1. Os sonhos e os problemas da epistemologia da
consciência
Não vou falar directamente da dor e do sofrimento mas de alguma
coisa que eles exemplificam: os problemas da epistemologia da
consciência. Mais especificamente, vou tratar as asserções de
experiência interior e o sentimento de autoridade introspectiva que as
acompanha (1). Para abordar a questão escolhi um
exemplo polémico para os filósofos da psicologia (o exemplo dos
sonhos), e três filósofos (Wittgenstein, Malcolm e Dennett).
O problema que se põe quanto aos sonhos é saber se os sonhos são
experiências. Numa primeira definição, aceite quase
generalizadamente, os sonhos são experiências que ocorrem durante o
sono e que são posteriormente recordadas e relatadas em vigília (2).
O problema da definição é que ela simplesmente pressupõe, sem
justificação, a possibilidade de experiência num indivíduo de alguma
forma inconsciente. Se não pressupusermos essa possibilidade, somos
conduzidos a abordar a natureza dos sonhos a partir das relações entre
apresentação, memória (nos sentidos de inscrição e recuperação) e
expressão.
À primeira vista parece possível distinguir claramente as coisas
para as quais é como alguma coisa ser e as coisas para as quais não é
como nada ser (esta mesa, por exemplo). Só as primeiras têm
consciência. O nosso problema (saber se os sonhos são experiências)
traduz-se portanto assim: Será como alguma coisa sonhar? Podemos com
segurança saber se o sonhador se sente ser durante o sono – se por
exemplo sente dor ou sofrimento quando o sono é acompanhado de gemidos
e gritos – como podemos garantir que existem durante o sono reacções
fisiológicas que usualmente acompanham experiências de medo,
ansiedade, ou excitação? Um problema idêntico coloca-se em relação
a formas e graus de (in)consciência de humanos e outros animais como a
anestesia, o coma e mesmo a morte – pelo mero facto de se necessitar
de um 'critério de morte' está-se a admitir que é por vezes
necessário decidir se um corpo que mantém reacções e funcionamentos
ainda se sente ser.
Para saber se existe ou não existe experiência de algum conteúdo,
seja no sonho ou em vigília (3), em coma ou sob
anestesia, o problema é saber a que evidência se pode justificadamente
apelar. Ora, a questão dos sonhos interessa o filósofo da psicologia
porque mostra a plausibilidade (mas também as consequências) de um
certo verificacionismo na teoria da consciência, a que D. Dennett chama
um operacionalismo(4) em primeira pessoa. Este é a
ideia segundo a qual são impossíveis por princípio
1. a consciência de um estímulo na ausência de crença nessa
consciência
2. a distinção feita pelo sujeito, relativamente à sua consciência
de x, entre aparência e realidade. A pertinência do operacionalismo (
por vezes também chamado verificacionismo) em 1ª pessoa quando se
trata de experiência interior deve-se a duas razões
1. o-em si do experienciar, a sua existência, só pode acedido como
um para-mim.
2. só o próprio ser sensiente ou consciente pode saber como é ser e
– pelo menos no caso humano – expressar como é para si ser. Daí,
aliás, a sua autoridade.
Do ponto 2 surge no entanto um problema grave:
1. Para que alguém conheça e exprima a sua experiência interior,
tem que haver inscrição e recuperação de informação, i.e. tem que
haver memória (5). Ora, seja o que fôr recordar, não
é verdadeiro por definição que o recordado tem que ter acontecido tal
como é recordado. A natureza da memória não é tal que as memórias
devam ser verídicas. No entanto o sujeito ele próprio não tem
qualquer possibilidade de distinguir entre as suas memórias verídicas
e as não verídicas.
A vulnerabilidade dos sonhos a este problema reside no facto de eles
apenas serem acedidos - já que não dão lugar a expressão em acto -
enquanto memórias de experiências (6). Como diria
Malcolm, o uso da frase 'Estou profundamente adormecido e a sonhar (7)
como asserção provocaria um sentimento de estranheza, e seria de algum
modo auto-contraditório.
