Ética Prática, de Peter Singer, Tradução de Álvaro Augusto Fernandes Revisão científica de Cristina Beckert e Desidério Murcho Colecção Filosofia Aberta, 9 Gradiva, Outubro de 1999, 400 pp.
Pré-Publicação

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Sobre a ética

Este livro trata de ética prática, ou seja, da aplicação da ética ou da moral — usarei ambos os termos indiferentemente — a questões práticas como o tratamento de minorias étnicas, a igualdade das mulheres, a utilização de animais para a alimentação e a investigação, a conservação do meio ambiente, o aborto, a eutanásia ou a obrigação dos ricos de ajudarem os pobres. Por certo o leitor quererá passar à abordagem destas questões sem demora; mas há certos preliminares que têm de ser tratados de princípio. Para podermos ter uma discussão útil em ética torna-se necessário falar um pouco sobre ética, de modo a termos uma compreensão clara do que fazemos quando discutimos questões éticas. Assim, este primeiro capítulo prepara o cenário para o resto do livro. Para evitar que crescesse a ponto de se tornar um livro inteiro só por si, mantive-o breve. Se por vezes é dogmático, isso deve-se ao facto de eu não dispor de espaço suficiente para considerar todas as diferentes concepções da ética que se opõem às que defendo; mas este capítulo servirá, pelo menos, para revelar os pressupostos em que assenta todo o livro.


O que a ética não é

Algumas pessoas pensam que a moral está ultrapassada nos dias que correm. Encaram a moral como um sistema de proibições puritanas descabidas que se destinam sobretudo a evitar que as pessoas se divirtam. Os moralistas tradicionais pretendem ser os defensores da moral em geral, mas o que defendem na realidade é um determinado código moral. Apropriaram-se desta área a tal ponto que quando uma manchete de jornal titula bispo ataca a decadência dos padrões morais, pensamos logo que se trata de mais um texto sobre promiscuidade, homossexualidade, pornografia, etc., e não sobre as verbas insignificantes que concedemos para a ajuda internacional às nações mais pobres nem sobre a nossa indiferença irresponsável para com o meio ambiente do nosso planeta.

Portanto, a primeira coisa a dizer da ética é que não se trata de um conjunto de proibições particularmente respeitantes ao sexo. Mesmo na época da sida, o sexo não levanta nenhuma questão ética específica. As decisões sobre o sexo podem envolver considerações sobre a honestidade, o respeito pelos outros, a prudência, etc., mas não há nisso nada de especial em relação ao sexo, pois o mesmo se poderia dizer de decisões respeitantes à condução de um automóvel. (Na realidade, as questões morais que a condução de um automóvel levanta, tanto do ponto de vista ambiental como da segurança, são muito mais sérias do que as suscitas pelo sexo). Assim sendo, este livro não aborda a moral sexual. Há questões éticas bem mais importantes.

Em segundo lugar, a ética não é um sistema ideal nobre na teoria mas inútil na prática. O inverso está mais perto da verdade: um juízo ético que seja mau na prática sofre necessariamente de um defeito teórico, porque a finalidade do juízo ético é orientar a prática.

Há quem pense que a ética é inaplicável ao mundo real por a encarar como um sistema de regras curtas e simples do tipo «Não mintas», «Não roubes» ou «Não mates». Não admira que quem adopta esta visão da ética pense que esta não se adapta às complexidades da vida. Em situações invulgares, as regras simples entram em conflito; e mesmo quando isso não acontece, seguir uma regra pode levar ao desastre. Em circunstâncias normais pode ser errado mentir, mas no caso de uma pessoa que vivesse na Alemanha nazi e a quem a Gestapo batesse à porta à procura de judeus, por certo seria correcto negar a existência de uma família judia escondida nas águas furtadas.

