Muitas pessoas desistem de discutir crenças
religiosas. Esta desistência pode ser provocada pelo cansaço, pelo
medo de vermos as nossas crenças abaladas, ou para evitar os
destemperos emocionais que, muitas vezes, acompanham tais discussões.
Pode também resultar de uma posição filosófica que se faz acompanhar
de razões. Uma dessas posições filosóficas dirá que, no fundo, não
há nada para discutir. Arghumentará que crença e descrença não são
coisas opostas mas sim paralelas. Um ponto comum a argumentos deste tipo
é o de que a fé (tanto a do crente como a do descrente) não se prende
a razões, porque o seu domínio não é o mesmo da razão.
Na primeira parte deste escrito vou apresentar uma analogia que,
penso, permite esclarecer e dar força à tese do
"paralelismo". Apontarei algumas das dificuldades desta tese
mas que, avanço, não a destroem.
Na segunda parte, concluída a exploração da analogia, mostrarei
por que razão é fácil apresentar argumentos fatais para outras formas
de conceber as relações entre crença e descrença e, portanto, de
conceber o papel do debate, da razão.
Como disse, este estudo parte de uma analogia. As analogias
permitem-nos usar coisas mais conhecidas, simples, evidentes para
pensarmos coisas menos evidentes. Mas têm limites (afinal estamos a
destacar semelhanças em coisas diferentes). As diferenças são, muitas
vezes, esquecidas e acabamos por pedir às analogias mais do que elas
nos podem dar. O texto começará por explorar, tanto quanto eu for
capaz, as semelhanças. O leitor pode sentir-se incomodado, nesta
primeira fase, por não ver o texto fazer justiça às diferenças. Mas
elas são abordadas depois.
I parte. A fé legitimada
1. A analogia: Crentes, ateus, agnósticos e fruidores de nuvens
Muitas pessoas aceitarão que que as atitudes do crente e a do não
crente podem comparar-se à atitude de duas pessoas que estão a
observar as nuvens: "Olha, ali vai um comboio a vapor!",
"Não, é um elefante." A conclusão imediatamente sugerida:
cada um tem a sua visão e pronto. Discutir é inútil. Um argumento
deste tipo, é usado, muitas vezes, apenas para bloquear a discussão
antes de ela degenerar em ataques pessoais. Mas penso que esta analogia
entre observadores de nuvens por um lado, crentes e descrentes por
outro, pode conter alguma verdade e, portanto, merece exame mais
detalhado.
Em primeiro lugar, cada um dos nossos observadores de nuvens diz a
verdade e tem a certeza de que a diz. De facto, se um deles quisesse
levantar a dúvida e dissesse, com toda a seriedade, "A nuvem
parece-me um elefante mas talvez esteja enganado e não me esteja a
parecer um elefante", merecia uns açoites. Em segundo lugar, o
observador de nuvens deve saber que também não pode pôr em dúvida a
visão do outro - dizer algo como: "Aquilo parece-se com um
elefante. Logo, deves estar enganado e aquilo não te está a parecer um
comboio." só serviria para ofender.
Assim os observadores de nuvens devem reconhecer a possibilidade de
visões alternativas, diferentes mas não propriamente contraditórias.
Essas visões não podem ocorrer ao mesmo tempo na mesma pessoa mas não
têm de se excluir em momentos diferentes ou em pessoas diferentes. O
crente e o ateu parecem, nas suas discussões, estar em posição
semelhante à de estes observadores de nuvens: cada um internamente
seguro do que vê, cada um é incapaz de pôr em dúvida a sua visão e
a visão do outro. Parece apenas que se enganam quanto à necessidade de
reconhecer a possibilidade de visões alternativas...
Como podem dialogar ou discutir estes dois observadores de nuvens?
Apesar de cada um dos observadores estar certo do que diz, sabe também
que não pode exigir a concordância do outro. Se o observador tivesse,
face a uma questão sobre factos, o mesmo grau de certeza, procuraria um
argumento que obrigasse o outro a reconhecer a sua verdade. O argumento
teria a forma: "Como aceitas isto, e isto e aquilo, então tens de
aceitar x." Se o argumento estiver bem construído, as premissas
(os isto, isto e aquilo que aceitas) serão suficientes para derivar a
conclusão e tornam obrigatória a sua aceitação. Mas os argumentos
não são aplicáveis neste caso. Se um dos lados acreditar que pode ou
deve apresentar razões que tornem obrigatória a intuição do elefante
ou do comboio a vapor está enganado. Não há maneira de provar que a
nuvem se assemelha a um elefante. Só podemos tentar isto: sugerir e
destacar indícios que levem o outro a partilhar a mesma visão. Esta
situação ocorre porque a semelhança que ambos captam não faz parte
do facto observado, não é uma explicação do facto, nem sequer uma
descrição do facto - a semelhança deriva de um padrão acrescentado
aos factos apesar de tal padrão se impor à nossa mente com a força de
um facto. Por isso os argumentos falham o alvo neste caso: a
apresentação dos indícios de que a nuvem se assemelha a um elefante
não é suficiente para dar a imagem do elefante. Estou a pedir que a
outra pessoa acrescente o resto, que suponho ser pouco, para obter tal
imagem.
Também parece ser esta, muitas vezes, a situação do crente e do
ateu: dada uma mesma colecção de factos, um vê neles a presença de
Deus, outro a ausência. A descrição dos factos não pode dar razão
ao crente ou ao ateu, tal como não a podia dar a quem vê um comboio ou
um elefante nas nuvens. Mas o padrão (presença de Deus, ausência de
Deus) com que um e outro captam os factos, é algo que se acrescenta aos
factos ainda que com a mesma força dos factos. Se aceitarmos a
analogia, concluiremos que o crente e o ateu não têm razões para
discutir - apenas podem apresentar indícios, sugestões, na esperança
de outro chegue a partilhar a sua visão. Mas estão errados quando
trocam razões para obrigar o outro a reconhecer a verdade da sua
posição.
