O mito do tempo como linha
A obra de John William Dunne (1875-1949) sobre o tempo é mais
conhecida pela sua influência em escritores como J. B. Priestley 2
e Jorge Luis Borges 3 e em filósofos como C. D. Broad 4
do que pela leitura directa dos cinco livros que dedicou a esse tema (An
Experiment with Time, de 1927, The Serial Universe, de 1934, The New
Immortality, de 1938, Nothing Dies, de 1940, e o póstumo Intrusions?,
de 1955 5). Existe uma atmosfera preternatural a rodear
a obra de Dunne. Não raro, este autor é redescoberto por leitores que
desejam confirmar se uma das páginas de Borges descreve uma personagem
ficcional ou um autor real. Para além dos pequenos textos com que
Borges assinalou a publicação das obras de Dunne, existem boas razões
para este ser por vezes tomado como uma personagem daquele: uma vida
aventurosa de militar ligada ao gosto por questões metafísicas, a
obsessão pelo tema do tempo e o cruzamento de interesses tão
diversificados como a engenharia aeronáutica, a pesca de rio e a teoria
dos sonhos.
O leitor comum de Dunne passa por alto habitualmente a base
científica da sua teoria do tempo e sobrevaloriza os aspectos mais
impressionistas da mesma, como a utilização dos sonhos 6
e o método de argumentação por regressão ao infinito. Esta
interpretação injusta da obra de Dunne é frequente. Qualquer teoria
do tempo que se proponha no século XX não pode contrariar nem violar a
física e a cosmologia científicas que se consideram verdadeiras depois
de muitos indícios experimentais. Dunne toma como base de
argumentação das suas teorias do tempo, dos observadores e da
imortalidade a relatividade de Einstein e a física quântica da
primeira metade do século XX. A pergunta que organiza o seu argumento
à volta da natureza do tempo é esta: Se as teorias físicas da
relatividade e da mecânica quântica são verdadeiras, como compreender
a existência de observadores num universo físico constituído por
partículas e por campos de força? A relação dos observadores com os
sistemas físicos, assunto importante para Dunne porque sobre ele apoia
o método da regressão infinita, a teoria do tempo como série de
séries e a representação que faz do futuro e da imortalidade, não é
uma originalidade; o tema do observador é central nas mais importantes
teorias físicas do século XX, como a relatividade, a física quântica
e a cosmologia do princípio antrópico, para nomear apenas algumas.
Porque é, então, frequente esta interpretação incorrecta de
Dunne? Existe um erro de perspectiva que considera as representações
do futuro como próprias apenas da cultura popular, da religião, da
filosofia e da literatura. Uma procura do significado de expressões
como 'agora', ou 'passado' ou ainda 'futuro' parece ser um
empreendimento filosófico ou literário mas não científico. Dunne
não comete esse erro e evita cometer o equívoco, apresentado por C. D.
Broad 7 num irónico jogo de palavras, de tomar o autor
da natureza como sendo a mesma entidade que o editor da revista Nature.
O discurso científico parece incapaz de se pronunciar sobre o futuro e
sobre um eventual final do tempo. Uma análise mais detalhada mostra,
todavia, que algumas das mais interessantes representações do futuro
estão próximas da investigação científica, isto para não afirmar
que têm a sua origem nessa investigação. O inventário da proximidade
(ou ligações perigosas?) entre ciência e representações do futuro
é muito longo: a teoria da evolução de Darwin tem um problema de
futuro quando questiona se a evolução terminou no ser humano e como
poderá continuar; a termodinâmica do século XIX fez nascer a questão
célebre da morte térmica do universo; o modelo cosmológico do Big
Bang promoveu a investigação exaustiva de futuros possíveis através
da procura da solução para o problema da massa existente no universo
físico (expansão infinita com morte e arrefecimento progressivo ou
modelo de Big Crunch, com uma implosão no momento em que a força
gravitacional se torna superior à força centrífuga da explosão
inicial). Existe pelo menos um elemento comum entre as representações
científicas, literárias, religiosas ou populares: a natureza do tempo.
O único assunto da obra de Dunne é precisamente este. O ponto de
vista defendido nos seus livros sobre o tempo tem aspectos literários
(apresentação de argumentos sob a forma de diálogos), religiosos (a
teoria da imortalidade) e populares (a ênfase naquilo que denominou a
metafísica do homem da rua, ET 8 130). Todavia, o
âmbito dos argumentos que propõe não ultrapassa o que é permitido
pelo conhecimento científico disponível no seu tempo (poderíamos
afirmar, sem grandes problemas, também do nosso tempo). Assim, afirma
que a explicação proposta para o problema do tempo não deve
contradizer os factos já bem estabelecidos da física, da cosmologia,
da psicologia e da psicofísica (ET 126). Existe uma boa razão para
Dunne ter merecido críticas constantes por parte dos filósofos. O
problema do tempo é um assunto fundador do pensamento ocidental, desde
o rio de Heraclito, passando pelas sugestões paradoxais de Platão de
um tempo em que os homens possuíam o conhecimento da hora da morte
(Platão, Górgias 523d) e de um tempo que se desenrola ao contrário do
normal (o mito do Político), bem como pela questão do valor de verdade
de enunciados sobre acontecimentos futuros, com o problema aristotélico
da batalha naval e com o argumento mestre de Diodoro Cronos. Esta lista
poderia continuar facilmente com o problema dos futuros contingentes
durante a Idade Média e o ressurgimento do interesse pelas questões
temporais na lógica contemporânea, nomeadamente na lógica modal, na
lógica temporal e na lógica dos mundos possíveis. Dir-se-ia que o
problema do tempo no pensamento ocidental se baseia na surpresa de os
humanos terem memória para o passado mas não terem nenhuma faculdade
para visualizarem o futuro, ao modo dos yahoos de Borges (El informe de
Brodie), ou ao modo dos extraterrestres de Arthur C. Clarke (Childhood's
End). Os filósofos não perdoam a Dunne a proposta de uma teoria do
tempo que se apresenta como superior aos velhos paradoxos filosóficos
do tempo, como o paradoxo do avô e o paradoxo do conhecimento. A
simplicidade dos argumentos de Dunne tem um efeito secundário nos
leitores sofisticados: se a teoria é simples, então não é
verdadeira.