Mas se os sonhos só são acedidos mediante recordação subsequente,
impõe-se saber se o facto de alguém recordar que sonhou basta ou não
basta para concluir que sonhou (que experienciou, portanto). Norman
Malcolm, um discípulo de Wittgenstein, e um verificacionista radical,
defendeu que não basta. Foi mesmo levado a concluir em Dreaming (1959)
— uma obra que tinha como objectivo uma análise conceptual
wittgensteiniana do conceito 'sonhar' – que os sonhos não são
experiências. Malcolm concluiu ainda que as investigações
científicas dos sonhos – que visavam estabelecer a relação do sono
REM (8) (um estádio do sono assinalado por movimentos
oculares rápidos) com o sonho e confirmar assim a concepção dos
sonhos como experiências que ocorrem durante o sono (9)
- incorriam em violações e pecados conceptuais e em ultima análise
não diziam sequer respeito aos sonhos.
Em função de investigações sobre o sono e o sonho afirma-se hoje
que todas as pessoas sonham, todas as noites. Apesar disso, algumas
pessoas afirmam convictamente não sonhar, outras sabem que sonharam mas
não se recordam dos detalhes, e todas elas, mais ou menos rapidamente,
perdem as recordações dos detalhes. Como é fácil imaginar, o que é
problemático aqui é a possibilidade de alguém, a partir de critérios
externos, como EEG's e movimentos oculares, garantir a outra pessoa que
ela sonhou (experienciou, portanto), quando esta, uma vez interrogada,
garante que tal não aconteceu. Ou então, numa hipótese futurista, a
possibilidade de garantir a alguém que acorda e relata que sonhou um
sonho A que esse sonho não foi sonhado mas inserido, e que o sonho
experienciado, um sonho B, não está acessível. Isto para não falar
em casos mais complicados de dissociação ou deslocamento ou
virtualização da experiência de uma pessoa, como aqueles que são
explorados em ficção em filmes como Matrix (Irmãos Wachovsky) ou
Existenz (Cronenberg).
Afastar a possibilidade de contestação da autoridade subjectiva
nestes casos é o que está no horizonte de Malcolm quando declara que
as investigações do sono REM não dizem respeito aos sonhos. Malcolm
não diz que as pessoas não sonham (o 'critério' dos sonhos é a
existência de relatos de sonhos) mas que os sonhos não são
experiências (10).
A origem do veredicto de Malcolm está numa afirmação de
Wittgenstein nas Investigações Filosóficas (IIªParte, 11. 213) «A
questão de saber se a memória do sonhador o engana quando ele relata
um sonho depois de acordar não pode surgir a não ser que introduzamos
um critério completamente novo para o relato concordar com o sonho, um
critério que nos dá um conceito de verdade por oposição a
sinceridade do reportar (truthfulness)» (11).
Wittgenstein está a sublinhar que nós não temos um espaço interior
de avaliação que nos dê a capacidade de distinguir entre ter
realmente sonhado e recordar (enganosamente) que sonhámos.
A partir daqui, Malcolm defende que não faz sentido falar de uma
verdade acerca da experiência, obtida por verificações exteriores que
contradiga o testemunho do sujeito: apenas as expressões que as pessoas
produzem dos seus estados privados são critério da existência e
natureza destes estados.
Para salvar a autoridade introspectiva Malcolm terá no entanto que
negar que os sonhos sejam experiências. O argumento é o seguinte:
pode-nos parecer enganosamente que tivemos uma experiência sem a termos
tido, uma vez que temos maneiras de confirmar ou infirmar as asserções
de experiência independentemente da inclinação subjectiva à
afirmação. Mas se nos parece que tivemos um sonho, tivemos um sonho.
Ter tido realmente um sonho e estar sob a impressão de ter tido um
sonho é de facto a mesma coisa. O único critério do uso do conceito
'sonhar' é o testemunho de uma pessoa acordada, cujas asserções de
experiência interior não podem, a partir de fora, ser confirmadas ou
infirmadas.