Esta situação é por vezes assinalada como sendo um confronto de
"verdades subjectivas". A expressão "verdade
subjectiva" é infeliz mas parece-me aceitável: Se o observador de
nuvens não estiver a brincar connosco ou a querer enganar-nos ele está
a enunciar uma verdade e nada mais. Diz-se, no entanto, que tal verdade
é "subjectiva" para assinalar o facto de que ele é um
observador privilegiado: só ele pode captar directamente o nexo entre a
sua afirmação "A nuvem parece-me x" e o facto de a nuvem lhe
parecer x. Os outros observadores só podem avaliar a proposição na
base num argumento construído com indícios externos. Por exemplo:
"ele não costuma mentir; não há razões para eu pensar que a
situação o levou a alterar esse hábito; com os indícios que ele me
deu, com os pontos da nuvem que ele destacou eu até posso desenhar um
elefante - apesar de o esquema me parecer tão forçado como pensar que
a Ursa Maior se assemelha a uma Ursa... Logo, deve ser verdade que
aquilo lhe parece um elefante." Quem ajuíza de acordo com este
esquema, pode, claro, continuar sem ver o elefante na nuvem, mas já
têm razões para acreditar que o outro vê o elefante. Muitas vezes,
"subjectivo" significa vago, opinioso, arbitrário,
caprichoso, etc. Rejeitemos este significado: não é de capricho que se
trata aqui - se a nuvem me parece um elefante então esta semelhança
impõe-se-me como se me impõe qualquer outro facto. Continuarei a usar
"verdade subjectiva" para descrever os enunciados dos
observadores de nuvens.
Que dizer se um dos observadores de nuvens, talvez seguindo os
indícios e sugestões do outro, passar a ver o elefante? Dentro da
nossa analogia, as pessoas não mudam para crentes ou descrentes por
aderirem a provas da sua crença ou da sua descrença - apenas se
convertem. Quer dizer: a visão que se lhes impõe é outra. Os
indícios e sugestões que antecederam a mudança não podem ser
interpretados como provas - é preciso um padrão que reúne tais
elementos numa visão clara da presença ou ausência de Deus, padrão
que não está nas supostas provas.
Esta situação é semelhante à que enfrentamos com algumas ilusões
de óptica - ora vemos, com toda a certeza, uma coisa, ora vemos com
igual certeza, outra - mas não vemos as duas coisas ao mesmo tempo.
"Saltamos" de uma visão para outra que se nos impõe. Assim,
com esforço maior ou menor, podemos ver ora o comboio, ora o elefante
na nuvem. Estas súbitas mudanças de visão adaptam-se bem à ideia de
"conversão" religiosa. As pessoas não mudam, parece, de
crentes para descrentes por causa de provas - apenas se convertem. Em
matéria de Deus é, depois de termos mudado de visão, pensarmos que a
visão anterior era tolice... De acordo com a nossa analogia este
exclusivismo não é autorizado: quando tenho uma visão não estou a
ter a outra, mas as duas são igualmente legítimas em diferentes
momentos da mesma pessoa ou em diferentes pessoas.
A nossa analogia, que apresenta o teísmo e o ateísmo como visões
que se impõem às pessoas com a força da objectividade, mas para as
quais não se podem apresentar provas, põe de lado uma certa forma de
agnosticismo. Este agnóstico argumenta que, não havendo provas nem de
que há Deus e nem de que não O há, então nem a fé nem o ateísmo se
justificam. Para o este agnóstico, não havendo provas, afirmar-se
crente ou ateu é teimosia, ilusão, vício subjectivo, irracional.
Aceitaremos, claro, que as visões do crente ou do ateu dependem do modo
como as suas mentes funcionam. Mas isso não permite equipará-la a
doenças da subjectividade nas quais dizemos que a pessoa delira e vê
irrealidades ... Não há nada de errado, ilusório ou vicioso na cena
em que uma pessoa vê uma nuvem semelhante a um comboio a vapor, ao lado
de outra que vê um elefante na mesma nuvem. Ao condenar o crente e o
descrente, o agnóstico não percebeu a interessante característica
desta situação - a de nela subjectividade e objectividade não se
apresentarem como naquelas situações em que faz sentido pedir provas.
Se defendermos que há analogia entre os observadores de nuvens, por
um lado, e o crente e o ateu, por outro, acharemos que um agnóstico
atinado dirá algo como: um vê a presença de Deus, outro vê a
ausência de Deus, eu não vejo nem uma coisa nem outra, Deus está pura
e simplesmente fora de questão na minha visão da realidade. A
diferença entre esta forma de agnosticismo e a anterior, é que este
agnóstico concede que não é por falta de provas ou razões que vê ou
não vê a presença ou a ausência de Deus, mas devido, precisamente,
aos mesmos mecanismos ou processos que levaram o crente a crer, e o
descrente a descrer. Este agnóstico parece um ateu! Mas há uma
diferença capital: a pergunta pela presença ou ausência de Deus está
incluída na sua visão do mundo do ateu e a resposta, também
incluída, é não. No caso deste agnóstico não há tal pergunta nem
tal resposta.
Se pudermos defender que a analogia é legítima, parece que ficamos
neste pé: as visões alternativas do mundo - a do crente, a do ateu, a
do agnóstico -, não se tocam porque são incompatíveis numa mesma
pessoa, ao mesmo tempo, mas não são contraditórias: são alternativas
legítimas, paralelas. As visões do mundo são padrões que se
acrescentam aos factos, têm implicações na maneira das pessoas
avaliarem e viverem os factos, mas não são teorias sobre o mundo, isto
é, não pretendem explicar factos. Como não são teorias explicativas
rivais, não é possível que a crítica mútua e o apelo aos factos
possam estabelecer a verdade de alguma dessas visões derrotando as
outras. As visões do mundo originam certezas legítimas, porque se
impõem ao sujeito com a força da objectividade, mas estão ao abrigo
do exame crítico, sem que isso implique uma patologia da
subjectividade.
Falta perguntar agora se as crenças ou visões religiosa ou ateísta
do mundo poderão mesmo ser este tipo.