É importante, por conseguinte, analisar os textos de Dunne de um
ponto de vista abrangente que integre as teorias, a argumentação e a
base científica. Alguns aspectos são especialmente importantes: a
procura do significado da expressão 'futuro', a estrutura profunda do
tempo, a ligação entre a psicologia interna e a cosmologia, a teoria
da rosa imortal, a integração do modelo 'serial' de Dunne em teorias
do Ponto Ómega e do Princípio Antrópico.
A sugestão mais conhecida de Dunne, a possibilidade de visão (ou
antevisão) do futuro, enquadra-se dentro de uma história longa deste
motivo literário e filosófico. Apesar de a argumentação de Dunne
enfermar de alguma fragilidade (a regressão infinita é o aspecto do
argumento que mais críticas tem merecido), é importante ver que não
são cometidas falácias de argumentação e que a eventual fragilidade
dos argumentos de Dunne deriva de fragilidades da racionalidade humana.
É frequente no discurso de Dunne o cuidado em equacionar com rigor os
problemas teóricos e a atenção crítica aos argumentos propostos. Uma
investigação sobre a natureza do tempo não pode deixar de tocar em
problemas sem resposta, como o porquê da existência. Dunne não se
precipita em alargar a investigação sobre o tempo a mistérios ainda
mais vastos. Sobre estes, nada tem a dizer: «the master-miracle, the
entirely incredible thing, is that there should exist anything at all»
(ND 12). É óbvio que qualquer investigação tem pressupostos que não
é capaz de justificar. A atitude epistemológica de Dunne é muito
clara: indicar sempre que possível esses pressupostos e nada afirmar
sobre eles. Um exemplo especialmente interessante desta atitude é a
opção pela tese realista da existência do mundo exterior aos
observadores (NI 112, ND24). O realismo não se adequa a uma teoria que
valoriza o papel dos observadores, mas a sua eleição é um indício de
como Dunne não ultrapassa o plano científico. Este é um pequeno, mas
saudável, paradoxo.
O ponto de partida de Dunne é aquilo que o homem da rua sabe,
suspeita ou descobriu sobre o tempo (ET 130-131). O início do argumento
convida o leitor, como homem comum, a fazer o inventário de algumas
experiências do tempo mais comuns. São estes os aspectos que é
importante não olvidar nesse conhecimento intuitivo e anterior à
teoria do tempo: o tempo tem comprimento ou duração, divisível em
passado e futuro; este comprimento ou duração não se estende em
nenhum espaço conhecido; nem o passado nem o futuro são observáveis;
o campo de observação do presente move-se ao longo do comprimento do
tempo. O que é insuficiente neste conjunto de teses? O que fica por
dizer sobre a natureza do tempo?
Os sonhos estranhos
O argumento de Dunne sobre o tempo desenvolve-se com a demonstração
que as convicções que o homem da rua alimenta a respeito do tempo não
esgotam a totalidade de experiências temporais possíveis. A
premonição de eventos futuros em situação consciente é uma das
hipotéticas experiências que não fazem parte daquilo que o homem da
rua pensa habitualmente sobre o tempo. Se existirem seres humanos com a
capacidade de possuírem uma memória do futuro (algo semelhante ao
conto The Time Machine, de H. G. Wells, ou à ficção El informe de
Brodie de Borges sobre o povo fabuloso dos yahoos ou, ainda, aos
romances The Dead Zone, de Stephen King, e Matadouro 5, de Kurt
Vonnegut), essa experiência violaria o teoria do tempo normal. Do mesmo
modo, se existir alguma capacidade profética em alguns humanos
excepcionais, esse seria um forte indício da necessidade de alargar o
conceito do tempo. Se os relatos de sonhos pré-cognitivos, conhecidos
desde Artemidoro (autor do primeiro catálogo de sonhos conhecidos no
Ocidente), forem verdadeiros, seria necessário construir uma teoria do
tempo mais rica do que a do homem da rua. Dunne toma os sonhos
premonitórios como uma estratégia para alargar a teoria do tempo comum
e para introduzir na experiência humana do tempo as descobertas da
teoria da relatividade de Einstein.
Muitos leitores interpretam por excesso o recurso pedagógico e
argumentativo que Dunne faz dos sonhos premonitórios. É importante,
todavia, tornar claro que a sua teoria do tempo não depende da
existência de sonhos premonitórios, do mesmo modo que a teoria da
relatividade não depende da capacidade de viajar à velocidade da luz
ou, num outro exemplo, a utilização do argumento da máquina do tempo
não implica que os filósofos que o utilizam tomem a sério a
possibilidade de construir uma máquina do tempo (David Lewis, Kurt
Gödel, Michael Dummett, Robert Nozick, David Deutsch, Michael Lockwood,
etc.). Os sonhos premonitórios são utilizados como um recurso em
benefício da argumentação, aquilo que os filósofos da mente
denominam uma experiência de pensamento (thought experiment). São
várias as ocasiões em que Dunne afirma ostensivamente que a sua teoria
do tempo não depende da existência real de sonhos de futuro (ET
196-197, NI 131).
