Que sentido pode existir na ausência de valores de verdade?
Teresa Marques
O interesse de Frege na área da filosofia da linguagem resulta
indirectamente da sua preocupação em encontrar uma teoria semântica
formal adequada para o pensamento matemático e científico. Mas tal
preocupação permite estender a reflexão sobre linguagens formais à
linguagem natural. Do ponto de vista semântico, Frege procurava
formular uma teoria que desse conta da composição e forma lógica de
expressões de uma linguagem, e de como tais aspectos contribuem para
três coisas: (i) o valor semântico das próprias expressões, (ii) o
valor semântico de expressões mais complexas nas quais expressões
menos complexas ocorrem e (iii) as relações de inferência que obtêm
entre diferentes expressões. O valor semântico de expressões simples
como termos singulares é a sua referência, o valor semântico de
predicados é a sua extensão, e o valor semântico de frases é o seu
valor de verdade.
Mas Frege não limita a sua teoria semântica ao tratamento da
referência e valores de verdade da expressões na linguagem. Frege é
sensível aos aspectos cognitivos da linguagem e aos conteúdos
informativos que podem ser transmitidos pelo uso da linguagem. A noção
de sentido (Sinn) é assim introduzida para dar conta dos
aspectos cognitivos e das diferentes atitudes proposicionais que podem
ser tomadas face a esses conteúdos. Contudo, a noção de sentido é
menos clara que a noção de referência. Frege pretende que esta
noção desempenhe diferentes papeis. Uma das teses que é normalmente
associada com Frege diz que Frege concebia o sentido de uma expressão
de tal forma que uma expressão possui sentido quer refira ou não, quer
dizer, quer tenha uma valor semântico atribuído na teoria semântica
Fregeana ou não. Portanto, uma expressão pode ter sentido na ausência
de referência, uma frase pode ter sentido sendo destituída de valores
de verdade. Será justo atribuir a Frege esta tese? E mesmo que haja
evidência textual que apoie tal interpretação de Frege, será que
Frege desejava levar a sério tal sugestão, e além do mais, podia ele
manter tal posição consistentemente? Frege foi já acusado de
inconsistência com base neste ponto.
Os objectivos deste ensaio são, em primeiro lugar, tentar apresentar
o essencial da teoria semântica Fregeana e descobrir a motivação para
a noção de sentido. Também pretendemos isolar as teses distintas
sobre o sentido que Frege terá mantido. Em segundo lugar, pretendemos
identificar as críticas à consistência da posição Fregeana.
Finalmente, podemos ver que noção de sentido pode ser preservada para
Frege.
I
Frege foi o primeiro a propor uma teoria semântica sistemática para
um fragmento da linguagem, analisando frases singulares e frases
quantificadas com base na análise de frases singulares. A descoberta da
noção de sentido não força Frege a rejeitar a sua teoria semântica,
mas a observar que há aspectos cognitivos relacionados com a linguagem
que forçam a extensão da teoria semântica original.
Uma linguagem tem termos básicos, não analisáveis: termos
singulares (também designados como expressões referenciais), entre os
quais se incluem nomes próprios, termos contendo pronomes
demonstrativos, etc. O valor semântico destes termos consiste em
introduzir objectos para a linguagem. Termos singulares podem ser usados
para completar outras expressões, termos predicativos. O valor
semântico de um termo singular vai assim consistir na introdução de
um objecto do qual um predicado pode ser afirmado. Uma expressão
completa simples, constituída por um termo singular e um termo
predicativo, será uma frase na linguagem. Os valores dos termos
componentes da frase permitirão determinar o valor da frase. Se o
objecto designado pelo termo singular satisfaz a propriedade ou conceito
expresso pelo elemento predicativo da frase, a frase é verdadeira. Caso
contrário, a frase é falsa. O valor semântico de uma frase é o seu
valor de verdade: Verdadeiro ou Falso. O valor de verdade de uma frase
é determinado funcionalmente em virtude dos valores semânticos dos
elementos componentes na frase. Frege dirá que o valor semântico de um
termo singular é a sua referência, e também que uma frase completa
refere o seu valor de verdade.
