A tarefa de ensinar e divulgar a filosofia não é tarefa fácil. Em
        particular, não é fácil redigir manuais do ensino secundário que
        possam constituir, para alunos e professores, instrumentos valisos de
        trabalho. O manual a que faço referência nestas páginas resulta sem
        dúvida da vontade de transmitir o melhor possível o gosto pela
        filosofia e terá sido redigido com o cuidado que tão nobre tarefa
        merece. Infelizmente, há pelo menos um erro científico grave e
        incontroverso neste manual. O meu objectivo é mostrar de que erro se
        trata e reflectir um pouco sobre o que a existência deste erro
        significa.
        
Na página 71 do manual do 11.o ano do ensino secundário
        intitulado Pensar e Ser, de Fátima Alves, José Arêdes e José
        Carvalho apresenta-se como exemplo de uma falácia o que é conhecido
        como paradoxo de Epiménides e que os autores baptizaram como
        «sofisma de Epiménides». Este é apenas um exemplo da infelizmente
        medíocre cultura filosófica nacional. Outro exemplo encontra-se no
        famigerado Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de
        Figueiredo, onde a definição dada de paradoxo é «opinião
        contrária à opinião comum». Esta mesmíssima expressão surge aliás
        no menos badalado mas muito melhor Grande Dicionário da Língua
        Portuguesa de José Pedro Machado (que merecia, aliás, uma edição
        electrónica — mas, claro, sem as fantasias gráficas com que
        inutilizaram o Cândido de Figueiredo). Já o Dicionário da
        Língua Portuguesa, da Porto Editora (que, modestamente, não se
        titula de «grande»), resolveu inovar e afirma que um paradoxo é uma
        «opinião contrária ao sentir comum», inovação imediatamente
        copiada pelo recente Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da
        Texto Editora.
        
Os engenheiros informáticos sabem que uma maneira simples de
        descobrir se um certo fragmento de código de programação foi copiado
        é procurar erros iguais: a probabilidade de se cometer duas vezes
        certos tipos de erro é de tal forma pequena que a hipótese de ter sido
        uma coincidência é muito menor do que a hipótese de cópia. Acredito
        seriamente que este heideggerianismo das etimologias aplicado à
        definição de paradoxo, com os resultados infelizes que estão à
        vista, tem de ter uma origem comum. Mas não sei, infelizmente, qual é.
        
Nestas páginas, vou discutir esta definição errada de paradoxo, a
        confusão inacreditável entre o conceito de paradoxo e o de falácia e
        a importância deste estado de coisas para a situação da cultura
        filosófica portuguesa. Para isso, claro, terei de lhe oferecer, caro
        leitor, uma caracterização precisa do conceito de paradoxo e do
        conceito de falácia. Pelo caminho ficará também uma discussão da
        importância destes conceitos para uma cultura filosófica lúcida e
        informada.
        
        O que é uma falácia?
        
Uma falácia é um raciocínio logicamente inválido. Um raciocínio
        logicamente inválido é um raciocínio errado: um raciocínio
        que não conduz à verdade, ainda que as premissas nas quais se baseia
        sejam todas verdadeiras. Por exemplo, se eu afirmar que todos os animais
        rugem porque todos os leões rugem e todos os leões são animais,
        estarei a evocar premissas verdadeiras para sustentar a minha ideia tola
        de que todos os animais rugem (talvez porque acredito que o meu canário
        ruge às escondidas). Essas premissas são: «todos os leões rugem» e
        «todos os leões são animais». No entanto, claro, a minha conclusão
        («todos os animais rugem») é falsa. O que correu mal? O meu
        raciocínio: é um mau raciocínio, como se pode demonstrar facilmente.
        
Qualquer pessoa percebe intuitivamente o que é um mau raciocínio.
        Mas há certas subtilezas que provocam sempre alguma confusão. Que
        subtilezas são essas? Trata-se de dois factos: os raciocínios errados
        podem ter conclusões verdadeiras (ao contrário do que acontece no
        nosso exemplo dos leões); e os raciocínios válidos ou correctos podem
        ter conclusões falsas. Quando se diz isto às pessoas elas respondem
        sempre: mas então para que serve a lógica? Se os bons raciocínios
        podem ter conclusões falsas e se os maus podem ter conclusões
        verdadeiras! Mais vale ir ao futebol, onde é tudo afinal a brincar...
        