Qual é a experiência de pensamento que propõe? Suponha-se que
existem sonhos premonitórios. Conta Dunne que muitas vezes ao longo da
sua vida teve sonhos com indícios de acontecimentos futuros. Não é
necessário para o argumento inquirir sobre a possibilidade da
existência deste tipo de sonhos. Não é esse o ponto do argumento. A
estrutura de um sonho típico (por exemplo ET 95-96) é a seguinte: um
sujeito sonha durante uma noite que está a passear pelo campo e que vê
dois homens a treinar um cavalo. O sonho torna-se premonitório quando,
alguns dias depois, o sujeito de facto caminha por um campo e vê dois
homens a treinar um cavalo.
São conhecidas as objecções habituais a este tipo de sonhos ou
narrações oníricas. Apresentam-se como dificuldades a possibilidade
das coincidências; o facto de não se ter controlado a quantidade de
tempo posterior ao sonho (encontrar os eventos um dia ou dois depois do
sonho é completamente diferente de os encontrar quarenta anos depois,
já que em quarenta anos existe maior probabilidade de se encontrar uma
situação semelhante à onírica); o controlo da relevância (se o
sonhador for um camponês ou um treinador de cavalos é pouco relevante
discernir no sonho um elemento pré-cognitivo, do mesmo modo que para um
habitante de cidades é pouco relevante sonhar com os automóveis que
todos os dias vê). Muitas outras objecções poderiam ser avançadas.
Não é esse, contudo, o problema de Dunne, tal como David Lewis não
precisaria de inquirir se as máquinas do tempo funcionam a gasolina ou
a fusão nuclear para construir um argumento sobre a estrutura da
temporalidade e os elos causais entre diferentes momentos do tempo.
Dunne não deixou de ser sensível, é óbvio, a algumas das
hipotéticas objecções e oferece mesmo alguns argumentos a favor das
mesmas. Assim, a respeito do problema das coincidências, afirma que
«there are no limits to the possibilities of coincidence» (ET 92).
Este ponto de vista sensato sobre o problema não faz apelo ¾ nem
precisa de fazer ¾a nenhuma teoria semelhante à sincronicidade de
Carl-Gustav Jung para contornar a dificuldade das coincidências
significativas.
A introdução dos sonhos premonitórios no argumento possui várias
características: existe uma mistura de elementos de passado e de futuro
nos sonhos (ET 75), é impossível encontrar sonhos que se relacionem
completamente com o futuro (ET 75) e existe uma separação clara entre
as imagens oníricas e as interpretações que se fazem dessas imagens
imediatamente depois do despertar (ET 78). A propriedade mais
interessante dos sonhos premonitórios é descrita como aberração
temporal (temporal aberration, ET, 57), ou aberração cronológica
(chronological aberration, ET, 60). Os conteúdos imagéticos dos sonhos
são derivados do quotidiano e não revelam quaisquer indícios que os
diferenciem dos sonhos sobre experiências do passado. Como refere
Dunne, «they were the ordinary, appropriate, expectable dreams; but
they were occurring on the wrong nights» (ET, 57), ou ainda «there was
nothing unusual in any of these dreams as dreams. They were merely
displaced in Time» (ET, 57). O sonho premonitório possui, assim, a
seguinte estrutura: uma sequência da experiência humana normal (a
actividade onírica) revela indícios de eventos acontecidos
posteriormente a essa experiência.
Os problemas teóricos que o motivo do sonho premonitório coloca
são vastos: a sequência temporal da experiência, a relação da mente
com a realidade, a semântica dos termos temporais ('agora', 'passado',
'futuro), a estrutura temporal da realidade, a representação do futuro
como uma realidade mineralizada e pré-existente, etc.
O conceito de aberração temporal é violento porque abala uma
certeza constitutiva da mente humana: a separação entre futuro e
passado acontece por mediação de uma consciência do agora. O que
Dunne consegue ao identificar a revolta intelectual (ET 79) que surge na
associação entre sonhos e eventos posteriores aos sonhos é
transformar essa certeza numa construção psicológica mas não num
axioma inabalável da mente humana. A revolta intelectual que é
diagnosticada aproxima-se (de um modo intuitivo) do sentimento de
confusão quando se procura compreender um filme como L'année dernière
à Marienbad, de Alain Resnais. A sequência temporal habitual de uma
história é bastante alterada, o que não facilita a identificação
dos marcadores de posição temporal dos eventos.
Os qualia e o paralelismo psiconeuronal
As críticas à teoria do tempo de Dunne ocupam-se sobretudo com a
argumentação por regressão ao infinito. A teoria da mente que
estrutura o argumento não tem merecido, estranhamente, análises
críticas. Isto é tanto mais surpreendente quanto a estrutura do
argumento por regressão é introduzida com exemplos psicológicos e por
em 1927, ano em que se publicou An Experiment with Time, não serem
habituais argumentos com problemas típicos da filosofia da mente.
Ao procurar discernir o que está presente nos fenómenos de
aberração temporal, Dunne faz uma análise do que se esconde na
passagem do futuro para o passado. A percepção do agora possui
densidade porque a propriedade 'agora' revela a existência de um
observador. 'Agora' significa 'agora para um observador'. A descrição
da estrutura da mente humana fenomenológica que é proposta por Dunne
é muito próxima da de William James: possui fenómenos (phenomena),
presentações, campo de presentações, atenção, foco de atenção,
franja periférica da atenção.
A aberração temporal ou a sequência temporal normal só existem
para um observador que possa registar a passagem do tempo no seu campo
de observação. A passagem do tempo é, contudo, um relato subjectivo
no sentido de só existir porque um observador produz, precisamente, a
narração da passagem do tempo. Os momentos de aberração temporal
dependem muito mais deste elemento subjectivo do que o relato da
sequência normal do tempo. A teoria da mente que Dunne utiliza tem
necessidade de provar que o relato subjectivo é uma instância
incontornável da mente, algo que não pode ser apoucado numa redução
aos mecanismos neuronais do cérebro. A passagem subjectiva do tempo
não é o mesmo que o registo do tempo nos neurónios.