A resposta leva-nos a sondar os limites da nossa analogia.
2. Limites da analogia?
Temos agora de ver se não estamos a extrair mais das analogia do que
ela permite.
O fruidor de semelhanças não pode reclamar nenhum conteúdo
cognitivo para sua fruição (por isso deixei de falar de observadores
de nuvens e passei a falar de fruidores de nuvens a propósito da
descoberta das semelhanças). A semelhança das nuvens com comboios e
elefantes não acrescenta coisa alguma ao conhecimento das nuvens. O
fruidor de nuvens pode explorar indefinidamente as semelhanças, pode
criar técnicas de fruição, truques pelos quais pode captar muito mais
semelhanças e retirará mais prazer das suas observações. Mas sabe
que o que se passa na sua mente não é descrição ou conhecimento de
factos. Se contribuir com algum conteúdo para a investigação
científica, por exemplo, isso será uma contribuição marginal à sua
actividade predilecta, a de descobrir semelhanças. Uma contribuição
poderá estar ao nível da atitude: o fruidor de nuvens pode tornar-se
um investigador de nuvens e dos fenómenos meteorológicos em geral.
Neste caso a sua visão das semelhanças influencia o modo como avalia e
vive os acontecimentos e, por isso, motiva para o conhecimento mas não
é conhecimento.
Ora o mesmo não parece acontecer com os conteúdos da fé. Estamos
habituados a ver a fé religiosa estender-se aos factos: Deus criou o
mundo; Isto ou aquilo foi milagre; O 3º segredo de Fátima referia-se
ao atentado ao Papa; O comunismo falhou por ter posto Cristo de lado; A
igreja X é a Verdadeira Igreja; A Bíblia contém factos históricos
(ao lado de histórias para edificação); etc. Com a nossa analogia, as
frases "Vejo Deus!", "Vejo que não vejo Deus!",
"Não vejo uma coisa nem outra!" designavam visões
diferentes, incompatíveis em simultâneo, mas como alternativas
igualmente legítimas. Mas, desde que a fé se estenda aos factos e
tenha implicações na sua interpretação objectiva, os efeitos da
nossa analogia cessam. Pensar de outro modo seria estranho: iremos ao
ponto de dizer que, na discussão das relações entre fé e razão,
estamos numa área onde o princípio de contradição foi abolido? Se
estamos a falar de factos e não de visões do mundo, poderemos
sustentar que as frases "Josué fez parar o Sol" e
"Josué não poderia ter feito parar o Sol" podem ser
igualmente verdadeiras? Penso que não.
Além de se estender aos factos, a fé religiosa pretende, muitas
vezes, ser a justificação de preceitos, normas, regras de conduta,
critérios de decisão que devem governar as acções de todos. Também
neste caso o conteúdo da fé se estende de uma forma que não pode ter
justificação ao abrigo da nossa analogia.
O observador de nuvens capta uma semelhança e ele frui dessa
semelhança, o crente capta um significado extra na existência (nos
objectos, nas acções) que se lhe impõe, que tem efeitos emocionais e
afectivos mas que não é relativo a existências. Assim, para a nossa
analogia continuar válida, o crente teria de, para todas as ocasiões,
manter a fé como algo que se acrescenta aos factos sem ser da ordem dos
factos e originando uma atitude que pode ser legítima ainda que não
universalizável.
Talvez não seja muito difícil, na prática, conceber o que seja
esta espécie de fé. A pessoa pode olhar para o mundo e dizer:
"Isto é tal e qual a obra de um Deus!" ou, mais simplesmente,
"Vejo Deus!". Pode, nas suas vivências, considerar que é
mais importante o que, em cada situação ou acto, a sua visão
acrescenta ao mundo do que o conteúdo factual dessa visão. Muitos
episódios das religiões concretas podem ilustrar e desenvolver este
aspecto da fé. Quando S. Francisco de Assis tratava as aves por irmãs,
não pretendia ser entendido à letra. As aves seriam suas irmãs
"em Deus". O "facto" de a ave ser irmã, decorre da
sua visão religiosa do mundo e não do facto. O significado religioso
de "irmã" poderia ser mais poderoso, para ele, do que o
significado mais trivial de "filha dos mesmo ser vivo", mas
não tem de haver colisão de significados. Esta forma de fé terá
ainda, ao nível da acção, efeitos que não têm de colidir com outras
visões. Depois de ver a ave como irmã, é difícil imaginar Francisco
a caçar e petiscar aves, mas, penso, não há razões para achar tal
comportamento irracional e criticável. Por outro lado, se Francisco
pretender universalizar essa regra não poderá, legitimamente,
basear-se apenas na sua visão religiosa das aves. Acontece, porém, que
as atitudes derivadas das visões religiosas do mundo manifestam
padrões que tendem a consagrar-se em regras para todos. Não é
difícil imaginar que Francisco e e os que partilhassem a sua visão
adoptassem uma regra como "Não comas aves!" Qual o estatuto
desta regra?
De acordo com a ideia de "verdade subjectiva" que
continuamos a explorar, a regra não pode valer por si, só poderá
valer como forma de dar conta de um aspecto de uma visão religiosa do
mundo. Não faz muito sentido requerer, apenas na base dessa visão, um
poder que que zele por ela. Se a pessoa não partilhar a visão
religiosa de Francisco, a regra pode parecer-lhe absurda. Nesse caso,
apelar a um poder apenas baseado nessa visão seria total
arbitrariedade. Seriam necessárias razões objectivas (isto é
discutíveis, na base de padrões comuns aos discutidores) para
generalizar a regra; a visão religiosa, como verdade subjectiva, seria
insuficiente para o efeito.