A verdade, no entanto, é que as coisas em filosofia e em lógica
        não são a brincar, como no futebol, e são razoavelmente mais subtis,
        apesar de possivelmente mais fáceis de perceber. Senão, vejamos. Que
        raciocínios válidos ou correctos podem ter conclusões falsas?
        Resposta: aqueles que partirem de premissas falsas. Não admira: se
        partimos de falsidades, por melhor que seja o raciocínio, é natural
        que cheguemos a falsidades; estranho seria que assim não fosse. Por
        mais que nos esmeremos a fazer o almoço de Domingo, se os ingredientes
        forem maus, o almoço será mau.
        
E o outro caso? Como explicar que os maus raciocínios possam
        conduzir a conclusões verdadeiras? Bom, da mesma maneira que explicamos
        como podemos acabar por ir parar aonde queríamos apesar de não
        sabermos o caminho: por puro acaso. Num argumento inválido com uma
        conclusão verdadeira as premissas não sustentam de facto a conclusão:
        chegámos àquela conclusão por sorte. Mas quando uma conclusão não
        é realmente sustentada pelas suas premissas, não podemos ter a certeza
        de que é verdadeira, uma vez que não temos dados relevantes que
        sustentem a nossa crença de que é verdadeira: os dados que temos não
        sustentam realmente a nossa crença, apenas parecem fazê-lo.
        
Por isso, apesar de os raciocínios ou argumentos inválidos poderem
        conduzir a conclusões verdadeiras e apesar de os argumentos válidos
        poderem conduzir a conclusões falsas, a importância da lógica (que
        nos permite distinguir os raciocínios correctos dos incorrectos) e da
        verdade (que nos permite partir de premissas verdadeiras) é central.
        Só com raciocínios correctos que partem de premissas verdadeiras temos
        a garantia de chegar a conclusões verdadeiras.
        
O que é então uma falácia? Já dissemos que uma falácia é um
        raciocínio errado (a que também se pode chamar incorrecto e que em
        termos técnicos é conhecido como inválido). Mas nem todos os
        raciocínios errados são falácias, apesar de todas as falácias serem
        raciocínios errados. Para que um argumento errado seja uma falácia é
        necessário que pareça um raciocínio válido: e é esta
        característica que faz das falácias um conceito, em certa medida,
        extra-lógico, um conceito quase psicológico (no entanto, pelo menos
        parcialmente, é possível explicar em termos estritamente lógicos esta
        semelhança que nos faz, psicologicamente, tomar como válidos certos
        raciocínios inválidos). O conceito de falácia é assim um conceito
        importante não tanto em lógica, onde os argumentos ou são correctos
        ou incorrectos e não há lugar a considerações psicológicas, mas
        antes em lógica informal ou retórica, onde tais considerações são
        extremamente importantes.
        
        O que é um paradoxo?
        
E o que é afinal um paradoxo? Um paradoxo é um raciocínio que,
        tanto quanto conseguimos perceber, é válido e que, tanto quanto
        conseguimos perceber, parte de premissas verdadeiras, mas que no entanto
        nos conduz a um resultado inaceitável. Já se está a ver o erro
        monstruoso que consiste em confundir paradoxos com falácias: a
        condição de possibilidade da existência de um paradoxo genuíno é
        este não ser uma falácia. Se um raciocínio for falacioso, não
        pode ser um paradoxo e se for um paradoxo genuíno não pode ser
        falacioso.
        