Os dados estão lançados para a equação de um problema muito
difícil: a existência autónoma de aspectos subjectivos da mente
humana (raw feelings, qualia, sense data). Dunne utiliza um motivo
retórico muito conhecido para transmitir a dificuldade em compreender o
ponto de vista subjectivo. Se estivéssemos perante um visitante de um
país onde os todos os habitantes nascem cegos, o que se poderia fazer
para lhe explicar o significado de 'ver'? Este modo de iniciar a prova
do argumento insere-se num problema filosófico muito trabalhado, desde
a questão do espectro invertido, em John Locke, até ao tema dos
qualia, ou sensações subjectivas, na filosofia da mente posterior a
Dunne. Assim, o filósofo australiano Frank Jackson imagina uma
cientista de um século futuro que dispõe de todo o conhecimento
neurológico sobre a visão, mas que é, ela mesma, incapaz de
percepcionar a cor 9. Tudo saber sobre a base
neurológica da visão implica a capacidade de reconhecer a existência
do aspecto subjectivo da percepção da cor, mesmo que se esteja
pessoalmente incapaz de percepcionar a cor? (Um problema paralelo:
conhecer tudo o que se pode saber sobre o elemento químico carbono
implica que se saiba que existem diamantes com nomes próprios -
Koh-i-noor, De Beers, Estrela da África do Sul, Burton - e que, como no
fime com Marylin Monroe, os diamantes são os melhores amigos de uma
rapariga?)
Ao escrever em 1927, Dunne antecipa em várias décadas o argumento
do conhecimento (knowledge argument) de Frank Jackson (ET 13-19). Os
phenomena, ou impressões subjectivas, deverão ser tratados como se
fossem coisas e é dada grande ênfase às imagens, às imagens
mnésicas e às impressões. Os qualia mostram características do real
que não são conhecidas por qualquer outro meio diferente do ponto de
vista subjectivo: «there are no such lights or colours or sounds in the
world dealt with by physical science» (NI 15 ss). Às luzes, cores e
sons que apenas existem no universo porque existem observadores no
universo, Dunne acrescenta a impressão subjectiva da passagem do tempo.
É deixada em aberto a questão de os qualia serem eventualmente
efeitos epifenomenais do cérebro. Não é esse o seu assunto. A
relação mente-cérebro é perspectivada segundo a teoria do
paralelismo psiconeuronal: «accumulated evidence in favour of this view
is practically overwhelming» (ET 21). Com o desenvolvimento futuro do
conhecimento do cérebro, talvez se torne possível encontrar os
correlatos neuronais de todas as impressões subjectivas. Um modelo da
realidade que compatibilize a existência de observadores com as
descobertas da física talvez promova um ponto de vista em que os qualia
se poderão descrever como eventos cerebrais (ET 224). O argumento de
Dunne não precisa, contudo, da certeza desse desenvolvimento futuro do
conhecimento médico ou de modelos físicos do universo. Ao defender a
autonomia das impressões subjectivas, Dunne alcançou resultados
importantes: os relatos subjectivos não se confundem com o cérebro e
também não se confundem com a consciência pessoal do observador. Este
pode perfeitamente comparar impressões subjectivas e produzir
enunciados como: «Este tom de vermelho é diferente daquele outro tom
de vermelho», ou ainda «O tempo passou mais depressa quando estive no
cinema do que quando estive a trabalhar». Se é possível comparar
impressões subjectivas, a instância da vida mental que realiza essa
comparação não se confunde com as impressões subjectivas que são
comparadas. Estas são conteúdos para aquela:
«Now, you, I repeat, observe sense-data. You are not a
conglomeration of sights and sounds and tastes and smells and pressures:
you are something which can adopt definite attitudes towards these
phenomena ... Since the sense-data and their memory-images are
'paralleled' by activities of the material brain, what is there, in that
same brain, which parallels the you who observe, objectively, those
sense-data?» (ND 18)
A estrutura do agora já é suficientemente densa. O campo de
observação que medeia entre o futuro e o passado tem uma grande
complexidade. Dunne irá retirar algumas consequências importantes das
duas teses principais da teoria da mente que defende, a existência
autónoma dos qualia e o paralelismo psiconeuronal. A primeira
consequência é a de os qualia e os estímulos sensoriais processados
pelo cérebro correrem em caminhos temporais paralelos (ET, 21).
(Algumas décadas depois da morte de Dunne foi possível mensurar o
hiato temporal entre estas duas séries, por exemplo Benjamin Libet e
Ernst Pöppel). A série temporal que decorre no universo exterior ao
sujeito não é a mesma que a série temporal que decorre no cérebro do
sujeito, nem é a mesma que a série temporal que decorre como
impressão subjectiva. O tempo para Dunne deixa de ser uma realidade
unitária e torna-se uma colecção de séries, ao modo de caixinhas
chinesas, umas dentro das outras (ET 187).
A segunda consequência é igualmente importante. Ao defender os
qualia como uma instância da vida mental que não se confunde com o
cérebro, Dunne abre a porta a uma teoria da consciência desligada de
bases neuronais. O eu que é capaz de comparar impressões subjectivas
não é, por isso mesmo, uma impressão subjectiva. Do mesmo modo que a
regressão das séries temporais começou na análise da estrutura do
agora, a regressão dos observadores tem aí a sua base. A regressão é
possível porque o observador não se confunde nem com as sensações
subjectivas nem com o cérebro: «the scientific history of materialism
is the story of a long and unsuccessful search, first in the higher
centres of the brain ... for something physical which would correspond
... with the psychical you and ... sense-data» (ND 19).