A concepção composicional do valor semântico é simultaneamente
simples e económica. Diferentes elementos da linguagem são
classificados em categorias diferentes em função do tipo de valor
semântico que possuem. O tipo de valor semântico que possuem determina
de que forma é que podem entrar na composição de expressões mais
complexas na linguagem.
O que motiva, então, a noção de sentido? Frege reconhece que o
valor cognitivo de uma expressão não pode ser explicado completamente
por meio do tratamento dos valores semânticos que a teoria reconhece
às expressões da linguagem. Se esse fosse o caso, frases declarativas
simples nas quais a mesma propriedade é afirmada do mesmo objecto
transmitiriam exactamente a mesma informação. O problema do conteúdo
cognitivo transmitido por meio do uso de termos co-referenciais, nomes
próprios para o mesmo objecto, revela-se no puzzle sobre afirmações
de identidade contento nomes co-referenciais:
"a=a e a=b são obviamente afirmações com
conteúdos cognitivos diferentes; a=a é verdadeira a priori e, de
acordo com Kant, deve ser classificada como analítica, enquanto que
afirmações da forma a=b contém muitas vezes extensões importantes
ao nosso conhecimento, e nem sempre podem ser estabalecidas a prori
(...) A diferença [entre a=a e a=b] só pode ocorrer se à diferença
nos sinais corresponder alguma diferença no modo de apresentação da
coisa designada. (...) É agora natural pensar que existe em relação
com um símbolo (nome, combinação de palavras, inscrições
escritas), além daquilo que pode ser chamada a referência do
símbolo, também aquilo que eu gostaria de chamar o sentido do
símbolo, no qual o modo de apresentação do objecto está contido
(...) A referência de "a estrela da tarde" será a mesma
que a referência de "a estrela da manhã", mas não o
sentido". (Frege, On Sense and Meaning, in Translations
from the Philosophical Writings of Gottlob Frege, pp. 56-57).
O facto de nomes co-referenciais diferentes poderem ser usados para
transmitir informação em asserções de indentidade, e portanto
expressarem sentidos diferentes, implica que não só não é
necessário que um utente competente da linguagem e dos nomes saiba que
ambos os nomes têm a mesma referência, como força a admissão que tal
utente pode ter atitudes proposicionais diferentes quanto a frases que
permitem atribuir a mesma propriedade ao mesmo objecto. Uma pessoa pode
acreditar que a estrela da manhã é um planeta e não acreditar que a
estrela da tarde é um planeta, por exemplo. Uma pessoa pode assim,
racional e consistentemente, ter crenças (atitudes) diferentes quanto
ao mesmo objecto. A noção de sentido permite dar conta das possíveis
diferenças cognitivas entre expressões co-referenciais, e explicar as
diferentes atitudes proposicionais que podem ser tomadas em relação a
frases que são verdadeiras ou falsas em função do mesmo estado de
coisas no mundo.
A concepção que os valores semânticos das expressões componentes
de frases contribuem funcionalmente para o valor das frases em que
ocorrem é adaptada à noção de sentido. O sentido de expressões como
"a estrela da manhã" e "a estrela da tarde"
contribuem composicionalmente para determinar o sentido de uma frase
como "a estrela da manhã é um planeta". O sentido expresso
pela frase, o seu conteúdo, é dito ser o pensamento expresso pela
frase.
"O pensamento, igualmente, não pode ser
aquilo que é referido pela frase, mas deve ser considerado como o seu
sentido. Qual é a relação à referência?(...) Será possível que
uma frase no seu todo tenha apenas sentido e não tenha referência?