Tal como o fracasso da moral sexual restritiva, o fracasso da ética baseada em regras simples não deve ser encarada como o fracasso da ética no seu todo. Não passa do fracasso de uma perspectiva da ética — e nem sequer é irremediável. Os deontologistas — aquelas pessoas que pensam que a ética é um sistema de regras — podem salvar a sua posição elaborando regras mais complicadas e mais específicas que não se contradigam, ou organizando essas regras numa qualquer estrutura hierárquica que resolva os conflitos entre elas. Além disso, há uma velha abordagem da ética que pouco sofre com as complexidades que tornam as regras simples de difícil aplicação: a perspectiva consequencialista. Os consequencialistas não partem de regras morais, mas de objectivos. Avaliam as acções na medida em que favorecem esses objectivos. A teoria consequencialista mais conhecida, embora não sendo a única, é o utilitarismo. O utilitarismo clássico considera uma acção um bem quando esta produz um incremento igual ou maior da felicidade de todos os envolvidos, quando comparada com uma acção alternativa, e um mal se assim não acontecer.

As consequências de uma acção variam de acordo com as circunstâncias em que é praticada. Daí que um utilitarista nunca possa ser acusado de falta de realismo nem de uma adopção rígida de ideais que desafiam a experiência prática. Para o utilitarista, mentir será um mal em algumas circunstâncias e um bem noutras, dependendo das consequências.

Em terceiro lugar, a ética não é algo que apenas se torne inteligível no contexto da religião. Tratarei a ética como algo totalmente independente da religião.

Alguns teístas dizem que a ética não faz sentido sem a religião porque o próprio significado de «bem» é «aquilo que Deus aprova». Platão refutou uma tese semelhante há mais de 2000 anos, argumentando que se os deuses aprovam uma acção, é porque essa acção é um bem; não pode ser a aprovação dos deuses que a torna um bem. A perspectiva alternativa torna a aprovação divina totalmente arbitrária: se os deuses por acaso aprovassem a tortura e reprovassem a ajuda aos nossos semelhantes, a tortura teria sido um bem e a ajuda ao próximo um mal. Alguns teístas modernos tentaram subtrair-se a este tipo de dilema sustentando que Deus é bom e portanto não poderia sancionar a tortura; mas esses teístas caem numa armadilha provocada pela sua própria posição. Que poderão querer dizer com a afirmação de que Deus é bom? Que Deus é aprovado por Deus?

Tradicionalmente, a ligação mais importante entre religião e ética baseava-se na ideia de que a religião proporcionava uma razão para praticar o bem. A razão apresentada era a de que os virtuosos seriam recompensados com a bem-aventurança eterna enquanto os outros arderiam nas chamas do inferno. Nem todos os pensadores religiosos aceitaram este argumento: Immanuel Kant, que era um cristão devoto, rejeitava tudo o que parecesse uma obediência às leis morais motivada pelo interesse pessoal. Devemos obedecer-lhes, dizia, pelos seus méritos próprios. Mas não precisamos de ser kantianos para rejeitar as motivações oferecidas pela religião tradicional. Há uma longa tradição de pensamento que encontra a origem da ética nas atitudes de benevolência e solidariedade para com os outros que a maioria das pessoas possui. Este tema, porém, é complexo e, como constitui o assunto do último capítulo deste livro, não o aprofundarei aqui. Basta referir que a observação quotidiana dos nossos semelhantes mostra claramente que o comportamento ético não exige a crença no céu e no inferno.

A quarta e última afirmação sobre a ética que refutarei neste capítulo de abertura é a de que a ética é relativa ou subjectiva. Pelo menos refutarei estas afirmações em alguns dos sentidos em que são frequentemente tomadas. Este ponto exige uma abordagem mais alargada que os restantes três.

Principiemos pela ideia muito difundida de que a ética é relativa à sociedade em que se vive. Isto é verdadeiro num sentido e falso noutro. É verdade, como já vimos na abordagem do consequencialismo, que as acções que numa determinada situação são um bem, devido às suas consequências benéficas, podem ser um mal noutra circunstância, devido às suas consequências negativas. Assim, as relações sexuais fortuitas podem ser um mal quando levam à existência de crianças que não podem receber os cuidados adequados e não ser um mal quando, devido à existência de contracepção eficaz, não conduzem à reprodução. Mas esta não passa de uma forma superficial de relativismo. Embora afirme que a aplicabilidade de um princípio específico como «O sexo fortuito é um mal» pode ser relativo no tempo e no espaço, nada diz quanto a um tal princípio ser objectivamente válido em circunstâncias específicas ou contra a aplicabilidade universal de um princípio mais genérico como «Faz o que aumente a felicidade e diminua o sofrimento».