O argumento de Malcolm, depende de uma epistemologia (muito
contestável) que conjuga o verificacionismo com uma teoria da
significação que tem como referência a linguagem comum. Assim, ele
pensa que 1. existem critérios para conceitos; 2. os conceitos têm que
ter métodos de verificação ou não têm sentido 3. Existem casos
paradigmáticos que cumprem esses critérios e nos quais podemos decidir
claramente que os conceitos se aplicam. Daí as conclusões quanto aos
conceito 'sonhar' e 'experiência'. No entanto estas conclusões só se
justificam se:
1. a análise apriorista for um método defensável para a abordagem
do significado termos mentais (e da linguagem em geral)
2. a competência semântica das pessoas (i.e. a forma como elas usam
conceitos) pressupuser de facto aquilo a que Putnam (Putnam 1962),
analisando Malcolm, chama uma 'gramática de profundidade'. Esta
gramática, não apercebida pelo falante comum, revelaria a dependência
lógica de conceitos em relação a critérios (revelaria por exemplo a
dependência lógica do conceito 'sonhar' em relação ao testemunho de
uma pessoa acordada), tendo como referência as fronteiras do sentido
estabelecidas pelo uso comum (a alternativa seria uma linguagem privada,
cuja possibilidade Malcolm, como wittgensteiniano obviamente nega)
É devido a esta epistemologia que Malcolm defende que é uma
extensão sem sentido do conceito 'sonhar' aquela que toma um critério
fisiológico (por exemplo os movimento oculares rápidos) para o
conceito O critério fisiológico envolve não apenas uma mudança
conceptual radical como o uso de um conceito sem métodos de
verificação.
Malcolm salva com a sua conclusão o sentimento de autoridade
introspectiva quanto ao que se passa na mente. A salvação do
sentimento de autoridade dá-se no entanto à custa de um
conservadorismo epistemológico inaceitável. Parece absurdo defender,
como faz Malcolm, que as investigações do sono REM nem sequer dizem
respeito aos sonhos. Embora o em-si da experiência seja um para-mim,
isso não nos obriga a afirmar (como assume o filósofo da linguagem
erigido em guardião dos conceitos comuns) que o conhecimento dos
fenómenos mentais só pode ser apriorista. Se o auto-acesso não for um
acesso epistémico a tipos naturais, parece pelo contrário desejável
que os conceitos mentais tenham caracterizações técnicas, resultantes
de investigação empírica. É claro que o problema com este movimento
é que ele coloca fora da pessoa a autoridade acerca da natureza da sua
própria experiência, produzindo uma situação estranha. Se as
considerações objectivas não são pertinentes para decidir acerca da
presença de experiência, já que o em-si desta é um para-mim (12)
e se ao mesmo tempo, muitas vezes as convicções do sujeito não são
suficientes para determinar a existência ou natureza da experiência (o
que é o caso do sonho, se não se estiver disposto a decretar por
critérios linguisticos aprioristas que os sonhos decididamente não
são experiências), arriscamo-nos a ter que admitir fenómenos de
subjectividade sem sujeito, qualia não apercebidos, fenomenologias sem
amarras (13). É claro, aliás, que é aqui que reside
a pertinência do verificacionismo em primeira pessoa para aqueles que o
defendem.
Acontece que a grande diferença entre filósofos da linguagem como
Wittgenstein e Malcolm e os teóricos da mente contemporâneos é o
facto de estes acreditarem que a análise conceptual é um mau método
para a teoria da mente. A análise conceptual é um mau método
precisamente porque impede arbitrariamente a entrada dos dados
empíricos nos conceitos mentais. H. Putnam apontara já (Putnam 1962)
que o principal erro da análise de Malcolm era não prever que os
'critérios da significação', inclusive da significação de termos
mentais, são modificados ao longo do tempo, através da investigação
empírica e dos novos conhecimentos (14). É claro que
se se permitir a entrada de dados empíricos no sentido dos termos
mentais, o sentimento de autoridade acerca da natureza da sua própria
experiência do sujeito para quem é como alguma coisa ser não poderá
ser explicado como um acesso epistémico. Terá que ser justificado de
outra maneira, nomeadamente como incorrigibilidade.