O observador
A regressão dos observadores é também, para Dunne, uma colecção
de caixas chinesas, umas dentro das outras. Constitui-se, assim, uma
série ilimitada de enunciados da consciência: «Tenho consciência que
estou a ver uma cor vermelha naquele automóvel», «Tenho consciência
que tenho consciência que estou a ver uma cor vermelha naquele
automóvel», «Tenho consciência que tenho consciência que tenho
consciência que tenho consciência que estou a ver uma cor vermelha
naquele automóvel», etc. A regressão do observador acompanha a
regressão das séries temporais. Cada observador possui uma impressão
subjectiva do fluir do tempo.
A regressão dos observadores possui uma base epistemológica muito
forte. Não se trata apenas da descoberta que o início da maturidade
nos jovens costuma proporcionar: tenho consciência que tenho
consciência que tenho consciência... ou uma série semelhante, penso
numa flor, penso que penso numa flor, penso que penso que penso numa
flor, e assim por diante. Cada observador de uma ordem inferior parece
ser uma construção ou uma propriedade do observador de ordem superior.
Cada observador 'si-mesmo' possui de algum modo os eus com que aparece
numa situação: «this 'self' of 'yours' may be no more than a
conception» (NI 45).
Existe um problema de representação mais forte que se esconde na
regressão subjectiva. Como introduzir os observadores num universo
físico que parece ser constituído apenas por partículas e campos de
forças? De outro modo, se a ambição da ciência é a representação
total do universo, como pode ela registar o facto de existirem pontos de
vista subjectivos no universo? Não se trata da diferença entre o que
as 'coisas são' e o que as 'coisas parecem ser'. Esta diferença coloca
o problema do observador com grande força (SU 38), é óbvio; todavia,
a dificuldade reside em construir uma representação do universo
físico que não se olvide do autor da representação.
Dunne constrói no capítulo segundo de Serial Universe uma
magnífica parábola para descrever o que está em causa na relação
dos observadores com o universo físico. O motivo retórico é
conhecido: o artista ambicioso, ou louco, que empreende a
representação total do universo que vê à sua volta (SU 29). Todas as
ciências compartilham o problema do artista pintor a tentar representar
toda uma paisagem. O argumento de Dunne é sedutor mas corre o perigo de
se tornar numa falácia que toma o conhecimento do objecto pelo próprio
objecto. O que caracteriza o modo de conhecer (uma regressão infinita
ou, num outro exemplo, um método datado de investigação) não obriga
o objecto investigado. Um paralelo tecnológico auxilia a precisar o que
está em causa: a ciência da astronomia pode alterar os meios de
investigar as estrelas (substituindo, por exemplo, a observação
óptica por observação na banda do infravermelho ou na banda dos raios
X) mas a alteração do conhecimento que isso proporciona não altera as
próprias estrelas.
Dunne parece cruzar facilmente a linha de fronteira entre problemas
epistemológicos e ontológicos, ao perspectivar estes últimos segundo
as características dos primeiros. É óbvio que esta objecção não
afecta Dunne porque a resposta seria imediata: 'a confusão entre
conhecimento e objectos conhecidos é uma fragilidade de todos os modos
de conhecer (do seu ponto de vista, todo o conhecimento científico ou
filosófico pode ser visto como uma tabulação de observadores e
objectos observados, cf. ND 38); a minha teoria do tempo não tem o
exclusivo dessa fragilidade'. Da tese que o conhecimento tem uma
estrutura em série é, portanto, possível inferir que o mundo tal como
é representado por esse conhecimento deverá ter também uma estrutura
em série (SU 34).
São muitos os paradoxos que surgem quando se procura introduzir a
consciência do observador na representação do mundo (SU 31). A
dificuldade é, porém, incontornável. O pilar mais forte da noção
moderna e contemporânea de ciência, a experimentação, obriga a que o
problema não seja afastado. A noção de experiência científica
possui no seu âmago o conceito de observador dotado da capacidade de
registar alterações num sistema, de obter informações sobre um
sistema e de eventualmente alterar o sistema. Não existe ciência sem
observadores, mesmo que uma das ficções mais úteis da ciência
ocidental tenha sido a promoção de uma representação do universo
segundo um ponto de vista não subjectivo, ou neutro, ou, como foi
algumas vezes apresentado, de terceira pessoa. A ciência que Dunne toma
como base do seu argumento não afastou o problema do observador. Pelo
contrário, este problema é transformado na questão nuclear das duas
principais representações científicas do século XX: a teoria da
relatividade (precisamente, relatividade de sistemas de observação) e
a física quântica (influência do observador sobre o estado do sistema
físico observado). Como bem viu Rudy Rucker 10, o
problema de Dunne resume-se ao de introduzir a consciência nos
diagramas de Minkowski (diferença entre Dunne e Minkowski é
ostensivamente assumida em NI 124, 141). Das diferentes atitudes da
ciência clássica e da ciência moderna a respeito do papel do
observador, Dunne escolhe claramente esta última: «It is impossible
for you, who are a part of the universe, to achieve the viewpoint of an
observer standing outside that universe that includes you. You can only
see one end of the stick; for the other end is you» (ND 13).
Na interpretação que faz da parábola do artista que empreende um
projecto de representação total do mundo, uma consequências é clara:
a mente descrita por uma ciência não é uma representação adequada
da mente que fez essa ciência.
«The artist is trying to describe in his picture a creature equipped
with all the knowledge which he himself possesses, symbolizing that
knowledge by the picture which the pictured creature would draw. And it
becomes abundantly evident that the knowledge thus pictured must always
be less than the knowledge employed in making the picture. In other
words, the mind which any human science can describe can never be an
adequate representation of the mind which can make that science. And the
process of correcting that inadequacy must follow the serial steps of an
infinite regress» (SU 32).
