade extralinguística que é suposta representar (o que explica a possibilidade da análise) e que
b)- a realização da paráfrase da linguagem corrente numa linguagem logicamente perfeita - na qual consiste a análise - lança luz sobre a estrutura real, escondida por debaixo da estrutura aparente, da linguagem corrente (o que explica a desejabilidade da análise)3.

Russell considera assim que a estrutura gramatical da linguagem que usamos todos os dias não coincide normalmente com a sua estrutura lógica e que, assim sendo, é necessário proceder-se à análise lógica da linguagem a qual é suposta tornar manifesta a verdadeira, real e profunda estrutura da linguagem que usamos para falar acerca do mundo. A estrutura gramatical de uma frase é então encarada como sendo enganadora, aparente e superficial, ao contrário da sua estrutura lógica, que se encontra após análise, e que é então, como dizíamos, verdadeira, real e profunda.


3. Átomos Lógicos e Termos Simples

Quer a linguagem (assim analisada), quer a realidade (que é a sua contraparte extralinguística e aquilo relativamente ao qual a linguagem não é mais do que uma imagem), são por Russell concebidas como sendo constituídas por átomos lógicos, o que decorre do facto de existir uma identidade estrutural entre elas, como há pouco salientámos. Qualquer proposição completamente analisada (no sentido acima especificado) é composta por constituintes os quais são termos simples, no sentido de que não são susceptíveis de análise posterior. A estes constituintes últimos da proposição - os termos simples -correspondem, na realidade extralinguística, os átomos lógicos que fazem parte do mundo extralinguístico. O mundo é assim construído a partir de átomos lógicos - os quais são expressos por termos simples -, de factos compostos por estes átomos, i.e., de factos atómicos - os quais são expressos por proposições completamente analisadas nas quais não existem conectivas lógicas - e de factos compostos a partir destes factos, i.e., de factos moleculares 4.

A ideia de que o mundo é composto a partir de átomos é muito antiga na História da Filosofia, mas ideia de que estes átomos são lógicos, o que significa - como decorre do que fica dito - que eles são a contraparte extralinguística do resultado da análise lógica da linguagem, é inteiramente nova. Relativamente a eles, as perguntas filosóficas típicas são:

i)- qual a natureza dos átomos lógicos?
e
ii)- como é possível conhecer estes átomos?

De igual modo, a ideia de que os átomos que constituem o mundo têm como imagem, ou representantes linguísticos, termos simples, também é muito antiga na História da Filosofia, mas a ideia de que estes termos simples são os constituintes das proposições completamente analisadas, i.e., a ideia de que são os últimos resíduos da análise lógica da linguagem, os sujeitos últimos da predicação, é inteiramente nova. As perguntas filosóficas típicas relativamente a eles são:

iii)- o que é o sentido dos termos simples?,
iv)- como é possível a apreensão individual do sentido destes termos?
e
v)- como contribui o sentido dos termos simples para o sentido das proposições nas quais eles ocorrem?

As questões i)- e ii)-, respectivamente, acerca de qual a natureza dos átomos lógicos que constituem o mundo e acerca de como é possível conhecê-los, têm as suas respostas dadas nos seguintes termos. i)- Os elementos simples, os átomos, a partir dos quais o mundo é constituído são sense data (dados dos sentidos), caracterizados como sendo entidades físicas, i.e., não-mentais 5, privadas, i.e., não-públicas, (aos quais só uma pessoa tem em princípio acesso), e, consequentemente, passageiras e momentâneas. ii)- O acesso cognitivo a este tipo de entidades é directo, imediato e não susceptível de erro. Dos sense data tem-se um tipo de conhecimento directo 'by acquaintance', por contacto. É de facto impossível alguém estar enganado acerca dos seus próprios dados dos sentidos 6, e, por isso, o conhecimento por contacto é caracterizado como sendo irrefutável. Na verdade, o conhecimento por contacto é o único conhecimento acerca do qual a dúvida céptica, do tipo 'será que o meu conhecimento não pode estar errado?', não se pode estender 7; não se pode duvidar da existência daquilo com o qual se está em contacto. Os átomos lógicos são assim 'pequenos pedaços de cor ou sons, coisas momentâneas... predicados ou relações e por aí em diante' 8. Os átomos lógicos a partir dos quais o mundo é constituído são assim entidades espacio-temporalmente identificáveis, concretas, como por exemplo, o meu sense datum relativo ao computador no qual estou a trabalhar, mas também entidades como as suas propriedades ou relações, como por exemplo, o meu sense datum relativo ao facto de o computador ter cor preta, que exemplifica uma propriedade que o meu computador tem, ou o meu sense datum relativo ao facto de ele estar em cima da mesa, que exemplifica uma relação na qual o meu computador está.