A forma mais fundamental do relativismo tornou-se popular no século xix, quando começaram a surgir dados referentes às crenças morais de sociedades distantes. Para o puritanismo severo da época vitoriana, a notícia de que havia lugares onde as relações sexuais entre pessoas não casadas era encarado como perfeitamente normal trouxe a semente de uma revolução das atitudes sexuais. Não admira que para algumas pessoas essa informação sugerisse, não apenas que o código moral da Europa do século xix não era objectivamente válido, como também que nenhum juízo moral pode fazer mais do que reflectir os costumes da sociedade que o gera.

Os marxistas adaptaram esta forma de relativismo às suas teorias. As ideias dominantes de cada período, afirmavam, são as ideias da sua classe dominante e, portanto, a moral de uma sociedade é relativa à sua classe economicamente dominante e, por esse motivo, indirectamente relativa à sua base económica. Daí que refutassem triunfalmente as pretensões de objectividade e validade universal das morais feudal e burguesa. Mas isto levanta um problema: se a moral é relativa, o que há de especial no comunismo? Por que razão haveria alguém de tomar o partido do proletariado e não o da burguesia?

Engels abordou este problema da única forma possível: abandonando o relativismo em favor de uma tese mais restrita que defendia que a moral de uma sociedade dividida em classes será sempre relativa à classe dominante, embora a moral de uma sociedade sem antagonismos sociais pudesse ser uma moral «realmente humana». O relativismo desapareceu por completo, mas é ainda o marxismo que, de uma forma meio confusa, impulsiona muitas ideias relativistas vagas.

O problema que levou Engels a abandonar o relativismo também refuta o relativismo ético comum. Quem quer que tenha passado por uma decisão ética difícil sabe que se lhe disserem o que a sociedade pensa que ele deve fazer, isso não resolve a dificuldade. Temos de tomar as nossas próprias decisões. As crenças e os costumes no seio dos quais fomos criados podem exercer grande influência sobre nós, mas, assim que começamos a reflectir sobre eles, tanto podemos optar por agir de acordo com essas crenças e esses costumes como contra eles.

A perspectiva oposta — a de que a ética é sempre relativa a uma determinada sociedade — tem consequências muito improváveis. Se a nossa sociedade condena a escravatura enquanto uma outra a aceita, não temos bases para escolher entre ambas as perspectivas antagónicas. Na realidade, numa análise relativista não existe conflito entre elas. Quando digo que a escravatura é um mal, estou apenas a dizer que a minha sociedade a rejeita; e quando os esclavagistas da outra sociedade dizem que a escravatura é um bem, estão apenas a afirmar que a sua sociedade a aprova. Para quê discutir? É óbvio que ambos estaríamos a dizer a verdade.

Pior ainda, o relativista não pode explicar satisfatoriamente o inconformista. Se «A escravatura é um mal» significa «A minha sociedade rejeita a escravatura», nesse caso qualquer pessoa que viva numa sociedade que a aceita está a cometer um erro factual quando diz que a escravatura é um mal. Um inquérito de opinião poderia então demonstrar o erro de um juízo ético. Os candidatos a reformadores ficam numa posição terrível: quando pretendem modificar as perspectivas éticas dos seus concidadãos estão necessariamente errados; só quando conseguem conquistar a maioria da sociedade para as suas opiniões é que estas passam a estar certas.

Estas dificuldades são suficientes para afundar o relativismo ético; o subjectivismo ético evita pelo menos que se tornem absurdos os esforços valorosos dos pretendentes a reformadores, pois faz os juízos éticos dependerem da aprovação ou desaprovação da pessoa que faz esse juízo e não da sociedade em que essa pessoa se insere. Há outras dificuldades, porém, que pelo menos algumas formas de subjectivismo ético não conseguem superar.