Os paradoxos são em geral enunciados através da proposição
        aparentemente pacífica que conduz a resultados inaceitáveis. Mas que
        resultados inaceitáveis são estes? O resultado paradoxal é a
        auto-contradição. Para explicar o que é a auto-contradição tenho de
        explicar primeiro o que é a contradição, como é óbvio. E o que é
        isso? Bom, todos nós temos uma ideia intuitiva do que é uma
        contradição: acusamos alguém de se contradizer quando afirma agora
        uma coisa que é a negação do que afirmou antes (como é, tipicamente,
        o caso dos políticos e dos dirigentes «desportivos»). Uma
        contradição é uma relação lógica existente entre duas
        proposições. Duas proposições são contraditórias quando a verdade
        de uma implica a falsidade da outra e vice-versa. Por exemplo, a frase
        «a vida não tem sentido» (um enunciado tipicamente existencialista)
        é contraditória com a frase «a vida tem sentido». Mesmo que não
        saibamos qual das duas frases é verdadeira, sabemos que se a primeira
        for verdadeira, a segunda será falsa; e que se a segunda for
        verdadeira, a primeira será falsa.
        
A auto-contradição é a situação paradoxal na qual uma frase é
        contraditória consigo mesma. Assim, quando temos uma frase
        contraditória e procuramos saber o seu valor de verdade, deparamos
        sempre com a seguinte situação: quando partimos do princípio de que
        ela é verdadeira, concluímos que é falsa; e quando partimos do
        princípio que ela é falsa, concluímos que é verdadeira. Incrível,
        não é? Dá até a impressão que tal monstruosidade não pode existir.
        Mas existe: são os paradoxos.
        
        Paradoxos e falsos paradoxos
        
 
        
Vamos então ver alguns exemplos de paradoxos e de falsos paradoxos.
        Imagine o leitor que encontrava a seguinte frase no jornal da manhã:
        «esta frase é falsa». Se o leitor tiver o hábito, aliás saudável,
        de desconfiar do valor de verdade de tudo o que lê no jornal,
        perguntar-se-ia certamente: será esta frase verdadeira? Imaginemos que
        sim. Bom, se a frase for verdadeira, verifica-se aquilo que ela afirma,
        certo? Mas a frase afirma dele mesma que é falsa. Logo, se for
        verdadeira, é falsa. E se for falsa? Bom, se for falsa não se verifica
        aquilo que ela afirma. Mas a frase afirma dela mesma que é falsa. Logo,
        se for falsa é verdadeira.
        
Chegámos então ao resultado paradoxal: a frase é verdadeira se for
        falsa e é falsa se for verdadeira. Abreviadamente, costumamos dizer que
        a frase é verdadeira se, e só se, for falsa. Este é o resultado que
        qualquer paradoxo tem de produzir; se não o produzir não é um
        paradoxo, apesar de poder ser confundido com um paradoxo. Por exemplo,
        na página 71 do manual de Fátima Alves, José Arêdes e José
        Carvalho, no qual se apresenta o paradoxo de Epiménides como um exemplo
        de uma falácia, a formulação escolhida pelos autores é a seguinte:
        
 
        
          o sofisma de Epiménides, poeta cretense do século VI
          a.C., que afirmou: «todos os cretenses são mentirosos». Ora,
          atendendo a que ele próprio era cretense, será o enunciado
          verdadeiro?
          
        
        É deplorável a capacidade inventiva dos autores, que os fez
        transformar o conhecido paradoxo do mentiroso num «sofisma» ou
        falácia. O leitor já sabe que a condição de possibilidade para que
        algo seja um paradoxo é não ser uma falácia, de forma que esta
        confusão entre as duas categorias é um erro científico muito grave.
        Mas é também interessante verificar que a formulação clássica do
        paradoxo do mentiroso, apresentada pelos autores, não é, na verdade,
        um paradoxo!
        
Repare-se: Epiménides afirma que todos os cretenses são mentirosos.
        Mesmo que admitamos que por «mentirosos» se quer dizer «pessoas que
        nunca dizem a verdade» (o que constitui, convenhamos uma definição
        estranhíssima de mentiroso), não se consegue gerar nenhum paradoxo.
        Ora veja lá: admitamos que o que Epiménides disse é verdade; daí
        segue-se todos os cretenses são mentirosos; logo, o que ele diz, porque
        é cretense, é falso. Logo, se o que ele diz é verdade, é falso.
        Admitamos agora que o que Epiménides disse é falso. Se o que ele disse
        é falso, a negação do que ele disse é verdade. A negação do que
        ele disse é «alguns cretenses não são mentirosos». Mas não há
        nenhum problema em admitir que Epiménides é cretense e que alguns
        cretenses não são mentirosos. Na verdade, Epiménides, ao afirmar que
        todos os cretenses são mentirosos, está a pregar-nos uma grande
        mentira: a verdade é que alguns cretenses não o são. E uma vez que
        ele nos está a mentir, ele é que é mentiroso!
        