O Princípio do Contacto (Principle of Acquaintance), máxima epistemológica da filosofia russelliana, estipula então que toda a proposição que podemos compreender deve ser inteiramente composta por constituintes com os quais estamos em contacto 9. Esta máxima decorre da concepção russelliana de 'átomo lógico' como sendo o ingrediente mais simples a partir do qual o mundo extralinguístico é constituído, que temos vindo a desenvolver, e da tradição empirista inglesa, segundo a qual todo o conhecimento é construido a partir de dados dos sentidos, na qual Russell se filia. Todo o conhecimento humano tem assim como base o conhecimento por contacto. Note-se que o Princípio do Contacto só pode ser formulado se for suposta a possibilidade de conhecer directamente (ou por contacto) universais: qualquer proposição contém, pelo menos, um termo geral (não-singular) que designa um universal e se, para compreender uma proposição, tenho que estar em contacto com todos os seus constituintes, segue-se que, se eu a compreendo então tenho conhecimento por contacto do (pelo menos um) universal que a constitui.

Relativamente a este aspecto, o de ser possível a existência de conhecimento por contacto, não só de particulares (entidades espacio-temporalmente identificáveis), mas também de universais (as propriedades daquelas entidades e as relações nas quais elas estão entre si), há a fazer duas notas importantes. A primeira, e que mereceria uma discussão mais extensa que no entanto nos conduziria para fora do nosso tópico, é que não há conhecimento por contacto dos universais considerados independentemente dos objectos que os exemplificam. Este conhecimento directo de universais é-o de universais enquanto eles existem (estão exemplificados) nos meus sense data. Por outras palavras, o que eu conheço por contacto não é a propriedade de ser preto em geral, a qual não é considerada por Russell como tendo existência independente dos objectos concretos, mas sim a propriedade de ser preto que o sense datum do meu computador tem 10. A segunda, que nos conduz para as questões iii)- a v)-, é reparar que a possibilidade de conhecer por contacto universais tem que ser admitida por Russell por razões que não são epistemológicas e que decorrem do seu ponto de vista na Filosofia da Linguagem, em particular do seu ponto de vista segundo o qual, e como atrás dissemos, a)- é possível e desejável fazer a análise lógica de qualquer proposição, e b)- qualquer proposição completamente analisada é composta por termos simples - os constituintes da proposição - que são os representantes linguísticos de entidades no mundo extralinguístico.

Passemos então às restantes questões. Recapitulando, o que é o sentido dos termos completamente analisados que compõem uma proposição? Como é possível a apreensão individual do seu sentido? Como contribui o sentido destes termos simples para o sentido das proposições nas quais eles ocorrem? Respectivamente, temos os seguintes resultados. iii)- O sentido de qualquer termo simples que compõe uma proposição - ou seja, dos seus constituintes - é o objecto no mundo extralinguístico por ele representado - ou seja, sense data são a referência dos constituintes de uma proposição completamente analisada. iv)- Compreender o sentido de um termo simples é saber qual o particular do qual ele é nome. A apreensão individual do sentido de um termo simples corresponde a conhecer qual o particular que lhe corresponde e a saber que ele é um nome desse particular 11. Finalmente, v)- não há sentido para a proposição no seu conjunto a menos que a cada termo simples que a constitui possa ser feito corresponder a entidade que representa no mundo extralinguístico. Por outras palavras, se 'n' for um termo não analisável (simples) e 'G' um predicado monádico, então 'n' determina a proposição expressa pela frase 'n é G', ou seja, utilizando a terminologia de há pouco, 'n' é um constituinte desta proposição. Isto significa que a proposição expressa por 'n é G' é dependente da identidade do objecto que 'n' representa, é objecto-dependente 12. Logo, para compreender a nossa proposição é condição necessária identificar o referente de 'n' e, se 'n' não tiver referente, então nenhuma proposição é expressa.