Se aqueles que defendem que a ética é subjectiva querem com isso dizer que, quando afirmo que a crueldade infligida em animais é um mal, estou na realidade apenas a dizer que condeno a crueldade para com os animais, então enfrentam uma forma agravada de uma das dificuldades do relativismo: a incapacidade de explicar a divergência ética. O que era verdadeiro para o relativista a propósito do desacordo entre pessoas de diferentes sociedades é verdadeiro para o subjectivista a propósito do desacordo entre quaisquer duas pessoas. Eu digo que a crueldade para com os animais é condenável; outra pessoa qualquer diz que não; ambas as proposições podem ser verdadeiras, nada havendo, portanto, para discutir.

Outras teorias, muitas vezes classificadas de «subjectivistas», não estão sujeitas a esta objecção. Suponhamos que alguém defende que os juízos éticos não são verdadeiros nem falsos porque nada descrevem — nem factos morais objectivos, nem estados de espírito subjectivos de ninguém. Esta teoria podia sustentar, como defendeu C. L. Stevenson, que os juízos éticos exprimem atitudes em vez de as descreverem e que temos divergências éticas porque tentamos, quando exprimimos a nossa própria atitude, levar os nossos ouvintes a adoptar uma atitude semelhante. Ou poderia acontecer, como afirma R. M. Hare, que os juízos éticos fossem prescrições e, portanto, mais parecidos com ordens do que com afirmações de factos. Deste ponto de vista, discordamos uns dos outros porque nos preocupamos com o que as pessoas fazem. As características da discussão ética que implicam a existência de padrões morais objectivos podem ser afastadas, sustentando que se trata de um tipo particular de erro — talvez o legado da crença de que a ética é um sistema de leis dadas por Deus, ou talvez não passe de mais um exemplo da nossa tendência para objectivar a nossa vontade e as nossas preferências pessoais. J. L. Mackie defendeu esta posição.

Desde que se distingam cuidadosamente da forma crua de subjectivismo, que encara os juízos éticos como descrições das atitudes de quem fala, estas são representações plausíveis da ética. Não há dúvida que têm razão quando negam um domínio de factos éticos que faça parte do mundo real e que exista independentemente de nós; mas quererá isso dizer que os juízos éticos são imunes à crítica, que a razão ou os argumentos não desempenham qualquer papel na ética e que, do ponto de vista da razão, qualquer juízo ético é tão bom como qualquer outro? Não creio que seja assim; e nenhum dos três filósofos referidos no parágrafo anterior nega que a razão e a argumentação tenham um papel a desempenhar na ética, embora discordem quanto à sua importância.

A questão do papel que a razão pode desempenhar na ética constitui o ponto crucial levantado pela afirmação de que a ética é subjectiva. A não existência de um misterioso domínio de factos éticos objectivos não implica a inexistência de raciocínio ético. Pode até ser uma ajuda, dado que se só pudéssemos chegar a juízos éticos intuindo esses estranhos factos éticos, a discussão ética seria ainda mais difícil. Assim, o que tem de se demonstrar para dar à ética prática fundamentos sólidos é que o raciocínio ético é possível. Neste ponto, a tentação é dizer pura e simplesmente que a prova do pudim está em comê-lo e que a prova de que o raciocínio é possível em ética encontra-se nos restantes capítulos deste livro; mas isso não é inteiramente satisfatório. De um ponto de vista teórico, é insatisfatório porque podemos observar-nos a raciocinar sobre ética sem chegar a compreender como tal pode acontecer; e, de um ponto de vista prático, é insatisfatório porque o mais provável é que o nosso raciocínio se perca se não compreendermos os seus fundamentos. Tentarei por isso abordar a questão de saber como podemos raciocinar em ética.


O que a ética é: uma perspectiva

O que se segue é um esboço de uma perspectiva da ética que concede à razão um papel importante nas decisões éticas. Não se trata da única perspectiva possível da ética mas é uma perspectiva plausível. Mais uma vez, porém, terei de passar por alto reservas e objecções merecedoras de um capítulo próprio. A quem pensar que estas objecções não discutidas invalidam a posição que defendo apenas posso dizer, de novo, que todo este capítulo pode ser tratado como nada mais do que um enunciado dos pressupostos em que este livro se baseia. Desse modo, contribuirá pelo menos para dar uma imagem mais clara da forma como encaro a ética.

