Dada a sua concepção funcionalista do mental,
segundo a qual o facto de um sistema físico ter mente consiste na
realização por esse sistema físico de uma determinada organização
funcional, Dennett considera que não existe nenhuma diferença
essencial entre a inteligência natural e a inteligência artificial. O
campo disciplinar da IA pode por isso servir como fonte de vários
esclarecimentos em filosofia da mente e as experimentações possíveis
em IA via a criação de programas e robôs devem ser consideradas como
contribuições importantes para a compreensão das mentes naturais.
Pondo em prática esta convicção, Dennett tem-se servido ao longo
da sua obra de exemplos de criações da IA para desafiar e ilustrar
pontos na teoria da mente. Fê-lo já com o General Problem Solver de
Newell, Simon e Shaw (um programa capaz do tipo de raciocínio
heurístico chamado análise meios/fins) nos anos 60, continua hoje a
fazê-lo com os robôs móveis autónomos de Rodney Brooks (cf. http://www.ai.mit.edu/people/brooks/brooks.html)e
de Maja Mataric ( cf. http://www.ai.mit.edu/people/maja/maja.html
) capazes de comportamentos cognitivos no mundo e mesmo de estratégias
de cooperação em grupo, e fá-lo, finalmente, mantendo uma proximidade
prática com o campo, através da sua participação como
"filósofo residente" no projecto da criação de Cog, o robot
humanóide do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, dirigido
por Rodney Brooks, (cf. www.ai.mit.edu/projects/cog).
Estes programas e robôs são para Dennett experiências mentais
reais ou realizadas, mesmo se são experimentações sobre o
"mental-possível" que não simulam ou explicam imediatamente
o "mental-natural". São experiências mentais no duplo
sentido de partirem da imaginação sobre o que poderia acontecer em
determinadas circunstâncias e de serem acerca a mente, e são reais na
medida em que conduzem à criação de programas e máquinas, uma vez
que a IA é um campo afim da engenharia.
Mas a IA é para Dennett mais do que uma fonte de exemplos e
experiências mentais. Dennett entende a IA como uma maneira de fazer
filosofia, mesmo se não é isso que estes cientistas pensam que estão
a fazer (cf. Dennett, Cog as a Thought Experiment). Essa actividade,
fazer filosofia, é entendida por Dennett à maneira de Kant como uma
investigação das condições de possibilidade da cognição em geral.
Isto quer dizer que a epistemologia pura dos filósofos é para Dennett
apenas o caso limite num continuum que envolve também as criações da
IA. As questões da filosofia e da IA são identicamente abstractas e
gerais e visam a emergência no mundo físico de percepção, acção,
inteligência e consciência. A IA partilha ainda com a filosofia o
método das experiências mentais. Aliás, segundo Dennett, os métodos
da IA são um paraíso para filósofos, precisamente porque todo o campo
consiste em experiências mentais. Esta afirmação parace falhar o alvo
em relação a um domínio de engenharia, no entanto aquilo que Dennett
pretende pôr em relevo é o possível desprendimento da questão do
mental em relação ao mental biologicamente baseado actual: este não
tem privilégios por princípio, ou só os teria como consequência de
um essencialismo acerca das origens que para Dennett é indefensável.
Os fenómenos mentais biologicamente baseados e actuais situam-se por
isso conjuntamente com outras formas possiveis de mentes num mesmo
espaço do design.
Mas estas experiências mentais da IA têm uma vantagem em relação
às da filosofia pura: como são experiências mentais controladas via
"próteses" (os computadores) as hipóteses podem ser
refutadas em concreto, no sentido próprio daquilo que acontece numa
experimentação, enquanto que nas experiências mentais dos filósofos
nada pode nunca correr mal, pois não existindo o constrangimento que
representa o facto de se ter que construir o modelo que se imagina, não
há lugar para as surpresas com que se aprende. A Inteligência
Artificial e Vida Artificial têm, na sua maneira de colocar a questão
de Kant, uma vantagem não apenas em relação à filosofia pura mas
também em relação às investigações cognitivas a que Dennett chama
"abstémias", por exemplo aquelas que são estritamente
neurobiológicas e procedem "neurónio a neurónio". Essa
vantagem é a seguinte: é mais facil deduzir competências
comportamentais dos mecanismos que se contruiu do que elaborar
hipóteses acerca de mecanismos internos de caixas negras cujo
comportamento se observou (o que é a posição do cientista
"abstémio", por exemplo do neurocientista, por comparação
com o teórico da IA).
Este louvor das vantagens da passagem à acção que a tentativa de
constituição de uma IA representa por contraposição à
investigação de uma inteligência "natural" tem ligações
com uma ideia directriz de Dennett quanto à investigação da mente:
para Dennett as Ciências Cognitivas enquanto ciências da inteligência
"natural" ganharão se se assumirem como uma prática de
Engenharia Invertida (reverse engineering).