Dennett procura explicar esta inocorrigibilidade através da
relação entre memória apresentação e expressão. Vou concretizar a
ideia através da sua análise dos sonhos em Are Dreams
Experiences?(1978).Esta análise insere-se na tentativa de
elaboração de uma teoria fisicalista da consciência e o interesse de
Dennett pelos sonhos deve-se a dois factores:
1. os sonhos permitem analisar uma certa substituição da
apresentação por memória (que Dennett quer alargar a toda a teoria da
experiência)
2. os sonhos permitem clarificar a distinção entre consciência e
outras formas de apercebimento (awareness) com as quais a consciência
é por vezes confundida
Dennett considera nos sonhos apresentação, memória e composição.
O ponto que pretende explorar é o seguinte: mesmo que se admita que
acontece uma apresentação (entenda-se: consciente) das imagens e
narrativas do sonho, correspondente aos eventos neuronais durante o sono
REM, é a memória, no sentido de inscrição e armazenamento de
informação, que possibilita o relato do sonho. Ora a inscrição e o
armazenamento podem por princípio ser inconscientes e são
independentes da (hipotética) apresentação. Assim, parece possível
interferir na recordação sem se ter interferido na
"apresentação". Interferindo no armazenamento podem por
exemplo ser introduzidas memórias de sonhos não sonhados, que serão
recordadas como sendo de sonhos sonhados. A recuperação para relato
dá acesso a conteúdos mas não a garantia de que uma apresentação
aconteceu e nem isso pode ser avaliado pelo sujeito. Foi isso que
Malcolm percebeu quando defendeu que de 'Parece-me que foi como alguma
coisa sonhar' não é permitido concluir que 'Foi como alguma coisa
sonhar'.
Esta condição (segundo a qual a recuperação para relato dá
acesso a conteúdos mas não a garantia de que uma apresentação
aconteceu) aplica-se aliás à experiência em geral. Analisemos por
exemplo uma recordação, reportada por uma pessoa A, das sua
experiências relativas à entrada numa sala cheia de gente.
Pergunta-se: Quantas pessoas estavam na sala? A pessoa B estava
presente?
No relato da pessoa A, como em qualquer relato de experiência,
estarão presentes conclusões tiradas com base em informação
armazenada. Mas esta não tem que ter sido apresentada, apenas que tem
que ter sido inscrita e que estar acessível. Se por exemplo a pessoa A
afirma que não se recorda da presença da pessoa B na sala cheia de
gente onde entrou, não se pode daí concluir que ela se apercebeu
realmente de uma ausência, a ausência de B. Como diria Wittgenstein, a
ausência de percepção não é percepção de uma ausência. A
ausência de B não foi experienciada mas apenas 'concluída' por
implicação a partir da informação disponível.
Quanto ao terceiro processo envolvido nos sonhos, a composição das
frequentemente elaboradas narrativas e imagens do sonho, embora se
considere usualmente que ela acontece durante o sono, nos períodos do
sono REM, poder-se-ia descobrir que não é assim. Pense-se nos casos em
que alguém sonha algo que encaixa perfeitamente no que está a
acontecer quando se acorda (dá-se um grande estrondo exterior, por
exemplo, e o sonhador acorda de um sonho em que sonha que morreu numa
explosão). Parece haver uma preparação narrativa do encaixe com a
realidade exterior. Excluindo a existência de pré-cognição, esse
encaixe poderia explicar-se, sugere Dennett, por hipóteses semelhantes
a estas: talvez os sonhos sejam compostos e apresentados muito
rapidamente no intervalo entre acordar e estar plenamente desperto,
sendo o efeito conseguido com um sistema de atraso da percepção
exterior. Ou talvez, nesse intervalo, os sonhos sejam compostos e
armazenados em ordem invertida e depois recordados na sequência
própria. Ou talvez exista uma biblioteca de sonhos não sonhados no
cérebro, com vários fins indexados, prontos a serem inscritos na
memória de forma adequada à percepção exterior, para virem a ser
relatados. O que importa é que para o sonhador, uma vez acordado e
relatando o que lhe parece ser, será impossível por princípio
perceber qualquer diferença entre memórias inseridas de sonhos que
não foram seus e sonhos experienciados.
