Que sentido pode existir na ausência de valores de verdade?
        Teresa Marques
        
        O interesse de Frege na área da filosofia da linguagem resulta
        indirectamente da sua preocupação em encontrar uma teoria semântica
        formal adequada para o pensamento matemático e científico. Mas tal
        preocupação permite estender a reflexão sobre linguagens formais à
        linguagem natural. Do ponto de vista semântico, Frege procurava
        formular uma teoria que desse conta da composição e forma lógica de
        expressões de uma linguagem, e de como tais aspectos contribuem para
        três coisas: (i) o valor semântico das próprias expressões, (ii) o
        valor semântico de expressões mais complexas nas quais expressões
        menos complexas ocorrem e (iii) as relações de inferência que obtêm
        entre diferentes expressões. O valor semântico de expressões simples
        como termos singulares é a sua referência, o valor semântico de
        predicados é a sua extensão, e o valor semântico de frases é o seu
        valor de verdade.
        
Mas Frege não limita a sua teoria semântica ao tratamento da
        referência e valores de verdade da expressões na linguagem. Frege é
        sensível aos aspectos cognitivos da linguagem e aos conteúdos
        informativos que podem ser transmitidos pelo uso da linguagem. A noção
        de sentido (Sinn) é assim introduzida para dar conta dos
        aspectos cognitivos e das diferentes atitudes proposicionais que podem
        ser tomadas face a esses conteúdos. Contudo, a noção de sentido é
        menos clara que a noção de referência. Frege pretende que esta
        noção desempenhe diferentes papeis. Uma das teses que é normalmente
        associada com Frege diz que Frege concebia o sentido de uma expressão
        de tal forma que uma expressão possui sentido quer refira ou não, quer
        dizer, quer tenha uma valor semântico atribuído na teoria semântica
        Fregeana ou não. Portanto, uma expressão pode ter sentido na ausência
        de referência, uma frase pode ter sentido sendo destituída de valores
        de verdade. Será justo atribuir a Frege esta tese? E mesmo que haja
        evidência textual que apoie tal interpretação de Frege, será que
        Frege desejava levar a sério tal sugestão, e além do mais, podia ele
        manter tal posição consistentemente? Frege foi já acusado de
        inconsistência com base neste ponto.
        
Os objectivos deste ensaio são, em primeiro lugar, tentar apresentar
        o essencial da teoria semântica Fregeana e descobrir a motivação para
        a noção de sentido. Também pretendemos isolar as teses distintas
        sobre o sentido que Frege terá mantido. Em segundo lugar, pretendemos
        identificar as críticas à consistência da posição Fregeana.
        Finalmente, podemos ver que noção de sentido pode ser preservada para
        Frege.
        
        
I
         
        
Frege foi o primeiro a propor uma teoria semântica sistemática para
        um fragmento da linguagem, analisando frases singulares e frases
        quantificadas com base na análise de frases singulares. A descoberta da
        noção de sentido não força Frege a rejeitar a sua teoria semântica,
        mas a observar que há aspectos cognitivos relacionados com a linguagem
        que forçam a extensão da teoria semântica original.
        
Uma linguagem tem termos básicos, não analisáveis: termos
        singulares (também designados como expressões referenciais), entre os
        quais se incluem nomes próprios, termos contendo pronomes
        demonstrativos, etc. O valor semântico destes termos consiste em
        introduzir objectos para a linguagem. Termos singulares podem ser usados
        para completar outras expressões, termos predicativos. O valor
        semântico de um termo singular vai assim consistir na introdução de
        um objecto do qual um predicado pode ser afirmado. Uma expressão
        completa simples, constituída por um termo singular e um termo
        predicativo, será uma frase na linguagem. Os valores dos termos
        componentes da frase permitirão determinar o valor da frase. Se o
        objecto designado pelo termo singular satisfaz a propriedade ou conceito
        expresso pelo elemento predicativo da frase, a frase é verdadeira. Caso
        contrário, a frase é falsa. O valor semântico de uma frase é o seu
        valor de verdade: Verdadeiro ou Falso. O valor de verdade de uma frase
        é determinado funcionalmente em virtude dos valores semânticos dos
        elementos componentes na frase. Frege dirá que o valor semântico de um
        termo singular é a sua referência, e também que uma frase completa
        refere o seu valor de verdade.
        