Devemos, portanto, aprofundar duas coisas:
a) o modo como o vocabulário religioso ganha a sua significação na
própria visão religiosa do mundo, a ponto de termos usados fora dela
só poderem ser usados na sua descrição como metáforas (veja-se o
caso de "irmã ave"). Este ponto é importante: se quisermos
manter a nossa analogia com os fruidores de nuvens, temos de concluir
que muitas discussões de crenças religiosas estão equivocadas por
não terem em conta as diferenças de significação.
b) a questão das regras ou preceitos religiosos. Esta questão é
ainda mais importante: é típico o uso de máximas religiosas nas
discussões públicas de assuntos morais e políticos. Não compreendo
como tal coisa pode ser legítima e honesta. Invocar uma verdade
subjectiva para dar conta de uma visão religiosa do mundo e
justificá-la é legítimo mas pretender estender tais regras a todos
nessa base é inaceitável.
Para aprofundarmos estes dois pontos proponho a análise de um
episódio possível. Imaginemos esta cena: quatro pessoas, Francisco,
dois companheiros franciscanos e um descrente. Estão longe do termo da
sua caminhada e há 3 dias que não comem. Topam um belíssimo faisão
de 10 Kg embrulhado numa espécie de armadilha natural. Devem ou não
comer a ave? Vejamos o que se passa na mente de cada um dos viajantes.
(Claro que qualquer semelhança entre estes Franscisco e franciscanos e
Francisco e franciscanos históricos será coincidência. O mesmo para
faisões de 10 Kg. Para o argumento basta que o leitor considere o meu
relato algo de possível)
O que se passa na mente de Francisco é fácil de descrever: o
problema "Devo ou não comer a irmã ave?" nem sequer chega a
ser posto, não faz parte da sua visão religiosa da situação. Se
estivesse só, Francisco pura e simplesmente libertaria a ave e morreria
de lágrima no olho. O significado desta lágrima é subtil. Não é a
lágrima de raiva ou impotência face a um mundo que depois de muitas
derrotas, o derrota de vez daquela forma miserável. É a lágrima de
comoção face à maravilha com que Deus o presenteou nos seus últimos
momentos, e também um pouco de tristeza por abandonar tais maravilhas.
Não se acha um Deus que deva viver eternamente, mas também não é um
bicho acossado e aniquilado por um universo hostil. Isso pode
perceber-se no relato das suas últimas palavras dirigidas aos seus
companheiros:
<< "É certo!", reflectiu e disse mais uma vez
"que nunca cheguei a compreender totalmente a obra divina. Mas vi o
seguinte: a natureza e os homens, sobretudo estes, criam horrores Os
homens dividem-se, combatem e aniquilam-se em busca da felicidade que
acham ter de alcançar e defender contra os outros. Para atingirem esse
estado recorrem a tudo, da sedução e engano à tortura. É assim que
cresce a pobreza, a miséria moral e a nossa dificuldade em avistar
algum bem no mundo. Mas, mesmo o homem que em toda a sua vida passou
pelas maiores provações e que, agora, aguarda a execução de uma
injusta pena de morte, um homem, portanto, cheio de ódio ao mundo que
nunca o favoreceu, ódio aos outros que o roubaram, espoliaram e agora
matam, e de ódio a si mesmo pela sua fraqueza que o pôs em tais
apuros, mesmo esse homem, digo eu, poderia maravilhar-se à vista desta
ave. Alguns comprometeriam esse momento, juntando-lhe um ranger de
dentes e chorando de raiva por lhes irem roubar tais maravilhas. Outros,
porém, veriam suspensa essa raiva e o seu ódio a tudo e talvez
chorassem sobretudo ou apenas o mundo maravilhoso que iam perder!
Ressentimento, raiva e ódio simplesmente não caberiam nessa visão
maravilhada. Não têm lá lugar. O ódio ao mundo não tem lugar porque
o mundo se mostrou, pela ave, belo, bom e sagrado. Isso é
incompreensível depois de tudo o que ele viveu. Mas pura e simplesmente
não pode negar a paz, a reconciliação que lhe invadiu a alma. Esta
suspensão do ódio diz: para além ou para aquém de toda a desgraça,
o mundo é belo e bom, é divino. E não há razão para crer os outros,
os odiados, os inimigos, não fossem capazes de partilhar a mesma
mensagem divina. Assim como o meu ódio está ausente de tal visão,
também vejo os outros a suspenderem o seu ódio em tal visão. Quer
dizer: na visão desta beleza, todos vemos que para aquém ou para além
de todo o ódio e de toda a divisão, somos irmãos. Isto é
incompreensível, claro, e talvez haja uma culpa nessa visão: como pude
trair-me? como pude reconciliar-me com os horrores da natureza? Como
pude reconciliar-me com o irmão que mata o irmão? É incompreensível
mas é assim: na visão desta beleza, vemos a beleza e bondade do mundo,
e vemos que somos irmãos. E aquela culpa que pode acompanhar esta
visão, é apenas orgulho tolo de quem resiste a si mesmo - no nosso
fundo, mais ou menos soterrada, está a alma irmã da ave, irmã do
irmão, já reconciliada mas à espera da reconciliação. A suspensão
dos ódios e a reconciliação pode surgir na ave, pode estar num
corajoso perdão, ou num nascimento, ou na língua de um cão. Pode
mesmo estar nas igrejas...
Sem Deus, quer dizer, sem esta suspensão das fadigas e dos ódios,
os homens só podem chorar por serem mortais. Mas não há morte! Eu
não morro irmãos! Porque não sou este corpo amarrado ao que é seu,
sou apenas uma alma, um fragmento do amor divino e esse fragmento eu já
o depositei nessa grande ave e brilhará nas suas asas se a deixarem
levantar voo ..." >> e mais não disse.
Analisemos a linguagem religiosa de Francisco. Pretendi mostrar que o
discurso de Francisco, parecendo referir objectos e propriedades de
objectos (Deus, almas, a bondade do mundo, imortalidade) que poderiam
colidir com juízos factuais, está a referir apenas uma visão
religiosa do mundo que não colide com os factos. Por exemplo: a
referência à imortalidade não é mais do que a tentativa de fazer
compreender porque a morte não o perturba como perturbaria quem não
partilhasse da sua visão. A quem, depois de discutir racionalmente o
assunto concluísse que não há imortalidade e chorasse por isso,
Francisco pouco poderia dizer. No vocabulário de Francisco
"imortalidade" significa apenas: "a morte não é
problema" . Não tem de significar: "sou, para além da
aparência, do visível, uma coisa invisível que não morre". O
mesmo se aplica a "alma". Com este termo Francisco diz: o que
há de importante numa pessoa é o amor divino, ou seja, aquilo que
liberta do ódio, do ressentimento e do apego e deixa de ver o mundo
como belo, bom e sagrado. Ora, o amante não separa o seu destino do
destino da coisa amada. Logo, conclui Francisco, não morro porque a ave
(o belo, o bom e o sagrado) continua.