Conclusão: não se trata de um paradoxo. Se raciocinarmos
        disciplinada e sistematicamente descobrimos que afinal a afirmação de
        Epiménides tem de ser falsa. Se fosse um paradoxo, a sua afirmação
        não podia ser verdadeira nem falsa.
        
Mas então, perguntará o leitor, por que razão se formulava
        tradicionalmente desta forma errada o paradoxo do mentiroso? Porque se
        errava ao raciocinar! A negação da afirmação «todos os cretenses
        são mentirosos» é, como disse acima, «alguns cretenses não são
        mentirosos»; mas é fácil errar e pensar que a sua negação é antes
        «nenhum cretense é mentiroso». Por que razão esta última não é a
        negação da outra? É simples: a negação de uma frase qualquer tem de
        ter o valor de verdade oposto a essa frase, como é óbvio. Se a frase
        «todos os portugueses são altos» é verdadeira, a sua negação tem
        de ser falsa e vice-versa. Mas agora repare que, apesar de esta frase
        ser falsa (como é óbvio, nem todos os portugueses são altos), a frase
        «nenhum português é alto» é também falsa. Logo, apesar de
        esta última parecer intuitivamente constituir a negação da primeira,
        não o é de facto. Este facto simples já era conhecido por
        Aristóteles, que chamou «contrárias» a estas frases que não são
        a negação uma da outra. Às frases que se negam mutuamente chamou
        Aristóteles «contraditórias».
        
        A etimologia do disparate
        
 
        
Agora que o leitor tem uma ideia clara do que é um paradoxo e do que
        é uma falácia, está apto a compreender o significado cultural da
        definição de paradoxo que surge nas obras portuguesas de referência e
        no manual escolar referido. A característica geral da definição de
        paradoxo que surge nestas obras (nas quais se inclui a enciclopédia de
        filosofia da Verbo, a Logos) é o recurso à etimologia.
        «Paradoxo» quer dizer literalmente, segundo a etimologia grega,
        «contra a opinião». Está tudo muito bem. Que este seja o único
        conceito que surge num dicionário da língua portuguesa, ainda que se
        intitule de «grande», ainda se desculpa; mas que em obras de
        referência e em manuais escolares a mesma má definição seja
        apresentada ao leitor como informação fidedigna é um crime cultural.
        
Um estudante de filosofia que não sabe distinguir um paradoxo de uma
        falácia é como um estudante de música que não sabe distinguir as
        cordas dos metais, ou um estudante de medicina que não distingue o
        fígado da bexiga. Como é óbvio, um estudante que não distingue um
        paradoxo de uma falácia tem altas probabilidades de cometer falácias;
        e será também muito provavelmente incapaz de examinar de forma
        correcta os problemas filosóficos, uma vez que estes têm muitas vezes
        um carácter paradoxal. Da filosofia espera-se que ofereça aos que a
        estudam lucidez e claridade no pensamento; mas enquanto se confundirem
        dois dos seus conceitos mais básicos, não se pode esperar senão
        confusão e erro.
        
A riqueza de uma cultura patenteia-se na riqueza da sua língua; e a
        riqueza de uma língua manifesta-se na capacidade para exprimir
        conceitos complexos, subtis e importantes. Cercear esta riqueza é
        impedir o pensamento e o desenvolvimento cultural, é impedir os
        portugueses de dialogar com o mundo cultural, obrigando-os à clausura
        de uma provinciana cultura de realejo, fechada ao mundo e à
        criatividade. Mas — quem sabe? — talvez o objectivo seja mesmo esse.
        
Desidério Murcho
        desiderio.murcho@kcl.ac.uk