A concepção composicional do valor semântico é simultaneamente
        simples e económica. Diferentes elementos da linguagem são
        classificados em categorias diferentes em função do tipo de valor
        semântico que possuem. O tipo de valor semântico que possuem determina
        de que forma é que podem entrar na composição de expressões mais
        complexas na linguagem.
        
O que motiva, então, a noção de sentido? Frege reconhece que o
        valor cognitivo de uma expressão não pode ser explicado completamente
        por meio do tratamento dos valores semânticos que a teoria reconhece
        às expressões da linguagem. Se esse fosse o caso, frases declarativas
        simples nas quais a mesma propriedade é afirmada do mesmo objecto
        transmitiriam exactamente a mesma informação. O problema do conteúdo
        cognitivo transmitido por meio do uso de termos co-referenciais, nomes
        próprios para o mesmo objecto, revela-se no puzzle sobre afirmações
        de identidade contento nomes co-referenciais:
        
          "a=a e a=b são obviamente afirmações com
          conteúdos cognitivos diferentes; a=a é verdadeira a priori e, de
          acordo com Kant, deve ser classificada como analítica, enquanto que
          afirmações da forma a=b contém muitas vezes extensões importantes
          ao nosso conhecimento, e nem sempre podem ser estabalecidas a prori
          (...) A diferença [entre a=a e a=b] só pode ocorrer se à diferença
          nos sinais corresponder alguma diferença no modo de apresentação da
          coisa designada. (...) É agora natural pensar que existe em relação
          com um símbolo (nome, combinação de palavras, inscrições
          escritas), além daquilo que pode ser chamada a referência do
          símbolo, também aquilo que eu gostaria de chamar o sentido do
          símbolo, no qual o modo de apresentação do objecto está contido
          (...) A referência de "a estrela da tarde" será a mesma
          que a referência de "a estrela da manhã", mas não o
          sentido". (Frege, On Sense and Meaning, in Translations
          from the Philosophical Writings of Gottlob Frege, pp. 56-57).
        
        O facto de nomes co-referenciais diferentes poderem ser usados para
        transmitir informação em asserções de indentidade, e portanto
        expressarem sentidos diferentes, implica que não só não é
        necessário que um utente competente da linguagem e dos nomes saiba que
        ambos os nomes têm a mesma referência, como força a admissão que tal
        utente pode ter atitudes proposicionais diferentes quanto a frases que
        permitem atribuir a mesma propriedade ao mesmo objecto. Uma pessoa pode
        acreditar que a estrela da manhã é um planeta e não acreditar que a
        estrela da tarde é um planeta, por exemplo. Uma pessoa pode assim,
        racional e consistentemente, ter crenças (atitudes) diferentes quanto
        ao mesmo objecto. A noção de sentido permite dar conta das possíveis
        diferenças cognitivas entre expressões co-referenciais, e explicar as
        diferentes atitudes proposicionais que podem ser tomadas em relação a
        frases que são verdadeiras ou falsas em função do mesmo estado de
        coisas no mundo.
        
A concepção que os valores semânticos das expressões componentes
        de frases contribuem funcionalmente para o valor das frases em que
        ocorrem é adaptada à noção de sentido. O sentido de expressões como
        "a estrela da manhã" e "a estrela da tarde"
        contribuem composicionalmente para determinar o sentido de uma frase
        como "a estrela da manhã é um planeta". O sentido expresso
        pela frase, o seu conteúdo, é dito ser o pensamento expresso pela
        frase.
        