Convém agora dar um exemplo de proposição atómica completamente analisada. A ela vai necessariamente corresponder um facto atómico; a representação linguística de um facto atómico é uma frase atómica na qual não existam conectivas lógicas. 'Isto é vermelho' é o exemplo russelliano típico de uma proposição atómica. Note-se que qualquer uso do termo 'isto' não tem falha de referência, sendo o sentido deste termo identificável com o sense datum que lhe corresponde no mundo extralinguístico. O sentido de 'isto é vermelho' depende da identidade do objecto referido por 'isto', sendo por isso objecto-dependente, e é então possível compreender o sentido de 'isto' quando e só quando se tem conhecimento por contacto do objecto (sense-datum) por seu intermédio referido.

Sintetizando os resultados i)- a v)-, estamos de facto diante do cruzamento de teses de natureza semântica e epistemológica que convergem para a seguinte ideia: compreender o sentido de um termo simples corresponde ao conhecimento por contacto do objecto que o termo representa no mundo linguístico. Por outras palavras ainda, uma expressão é compreendida exactamente nas mesmas circunstâncias em que o seu sentido é conhecido ou apreendido 13.

Uma condição necessária e suficiente para identificar os resíduos últimos da análise lógica da linguagem é encontrar os termos simples, definidos pelos nossos resultados que dão as respostas às questões i)- a v). Nestas condições, podemos dizer que os termos simples, e só eles, são os representantes linguísticos de átomos lógicos no mundo exterior e que a relação que eles têm com estes átomos é a relação de os referir. A referência é assim a relação semântica que obtém entre um átomo lógico e termo simples que é o seu representante linguístico, na qual este (termo simples) é dito referir aquele (átomo lógico extralinguístico).


4. Nomes Próprios Aparentes e Genuinos

Até agora, tudo bem. Como acabámos de ver, um termo simples não contém partes, requer a existência de um objecto no mundo extralinguístico do qual seja representante, é compreendido quando e só quando aquele objecto for conhecido por contacto, ou seja, quando e só quando aquele objecto for um sense datum, e a proposição expressa por meio de uma frase na qual o termo ocorre é objecto-dependente. A referência de um termo simples é um átomo lógico, o qual corresponde a um sense-datum e, como tal, não persiste no tempo.

O problema começa quando tentamos encontrar um exemplo linguístico de um termo simples, mais especificamente, de um termo que ocupe a posição de sujeito de uma frase, que tenha com o objecto a relação semântica de referir e que não seja o termo 'isto'. Alarguemos agora a terminologia. Termos simples são os resíduos últimos da análise lógica da linguagem, são termos já não mais analisáveis, são o que se pode chamar (para o caso do termo sujeito da proposição) 'nomes logicamente próprios' 14 (logically proper names). Pelo que fica exposto, é fácil ver porque é que os termos singulares simples têm esta designação. Sendo estes termos aqueles que se encontram numa proposição completamente analisada e sendo esta última aquela que torna manifesta a estrutura lógica ou real de qualquer frase da linguagem corrente, então os termos singulares simples são aqueles que são realmente, genuinamente ou logicamente nomes próprios. Por outras palavras, termos simples são aqueles que funcionam como nomes próprios de facto, são as únicas entidades linguísticas com a capacidade semântica de referir. O nosso problema é agora a seguinte. São os nomes comuns, como 'Aristóteles', 'Maria' , 'João' ou 'Lisboa', termos que possam ser considerados nomes logicamente próprios?