Alguma resistência poderia ser oferecida a esta visão do
"eu". Como pode Francisco dizer que não morre se a sua
consciência individual é aniquilada? Ou dirá Francisco que a alma, o
que sobrevive, é esse eu autoconsciente? Francisco poderia retorquir,
se fosse dado à discussão filosófica, que a pergunta revela ainda a
preocupação do apego. Que é o eu que em nós põe tal pergunta como
definitiva e derradeira? Resposta: um eu que se apega ao que tem ou quer
ter e que, por isso, quer ter-se a si mesmo. Quem diz: eu sou mortal
porque com a morte perco a minha autoconsciência, diz: este eu só tem
sentido e existe de uma maneira - apegado a si mesmo, sendo senhor de si
mesmo, tendo-se a si mesmo. Mas Francisco não é dado às coisas da
filosofia e, por isso, dirá simplesmente: "Caramba! És muito bem
capaz de imaginar que os pais podem morrer com alguma tristeza, é
certo, mas também em paz se virem os seus filhos encaminhados para uma
vida recta e feliz. Porque não estão apegados a um "eu" que
distingam da vida dos seus filhos. É a sua alma, ou seja, o seu amor,
que os liberta do apego a si mesmos! Não se distinguem dos seus filhos,
estes continuam, logo, eles continuam!" Depois desta clara
explicação de Francisco só temos de imaginar um amor que se estenda a
toda a criação porque ela é bela, boa e sagrada para compreendermos
porque ele se acha "imortal". A minha hipótese é, portanto,
esta: se interpretamos o vocabulário religioso aparentemente factual
como sendo apenas analógico a tese da "dupla verdade" pode
sustentar-se.
Analisemos agora o papel das regras religiosas neste episódio.
Atrás levantei a questão do estatuto da regra destes franciscanos
imaginários "Não comas aves!". Aparentemente ela foi seguida
por Francisco. Mas a "obediência" foi determinada não pela
regra ou por um poder que a faça valer, mas pela sua visão religiosa
da situação. Francisco não obedeceu a uma regra - nós é que podemos
descrever o seu acto como se ele tivesse obedecido. E, enquanto o acto
derivou dessa visão, não vejo que tipo de crítica lhe pode ser
dirigida, ou que tipo de discussão pode ela levantar. Podemos discutir
até que ponto é legítimo, aceitável (e recomendável) que uma pessoa
se deixe morrer podendo evitá-lo com a "refeição" à
frente. Mas não atirarei a primeira pedra. A atitude deste Francisco
parece-me em total sintonia com uma visão religiosa do mundo que, por
não se ter comprometido com factos e normas, não entra em conflito com
o respeito devido aos seus semelhantes e, pelo contrário, engendraria,
em numerosas situações, actos que uma pessoa sensata aceitaria.
Mas a situação não é muito clara: que fazer a um grupo de 100
pessoas que acham ser seu dever morrer em grupo para não ferirem os
irmãos animais, as irmãs plantas e e as irmãs pedras? E se o grupo
incluir crianças? Toleramos? A situação nada tem de implausível -
já assistimos a suicídios colectivos por motivos religiosos. Com um
pouco de imaginação modificamos o relato de Francisco, exageramos a
sua sensibilidade à beleza até à beira da loucura (podemos
imaginá-lo horas a descrever a beleza dos veios de uma pedra onde, a
custo, se desenvolve uma pequena planta...), pomos não um mas muitos
franciscos lunáticos e o suicídio colectivo prepara-se. Que fazemos?
Não vejo como é possível responder sem manter "a religião nos
limites da simples razão". Uma resposta como "uma fé
autêntica não chegaria a tais extremos e eu sei isso porque é a minha
fé que me o diz" não é séria e será recebida à pedrada.
Parece-me simplesmente que as visões religiosas do mundo têm de ser
"vigiadas", a sua compatibilidade com padrões racionais, isto
é, de discutibilidade, deve ser determinada e o resultado dessa
vigilância deve ter efeitos. Uma boa dose de tolerância deverá,
claro, ser prevista. Posso tolerar, talvez, o "suicídio" de
Francisco mas não me parece tolerável, por exemplo, extrair do seu
acto uma regra que outros, mesmo os membros de uma comunidade religiosa
devam seguir.
Admitamos que o problema possa ter uma solução (a esboçada ou
outra) e investiguemos mais um pouco a questão das regras. Regressemos
aos dois outros franciscanos. Estão em apuros. Sentem-se em pecado:
partilham a visão de Francisco, a existência é bela boa e divina
mas... a fome é negra. Ouvem milhentas vozes desencontradas: como podem
hesitar? Vão abandonar tudo, família, amigos, a Missão por causa de
uma ave? A ave não será um presente de Deus para os esfomeados? A
beleza da ave não é a prova que só pode tratar-se de uma oferta
divina?... Sofismas inúteis. Não é assim a sua visão religiosa do
mundo, a ave é irmã e aqueles pensamentos são pecado... mas a fome
aperta. Um deles acabou por apelar à regra "Não comas
aves!". A regra é sagrada, as outras falas são humanas, por isso,
resistiu e morreu também. O outro franciscano partilhou o repasto com o
descrente. Deste franciscano falaremos adiante, do descrente pouco há a
dizer: pura e simplesmente não lhe passou pela cabeça uma razão
válida, nem parecida com válida, para poupar a ave à sua custa.
O primiero franciscano, para a sua decisão final, apelou à regra.