Seja como for, podemos esperar que tais frases ocorram, tal como há
partes de frases que têm sentido mas não têm referência. As frases
que contêm nomes próprios sem referência são frases deste tipo. A
frase 'Ulisses deu à costa em Ítaca adormecido' tem evidentemente
sentido. Mas dado que é duvidoso que o nome 'Ulisses' tenha
referência, também é duvidoso que a frase no seu todo tenha
referência [i.e. valor de verdade]. Contudo, é certo que seja quem
for que encare a frase seriamente como sendo verdadeira ou falsa,
atribuirá ao nome 'Ulisses' um referente, e não só um sentido; pois
é da referência do nome que o predicado é afirmado ou negado. Quem
não admite que o nome refira não pode aplicar nem negar o predicado.
Mas nesse caso seria supérfluo avançar para a referência do nome;
poderíamos ficar satisfeitos com o sentido, se não quiséssemos ir
mais longe que a expressão do pensamento (...) apenas o sentido, e
não a referência, da parte é relevante para o sentido da frase. O
pensamento é o mesmo quer 'Ulisses' refira ou não (...) O pensamento
perde valor para nós assim que reconhecemos que a referência de uma
das suas partes está ausente. Estamos assim justificados em não
ficarmos satisfeitos apenas com o sentido de uma frase, e em
procurarmos também a sua referência. (...) Porque não é o
pensamento suficiente para nós? Porque, e na medida em que, nos
preocupamos com o seu valor de verdade. É a procura da verdade que
nos conduz do sentido à coisa significada." (Frege, idem,
pp. 62-63)
Noutros pontos Frege diz:
"Imaginemos que nos convencemos, ao contrário
da nossa opinião anterior, que o nome 'Ulisses', tal como aparece na
Odisseia, afinal de contas designa um homem. Poderia isto querer dizer
que as frases que contêm 'Ulisses' expressam pensamentos diferentes?
Eu acho que não. Os pensamentos seriam exactamente os mesmos; seriam
apenas transferidos do reino da ficção para o reino da verdade.
Portanto o objecto designado por um nome próprio não é essencial
para o conteúdo-pensamento de uma frase que o contém. (...) Mas
podemos inferir imediatamente do que dissemos que algo mais deve ser
associado com o nome próprio, algo que é diferente do objecto
designado e que é essencial ao pensamento da frase na qual o nome
próprio aparece. Eu chamo a isso o sentido do nome." (Frege, Posthumous
Writings, p.191)
Aparentemente, Frege alarga a visão composicional do significado de
expressões da linguagem à noção de sentido, e permite que frases
expressem um pensamento ou conteúdo ao mesmo tempo que falham em ter um
valor de verdade verdadeiro ou falso. As razões para admitir esta
possibilidade residem em considerar que os elementos que constituem a
frase podem ter sentido mesmo que não refiram, em considerar que os
sentidos das partes compõem o sentido do todo, e finalmente em
identificar o sentido expresso por uma frase com o pensamento que essa
frase pode expressar.
Noutros locais, Frege esclarece a noção de pensamento de outro
ângulo. Pensamentos têm de ser expressáveis por meio de frases
diferentes pronunciadas por pessoas diferentes em ocasiões diferentes.