O que significa emitir um juízo moral, discutir uma questão ética ou viver de acordo com padrões éticos? Como diferem os juízos morais de outros juízos práticos? Por que razão achamos que a decisão de uma mulher de fazer um aborto levanta uma questão ética, o mesmo não acontecendo com a sua decisão de mudar de emprego? Qual é a diferença entre uma pessoa que vive de acordo com padrões éticos e outra que não procede assim?

Todas estas questões estão relacionadas, pelo que basta considerar uma delas; mas, para isso, precisamos de dizer algo acerca da natureza da ética. Suponhamos que estudámos a vida de diversas pessoas e que sabemos muita coisa no que respeita ao que fazem, àquilo em que acreditam, etc. Será que podemos, nesse caso, determinar quais as que vivem de acordo com padrões éticos e quais as que não o fazem?

Poderíamos pensar que a forma de proceder, neste caso, é identificar quem pensa que mentir, enganar, roubar, etc., é um mal, e não faz tais coisas, por um lado, e quem assim não pensa, não se coibindo de fazer tais coisas, por outro. Então, as pessoas pertencentes ao primeiro grupo viveriam de acordo com padrões éticos e os do segundo não. Mas este modo de proceder assimila erradamente duas distinções: a primeira é a distinção entre viver de acordo com aquilo (que nós pensamos) que são os padrões éticos correctos e viver de acordo com aquilo (que nós pensamos) que são os padrões éticos errados; a segunda é a distinção entre viver de acordo com alguns padrões éticos e de acordo com nenhuns padrões éticos. Quem mente e engana mas não pensa que o que faz é um mal, pode estar a viver de acordo com padrões éticos. Pode pensar, por um motivo qualquer, que mentir, enganar, roubar, etc., é um bem. Não vive de acordo com padrões éticos comuns, mas pode viver segundo outros padrões éticos.

A primeira tentativa para distinguir o ético do não ético redundou num erro, mas podemos aprender com os nossos erros. Chegámos à conclusão que temos de conceder que quem segue convicções éticas não convencionais vive, mesmo assim, de acordo com padrões éticos, se pensar, por qualquer motivo, que o que faz é um bem. A condição a itálico dá-nos uma pista para a resposta que procuramos. A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar. Assim, uma pessoa pode fazer todo o tipo de coisas que consideramos um mal e, mesmo assim, continuar a viver de acordo com padrões éticos, se for capaz de defender e justificar o que faz. Podemos achar a justificação pouco adequada e continuar a pensar que as acções são um mal, mas a tentativa de justificação, bem sucedida ou não, é suficiente para trazer o comportamento dessa pessoa para o domínio do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado, uma pessoa não consegue encontrar uma justificação para aquilo que faz, podemos rejeitar a sua pretensão de que vive de acordo com padrões éticos, mesmo que aquilo que faz respeite princípios morais convencionais.

Podemos ir mais longe. Se aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. Quando Macbeth, contemplando o assassínio de Duncan, admite que apenas a «ambição desmedida» o leva cometê-lo, está a admitir que a acção não pode justificar-se eticamente. «Para eu poder ser Rei em seu lugar» não é uma tentativa frágil de justificação ética para o assassínio, não é o tipo de razão que conta como justificação ética. É necessário mostrar que as acções motivadas pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base mais ampla para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios que tal comportamento me traz. Tenho de me preocupar com um grupo mais vasto.

Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expresso a ideia de que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de alguma forma, universal. A «regra de ouro» atribuída a Moisés, que se encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e «amar o nosso semelhante como a nós mesmos» ou, por outras palavras, atribuir aos interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos próprios interesses. A ideia de nos pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do mandamento, segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles nos fizessem a nós. Os estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: «Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis universais.» A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século xviii, apelaram para um «espectador imparcial» imaginário como pedra de toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador ideal. Os utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart, consideram axiomático que, ao decidir sobre questões morais, «cada qual vale por um e ninguém por mais de um», enquanto John Rawls, um importante crítico contemporâneo do utilitarismo, incorpora essencialmente o mesmo axioma na sua própria teoria, deduzindo princípios éticos fundamentais de uma escolha imaginária na qual aqueles que escolhem não sabem se serão beneficiados ou prejudicados pelos princípios que escolhem. Até mesmo filósofos do continente europeu, como o existencialista Jean-Paul Sartre e o especialista em teoria crítica Jürgen Habermas, que diferem em muitos aspectos dos seus colegas de expressão inglesa — e também entre si —, concordam que, em certo sentido, a ética é universal.