Fez bem? é legítimo? Foi consequente ou inconsequente?
Dada a sua visão religiosa do mundo, da qual a decisão de não
comer a ave devia emergir espontaneamente, toda a motivação adicional
para seguir a regra parece supérflua e um borrão na pintura. Quais
podem ser os motivos adicionais? A reputação? Quer dizer, o
reconhecimento, pelos que vão ficar, da força de carácter, da
fidelidade, etc? Da coragem que lhe permite manter as ideias que mais
preza em momentos difíceis? Medo de alguma represália?
Estas razões ou motivações não são satisfatórias. O cuidado com
a reputação não faz parte de uma visão do mundo como a do Francisco
e que este franciscano, pelo menos em parte, partilhava. A
"coragem" para continuar a sustentar ideias que por si mesmas
já não são motivação suficiente é muitas vezes orgulho tolo. Mas
talvez haja uma forma positiva de entender o uso da regra por este
franciscano. Na situação não era suficientemente forte a
"fé", isto é, a visão religiosa que o deveria levar a
decidir, sem dúvidas nem hesitações. Mas já viveu muitas vezes essa
visão e sabe que ela vale. Sabe também que a atitude de Francisco
está justificadíssima por essa visão. "Sabe", portanto,
pela sua fé ou visão religiosa, que a fraqueza não é da regra mas
sim sua. Aliás, é isso mesmo que lhe é dito por um aspecto da sua
visão religiosa da situação - a consciência do pecado. Hesitar era
já, na situação, e ferir-se a si mesmo, à sua própria e
irrecusável visão religiosa do mundo, e não uma regra que a razão, a
opinião pública ou os poderes devam fazer valer. A regra pode ter-lhe
aparecido com o peso adicional que adquiriu no culto partilhado em
comunidade. Mas podemos ainda admitir que ele não a fez valer apenas
pelo poder que tal culto lhe acrescentou, mas sim porque essa comunidade
faz parte e é um ingrediente essencial da sua visão religiosa. Neste
caso o uso da norma, penso, teria ainda alguma espontaneidade. É claro
que estamos numa situação em que legitimidade ou ilegitimidade parecem
distinguir-se por uma levíssima diferença de tonalidade e de
significado. Mas talvez a vida seja assim.
Ganharemos mais um pouco regressando ao terceiro franciscano. Vejo
duas hipóteses para ele. Na primeira hipótese comeu a ave com profundo
mal estar. Comeu-a temperada com o sentimento do pecado.
Este sentimento é "legítimo", justificável? Se não há
razões para, a priori, desvalorizarmos a visão religiosa do
franciscano, então não há razões para ilegitimarmos este sentimento
ou para o compararmos com uma moral racional, ou para o opormos ao
sentimento do dever não cumprido. Quer dizer, não há lugar para
perguntas do tipo: "Moral religiosa, moral racional - semelhanças
e diferenças, vantagens e desvantagens." Mesmo admitindo que não
há razões terminantes para morrermos em vez da ave, daí não se
conclui que o sentimento de pecado seja uma coisa vaga ou irracional ou
tola. Ao comer a ave o franciscano agiu contra a sua visão religiosa do
que o mundo, as pessoas e as aves são. Agiu contra si-próprio e isso
é o pecado. E não propriamente o ter agido contra uma regra que deve
valer para todos. Caso em que a regra deveria poder ser discutida fora
da visão da religiosa a que pertence. Se eu achar esta pintura bela,
mesmo que seja o único a achar que ela é mesmo uma pintura e tão
extraordinária que merece protecção, sentir-me-ei estúpido e
"pecaminoso", se a rasgar num momento de raiva. Qualquer
discurso do género "deixa lá... porque ... e porque ...."
pode consolar mas não pode justificar o acto ou injustificar o
sentimento do "pecado".
A segunda hipótese para este franciscano: pura e simplesmente perdeu
a fé, a sua visão religiosa do mundo foi-se como se vão muitas outras
fantasias da adolescência... As suas anteriores experiências
religiosas passaram a ser apenas experiências algo especiais mas no
meio de muitas outras no conjunto da sua vida. Dessas experiências
religiosas já não deriva nada que se oponha a este raciocínio: estou
a morrer de fome. Não há razões para não comer aquela ave. Vou
comê-la. Pode haver alguma estranheza mas já não há o sentiemnto de
pecado. Neste caso invocar a regra "Não comas aves!" seria
tão adequado como invocá-la para levar os descrentes a não comer a
ave.
Quero concluir: também no domínio das normas ou regras para a
acção a tese do paralelismo pode valer desde que a regra religiosa
simplesmente exprima um aspecto da visão religiosa do mundo e não
procure estender a sua validade para além dessa visão.
Espero ter mostrado o que, de momento e até maior esclarecimento,
sou capaz de entender por uma forma de fé legítima: uma visão do
mundo que impõe ao crente com a força da objectividade; uma visão
subjectiva mas que não tem de colidir com os critérios da
objectividade; uma visão religiosa da acção mas que não tem de
colidir com critérios morais; uma visão que pode originar um discurso
próprio mas analógico.
Mas não me parece que muitos crentes possam aceitar esta visão da
fé. A minha descrição a fé deve, para a maioria, aparecer reduzida a
um simples modo de ver, mais a uma mistura de sentimentos morais e
estéticos do que à Verdade religiosa. Quando São Francisco de Assis
vê Deus por toda a parte e, por isso, chama irmãs às aves podemos
interpretar isto como o Deus adjectivo: caramba! Isto é divino! No
mesmo sentido em que eu, sendo ateu, posso dizer "Este bacalhau é
divino!" ou "Esta música é divina!" - neste caso estou
a falar da minha maneira de sentir e viver os acontecimentos e não
pretendo proferir verdades sobre os factos em si. Estou a dizer:
"Este bacalhau sabe-me como se um ser supremamente poderoso e
absolutamente conhecedor dos meus gostos o tivesse inventado para
mim". Simplesmente não vejo como é que posso eliminar aquele como
se, ou seja não vejo como tornar o adjectivo em substantivo. Talvez
algum crente me queira esclarecer. Enquanto me faltar tal
esclarecimento, tenho de continuar a considerar as formas de fé que
não se apresentam como discurso "paralelo" e que se
apresentam como verdades que derrotam as alternativas proclamando-as
falsas uma forma de arrogância. Daí a II Parte, destinada a mostrar o
absurdo e os riscos dessa arrogância.