Regressemos por momentos ao início deste ensaio e à ideia aí apresentada de que é possível e desejável fazer a análise lógica da linguagem corrente. Na verdade, ao fazer a paráfrase das frases da linguagem corrente numa linguagem logicamente perfeita, traz-se à superfície a sua estrutura lógica ou real (que está por trás da estrutura gramatical ou aparente das mesmas). Assim, o nosso problema pode ser reformulado da seguinte maneira: são os nomes próprios da linguagem corrente nomes logicamente próprios? Ou ainda: são os nomes comuns, de facto, constituintes das proposições nas quais ocorrem?


5. Expressões Denotativas

Para enfrentar este problema, talvez o melhor seja começar por verificar o nosso critério de há pouco segundo o qual nomes logicamente próprios são aqueles e todos aqueles que executam a função semântica de referir algo no mundo extralinguístico, são os representantes linguísticos de átomos lógicos, e termos que referem são termos simples caracterizáveis por meio das respostas às questões i)- a v). Analisemos os nomes comuns ('Aristóteles', 'Maria' , 'João' ou 'Viena') tendo em vista as nossas cinco questões. O resultado, podemos já antecipar, é negativo. Em particular, para todas as questões i)- a v)-, os resultados obtidos para os nomes comuns são diferentes dos resultados já estabelecidos para o caso de termos simples ou de nomes logicamente próprios. Segue-se que Russell é obrigado a concluir que os nomes próprios da linguagem corrente (ou, abreviadamente, os nomes comuns) não são nomes próprios numa linguagem logicamente perfeita (ou, abreviadamente, não são nomes logicamente próprios).

A primeira observação a fazer é que 'Aristóteles', 'Viena', etc., não representam sense data no mundo extralinguístico mas sim objectos físicos. Russell, como qualquer filósofo empirista inglês, parte da distinção irredutível entre o sense datum e o objecto físico que lhe corresponde 15. Enquanto que termos simples representam necessariamente sense data, nomes comuns são relativos a objectos físicos. Em relação a estes últimos, o nosso acesso cognitivo não é directo ou por contacto mas é sim indirecto ou por descrição. Enquanto que conheço por contacto um sense datum, já não o posso dizer relativamente a um objecto físico. Este último é conhecido por meio de um tipo de conhecimento indirecto 'by description', por descrição. Ao contrário do conhecimento por contacto, é possível alguém estar enganado acerca do conhecimento por descrição, e, por isso, relativamente a este, a dúvida céptica pode ser estendida: o uso de um nome comum não garante a existência do objecto por seu intermédio indicado.

O contraste entre conhecimento por contacto e por descrição pode ser elucidado da seguinte forma. Ao contrário de um sense datum, que é um átomo lógico, ao qual tenho - em princípio 16- acesso cognitivo directo, um objecto físico não é um átomo lógico e eu não tenho, relativamente a ele, um acesso cognitivo directo. Consideremos a cidade Viena. Posso dizer que conheço Viena unicamente por descrição. Ou seja, sei muitas coisas acerca de Viena, algumas das quais são verdadeiras outras falsas, mas não conheço Viena. Assim sendo, um nome comum de um objecto físico é uma mera abreviatura de uma ou várias descrições acerca do objecto e, logo, um nome comum não é de facto um termo simples.

As respostas às nossas questões i)- e ii)-, para o caso de nomes comuns, estão então dadas; resumindo: i)- o objecto indicado por meio de um nome próprio na linguagem corrente não é um sense datum mas sim um objecto físico e ii)- o acesso cognitivo a este tipo de entidades, aos objectos físicos, é indirecto, mediato e susceptível de erro. Dos objectos físicos só se pode ter um tipo de conhecimento indirecto 'by description', por descrição. É de facto possível alguém estar enganado acerca deste conhecimento e, por isso, o conhecimento por descrição é caracterizado como sendo refutável. A dúvida céptica, do tipo atrás considerado 'será que o meu conhecimento não pode estar errado?', pode-se, neste caso, colocar, e assim o conhecimento por descrição dos objectos físicos não garante a existência dos mesmos.