Poderíamos argumentar interminavelmente sobre os méritos de cada uma destas caracterizações da ética; mas o que têm em comum é mais importante do que as suas diferenças. Todas concordam que não se pode justificar um princípio ético relativamente a qualquer grupo parcial ou local. A ética adopta um ponto de vista universal. Não quer isto dizer que um determinado juízo ético tenha de possuir aplicação universal. Como vimos, as circunstâncias alteram as causas. Significa, isso sim, que, quando fazemos juízos éticos, vamos para além de preferências e aversões. De um ponto de vista ético, é irrelevante o facto de ser eu o beneficiário de, digamos, uma distribuição mais equilibrada do rendimento e outra pessoa a prejudicada. A ética exige que nos abstraiamos do «eu» e do «tu» e que cheguemos à lei universal, ao juízo universalizável, ao ponto de vista do espectador imparcial ou do observador ideal, ou o que lhe quisermos chamar.

Será que podemos usar este aspecto universal da ética para dele deduzir uma teoria ética que nos oriente sobre o bem e o mal? Os filósofos, dos estóicos a Hare e a Rawls, tentaram-no; mas nenhuma tentativa obteve aceitação geral. O problema é que, se descrevermos o aspecto universal da ética em termos simples e formais, um grande leque de teorias éticas, incluindo algumas totalmente irreconciliáveis, tornam-se compatíveis com esta noção de universalidade; se, por outro lado, elaborarmos a nossa descrição do aspecto universal da ética de tal modo que nos leve inevitavelmente a uma determinada teoria ética, seremos acusados de introduzir as nossas próprias convicções éticas na nossa definição de ética — e essa definição pretendia ser suficientemente vasta e neutra para englobar todos os candidatos sérios ao estatuto de «teoria ética». Como tantos outros falharam na ultrapassagem deste obstáculo à dedução de uma teoria ética a partir do aspecto universal da ética, seria imprudente tentar fazê-lo numa breve introdução a uma obra com um objectivo bastante diferente. Apesar disso, proporei algo, mas um pouco menos ambicioso. Proponho que o aspecto universal da ética proporciona de facto uma razão convincente, embora não conclusiva, para adoptarmos uma posição amplamente utilitarista.

A minha razão para o propor é a seguinte. Ao aceitar que os juízos éticos devem ser formulados de um ponto de vista universal, estou a aceitar que os meus próprios interesses, só porque são os meus interesses pessoais, não podem contar mais do que os interesses de qualquer outra pessoa. Assim, a minha preocupação natural em defender os meus interesses tem de alargar-se, quando penso eticamente, aos interesses alheios. Ora, imagine-se que estou a tentar decidir entre duas linhas de acção possíveis — se como todos os frutos que eu próprio colhi ou se os reparto com outros, por exemplo. Imagine também que estou a decidir num vazio ético total, que nada sei de quaisquer considerações éticas — estou como que num estádio de pensamento pré-ético. Como me decidiria? Uma coisa que continuaria a ser relevante seria a forma como os cursos de acção possíveis afectariam os meus interesses. Na realidade, se definirmos «interesses» de uma forma suficientemente lata, de modo a considerarmos que qualquer coisa que uma pessoa deseja constitui o seu interesse (desde que não seja incompatível com outro desejo ou desejos), nesse caso parece que, neste estádio pré-ético, só os seus próprios interesses são relevantes para a decisão.