II Parte: a fé aberrante e o argumento do infanticídio
Na catequese, de que era quase impossível uma pessoa livrar-se no
meu tempo, aprendi que há o inferno para os péssimos, o purgatório
(uma espécie de inferno menos quente) para os safáveis expiarem as
culpas e, finalmente, o Céu para os bons e para os safáveis já
tostados. Também aprendi que o recém-nascido nasce com a culpa pelo
que, se morrer cedo e sem baptismo, terá de passar pelo purgatório.
(Diga-se, de passagem, que acho esta doutrina monstruosa - se eu
acreditasse na existência de tal Deus, juntava-me ao Diabo)
Nenhuma tentativa séria de provar a existência de tais coisas pode
ser levada a cabo. Mas para milhões de cristãos isto era assim e era
assim pela fé. Pela fé? A fé seria uma espécie de certeza sem provas
mas garantida por Deus. Mas os recuos da Igreja Católica nesta matéria
mostram que não se tratava de fé alguma. As pessoas simplesmente foram
doutrinadas para responder a perguntas difíceis sobre as suas crenças
invocando a fé. Como foi criada tal convicção? Pelo poder. As
crianças eram doutrinadas por adultos, e os adultos tudo sabem... para
os mais renitentes havia a ameaça das chamas e, para ajudar, sempre
havia uns açoites. Se estes não chegassem haveria mais tarde a alguma
forma de mordaça salazarista. A Igreja abençoava e usava o regime. O
regime protegia e usava a Igreja. Liquidar o casamento entre Estado e
Igreja é uma tarefa política que ainda não foi inteiramente
resolvida. Mas, mesmo que o tivesse sido, o crime maior, ensinar as
pessoas a pensar mal, a ter medo de pensar e a discutir desonestamente,
custará mais a limpar.
Disse que a Igreja ensinou a pensar mal e sugeri que tinha ensinado a
invocar a fé como truque para liquidar objecções sérias. Vejamos
algumas consequências aberrantes das doutrinas que referi acima.
De acordo com esta doutrina, os pais deviam baptizar os filhos o mais
depressa possível - não sabemos o que pode acontecer amanhã e seria
monstruoso pôr a pequena criatura amada em risco de purgatório se
morresse ainda com a culpa original... Alguns pais desleixaram-se um
pouco neste aspecto mas talvez com razão - apesar do que diz o
sacerdote, Deus é infinitamente bom e, por isso, não acreditam muito
nessa necessária passagem pelo purgatório.
Baptizada a criança que fazer depois? Qual é o maior perigo que
ameaça as crias? A morte em pecado e a consequente condenação eterna.
É possível eliminar esse risco? Orações, educação religiosa,
promessas e penitências podem ajudar mas não são garantias. Mas há
uma maneira... E se a criança morresse já? O céu estava garantido -
apesar de usar muitas linhas tortas, não há dúvida que Deus é justo
e não pode fugir à sua própria justiça. Logo, não poderia condenar
um inocente... se a criança morresse já, estava safa. Os pais,
primeiro, recuarão de horror ante tão monstruosa ideia. São filhos de
Deus, é certo, mas também são mamíferos e têm aquele sentimento
egoísta e possessivo dos mamíferos, que os impedirá de ceder as suas
crias mesmo a Deus. Impede? A capacidade para amar pode medir-se pelo
sacrifício de que aquele que ama é capaz. E o que está em causa é a
felicidade eterna e inalterável das crias junto de Deus. O amor arranca
a os pais ao seu egoísmo. E matam os filhos. Foi a consequência da
fé, da certeza garantida por Deus e do amor.
O crime dificilmente poderia ser maior aos olhos de Deus. Os pais
sabem-no e sabem que serão condenados ao fogo eterno. Mas que podem
fazer? Amor infinito, sacrifício infinito, castigo infinito... Mas pode
Deus ser indiferente à dimensão de tal sacrifício? De quem, por amor,
desafiou a seu egoísmo animal, desafiou todas as leis divinas e, por
isso, se condenou sem remédio? É um sacrifício absoluto, maior que o
de Cristo. Cristo, por ter assumido integralmente a sua condição
humana, e, portanto, ter abdicado temporariamente da sabedoria divina,
poderia até nem saber que a Sua ressurreição estava assegurada e que
o sofrimento, como todo o sofrimento neste vale de lágrimas, é
trânsito para a Verdadeira Vida. Mas, mesmo que tenha sido esse o caso,
o seu sacrifício não implicou em ponto algum o abandono da esperança.
Na cruz ainda se sentiu abandonado pelo Pai - mas nada obrigava a que se
sentisse eternamente abandonado. Os pais infanticidas, porém,
condenaram-se por amor, separaram-se eternamente e sem esperança de
tudo o que mais amavam - a criança, Deus. Nááááá´... Deus não
pode ser indiferente a tal demonstração de fé, de absoluta confiança
na justiça divina. Portanto os pais infanticidas serão perdoados e
viverão eternamente com Deus.
O argumento na sua simplicidade:
(1) A fé é uma certeza absoluta garantida apenas por Deus.
(2) A fé assegura a salvação eterna para os que morrem sem pecado.
(3) A fé assegura que o baptismo da criança limpa-a de todo o pecado.
(4) Logo, a criança que morra imediatamente após o baptismo está
salva.
(5) Quem ama, fará o que for preciso para a salvação daquele que ama.
(6) Matar crianças recém-baptizadas garante a salvação eterna das
crianças.
Logo, aquele que ama as crianças deve matar as crianças
recém-baptizadas.
...
Ora, tu não aceitas esta loucura,
Logo, qual das premissas (1) a (6) rejeitas?