A procura do significado de 'observador' proporciona, deste modo,
duas séries sem limite: a dos artistas, dos cientistas, ou, de modo
geral, dos observadores, e a dos mundos representados pelos artistas,
cientistas ou observadores (ND 38). Dunne constrói uma visão do
universo que é uma enorme colecção de pontos de vista subjectivos, um
universo de observadores em que cada um transporta consigo um campo que
atribui aos eventos a propriedade temporal do presente, de serem
presente: «Every observing thing has a travelling field peculiar to
itself, and these fields are seldom in exact alinement with those of
other observers» (NI 66-67). Se a teoria da mente que subjaz à
integração dos observadores no universo físico supõe a separação
entre cérebro, sensações subjectivas e auto-consciência, o argumento
por regressão apresenta uma perspectiva em que o observador pode
existir independentemente do suporte físico que circunstancialmente
permite a observação. Esta é uma inferência ousada: «this observer
can survive the destruction of that brain which he observes» (ET 24). A
sobrevivência do observador em relação ao cérebro aparece em linha
de continuidade com os poderes que são atribuídos ao primeiro,
nomeadamente o poder de intervenção (ET 24) na actividade do cérebro.
É clara a recusa em aceitar que a mente da pessoa humana se possa
descrever segundo a figura de um autómato consciente (ET, 24).
Se Dunne aponta para uma eventual sobrevivência da consciência em
relação ao cérebro e se iniciou o seu argumento com a tese que
durante os sonhos a mente pode percorrer sequências temporais
diferentes do passado (o que seria banal) e apreender partes do futuro,
é interessante inquirir o que é que fixa a atenção ao presente? Ou,
qual a força do presente para agarrar a consciência? A resposta de
Dunne é previsível: o hábito é a cola poderosa que une a atenção
ao presente («Habit in psychology is a terrifically potent thing; and
your attention has been glued to View I whenever possible for longer
than you can remember», NI 70, cf. 74 para um exemplo da força que o
Ponto de Vista I tem para fixar a atenção). Não são graves as
consequências de apoiar um argumento tão sofisticado na aparentemente
simples força do hábito. A semântica de 'observador' em Dunne não se
esgota na semântica de 'observador humano'. Sendo um bom aluno da
teoria da relatividade, 'observador' significa sistema físico de
referência, ou ainda máquina de registo de informação, ou ainda
relógio. Se inquiríssemos porque é que uma máquina de registo só
funciona no presente, teríamos que avançar com respostas banais como
'funcionar bem é funcionar no presente; se estivesse estragada não
funcionaria de todo'.
O ponto que interessa a Dunne é, mais uma vez, provar que o
observador e o observado se encontram em diferentes sistemas temporais
(SU 70) e que isso apoia a tese da existência de várias séries de
tempo.
O observador último
Se a natureza profunda dos observadores é regressiva, não existe
nenhuma razão para supor a existência de um observador derradeiro ou
absoluto. Dunne, contudo, ao descrever o universo como uma colecção de
pontos de vista, aponta para uma consciência que parece ser comum a
todos os pontos de vista parciais. É difícil caracterizar as
propriedades deste derradeiro observador. É a alma humana? É uma alma
colectiva? O argumento puramente geométrico não permite muitas
liberdades nessa caracterização, mas, numa interpretação não
geométrica do argumento, Dunne insinua que é essa a melhor
representação do observador de ordem superior: «altough the
'higher-order observer' is nothing more magnificent or more
transcendental than one's own highly ignorant self, he is beginning to
look perilously like a full-fledged 'animus'» (ET 197).
Esta parte da teoria de Dunne não é científica. Ele procura aqui
dar rostos conhecidos aos resultados áridos da análise geométrica. A
aparente infinitude que a consciência humana possui parece esconder um
centelha especial, o observador universal, «the unknown element which
lies at the bottom of self-consciousness and mind» (ET 229). Este
derradeiro elemento é caracterizado pela visão sinóptica comparável
à visão de um filme: nela é possível ver todas as impressões
sensoriais e todos os estados do cérebro (NI 79-80). Perante o foco de
atenção do Observador 2, a aparente autonomia dos qualia a respeito
dos processos neurofisiológicos é atenuada. Desse ponto de vista, não
existe uma fronteira instransponível entre estas realidades.
O observador superior ou Super-Mente (NI 144-145) possui pelo menos
todas as propriedades dos observadores de ordem inferior e algumas
outras: acompanha a vida humana do nascimento à morte (ET 182); tem o
poder de dividir a atenção num maior campo de observação; e é uma
zona de sobreposição que une as atenções particulares dos
indivíduos (mind-sharing, NI 145). (Uma imagem que ilustra a ligação
entre mentes individuais e a Super-Mente é a do arquipélago:
superficialmente, as ilhas estão separadas umas das outras; se, por
alguma razão, o nível das águas descesse, ver-se-ia que todas as
ilhas estão ligadas entre si.)