Caso contrário, Frege crê, qualquer tarefa científica e lógica é
inviabilizada. A tarefa da lógica, numa certa concepção da lógica,
é descobrir as regras do pensamento, as "leis da verdade":
"Todas as ciências têm por objectivo a
verdade; mas a lógica preocupa-se com a verdade de um modo muito
diferente: a lógica tem o mesmo tipo de relação com a verdade que a
física tem com o peso ou com o calor. A descoberta de verdades é a
tarefa de todas as ciências; à lógica cabe a tarefa de descobrir as
leis da verdade (...) Das leis da verdade seguem-se prescrições
sobre asserção, pensamento, juízo, inferência. Deste modo podemos
também falar de regras de pensamento." (Frege, Thoughts, in
Logical Investigations, p.1)
Para que o mesmo conteúdo seja expresso por frases diferentes, em
ocasiões diferentes, os pensamentos não devem ser identificados nem
com entidades mentais particulares, nem com o significado linguístico
da frase usada:
"O conteúdo de uma frase muitas vezes
ultrapassa o pensamento expresso nela, mas o contrário também
acontece; o fraseado, que pode ser permanente uma vez escrito ou
gravado, não é suficiente para a expressão do pensamento (...) se
uma indicação temporal é indicada pelo tempo presente do verbo
deve--se saber quando a frase foi pronunciada para compreender o
pensamento correctamente. Portanto o momento da elocução é parte da
expressão do pensamento. Se alguém quer dizer hoje o que expressou
ontem usando a palavra 'hoje', deve substituir a palavra por 'ontem'
(...) em todos estes casos, a formulação da frase, tal como é
preservada na escrita, não é a expressão completa do pensamento; o
conhecimento das condições que acompanham a elocução, que são
usadas como meio de expressão do pensamento, são necessárias para
expressar o pensamento correctamente." (Frege, op.cit.,
p.10)
Frege considera que a expressão do mesmo pensamento pode ser feita
por meio de frases distintas, por exemplo 'Hoje chove' e 'Ontem chovia'.
Destes, e de outros exemplos, Frege infere que é necessário que os
pensamentos sejam entidades independentes da linguagem que os expressa e
da nossa capacidade de os apreender em momentos particulares. A
existência independente de pensamentos e sentidos para serem
apreendidos e compreendidos reflecte a preocupação de Frege com a
explicação e justificação das leis da lógica ou do pensamento.
Frege crê que se não fosse possível que um mesmo pensamento fosse
expresso em situações diferentes por frases diferentes, e
eventualmente mesmo em linguas diferentes, não seria possível conduzir
qualquer tipo de investigação científica, que a tarefa de argumentar
não seria possível:
"Se outras pessoas podem assentir ao
pensamento que eu expresso no teorema de Pitágoras assim como eu
faço, então esse pensamento não pertence ao conteúdo da minha
consciência, eu não o possuo; contudo eu posso, mesmo assim,
reconhecê-lo como verdadeiro. Todavia, se o que é identificado como
o conteúdo do teorema de Pitágoras por mim e por outra pessoa não
é exactamente o mesmo conteúdo, não devíamos dizer 'o teorema de
Pitágoras' mas 'o meu teorema de Pitágoras', 'o seu teorema de
Pitágoras' (...)Se todos os pensamentos requerem um dono e pertencem
ao conteúdo da sua consciência, então o pensamento só tem esse
dono; e assim não há uma ciência comum a muitos na qual muitos
possam trabalhar (...) Nenhuma contradição entre duas ciências
seria possível, e seria de facto inútil discutir sobre a verdade.
(Frege, op.cit., pp.16-17).
A noção de sentido é extendida para além da razão que motivou a
sua introdução, o reconhecimento da diferença cognitiva entre
expressões com a mesma referência. A noção de sentido passou a ser
também vista como uma noção composicional, os sentidos de frases são
identificados com pensamentos. À noção de pensamento são atribuídas
certas características: a noção de pensamento está ligada com os
valores de verdade de frases assim como o sentido de um termo se
relaciona com a sua referência (sendo o seu modo de apresentação);
pensamentos dão conta do conteúdo de atitudes proposicionais; ao mesmo
tempo pensamentos são entidades independentes da linguagem e dos
conteúdos mentais particulares; a persistência independente de
pensamentos está intimamente relacionada com a necessidade de
reconhecer conteúdos que entrem em relações dedutivas. Se não fosse
possível que o mesmo conteúdo fosse afirmado em frases diferentes, por
pessoas diferentes, não seria possível que o que duas pessoas pensam
ou afirmam entrasse em contradição, por exemplo. A lógica é assim
considerada como o estudo das leis do pensamento ou da verdade. As duas
noções de pensamento e de verdade estão intimamente ligadas.