Suponhamos agora que começo a pensar eticamente, a ponto de reconhecer que os meus próprios interesses, pelo simples facto de serem os meus interesses, já não podem contar mais que os interesses alheios. Em lugar dos meus interesses, tenho agora de tomar em consideração os interesses de todas as pessoas que serão afectadas pela minha decisão. Isso exige que eu pondere todos esses interesses e adopte a acção que tenha maior probabilidade de maximizar os interesses dos afectados. Assim, pelo menos num determinado nível do meu raciocínio ético, tenho de escolher as acções que têm as melhores consequências para todos os afectados, depois de ponderar as alternativas. (Digo «num determinado nível do meu raciocínio ético» porque, como veremos mais tarde, há razões utilitaristas para pensar que não devemos tentar calcular essas consequências no caso de todas as decisões éticas que tomamos na vida quotidiana, mas apenas em circunstâncias muito invulgares, ou talvez quando reflectimos na escolha de princípios gerais para nos guiarem no futuro. Por outras palavras, no exemplo específico que dei, à primeira vista poderíamos pensar que era óbvio que partilhar os frutos que apanhei tem melhores consequências para todos os afectados do que não os repartir. Este pode ser, no final, o melhor princípio geral que todos podemos adoptar; mas antes de podermos ter bases para acreditar que isto é verdade, temos de considerar também se o esforço de uma prática geral de partilhar os frutos colhidos beneficiará todos os afectados ao produzir uma distribuição mais equitativa ou se reduzirá a quantidade de alimentos recolhidos, porque alguns deixarão de recolher o que quer que seja se souberem que recebem o suficiente daquilo que os outros recolhem.)

A forma de pensar que esbocei é uma forma de utilitarismo. Difere do utilitarismo clássico no facto de «melhores consequências» ser entendido como aquilo que, ponderadas as alternativas, aprofunda os interesses dos afectados, e não meramente o que aumenta o prazer e reduz o sofrimento. (Porém, houve quem afirmasse que os utilitaristas clássicos como Bentham e John Stuart Mill usaram os termos «prazer» e «sofrimento» num sentido lato que incluía a obtenção daquilo que uma pessoa deseja na categoria de «prazer» e o contrário na de «sofrimento». Se esta interpretação estiver correcta, a diferença entre o utilitarismo clássico e o utilitarismo baseado em interesses desaparece.)

O que mostra tudo isto? Não mostra que o utilitarismo se possa deduzir do aspecto universal da ética. Há outros ideais éticos — como os direitos individuais, a santidade da vida, a justiça, a pureza, etc. — que, sendo universais no sentido exigido, são incompatíveis com o utilitarismo, pelo menos em algumas versões. Mostra, isso sim, que chegamos rapidamente a uma posição inicialmente utilitarista a partir do momento em que aplicamos o aspecto universal da ética à tomada de decisões simples, pré-éticas. Este facto, segundo creio, coloca o ónus da prova naqueles que pretendem ir além do utilitarismo. A posição utilitarista é minimalista, uma primeira base à qual chegamos quando universalizamos a tomada de decisões baseada no interesse pessoal. Não nos podemos recusar a dar este passo se quisermos pensar eticamente. Se nos persuadirmos que devemos ir além do utilitarismo, aceitando regras ou ideais morais não utilitaristas, precisamos de ter boas razões para dar esse passo. Enquanto não surgirem essas boas razões, temos alguns fundamentos para permanecermos utilitaristas.

Este argumento experimental em favor do utilitarismo corresponde ao modo como irei abordar as questões práticas neste livro. Estou inclinado a adoptar uma posição utilitarista e, até certo ponto, este livro pode ser encarado como uma tentativa para mostrar como um utilitarista consistente abordaria diversos problemas controversos. Mas não partirei do princípio que o utilitarismo é a única posição ética digna de consideração. Tentarei mostrar os méritos de outros pontos de vista (como as teorias dos direitos, da justiça, da santidade da vida, etc.) no que respeita aos problemas abordados. Deste modo, o leitor poderá chegar às suas próprias conclusões acerca dos méritos relativos das abordagens utilitarista e não utilitarista e sobre toda a questão de saber o papel que a razão e a argumentação desempenham na ética.


Este texto é um excerto do livro Ética Prática, de Peter Singer. Este livro vai ser publicado pela Gradiva em Outubro de 1999, na colecção Filosofia Aberta.