Dennett não pretende infirmar com um exemplo avulso e com hipóteses
ad hoc a ideia segundo a qual os sonhos são experiências mas apenas
analisar as implicações que teria a confirmação de uma hipótese
empírica semelhante a estas. Tal confirmação atestaria que o
sentimento de autoridade subjectiva do sonhador não lhe dá qualquer
autoridade para decidir entre hipóteses. Pelo contrário, outro tipo de
dados (nomeadamente neurofisiológicos) seriam mais relevantes para a
decisão. E note-se que de acordo com pelo menos a última hipótese
sonhar não teria sido como nada, embora viesse a parecer ter sido como
alguma coisa.
Dennett defende por isso que a questão 'são os sonhos
experiências?' é uma questão teórica em aberto, i.e. os sonhos
poderão ser ou não ser experiências mas que isso não será
decidível por apelo à autoridade subjectiva. O caso dos sonhos mostra
que apesar do sentimento de autoridade subjectiva que as acompanha, o
conteúdo das asserções de experiência interior é vulnerável à
infirmação empírica. Dennett estende a conclusão a toda a
fenomenologia (nomeadamente às descrições de imagens mentais,
decisões voluntárias, experiência de cores, dores, etc, pelo
sujeito). O sentimento de autoridade subjectiva não assinala qualquer
conhecimento privilegiado da experiência mental.
3. O sentimento de autoridade subjectiva e os critérios de
experiência
Trata-se então de explicar o que é o sentimento de autoridade
subjectiva, uma vez que de facto e em geral nos humanos a consciência
se liga ao sentimento de autoridade subjectiva. Este sentimento não é
no entanto uma marca confiável do apercebimento num sujeito: para
Dennett o conteúdo do apercebimento é tudo o que entra na memória (15)
e os indícios deste apercebimento não estão necessariamente ou
exclusivamente ligados à convicção subjectiva. A haver uma relação
'conceptual' importante esta dar-se-ia entre experiência e memória e
não entre experiência e convicção subjectiva.
O caso dos sonhos mostra que pode existir memória de algo apercebido
sem sequer ter havido apresentação: basta ter havido inscrição na
memória de um conteúdo que (1) guie o comportamento actual.
Este é um primeiro indício do apercebimento de x num sistema. Por
outro lado, a informação que guia o comportamento actual poderá ser
objecto de acesso público, i.e., estar disponível para ser expressa.
Um segundo indício do apercebimento será então: (2) poder ser
expresso Mas quando alguém dá por si querendo dizer, querendo
emitir uma asserção, por exemplo uma asserção de experiência
interior, isso acontece via a memória e o querer dizer, sem qualquer
espaço de observação interno. A incorrigibilidade que caracteriza
estas asserções é função dos acessos sub-pessoais inconscientes
entre a memória e o sistemas de produção da fala: os relatos de
experiência interior são os próprios dados e não relatos de dados.
Precisamente os sonhos levam Dennett a alargar este segundo indício a
um terceiro: a capacidade retrospectiva de relatar (3) O quarto
indício serão as (4) saliências funcionais que a investigação
empírica descobrir (no nosso exemplo a caracterização do sono
REM). Estes indícios podem inclusive chocar entre si. Assim, de acordo
com esta teoria fisicalista e verificacionista (16) da
consciência, a consciência não esgota o apercebimento. No entanto os
juízos esgotam a consciência imediata. Não pode haver consciência de
x sem crença do sujeito na consciência de x, e o sujeito será
incorrigível nessa crença. Mas ele é incorrigível porque não tem
'espaço de manobra' e não devido a qualquer autoridade epistémica (17).