Em partes dos seus escritos, Frege parece reconhecer que termos
referênciais podem falhar em referir, e ter sentido, o que, dada a
teoria da composicionalidade implica que as frases respectivas expressam
pensamentos, mesmo sem terem valores de verdade. Todavia, noutros
sítios Frege parece contradizer esta ideia:
"6. O critério para saber se um modo de
ligação constitui um pensamento é saber se faz sentido perguntar se
é verdadeiro ou falso (...)
9. Uma frase só pode ser verdadeira ou falsa se
for a expressão de um pensamento. A frase 'Leo Sachse é um homem' é
a expressão de um pensamento só se 'Leo Sachse' designa alguma
coisa. E assim também, 'esta mesa é redonda' é a expressão de um
pensamento só se as palavras 'esta mesa' não são apenas sons vazios
e designam alguma coisa específica para mim." (Frege, 1906?, 17 Key
Sentences on Logic, in Posthumous Writings, p. 174)
Frege diz também:
"As regras da lógica pressupõem sempre que
as palavras que usamos não são vazias, que as nossas frases
expressam juízos, que não estamos a fazer um mero jogo de palavras.
Assim para que 'Sachse é um homem' expresse um juízo, a palavra
'Sachse' deve designar alguma coisa, e nesse caso não preciso de uma
premissa adicional para inferir 'Existem homens'."
As afirmações de Frege neste ponto parecem contradizer as suas
afirmações nas secções anteriores nas quais Frege apresentava a
noção de sentido. Normalmente associa-se com Frege a tese que a posse
de sentido é independente da posse de referência (e de valor de
verdade). Mas até que ponto é que o próprio Frege levava esta
possibilidade seriamente e a defende consistentemente, e em que medida
é que é consistente para Frege defender que podem haver pensamentos
sem valores de verdade?
II
Há duas linhas de acusação à consistência da tese que Frege
defende em vários pontos: que a existência de sentido é independente
da existência de referência. A primeira linha de objecção foi
apresentada por Gareth Evans (1982, The Varieties of Reference),
e questiona a consistência interna, dada a teoria semântica que Frege
adopta, da defesa da tese mencionada. A segunda pode ser derivada de
argumentos apresentados por Timothy Williamson (1991, Vagueness)
contra a possibilidade de admitir que há asserções que podem falhar
em ser verdadeiras ou falsas. A primeira objecção é séria para
Frege, mas deixa aberta a possibilidade de adoptar uma teoria semântica
diferente da fregeana. A segunda é mais séria, pois não depende de
uma teoria semântica particular, mas do reconhecimento da validade de
alguns princípios de inferência básicos e da adopção de princípios
que são normalmente reconhecidos como governando a noção de verdade.
O que temos a certeza de ser correctamente atribuído a Frege é a
tese que quando nomes próprios ou termos singulares são vazios, não
referem, não se pode atribuir qualquer valor de verdade a uma frase
simples declarativa em que tais nomes ocorrem. A tese controversa é se
se segue que termos singulares vazios podem ter sentido. Por um lado,
Frege parece crer que sim, que podem haver termos singulares vazios com
sentido, tais como 'Ulisses', ou 'O maior número primo'. Se esse é o
caso, então, dada a tese da composicionalidade do sentido, frases que
contenham tais termos também têm sentido. Dado, uma vez mais, a
identificação do sentido de frases com pensamentos, então tais frases
expressam pensamentos que, dado o resto da teoria no que concerne a
referência, não são nem verdadeiros nem falsos. Por outro lado, Frege
afirma que a existência de um pensamento para ser expresso é uma
condição necessária para que uma frase tenha valor de verdade. Além
do mais, que o termo sigular na frase refira é uma condição
necessária para a existência de um pensamento. Logo, segue-se que na
ausência de referente para o termo singular uma frase não expressa um
pensamento e portanto não tem valor de verdade. Se Frege encara esta
tese seriamente, porque razão haveria de (i) atribuir sentidos a termos
singulares vazios, ou, (ii), sustentar que sentidos são composicionais,
ou ainda (iii) identificar os sentidos de frases com pensamentos?