Se considerarmos agora as questões iii-), iv)- e v)-, relativas ao sentido dos nomes comuns, confirmamos os mesmos resultados: eles só aparentemente, na gramática de superfície que corresponde às frases na linguagem corrente que os contêm, podem ser considerados nomes próprios, não o sendo de facto. Quando se procede à análise lógica dessas frases, e elas são reescritas numa linguagem logicamente perfeita, torna-se manifesto este resultado. Quanto a iii)-, o sentido (ou a forma como tem significado) de um nome comum, depende do sentido dos universais usados para proceder à identificação do objecto físico que lhe corresponde, uma vez que, como vimos, o nome comum é uma mera abreviatura de uma ou várias descrições acerca do objecto por seu intermédio apresentado. Um nome comum não é um termo simples e, logo, o seu sentido não consiste no objecto (sense-datum) por ele referido. Relativamente a iv)-, a apreensão individual do sentido de um nome comum corresponde não ao conhecimento por contacto mas sim ao conhecimento por descrição do putativo objecto por seu intermédio apresentado. Finalmente, v)- é encarada da seguinte maneira. A proposição expressa por 'n é G', quando 'n' não é um nome próprio genuíno, é objecto-independente e, logo, há sentido para a proposição no seu conjunto mesmo quando ao nome comum não pode ser feito corresponder qualquer objecto físico. Por outras palavras, se 'n' for um termo analisável, i.e., um nome próprio unicamente na gramática de superfície, e 'G' um predicado monádico, então 'n' não determina a proposição expressa pela frase 'n é G', ou seja, 'n' não é um constituinte desta proposição. Isto significa que a proposição expressa por 'n é G' é independente da identidade do objecto por meio de 'n' identificável, ou seja, é objecto-independente. Na verdade, e como vimos, 'n é G' é semanticamente equivalente a 'o F é G', sendo 'o F' a descrição definida 17por meio da qual é identificado o objecto físico que o nome comum identifica. Logo, para compreender a nossa proposição não é necessário identificar o objecto físico identificado por meio de 'n' e, se este objecto não existir, ainda assim é expressa uma proposição.

Talvez seja conveniente considerar dois casos concretos. A frase 'Aristóteles é um filósofo conhecido', de acordo com os nossos resultados, não é uma proposição completamente analisada uma vez que o termo 'Aristóteles' não é um termo simples: 'Aristóteles', na gramática de superfície ou na linguagem corrente é considerado um nome próprio, mas a análise mostra que ele é de facto uma forma abreviada de exprimir um termo que na verdade não é simples. 'Aristóteles' é uma abreviatura de 'o maior filósofo da Antiguidade', de 'o autor da Metafísica', e/ou de 'o discípulo de Platão', etc.. 'Aristóteles' é de facto uma abreviatura de uma (ou mais) descrição definida e o sentido desta última depende do sentido dos termos nela envolvidos. A compreensão do termo 'Aristóteles' não equivale ao conhecimento por contacto do objecto por seu intermédio identificado, antes de mais porque ele não existe sequer, equivale simplesmente ao conhecimento por descrição do putativo objecto. Por paridade de forma, Russell estende a sua análise a todos os nomes comuns (nomes próprios na linguagem corrente, não analisada), quer estes identifiquem objectos não existentes, como no caso agora considerado, quer estes identifiquem objectos existentes. A frase 'Viena é uma cidade bonita' é igualmente não analisada e, debaixo de análise, mostra-se que o termo 'Viena' não é simples e é na verdade substituível pela(s) descrição(ões) definida(s) que corresponde(m) ao conhecimento descritivo que se tem da cidade Viena.