Uma particularidade da teoria de Dennett é defender que no limite, em
muito do apercebimento que acontece em sistemas como os humanos, a pura
apresentação desaparece e no seu lugar fica a memória, concebida como
registo físico; em virtude desta substituição de apresentação por
memória ter-se-á que somos muitos mais 'apagados' (18)
do que aquilo que nos parece ser o caso. Repita-se que neste quadro o
apercebimento tem um âmbito muito maior do que a consciência, um
âmbito a ser determinado pela investigação empírica. A autoridade
subjectiva marca um certo tipo de acesso, e não a presença de um tipo
natural, a 'consciência'. Os tipos naturais são da competência da
investigação empírica, e nada garante a priori que a consciência
seja um. Aprendendo com o absurdo da posição de Malcolm, que pretendia
decidir a partir do uso linguístico presente se os sonhos são
experiências, conclui-se que a noção de critérios de experiência é
epistemológicamente ilegitima, derivada de uma insustentável posição
apriorista perante questões empíricas abertas.
4. Conclusão.
Suponho que não é necessário sublinhar que as questões
epistemológicas em torno da consciência são importantes para a
ética, nomeadamente para a ética aplicada. Um modelo como o de Dennett
conduz-nos a concluir que não podemos dispôr de critérios aprioristas
que garantam a existência de experiência num sistema. Assim, não
podemos desde já distinguir claramente as coisas para as quais é como
alguma coisa ser das outras. Não podemos fazê-lo porque por um lado é
o próprio mundo que é vago, sem divisão abrupta entre consciência e
apercebimento inconsciente, por outro porque se trata de questão
empíricas abertas. Isto significa que nas ocasiões em que se deve
considerar se há aí ou não alguém para quem é como alguma coisa ser
se é obrigado a decisões.
Aliás, já é isso mesmo que as práticas mostram. Por exemplo,
desde há algumas décadas que se admite como critério de morte a morte
cerebral. Várias leis declaram que só existe morte cerebral quando se
dá a cessação de todas as funções do cérebro (uma justificação
seria o facto de o cérebro ser responsável pelo funcionamento do corpo
como totalidade (19)). No entanto, tratamentos são
descontinuados e colheitas de orgãos são feitas em situações em que
o funcionamento integrado do organismo ainda persiste, artificialmente
mantido. O que se passa é que é implicitamente admitido que existem
certas funções do cérebro que importam mais, nomeadamente a
consciência ligada às actividades cognitivas superiores. Este é o
factor que rege a decisão quanto à existência de alguém capaz de
sofrer (20). É portanto perfeitamente possível estar
perante um corpo humano vivo, que mantem um funcionamento integrado (e
por exemplo reacções de dor), e decidir que se trata de morte, porque
o que importa realmente é a perda irreversível da consciência (logo,
da possibilidade de sofrimento). Aquilo que normalmente se oculta é que
semelhantes juízos sobre qualidade de vida supõem decisões e não
descobertas, e se opõem àquilo a que os filósofos chamam a
determinação de pessoas (21). Eles são
incongruentes com a ideia de que a existência de uma pessoa é uma
questão necessariamente determinada no mundo. É uma decisão ética
que lhes subjaz e não a descoberta de um abismo natural entre as coisas
para as quais é como alguma coisa ser e as outras.
Notas:
(1) Numa primeira caracterização, o sentimento de
autoridade introspectiva marcaria a infalibilidade das crenças acerca
da natureza e existência de estados de consciência próprios. Assim
sendo, apenas as expressões que as pessoas produzem dos seus estados
privados poderiam constituir evidência da existência e da natureza
destes estados.
(2) Cf. por exemplo HOBSON 1999a e HOBSON 1999b
(3)No caso da vigília a questão põe-se por exemplo em
relação a alguma coisa vista durante um muito curto intervalo de tempo
(imagine-se: 40 mseg). A questão que se põe é saber o que é
necessário para afirmar que o sujeito teve consciência desse
conteúdo.