A noção de sentido é obviamente introduzida para dar conta de
diferentes modos de pensar sobre um objecto. Evans questiona a clareza
de admitir que haja um modo de pensar sobre um objecto quando não
existe nenhum objecto sobre o qual pensar. Isto significa, posto noutros
termos, que Frege considerou seriamente a possibilidade de admitir que
haja frases na linguagem com significado, que podem ser usadas para
transmitir pensamentos, às quais a sua teoria semântica não pode ser
aplicada, e estava preparado a admitir que partes dessas frases podem
contribuir sistematicamente para a expressão de pensamentos sem
possuirem o tipo de valor semântico que na teoria fregeana lhes podem
ser atribuídos apropriadamente. Evans diz:
"Se encontramos frases que aceitamos serem
inteligíveis e das quais estamos preparados dizer que não têm valor
de verdade, então devemos rever a avaliação dos valores semânticos
apropriados das frases. (...) O semântico não tem à sua
disponibilidade a possibilidade de dizer 'existe um lapso na minha
teoria, eis um grupo de frases viáveis que podem ser usadas para
expressar e transmitir pensamentos, mas às quais a minha teoria não
se aplica (...) Em vez de dizer isto, o semântico deve voltar atrás
a alterar a sua teoria, especificamente, as atribuições que são
apropriadamente encaradas como os valores semânticos das frases"
(Evans, op.cit, p.23)
Evans vai mais longe e questiona que faça sentido dizer de todo que
pensamentos podem falhar em ter um valor de verdade. Se se nega o valor
de verdade verdadeiro a uma frase, seguir-se-á certamente que a frase
é falsa, e vive-versa. Que sentido poderá fazer acreditar em algo que
não é verdadeiro nem falso? O que é uma crença que não é correcta
nem incorrecta?
Se, como é patentemente o caso, a teoria semântica de Frege foi
formulada para permitir a investigação de inferências lógicas, e se
a teoria só pode desempenhar tal papel se a linguagem para a qual a
teoria é formulada não contém termos singulares ou referenciais
vazios, e se ao mesmo tempo, Frege encara seriamente a possibilidade de
termos singulares poderem permitir a expressão de pensamentos, porque
razão é que Frege haveria de restringir a sua teoria a linguagens nas
quais a falha de referência não ocorre? Por outro lado, Frege não
parece sugerir qualquer forma de enunciar explicitamente o que o sentido
de uma expressão pode ser, ao passo que é possível enunciar
claramente aquilo que é a referência e valor semântico de uma
expressão.
O que poderá desencadiar a crença que termos singulares vazios
podem ter sentido, quando esses sentidos seriam modos de pensar sobre
objectos não-existentes; quando os sentidos de termos devem dar conta
do conteúdo cognitivo de uma expressão, e nestes casos, não há nada
que se possa conhecer acerca de objectos inexistentes? Os exemplos que
Frege fornece são (na maioria dos casos) nomes próprios ficcionais, ou
descrições definidas. É sabido que (depois de Russell) as
descrições definidas podem ser tratadas de forma que faça sentido que
elas não sejam incluídas na categoria de termos singulares, mas antes
na categoria de termos quantificacionais. Daí descrições definidas
podem ser coerentemente tratadas numa teoria semântica, contribuindo
para o valor semântico de frases que as contenham, quer exista ou não
um item que satisfaça a descrição. Quanto a termos ficcionais, o
próprio Frege afirma que eles concernem o "reino da ficção"
e não o "reino da verdade". Logo, parece que os casos de
termos singulares vazios não são verdadeiras ameaças para a teoria.