Segundo Dennett, as ciências cognitivas, enquanto ciências da
mente-cérebro, investigam soluções de design biológico, soluções
já realizadas e frequentemente imperfeitas, muito distantes da melhor
solução possível, inclusive porque partem da necessidade de
aproveitar o material pré-existente na evolução biológica, nunca
partindo obviamente do zero. Ao sublinhar esta imperfeição e
oportunismo das soluções biológicas de design, Dennett pretende
combater aquele que considera ser um defeito característico de
filósofos e outros cientistas cognitivos, a tendência a considerar
que, em relação ao estudo da mente e na exclusão do dualismo, restam
a física e a matemática, ocultando a perspectiva teoricamente menos
pura da biologia-como-engenharia (e por isso parente da IA...) como
chave para o estudo da mente.
A maneira de trabalhar da IA é segundo Dennett - e isto é um louvor
- ambiciosa e "saltadora de etapas": é uma abordagem top-down
que nos fará avançar mais rapidamente na compreensão da cognição do
que as descrições bottom-up, nomeadamente as neurobiológicas.
Por tudo isto, Dennett nunca deixa de recomendar aos filósofos a
familiaridade com os problemas de implementação relacionados com os
seus problemas mais abstractos acerca da mente. Por exemplo aconselha
sempre a familiaridade com o Jogo da Vida de John Horton Conway, baseado
na teoria dos autómatos celulares e antecessor das investigações no
campo da Vida Artificial, (cf. http://www.
yahoo.com/Science/Artificial_Life/Conway_s_Game_of_Life/index.html)
como uma maneira prática de considerar problemas relevantes para a
filosofia da mente como a identidade através do tempo, a causação, os
níveis de explicação, (cf. Dennett, Real Patterns, http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm)
Correlativamente, aos cientistas que trabalham em IA, Dennett recomenda
algumas leituras filosóficas (como Hume, Ryle, Wittgenstein,
Millikan...) oferecendo a possibilidade de pela consciência histórica
serem capazes de discernir as más ideias perenes no tratamento da
cognição que certamente os perseguirão.
Como foi dito, a fundamentação da posição de Dennett em relação
à IA é o facto de não admitir a possibilidade de uma distinção de
essência entre Inteligência "natural" e inteligência não
natural. Na medida em que a caracterização dos fenómenos mentais é
funcional, a discriminação entre os substractos que os realizam não
está justificada. A IA pode não ser natural por não ser resultado da
evolução biológica mas, se a definição de mental como funcional é
legítima, ela é genuina e pode-nos fazer aprender muito sobre os
problemas especificos dos sistemas de representação de conhecimento
dos quais a nossa mente/cérebro é um caso particular.
No entanto para alguém como Fodor (cf. Baumgartner e Payr, 1995
Speaking Minds, Interviews with 20 Eminent Cognitive Scientists), esta
fascinação de Dennett pela IA como "maneira de investigar a
mente" está completamente mal dirigida: segundo Fodor, a ciência
da mente deve ser psicologia cognitiva e não IA. A IA é engenharia,
construção de máquinas e como tal tem interesse científico por si,
mas não é o bom caminho para o estudo da mente. Uma coisa é tentar
entender o pensamento, outra é construir máquinas inteligentes: como
Fodor diz, também não se faz física simulando o universo. Essa seria
uma ideia muito pouco razoável, porque os fenómenos que observamos no
mundo são efeitos de complicadíssimas interacções nos mecanismos
subjacentes e na prática impossíveis de reconstituir e isto também se
aplica à física da cognição. Fodor pensa que fazer ciência é
simplificar para compreender e não simular, e assim deve fazer-se
também a ciência da mente. Mas Dennett quer andar depressa e a IA
parece-lhe o atalho ideal.
O diferendo entre as posições de Fodor e Dennett quanto à IA é
recondutível à questão de saber se há ou não casos em que a
simulação é replicação. Para quem defende uma teoria funcionalista
da natureza de alguma coisa, nomeadamente do mental, é difícil
resistir à conclusão de que há casos em que a simulação é
replicação.
Além do mais é preciso decidir até que escala uma simulação
teria que fazer-se para obter propriedades mentais. No caso de as
propriedades mentais serem funcionais e de nível mais elevado do que a
estrutura física da matéria que Fodor considera irreprodutível, a sua
objecção poderia não ser eficaz.
Sofia Miguens
smiguens@letras.up.pt
Bibliografia:
BAUMGARTNER, PAYR, Speaking Minds, Princeton University Press
DENNETT, 1978, Brainstorms, MIT Press
DENNETT, 1998, Brainchildren, Penguin
DENNETT, Real Patterns, http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm
DENNETT, Cog as a Thought Experiment, http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm
DENNETT, Things about things, http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm
HAUGELAND, 1985, Artificial Inteligence, The Very Idea, MIT Press