O sentido dos nomes próprios da linguagem corrente é reconduzido ao sentido ao sentido das descrições definidas que permitem a identificação indirecta do objecto mencionado e o sentido destas últimas é dado pelo sentido dos predicados envolvidos na descrição, pelas razões que acabámos de expôr. A teoria que proporciona o esclarecimento do sentido de termos descritivos é a Teoria das Descrições Definidas e é então à sua luz que é elucidado o sentido dos nomes próprios da linguagem corrente, que são encarados como descrições definidas abreviadas. Para os efeitos pretendidos neste ensaio, basta dizer que a Teoria das Decrições Definidas visa essencialmente mostrar que os termos descritivos, da forma 'o/a tal-e-tal', bem como os nomes comuns que as abreviam, não são nomes logica ou genuinamente próprios (uma vez que a análise revela que eles não são simples), não podendo estes termos ser então considerados constituintes das proposições nas quais ocorrem. A análise mostra que eles se desvanecem e, em sua substituição, aparecem como constituintes da proposição completamente analisada os predicados contidos na descrição.

O resultado fundamental, relativo às descrições definidas e aos nomes comuns que para todos os efeitos as abreviam, é o seguinte: mesmo quando existe e é único o objecto que satisfaz a descrição, ou seja, mesmo quando a descrição definida é univocamente satisfeita, o termo descritivo não é dito referir o objecto em causa. A relação entre o termo descritivo e este objecto não é uma relação directa mas é indirecta: o objecto é identificado por meio da satisfação unívoca dos predicados contidos na descrição. A relação semântica de referir, que atrás caracterizámos, está assim vedada aos termos descritivos que são antes ditos denotar ou decrever o objecto por seu intermédio apresentado. Russell introduz uma nova relação semântica, por meio da qual é possível elucidar o sentido de termos denotativos, vistos por ele como sendo todos aqueles que não são nomes logicamente próprios. O fenómeno semântico por meio do qual é possível referir um objecto extralinguístico é diferente do fenómeno semântico por meio do qual é possível denotar um objecto extralinguístico: das duas, só a primeira requer a existência do objecto como condição necessária para que a expressão linguística tenha um sentido.

Estamos agora confrontados com o seguinte problema. Como é que o Princípio do Contacto, que exige contacto com todos os constituintes de uma proposição como condição necessária para a sua compreensão, se aplica a toda a proposição? Aparentemente, não fica explicado como é que se pode compreender qualquer uma das nossas duas frases, uma vez que quer 'Aristóteles' quer 'Viena' não são termos simples nem constituintes das frases nas quais ocorrem. A resposta de Russell é a seguinte. Apesar de não poder ser encontrado o objecto simples extralinguístico (o sense datum) que fizesse dos termos em causa, 'Aristóteles' e 'Viena', seus representantes linguísticos, igualmente simples, susceptíveis de ser considerados como constituintes das frases nas quais ocorrem, isto não significa que não se possam encontrar os constituintes das nossas proposições 'Aristóteles é um filósofo conhecido' ou 'Viena é uma cidade bonita'. Os constituintes das frases com os quais temos que estar em contacto para que de todo elas possam ser compreendidas são, nada mais nada menos do que, os predicados usados nas descrições definidas por meio dos quais é possível identificar qual o objecto de que se está a falar. Mais uma vez, Russell tem que supor a possibilidade de conhecer por contacto universais (a denotação dos predicados e relações), aspecto sobre o qual já nos debruçámos. O conhecimento descritivo de qualquer objecto físico é elucidado à custa do conhecimento por contacto dos universais que correspondem aos termos gerais (predicados e relações) usados para apresentar indirectamente esse objecto.


6. Resolução do Problema Básico

É por os nomes comuns não serem termos simples ou nomes logicamente próprios que se atribui na literatura filosófica dominante a Russell a ideia de que é possível dispensar da linguagem a função semântica referencial. Os nomes comuns são, como vimos, termos que executam uma função semântica denotativa e não referencial e, logo, pode ser inspirada na filosofia russelliana a ideia de que, não existindo (na linguagem corrente) praticamente nomes logicamente próprios, fica de facto e para todos os efeitos dispensada da linguagem a função semântica puramente referencial.