          "O pensamento, igualmente, não pode ser
          aquilo que é referido pela frase, mas deve ser considerado como o seu
          sentido. Qual é a relação à referência?(...) Será possível que
          uma frase no seu todo tenha apenas sentido e não tenha referência?
          Seja como for, podemos esperar que tais frases ocorram, tal como há
          partes de frases que têm sentido mas não têm referência. As frases
          que contêm nomes próprios sem referência são frases deste tipo. A
          frase 'Ulisses deu à costa em Ítaca adormecido' tem evidentemente
          sentido. Mas dado que é duvidoso que o nome 'Ulisses' tenha
          referência, também é duvidoso que a frase no seu todo tenha
          referência [i.e. valor de verdade]. Contudo, é certo que seja quem
          for que encare a frase seriamente como sendo verdadeira ou falsa,
          atribuirá ao nome 'Ulisses' um referente, e não só um sentido; pois
          é da referência do nome que o predicado é afirmado ou negado. Quem
          não admite que o nome refira não pode aplicar nem negar o predicado.
          Mas nesse caso seria supérfluo avançar para a referência do nome;
          poderíamos ficar satisfeitos com o sentido, se não quiséssemos ir
          mais longe que a expressão do pensamento (...) apenas o sentido, e
          não a referência, da parte é relevante para o sentido da frase. O
          pensamento é o mesmo quer 'Ulisses' refira ou não (...) O pensamento
          perde valor para nós assim que reconhecemos que a referência de uma
          das suas partes está ausente. Estamos assim justificados em não
          ficarmos satisfeitos apenas com o sentido de uma frase, e em
          procurarmos também a sua referência. (...) Porque não é o
          pensamento suficiente para nós? Porque, e na medida em que, nos
          preocupamos com o seu valor de verdade. É a procura da verdade que
          nos conduz do sentido à coisa significada." (Frege, idem,
          pp. 62-63)
        
        Noutros pontos Frege diz:
        
          "Imaginemos que nos convencemos, ao contrário
          da nossa opinião anterior, que o nome 'Ulisses', tal como aparece na
          Odisseia, afinal de contas designa um homem. Poderia isto querer dizer
          que as frases que contêm 'Ulisses' expressam pensamentos diferentes?
          Eu acho que não. Os pensamentos seriam exactamente os mesmos; seriam
          apenas transferidos do reino da ficção para o reino da verdade.
          Portanto o objecto designado por um nome próprio não é essencial
          para o conteúdo-pensamento de uma frase que o contém. (...) Mas
          podemos inferir imediatamente do que dissemos que algo mais deve ser
          associado com o nome próprio, algo que é diferente do objecto
          designado e que é essencial ao pensamento da frase na qual o nome
          próprio aparece. Eu chamo a isso o sentido do nome." (Frege, Posthumous
          Writings, p.191)
        
        Aparentemente, Frege alarga a visão composicional do significado de
        expressões da linguagem à noção de sentido, e permite que frases
        expressem um pensamento ou conteúdo ao mesmo tempo que falham em ter um
        valor de verdade verdadeiro ou falso. As razões para admitir esta
        possibilidade residem em considerar que os elementos que constituem a
        frase podem ter sentido mesmo que não refiram, em considerar que os
        sentidos das partes compõem o sentido do todo, e finalmente em
        identificar o sentido expresso por uma frase com o pensamento que essa
        frase pode expressar.
        
Noutros locais, Frege esclarece a noção de pensamento de outro
        ângulo. Pensamentos têm de ser expressáveis por meio de frases
        diferentes pronunciadas por pessoas diferentes em ocasiões diferentes.
        Caso contrário, Frege crê, qualquer tarefa científica e lógica é
        inviabilizada. A tarefa da lógica, numa certa concepção da lógica,
        é descobrir as regras do pensamento, as "leis da verdade":
        
          "Todas as ciências têm por objectivo a
          verdade; mas a lógica preocupa-se com a verdade de um modo muito
          diferente: a lógica tem o mesmo tipo de relação com a verdade que a
          física tem com o peso ou com o calor. A descoberta de verdades é a
          tarefa de todas as ciências; à lógica cabe a tarefa de descobrir as
          leis da verdade (...) Das leis da verdade seguem-se prescrições
          sobre asserção, pensamento, juízo, inferência. Deste modo podemos
          também falar de regras de pensamento." (Frege, Thoughts, in
          Logical Investigations, p.1)
        