Por outro lado, se a possibilidade de existência de termos singulares
vazios com sentido é séria, então, não parece haver razão para
Frege não alterar a teoria semântica de modo a acomodar uma lógica
livre, a atribuir o valor de verdade falso a frases que contenham termos
singulares vazios, ou a adoptar uma lógica trivalente. Em qualquer
caso, Frege parece não estar justificado em manter simultaneamente a
teoria para os valores semânticos de uma linguagem que mantem e em
admitir que há termos singulares vazios que expressam sentidos, e que
permitem a expressão de pensamentos. O próprio Frege não parecia
sentir-se muito confortável com a admissão que pensamentos expressos
por meio do uso de termos vazios são pensamentos genuínos, remetendo
tais pensamentos para o domínio da ficção, chamando-lhes pensamentos
ilusórios por vezes:
"Mas o sentido da frase 'Guilherme Tell
disparou contra uma maçã que estava na cabeça do seu filho' não é
mais verdadeiro que aquele da frase 'Guilherme Tell não disparou
contra uma maçã que estava na cabeça do seu filho'. Não digo que o
sentido seja falso, caracterizo-o antes como fictício." (Frege,
Posthumous Writings, p. 175).
O perigo de inconsistência é, parece, mais sério, se levarmos em
consideração argumentos à la Williamson (ver por exemplo op.cit.,
pp. 187-189). Se se assumir que uma frase 'a é P' expressa um
pensamento, então podemos fazer asserções que a é P, onde 'a' é um
termo singular vazio. O princípio de bivalência (na formulação do
princípio proposta por Williamson) diz que se a elocução de uma frase
S numa ocasião diz que a é P, então S é verdadeira ou falsa. Além
do mais, S é verdadeira só e só se a é P, e S é falsa se e só se
não é o caso que a é P. Mas S não é verdadeira (por hipótese, dado
que 'a' não refere). Logo, não é o caso que a é P. Mas, também, S
não é uma frase falsa. Logo, não é o caso que a não seja P. Mas
isto é uma contradição evidente. Ambas as consequências não podem
simultaneamente obter. Portanto, uma das premissas deve ser rejeitada.
Qual delas é que Frege deveria rejeitar?A hipótese de que o princípio
de bivalência é válido não seria rejeitada, dado que a lógica de
base que Frege adopta na sua teoria semântica é clássica. Os
restantes princípios acerca da verdade e falsidade usados não parecem
ser questionáveis para Frege. Logo, o que se pode questionar é que uma
frase que contenha um termo singular vazio possa ser usada para
expressar pensamentos, para fazer asserções. A rejeição desta
hipótese pode ser reforçada pelas afirmações que Frege faz em
diferentes momentos, algumas das quais mencionadas acima, que levantam
dúvidas em relação à plausibilidade de encarar seriamente o
(possível) sentido expresso por frases com termos singulares vazios. De
facto, como pode uma frase dizer que a é P, se a não existe e não é
possível avaliar se a se encontra ou não na extensão de P?
III
Parece evidente que asserções de indentidade como 'a=a' e 'a=b'
podem conter conteúdos informativos distintos. A noção de sentido é,
antes de mais, introduzida para explicar tal diferença cognitiva.