A rosa imortal
A teoria serial do tempo em Dunne parte, como se viu, da situação
do conhecimento nas ciências físicas, mas não se limita a essa
situação. Ao propor uma teoria do futuro e da imortalidade pessoal,
Dunne não está a fazer teologia nem a representar filosoficamente a
sobrevivência do observador mental em relação à morte física do
corpo. A visão que tem da imortalidade está em linha de continuidade
com os pressupostos que já conhecemos (a representação mais
verdadeira do universo físico é a relatividade e a física quântica,
o paralelismo psiconeuronal é uma representação fiel da mente
humana). A perspectiva sobre o seu próprio argumento é muito clara;
está em causa uma teoria científica da imortalidade pessoal: «it [sc.
o livro An Experiment with Time] contains the first scientific argument
for human immortality» (ET 5). Em certo sentido, a obra de Dunne é
precursora das reflexões que alguns cientistas fizeram ao longo do
século XX das implicações da descrição física do mundo. O ponto de
partida é científico, o ponto de chegada é uma interpretação dos
pressupostos físicos que não viola o conhecimento científico
(pense-se nos primeiros teóricos das cosmologias de princípio
antrópico 11, na filosofia da evolução de Teilhard
de Chardin, na ecodinâmica do economista Kenneth Boulding 12,
na física da ressurreição dos mortos e na cosmologia do Ponto Ómega
do matemático Frank J. Tipler, etc.).
Dunne faz a denúncia do terror contemporâneo da imortalidade,
devido àquilo que considera ser um incorrecto entendimento da mesma (SU
36). A descrição que faz da presença da morte no universo é muito
forte: «life was a disappointing thing which opened with high hopes and
sounding trumpets, moved on to frustration after frustration, and
terminated in a disillusioned crawling to the grave» (NI 11). A
regressão dos observadores e das séries temporais permite contrariar a
concepção da morte num universo entendido como uma câmara de
execução (SU 33), ou, mesmo, uma câmara de execução com alguns
atractivos («handsome antechamber to eternal extinction», NI 12).
A morte é uma situação apenas numa série temporal mas não em
todas, e muito menos no tempo real. A irrepetibilidade da morte
diferencia esse evento em relação a outros. Os actos de conhecer ou de
desejar escondem no seu interior uma estrutura infinita. A consciência
que deseja ou conhece alonga-se numa linha infinita. O mesmo não
acontece com a morte, que parece ser um evento de ocorrência única.
«Death ¾ that is to say, the arrival of a travelling field at a
boundary ¾ is, thus, not a serial element. It is, like sleep-gaps and
various Time irregularities in the substratum, one of those solely
first-term characteristics, which ¾ as we saw earlier ¾ must exist in
any series which has a beginning» (ET 196).
A originalidade de Dunne é a demonstração geométrica da
imortalidade. A «unsuspected immortality of everything» (NI 17) pode
demonstrar-se com auxílio dos mapas de tempo multi-dimensionais. A
imortalidade acontece numa dimensão física superior. Ao nível do
tempo 1 (a quarta-dimensão, três dimensões de espaço mais uma
dimensão de tempo) a morte é inelutável.
Um observador numa dimensão superior tem características
sinópticas. O seu olhar não está fixo num campo de observação
virado para o futuro. Algumas ilustrações podem auxiliar a compreender
esta característica sinóptica do observador último. A vida dos
insectos com metamorfose é completamente transparente ao olhar humano.
Apesar das enormes diferenças entre o estado de ovo, o estado de larva,
o estado de casulo, e o estado de borboleta, sabemos que o indivíduo
'larva' é apenas uma secção temporal do indivíduo 'insecto'. É
possível para um olhar humano afirmar, ao contemplar um casulo, que o
estado de 'borbolet'a será o futuro do estado 'casulo'.
Uma ilustração da capacidade de visão sinóptica deriva do
próprio Dunne. A abordagem que os seres humanos têm habitualmente do
tempo é semelhante a um remador a subir a corrente de um rio. A
perspectiva do remador volta-se para o percurso já realizado, isto é,
para o passado. Ele vê facilmente de onde veio mas não para onde vai.
A convicção de Dunne é que vivemos num universo onde é possível
alcançar um ponto de vista aéreo sobre o rio, um ponto de vista que
englobe o percurso realizado e o percurso a realizar. Estas são
ilustrações que se aproximam da teoria física de Dunne. Para um
observador num plano temporal superior, cada indivíduo humano que se
vê é apenas uma secção efémera de um indivíduo que se alonga no
tempo segundo o conceito relativista de linha de mundo (world line). O
observador superior consegue contemplar a totalidade da sequência
temporal dos indivíduos humanos, tal como estes conseguem contemplar a
totalidade da vida de uma partícula microfísica com uma duração de
alguns milissegundos, ou a totalidade da vida de um insecto
metamórfico.
Para temporalizar o tempo de vida de uma partícula microfísica (um
mesão, por exemplo), de um insecto com metamorfose ou de uma viagem de
barco a remos num rio, é necessário um relógio exterior à
partícula, ao insecto e ao barco a remos. Para temporalizar o tempo do
relógio é necessário um outro tempo que o mensure. Para temporalizar
este outro tempo é necessário um outro tempo de ordem superior.
Conhecemos já como continua a regressão. Dunne discerne nesta
regressão infinita um tempo absoluto (ET 186), um tempo real, ao modo
da ficção que Borges tem no conto El aleph. A partir do 'ponto de
todos os pontos' é possível ver todo o passado e todo o futuro. Em
Dunne, o tempo real engloba todos os tempos parciais de uma ordem
inferior:
«we shall have a Time which serves to time all movements of or in
the various fields of presentation. This Time will be 'Absolute Time',
with an absolute past, present, and future. The present moment of this
absolute Time must contain all the moments, 'past', 'present', and
'future', of all the subordinate dimensions of Time» (ET 186-187)
A representação que Dunne faz da imortalidade é melhor ilustrada
com o recurso a uma rosa. Este símbolo da fragilidade da beleza no
tempo é visto por um observador superior como existindo perenemente: a
rosa é imortal, se floriu uma vez, floriu para todo o sempre: «A rose
which has bloomed once blooms for ever» (ND 63, e NI 16-17). Tudo o que
surgiu no tempo 1 continuará a existir para sempre no tempo 2. Aqui,
tudo tem início mas não fim: «in second-term time (which gives the
key to the whole series) we individuals have curious - very curious -
beginnings, but no ends» (SU 36).