        Para que o mesmo conteúdo seja expresso por frases diferentes, em
        ocasiões diferentes, os pensamentos não devem ser identificados nem
        com entidades mentais particulares, nem com o significado linguístico
        da frase usada:
        
          "O conteúdo de uma frase muitas vezes
          ultrapassa o pensamento expresso nela, mas o contrário também
          acontece; o fraseado, que pode ser permanente uma vez escrito ou
          gravado, não é suficiente para a expressão do pensamento (...) se
          uma indicação temporal é indicada pelo tempo presente do verbo
          deve--se saber quando a frase foi pronunciada para compreender o
          pensamento correctamente. Portanto o momento da elocução é parte da
          expressão do pensamento. Se alguém quer dizer hoje o que expressou
          ontem usando a palavra 'hoje', deve substituir a palavra por 'ontem'
          (...) em todos estes casos, a formulação da frase, tal como é
          preservada na escrita, não é a expressão completa do pensamento; o
          conhecimento das condições que acompanham a elocução, que são
          usadas como meio de expressão do pensamento, são necessárias para
          expressar o pensamento correctamente." (Frege, op.cit.,
          p.10)
        
        Frege considera que a expressão do mesmo pensamento pode ser feita
        por meio de frases distintas, por exemplo 'Hoje chove' e 'Ontem chovia'.
        Destes, e de outros exemplos, Frege infere que é necessário que os
        pensamentos sejam entidades independentes da linguagem que os expressa e
        da nossa capacidade de os apreender em momentos particulares. A
        existência independente de pensamentos e sentidos para serem
        apreendidos e compreendidos reflecte a preocupação de Frege com a
        explicação e justificação das leis da lógica ou do pensamento.
        Frege crê que se não fosse possível que um mesmo pensamento fosse
        expresso em situações diferentes por frases diferentes, e
        eventualmente mesmo em linguas diferentes, não seria possível conduzir
        qualquer tipo de investigação científica, que a tarefa de argumentar
        não seria possível:
        
          "Se outras pessoas podem assentir ao
          pensamento que eu expresso no teorema de Pitágoras assim como eu
          faço, então esse pensamento não pertence ao conteúdo da minha
          consciência, eu não o possuo; contudo eu posso, mesmo assim,
          reconhecê-lo como verdadeiro. Todavia, se o que é identificado como
          o conteúdo do teorema de Pitágoras por mim e por outra pessoa não
          é exactamente o mesmo conteúdo, não devíamos dizer 'o teorema de
          Pitágoras' mas 'o meu teorema de Pitágoras', 'o seu teorema de
          Pitágoras' (...)Se todos os pensamentos requerem um dono e pertencem
          ao conteúdo da sua consciência, então o pensamento só tem esse
          dono; e assim não há uma ciência comum a muitos na qual muitos
          possam trabalhar (...) Nenhuma contradição entre duas ciências
          seria possível, e seria de facto inútil discutir sobre a verdade.
          (Frege, op.cit., pp.16-17).
        
        A noção de sentido é extendida para além da razão que motivou a
        sua introdução, o reconhecimento da diferença cognitiva entre
        expressões com a mesma referência. A noção de sentido passou a ser
        também vista como uma noção composicional, os sentidos de frases são
        identificados com pensamentos. À noção de pensamento são atribuídas
        certas características: a noção de pensamento está ligada com os
        valores de verdade de frases assim como o sentido de um termo se
        relaciona com a sua referência (sendo o seu modo de apresentação);
        pensamentos dão conta do conteúdo de atitudes proposicionais; ao mesmo
        tempo pensamentos são entidades independentes da linguagem e dos
        conteúdos mentais particulares; a persistência independente de
        pensamentos está intimamente relacionada com a necessidade de
        reconhecer conteúdos que entrem em relações dedutivas. Se não fosse
        possível que o mesmo conteúdo fosse afirmado em frases diferentes, por
        pessoas diferentes, não seria possível que o que duas pessoas pensam
        ou afirmam entrasse em contradição, por exemplo. A lógica é assim
        considerada como o estudo das leis do pensamento ou da verdade. As duas
        noções de pensamento e de verdade estão intimamente ligadas.
        