Estamos então agora em condições de poder fundamentar a tese apresentada no início deste ensaio e de desfazer a aparente contradição de, a partir da Filosofia do Atomismo Lógico russelliana, se poder extrair dois resultados contraditórios.

Para desfazer a aparente contradição é necessário distinguir os dois níveis conceptuais nos quais os dois resultados se situam, em particular, ter em conta o seguinte aspecto. O facto de não existirem praticamente na linguagem corrente, segundo Bertrand Russell, nomes genuinamente próprios, não significa que tenhamos que abandonar a ideia central da sua Filosofia do Atomismo Lógico segundo a qual, na base da análise, temos que encontrar termos genuinamente referenciais.

Trazemos de Russell, primariamente, a tese de que, no limite, é necessário que existam termos simples, cujo sentido consiste no objecto que estes termos representam no mundo extralinguístico, i.e., cuja função semântica é puramente referencial, a qual é irredutível a qualquer outro género de função semântica. Esta é a ideia básica da Filosofia do Atomismo Lógico.

Consideramos como sendo de importância relativamente menor a tese de Russell segundo a qual aquilo que tomamos normalmente como nomes próprios não o são de facto visto, debaixo de análise, eles não resistirem, i.e., eles se revelarem ser não mais de que expressões denotativas ou descritivas camufladas. A importância desta tese é, em relação à tese anterior, menor, dado que independentemente do facto ela ser ou não ser verdadeira, ou seja, independentemente de quais considerarmos serem os termos simples da nossa linguagem - se são os nomes próprios tais como normalmente usados, se são os nomes logicamente próprios de Russell, ou se são quaisquer outros que a investigação filosófica proponha - a intuição básica do pensamento de Russell deve ser mantida. Esta intuição, que julgamos desejável conservar, é a de que o fenómeno semântico que consiste em referir directamente algo no mundo extralinguístico existe, não é redutível a qualquer outro, e é o fenómeno semântico primitivo e mais básico de qualquer linguagem.


Notas:

1. Cf. RUSSELL, B., "On Denoting", (1905), reimpresso em RUSSELL, B., Logic and Knowledge. Essays 1901 - 1950, MARSH, R.C. (ed.), London, Allen and Unwin, 1956, pgs. 41 - 56.
2. Cf. RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", (1918), reimpresso em RUSSELL, B., Logic and Knowledge. Essays 1901 - 1950, MARSH, R.C. (ed.), London, Allen and Unwin, 1956, pgs. 177 - 281. 3. A esta teoria é também chamada a Teoria Imagística da Linguagem, também da autoria de L. Wittgenstein, apesar de existirem significativas diferenças entre as duas versões da teoria, a de Russell e a da Wittgenstein. Para esta última, cf. WITTGENSTEIN, L., Tractatus Logico-Philosophicus, London, Routledge and Kegan Paul, 1961. Tradução portuguesa de M.S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. 4. Russell discute a existência deste tipo de factos. A sua abordagem conduzir-nos-ia, no entanto, para fora da nossa temática. Cf. RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", Ibidem, pgs. 209 e 211-214, em particular a sua discussão dos factos negativos, disjuntivos, condicionais, etc. 5. Sobre o estatuto não mental ou físico de sense data cf. RUSSELL, B., " The Relation of Sense-data to Physics", reimpresso em B. RUSSELL, Mysticism and Logic, London, George Allen and Unwin, 1917, pgs. 140 - 172, pg. 146. Ao conceito de 'sense datum', encarado como não mental, contrapõe-se o conceito de 'sensação', essa sim, mental, e definida por Russell como sendo 'o facto que consiste na consciência do sujeito do seu próprio sense datum.' 6. Segue-se deste ponto a consequência interessante de que o estatuto de qualquer dado dos sentidos (sense datum), considerado intrinsecamente, é idêntico, quer se trate de um dado ao qual corresponde um objecto físico no mundo exterior, quer se trate de um dado ao qual não corresponde qualquer objecto físico, o que se passa no caso de uma simples alucinação. A única diferença entre eles está na relação que obtém entre o sense datum e a entidade exterior que putativamente lhe corresponde. Cf. RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", Ibidem, pg. 274. 7. Cf. RUSSELL, B., The Problems of Philosophy, New York, Oxford University Press, 1911, pg. 1. 8. Cf. RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", Ibidem, pg. 179. 9. Cf. RUSSSELL, B., The Problems of Philosophy, Ibidem, pg. 32. 10. Este ponto mereceria obviamente uma discussão mais extensa que no entanto nos desviava do ponto deste ensaio. Cf., por exemplo, a este propósito, RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", Ibidem, pgs. 194 e 195: "não podes entender o sentido do termo 'vermelho' a não ser vendo coisas vermelhas". 11.Cf. RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", Ibidem, pg. 205. 12.Cf. NEALE, S., Descriptions, MIT, 1990, pgs. 15 - 19. 13.Cf. NEALE. S., Ibidem, pg. 16. 14.Cf. RUSSELL, B., "The Philosophy of Logical Atomism", Ibidem, pg. 201: "Um nome, no sentido lógico estrito do termo, cujo sentido é um particular, só pode ser aplicado a um particular com o qual o utilizador está em contacto, porque não se pode nomear o que quer que seja com o qual não se esteja em contacto". 15.As relações entre os dois conceitos são filosóficamente interessantes, mas a sua análise conduzir-nos-ia para fora do tópico deste ensaio. "Teoria Causal da Percepção" e "Fenomenalismo" são os nomes das duas principais teorias que estabelecem as relações entre os dois conceitos. Para a primeira, o objecto físico é considerado como sendo a causa do sense datum que lhe corresponde; para a segunda, o objecto físico é considerado como sendo um agregado ou um conjunto de todos os sense data actuais ou possíveis que correspondem ao objecto físico. Cf. RUSSELL, B., Problems of Philosophy, pgs 13 e 15, para a Teoria Causal da Percepção, e RUSSELL, B., "Relation of Sense-data to Physics", Ibidem, pg. 148, para o Fenomenalismo. As duas teorias podem ser vistas não como incompatíveis mas sim como complementares (Cf. GRAÇA, Adriana Silva, "A Filosofia do Atomismo Lógico de Bertrand Rusell", tese de Mestrado em Filosofia, Universidade de Lisboa). 16. Dizemos 'em princípio' dado que é sempre possível ter, acerca do mesmo objecto, um conhecimento dele por contacto e por descrição. O que estamos a isolar é o caso relevante para o nosso ponto, ou seja, o caso em que só conhecemos o objecto indirectamente. 17. A Teoria das Descrições Definidas, apresentada pela peimeira vez por Russell em "On Denoting", (cf. acima, nota 1) é a teoria que elucida o sentido do termo descritivo ('o F') no contexto de uma proposição ('o F é G'). O principal objectivo da Teoria das Descrições Definidas é o de mostrar que só aparentemente os termos descritivos podem ser considerados nomes (genuinos) e, assim sendo, o seu sentido tem que ser elucidado de forma diferente da forma como é eluicidado o sentido de um nome (genuino). A Teoria das Descrições Definidas exclui os termos descritivos da categoria semântica dos nomes próprios e inclui-os na categoria semântica dos termos (ou expressões) denotativos. Só os primeiros referem; os últimos, denotam. O sentido dos primeiros é o próprio objecto referido. O sentido dos últimos é elucidado à custa da satisfação unívoca (por parte de um e um único objecto) dos predicados contidos na descrição definida 'o F'. As restantes expressões denotativas, têm sentido de forma análoga: 'todos os F', 'alguns F' (etc.), vêem o seu sentido elucidado à custa da satisfação de 'F' por parte de todos os objectos do domínio e de alguns os objectos do domínio, respectivamente.

Adriana Graça
Universidade de Lisboa
adrianasg@mail.doc.fl.ul.pt