A porta está aberta para muitas objecções. Porque deveria ser esta
teoria da imortalidade mais interessante do que a morte segura que
termina com todas as dores sofridas no mundo? Uma teoria da imortalidade
em que tudo que surgiu no tempo continua para todo o sempre não é
atractiva porque garante também a perpetuidade do mal. Dunne contorna
esta dificuldade fazendo recurso à diferença entre conteúdos e
interpretações. Nos sonhos premonitórios e nos sonhos em geral não
existe dor; alguns sonhos representam acontecimentos terríveis mas não
existe dor durante o sonho. Como a imortalidade só existe para um
observador de ordem superior, a interpretação dada aos eventos
malignos ou dolorosos será diferente: «Everything that you have ever
known is immortal, but you see it in a new light and possessed of new
values» (NI 82).
Notas:
1. Este texto foi apresentado sob a forma de
conferência no Colóquio Fim de Século, Fim de Milénio, organizado
pelo Departamento de Estudos Ingleses e Norte-Americanos da Universidade
do Minho a 21-23 de Outubro de 1999. Agradeço à Professora Orlanda
Marina Correia o convite para nele participar. (Eventuais críticas ao
texto, que solicito e agradeço, deverão ser enviadas para
jmcurado@ilch.uminho.pt).
2. J. B. Priestley, Time and the Conways and Other
Plays (Harmondsworth: Penguin Books, 1969); Man and Time (London:
Bloomsbury Books, 1989); Essays of Five Decades, selected by Susan
Cooper (Harmondsworth: Penguin Books, 1969), p. 226.
3. Jorge Luis Borges, «El tiempo y J. W. Dunne», in
Otras Inquisiciones [1952], in Obras Completas, Tomo II, 1952-1972
(Barcelona: Emecé, 1989), pp. 24 - 27; «J. W. Dunne y la eternidad [18
de noviembre de 1938]», in Textos Cautivos [1986], in Obras Completas,
Tomo IV, 1975-1988 (Barcelona: Emecé, 1996), p. 399; «J. W. Dunne, un
experimento con el tiempo», in Biblioteca Personal. Prólogos [1988],
in Obras Completas, Tomo IV, 1975-1988 (Barcelona: Emecé, 1996), p.
525. Como o tempo é um dos temas que atravessam a obra de Borges, é
possível discernir a influência de Dunne noutros textos de Borges,
como «Nueva refutación del tiempo» [1952], Obras Completas, Tomo II,
1952-1972 (Barcelona: Emecé, 1989), pp. 135 - 149.
4. C. D. Broad, «Dunne's Theory of Time», in
Religion, Philosophy, and Psychical Research: Selected Essays (London:
Routledge and Kegan Paul, 1953), pp. 68-85.
5. Existe ainda um manuscrito não publicado, ca. 1938,
com o título The Millennium. Na edição de 1931 do livro de Miss
Morison [i. e. Miss Anne Moberly] e de Miss Lamont [i. e. Miss Eleanor
F. Jourdain], reitoras do Colégio de S. Hugo, de Oxford, An Adventure,
de 1911, Dunne publica uma Nota em que aproxima a sua teoria do agora
tetradimensional às alucinações que as autoras experienciaram durante
uma visita ao jardim Trianon. (Este texto de Dunne encontra-se
disponível em http://www.pacificnet.net/~cmoore/adven//adven-n.htm.)
A melhor edição de An Adventure é editada por Joan Evans (London:
Faber & Faber, 1955). Ver, igualmente, Terry Castle, «Contagious
Folly: An Adventure and Its Skeptics», Critical Inquiry, 17: 4 (1991),
pp. 741-772.
6. Sobre a teoria dos sonhos de Dunne, ver Robert van
de Castle, Our Dreaming Mind (New York, Ballantine Books, 1994), p. 8.
7. No prefácio a The Mind and Its Place in Nature (New
York, The Humanities Press, 1951, 1ª ed.1925), p. VIII.
8. As referências às obras de Dunne serão feitas
pelas iniciais das mesmas seguidas pelo número das páginas. Assim, An
Experiment With Time (3ª edição revista, Londres, Faber & Faber,
1934) tem a sigla ET; The Serial Universe (2ª edição revista,
Londres, Faber & Faber, 1942) tem a sigla SU; The New Immortality
(Londres, Faber & Faber, 1938) tem a sigla NI; e Nothing Dies
(Londres, Faber & Faber, 1940) tem a sigla ND.
9. Frank Jackson, «What Mary Didn'd Know», The
Journal of Philosophy, 83: 5 (1986), pp. 291-295. Reimpr. in Frank
Jackson, ed., Consciousness (Aldershot, UK: Ashgate Publishing Co. and
Dartmouth Publishing Co., 1998), pp. 95-100.
10. «Qualquer tentativa de 'animar' um diagrama de
Minkowski pensando num 'foco de consciência' a deslocar-se ao longo de
uma linha do mundo conduz à regressão do tipo da de Dunne», Rudy
Rucker, A Quarta Dimensão: Para uma Geometria da Realidade de Ordem
Superior, trad. A. F. Bastos e L. Leitão (Lisboa, Gradiva, 1991), p.
318. 11. Joseph Zycinski, «The Anthropic Principle
and Teleological Interpretations of Nature», The Review of Metaphysics,
XLI: 2 (1987), pp. 317 - 333. 12. Ver o nosso artigo
«O Conceito de Imagem em Kenneth Ewart Boulding. Um Capítulo da
Epistemologia das Teorias Evolutivas», Diacrítica, 8 (1993), pp. 299 -
316.
José Manuel Curado
Universidade do Minho
jmcurado@ilch.uminho.pt