O argumento pode ser explorado de muitas maneiras e ter vários
desenvolvimentos. Há uma razão para ele ser tão forte: de acordo com
todas as versões populares do cristianismo, esta vida não tem sentido
e valor em si mesma - tudo o que cá em baixo tem sentido e valor só o
deve ter em função de Deus e da Vida Eterna. Resulta daqui que é
facílimo apontar os absurdos que derivam de tal crença. Se a criança
está baptizada e morrer está salva! Se o João confessou todos os
pecados, penitenciou-se e foi assassinado, morreu, óptimo - safou-se...
e assim por diante. Esta desvalorização da vida terrena leva ao
seguinte: é bom que as pessoas que a aceitam não amem a valer, senão
a contratação de assassinos para matar a pessoa amada seria uma
prática corrente... e louvável..
Quando apresento este argumento aos meus amigos católicos é claro
que fico a falar sozinho. Acham que isto só pode ser, claro,
brincadeira de mau gosto. Ainda a posso aceitar esta recusa do debate se
a pessoa estiver pura e simplesmente desagradada. Nesse caso não se
trata de simples fuga á discussão de razões mas de uma questão de
feitio - caso em que a discussão pode prosseguir se eu apresentar o
argumento de forma menos sádica. Mas a regra é a simples fuga
apavorada e bloqueio total da discussão.
Essa atitude é errada a muitos títulos.. É admitir que não há
outras maneiras de tratar dos assuntos. Mas recusar razões para poder,
cegamente, continuar a defender que a fé está ao abrigo da crítica
tem consequências graves. Notícias de suicídios colectivos em nome da
fé não são novidade. Se aceitamos que a fé, por ser fé, está ao
abrigo do exame crítico, em nome de quê podemos criticar os tais
suicídios colectivos? É fácil admitir que o meu argumento pode
inspirar um padre louco e bem falante. Ele pode convencer um monte de
pessoas, sobretudo se a catequese fez parte da educação, da
necessidade do sacrifício dos filhos num ritual que será completado
com o suicídio em massa dos pais infanticidas. As doutrinas que põem a
fé ao abrigo de todo o exame crítico, contêm os germes da loucura e
do crime. Não aceitar a existência deste risco é, quanto a mim, o
maior crime que as igrejas continuam a cometer - e por esse o Papa ainda
não pediu perdão ao mundo.
No entanto! Se as pessoas ousassem pensar um pouco em vez de reagir a
partir do medo que lhes foi incutido, responderiam facilmente ao
argumento do infanticídio. Se não estamos num debate público que, por
exemplo, renda votos, e somos alvo de um bom MT, não temos de nos
sentir entre a espada e a parede, como se tivéssemos de pensar assim:
"Ou respondo já, imediatamente, ou perco e terei de abdicar da
minha fé". Afinal há tempo para pensar estas coisas e, se a fé
é grande, deve haver fé em que uma resposta há-de surgir. E a
resposta é simples: basta admitir que a fé é tocada, sempre, por
algum leve grau de dúvida, para que aquele argumento desabe. Todo o
argumento depende da ideia de que a pessoa não tem qualquer espécie de
reserva em relação aos conteúdos da sua fé. A premissa a rejeitar é
esta: "A fé é uma certeza absoluta garantida apenas por
Deus"
Poderia eu modificar o argumento para o tornar re-fortalecer? Não me
parece. Suponham que digo algo como:
Alguns filósofos, matemáticos ou outras pessoas mais experientes,
suspeitariam imediatamente de truque no caso da aposta referida neste
parágrafo. Tal como x em x=2+3 é o nome do número 5, também o
proponente da aposta podia ter escrito na mão: "o número que a
pessoa acabou de dizer". E não podia perder a aposta... 'Tá bem,
a fé é uma certeza ainda que com uma vaga e sumidinha sombra de
dúvida. Mas, para os crentes a dúvida é uma possibilidade
extraordinariamente remota.. É como dizerem-me: neste papel tenho um
número entre 1 e 100 000 000 000 000 000. Vais dizer um número
qualquer. Se não for o número que tenho na mão, podes pedir-me
algumas toneladas de ouro, mais isto e aquilo. Se, por improbabilíssimo
azar, disseres o número que tenho na mão ficas sem um dedo à minha
escolha. A julgar pelo que as pessoas aceitam fazer na TV, para ganharem
uns segundos de glória e algumas patacas, convenço-me que 99% dos
portugueses aceitavam a aposta. E entre eles estão milhões de
católicos. Como a fé é um certeza semelhante à de esta aposta,
procuraria concluir que o infanticídio continua a justificar-se. Apesar
da levíssima e quase inexistente dúvida, matar as crianças recém
baptizadas ainda parece uma boa aposta.
É claro que esta conclusão falha. Para tornar o argumento do
infanticídio credível não hesitei em falar de um amor infinito. Ora
aquilo vale infinitamente, absolutamente, está ao abrigo de toda a
aposta. Se a fé for uma certeza absoluta, matar criancinhas é
plausível; se fé for tocada pela dúvida, por levíssima que seja, o
meu argumento é inofensivo.
Mas, para o crente, é possível assumir que a fé é necessariamente
tocada pela dúvida? É possível mas inconveniente e, nestes casos, a
conveniência acaba por vencer. É possível: muitos crentes, sacerdotes
ou não, são capazes mesmo de dizer que essa é a situação. Mas não
é conveniente. Por uma simples razão: isso é uma quebra da autoridade
que as Igrejas sempre acham que devem ter sobre a consciência dos seus
fiéis. É difícil manter uma fidelidade sem reservas quando se admite
que o papá também erra.
Por isso, não é de esperar que os pregadores comecem a acrescentar
aos seus sermões: ... isto é o que a fé nos diz -- mas lembrem-se que
a verdadeira fé contém a dúvida. E que a dúvida se combate pela
oração mas também pelo exame e discussão franco e aberto das nossas
crenças, mesmo com os nossos pobres irmãos que não têm a fé.
Júlio Sameiro
sameiro@crosswinds.net