Assim, alguém pode acreditar que a é P, e duvidar que b é P, mesmo
quando a = b, sem risco de incoerência. Portanto as duas frases podem
ser vistas como expressando conteúdos diferentes. Não será tão
fácil de explicar em que consiste tal diferença cognitiva, isto é, o
que é que alguém sabe ao saber que a é P, e não sabe ao ignorar que
b é P. Por outras palavras, não é muito fácil explicar o que são
sentidos, nem explicar qual o sentido que 'a' expressa e qual o sentido
que 'b' expressa. Pode-se elucidar o que será o sentido de um nome ao
dizer que consiste num modo particular de pensar sobre um objecto, que o
sentido é o modo de apresentação do objecto. Esta elucidação
metafórica não nos leva muito mais longe, pois não sabemos
exactamente o que é um modo de pensar sobre um objecto, ou um modo de
ser apresentado a um objecto. Como a explicação da diferença entre os
sentidos de dois termos diferentes não é facilmente encontrável, para
lá de permitir dizer que é em virtude dos sentidos que se pode
explicar que uma pessoa possa consistente e racionalmente ter atitudes
diferentes em relação a um só objecto, não parece ser fácil
explicar o que é que o sentido de um nome fornece para a composição
do sentido de uma frase, nem como tal composição de um sentido mais
complexo deve ser feita. Isto está em claro contraste com a relativa
facilidade com que a referência de um nome pode ser tratada de modo a
entrar na determinação funcional do valor semântico -- valor de
verdade -- de uma frase contendo o nome.
Parece ser em virtude de compreendermos algo diferente numa frase e
noutra, que dizemos que duas frases têm sentidos diferentes, e de
parecer que compreendemos algo com frases que contêm nomes vazios, que
poderíamos ser levados a dizer que tal compreensão se deve fundar na
existência de sentidos para nomes vazios. Como parece ser possível
compreender frases contendo nomes vazios, e como parece que nomes vazios
têm sentidos, dada também a suposição da composicionalidade dos
sentidos, parece seguir-se que frases com nomes vazios expressam
sentidos, neste caso pensamentos.
A admissão desta possibilidade tem resultados dificilmente
compatibilizados com aquilo que Frege espera da noção de pensamento, e
da relação entre pensamentos e a investigação de inferências
lógicas. A noção de pensamento é elucidada em diferentes pontos por
Frege como estando intimamente ligada à noção de verdade. A adopção
de uma lógica clássica e da teoria semântica Fregeana tem resultados
inconsistentes com a suposição que nomes vazios têm sentido.
Portanto, ou a suposição é abandonada, ou a teoria é revista.
Parecem haver mais razões para manter a teoria que para manter a
suposição. Os argumentos que levam à introdução da noção de
sentido não parecem ser suficientemente fortes para forçar a revisão
da teoria. Por outro lado a teoria semântica de Frege é sistemática,
económica e simples para, pelo menos, um fragmento da linguagem.
Portanto, a não ser que se apresentem argumentos mais fortes para
reconhecer sentidos a nomes vazios, parece que não há necessidade de
admitir (antes pelo contrário) que pode existir sentido na ausência de
referência. Uma outra alternativa seria questionar a teoria da
composicionalidade do sentido, e que da existência de sentido para
termos singulares se segue que frases que os contenham expressem
pensamentos. Se for possível argumentar persuasivamente para o
reconhecimento de sentido para termos singulares vazios, e para a
expressão de pensamentos por meio do uso de tais nomes, então a teoria
deveria ser revista para não permitir a existência de pensamentos sem
valor de verdade. Pelo menos, desde que o princípio de bivalência seja
válido. Para responder à questão original: que sentido podia Frege
ver na ausência de valores de verdade?, coerentemente, pouco.
Teresa Marques
mtm1@st-and.ac.uk
Bibliografia:
Dummett, M., [1973]/[1981], Frege: Philosophy of Language, 2nd
edition, Duckworth, London.
Evans, G. [1982], The Varieties of Reference, ed. J. McDowell, Clarendon
Press, Oxford.
Frege, Translations From the Philosophical Writings of Gottlob Frege,
ed. P. Geach & M. Black, 3rd Edition, Blackwell, Oxford.
Frege [1892], On Sense and Meaning, in Translations From the
Philosophical Writings of Gottlob Frege, ed. P. Geach & M. Black,
3rd Edition, Blackwell, Oxford.
Frege, Posthumous Writings, Blackwell, Oxford.
Frege, Logical Investigations, Blackwell, Oxford.
Williamson, [1991], Vagueness, Routledge, London and NY.