(4)O operacionalismo é uma posição em filosofia da
ciência de acordo com a qual os conceitos teóricos são definidos por
meio de operações empíricas. O operacionalismo está próximo de um
empirismo radical segundo o qual os conceitos teóricos devem ser
pensados como contrucções lógicas a partir de experiências. Assim,
do ponto de vista operacionalista, as proposições que seriam à
primeira vista acerca de entidades teóricas (por exemplo partículas
físicas) são de facto acerca de experiências e operações
determinadas. No caso de Dennett, a aplicação do operacionalismo (e
portanto da ideia segundo a qual o discurso explicativo não é acerca
de complicadas entidades teóricas de facto in-experimentáveis
directamente mas acerca de experiências) ao problema a natureza dos
estados conscientes liga-se à consideração segundo a qual aquilo que
não deixa marca na 'experiência da consciência', não existe como
conceito na/da consciência ou conceito de estado consciente. A
significação de qualquer frase acerca da consciência é equacionada
com a evidência disponível, e a evidência só está disponível nas
circunstâncias mencionadas. Note-se desde já que perante esta proposta
de 'ligação conceptual' da consciência ao rastro (e portanto à
memória) é possível pelo menos possível objectar, como faz por
exemplo N. Block que existem coisas, perfeitamente reais, que aparecem e
desaparecem sem rastro. (BLOCK 1997: 177 )
(5) Cf. ROEDINGER & GOFF 1998 e ALLEN & REBER
1998.
(6)As memórias de experiências podem, como memórias,
não ser verídicas, i.e., serem memórias-de- experiências sem que
tais experiências tenham existido.
(7)Cf. MALCOLM 1956:18 «Suppose that I am in bed and
you come and shake me and ask "Are you asleep?" and that I
reply "I am sound asleep". It would be amusing if you took me
as claiming that I am sound asleep and then concluded from this that I
am sound asleep»
(8)O sono REM é um estádio do sono em que existem
activação cerebral das áreas responsáveis pelo processamento visual
e dos sistemas motores responsáveis por movimentos oculares rápidos.
Supostamente durante o sono REM também existem sensações e
percepções vívidas, internamente geradas, pensamentos ilógicos e
bizzaros e movimentos comandados mas inibidos. O sono REM alterna com a
vigília e o sono não REM de acordo com uma sequência recorrente.
(9)Para a perspectiva científica contemporânea sobre a
questão cf. HOBSON 1999a e 1999b. Como se verá, os sonhos não são
experiência porque não 'cumprem os critérios' para o serem (os
critérios em causa são critérios de sentido).
(10)A dificuldade ou impossibilidade de comparar a
verdade (truth) com a sinceridade (truthfullness) do reportado acerca da
experiência vale para toda a experiência. Poderíamos parafrasear
Wittgenstein e afirmar que 'a questão de saber se a memória do
experienciador o engana quando ele relata a experiência não pode
surgir a não ser que introduzamos um critério completamente novo para
o relato concordar com a experiência, um critério que nos dá um
conceito de verdade por oposição a sinceridade de expressão'. Isto
envolveria no entanto a abdicação da distinção (que é para Malcolm
uma distinção 'conceptual') entre 'sonhos' e 'experiências'.
(11)Utilizando a formulação de J. Searle (SEARLE
1998) poder-se-ia dizer que a fenomenologia não é redutível à
neurofisiologia devido à sua subjectividade ontológica
(12)DENNETT 1978: 143 Aliás um dos fundamentais
propósitos de PUTNAM 1962 é defender que a competência semântica das
pessoas prevê ou inclui competências 'indutivas', o que em termos de
linguagem se traduz na projectibilidade dos predicados.
(13)A memória é uma condição necessária da
experiência, concedendo-se que as memórias podem não durar muito.(cf
DENNETT 1978: 144)
(14) Convem sublinhar que para Dennett sem o
verificacionismo o teórico da consciência seria levado a admitir a
possiblidade de zombies, de espectros invertidos, e a verdade do
epifenomenalismo. Dennett considera todas estas ideias absurdas (cf
DENNETT 1991: 461). Daí que afirme que o 'superficialismo' do
verificacionismo não é uma resposta superficial aos problemas da
teoria da consciência. 'Consciência' é apercebimento de que (factos),
e algo que tem resultados (nomeadamente ser expresso).Mas de facto o
verificacionismo e a correlativa definição de consciência como um
fenómeno de segundo grau ocupam, justificada ou injustificadamente, o
lugar da consciência fenomenal. Por exemplo F. Dretske (DRETSKE 1994)
contrapõe a esta restrição da consciência ao apercebimento de factos
e à expressão aquilo a que chama 'percepção não epistémica', que
não requer conhecimento ou crença. Para Dennett um fenómeno dessa
natureza não existe ou pelo menos não se trata de 'consciência' mas
sim de outro tipo de apercebimento. Dretske resume o defeito da teoria
da consciência de Dennett da seguinte maneira: ela faz com que Dennett
confunda 'aperceber maçãs' com 'aperceber-se de que existem maçãs'.
É por esta razão que Dretske classifica Dennett como cognitivista,
i.e. alguém para quem a percepção é cognição, e ver ou ouvir ou
sentir alguma coisa são espécies de juízos. Dennett torna mais
confusa a questão 'É a experiência ou não constituída por entidades
da natureza do pensamento?' (thought-like entities) quando a mistura com
a questão os qualia, que Dennett define como propriedades de Segunda
ordem das propriedades da experiência consciente..
(15) De facto não existe um espaço interior para a
apreciação do aparecer da vida interior. É por isso também não
existe espaço para um verificacionismo no sentido próprio, como
Wittgenstein viu. Seria interessante comparar o recuo wittgensteiniano
perante o verificacionismo (por não ser possível cometer erros em
asserções de experiência interior, que são Äusserungen e não
asserções empíricas) e o verificacionismo que Dennett mantem.
(16) Cf. PINTO, J.A, 1999: 133. O termo 'apagado'
traduz o termo zombie e nomeia uma réplica física de um sistema
consciente na qual a experiência fenomenal está ausente. A
pertinência de qualquer destes termos é a captura da situação em que
tudo decorreria no escuro, enquanto Dennett pensa que quando se trata de
experiência nunca se está perante situações assim tão claras.
(17) Critério usado por exemplo pelos filósofos
católicos G. GRISEZ e J. BOYLE nas suas análises de bio-ética. Cf.
GRISEZ & BOYLE 1979. A centração no 'funcionamento integrado' e
não na actividade deve-se ao facto de reconhecidamente, a actividade
poder continuar depois de as 'funções' terem cessado. Dennett defende
a utilidade, neste ponto, de uma distinção entre a dor e o sofrimento,
fundamentada na ligação entre a consciência e o importar (cf. DENNETT
1996: 162) Sem um sujeito persistente não pode haver alguém para quem
alguma coisa importe, e sem consciência não pode haver esse sujeito
persistente. Por outro lado, pode haver estados sensientes (de dor por
exemplo) sem reportação um sujeito unificado. Cf. MIGUENS, S., Qualia
e Razões.
(18) Cf PARFIT 1984. A determinação das pessoas
corresponde à possibilidade de uma resposta clara à questão 'Existe
aí ou não uma pessoa?', em todas as circunstãncias. D. Parfit defende
a impossibilidade dessa resposta, e portanto a 'indeterminação' das
pessoas. Se a Identidade Pessoal (a Pessoa) não é um facto a mais
além da continuidade psicológica não é legítimo pressupôr a pessoa
independentemente da efectuação dessa continuidade psicológica.
Parfit liga a sua posição (a que chama reducionista) acerca da
Identidade Pessoal à definição lockeana de Pessoas (no Essay
Concerning Human Understanding, 2º Livro, Cap. XXVII) pela
auto-consciência e pela memória de actos passados.
Bibliografia
ALLEN, R. & REBER, A., 1998, Unconcious Intelligence, in BECHTEL, W.
& GRAHAM, G., A Companion to Cognitive Science, Oxford, Blackwell,
pp. 314-323
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Sofia Miguens
smiguens@letras.up.pt