Em partes dos seus escritos, Frege parece reconhecer que termos
        referênciais podem falhar em referir, e ter sentido, o que, dada a
        teoria da composicionalidade implica que as frases respectivas expressam
        pensamentos, mesmo sem terem valores de verdade. Todavia, noutros
        sítios Frege parece contradizer esta ideia:
        
          "6. O critério para saber se um modo de
          ligação constitui um pensamento é saber se faz sentido perguntar se
          é verdadeiro ou falso (...)
          
9. Uma frase só pode ser verdadeira ou falsa se
          for a expressão de um pensamento. A frase 'Leo Sachse é um homem' é
          a expressão de um pensamento só se 'Leo Sachse' designa alguma
          coisa. E assim também, 'esta mesa é redonda' é a expressão de um
          pensamento só se as palavras 'esta mesa' não são apenas sons vazios
          e designam alguma coisa específica para mim." (Frege, 1906?, 17 Key
          Sentences on Logic, in Posthumous Writings, p. 174)
        
        Frege diz também:
        
          "As regras da lógica pressupõem sempre que
          as palavras que usamos não são vazias, que as nossas frases
          expressam juízos, que não estamos a fazer um mero jogo de palavras.
          Assim para que 'Sachse é um homem' expresse um juízo, a palavra
          'Sachse' deve designar alguma coisa, e nesse caso não preciso de uma
          premissa adicional para inferir 'Existem homens'."
        
        As afirmações de Frege neste ponto parecem contradizer as suas
        afirmações nas secções anteriores nas quais Frege apresentava a
        noção de sentido. Normalmente associa-se com Frege a tese que a posse
        de sentido é independente da posse de referência (e de valor de
        verdade). Mas até que ponto é que o próprio Frege levava esta
        possibilidade seriamente e a defende consistentemente, e em que medida
        é que é consistente para Frege defender que podem haver pensamentos
        sem valores de verdade?
        
        
II
        Há duas linhas de acusação à consistência da tese que Frege
        defende em vários pontos: que a existência de sentido é independente
        da existência de referência. A primeira linha de objecção foi
        apresentada por Gareth Evans (1982, The Varieties of Reference),
        e questiona a consistência interna, dada a teoria semântica que Frege
        adopta, da defesa da tese mencionada. A segunda pode ser derivada de
        argumentos apresentados por Timothy Williamson (1991, Vagueness)
        contra a possibilidade de admitir que há asserções que podem falhar
        em ser verdadeiras ou falsas. A primeira objecção é séria para
        Frege, mas deixa aberta a possibilidade de adoptar uma teoria semântica
        diferente da fregeana. A segunda é mais séria, pois não depende de
        uma teoria semântica particular, mas do reconhecimento da validade de
        alguns princípios de inferência básicos e da adopção de princípios
        que são normalmente reconhecidos como governando a noção de verdade.
        
O que temos a certeza de ser correctamente atribuído a Frege é a
        tese que quando nomes próprios ou termos singulares são vazios, não
        referem, não se pode atribuir qualquer valor de verdade a uma frase
        simples declarativa em que tais nomes ocorrem. A tese controversa é se
        se segue que termos singulares vazios podem ter sentido. Por um lado,
        Frege parece crer que sim, que podem haver termos singulares vazios com
        sentido, tais como 'Ulisses', ou 'O maior número primo'. Se esse é o
        caso, então, dada a tese da composicionalidade do sentido, frases que
        contenham tais termos também têm sentido. Dado, uma vez mais, a
        identificação do sentido de frases com pensamentos, então tais frases
        expressam pensamentos que, dado o resto da teoria no que concerne a
        referência, não são nem verdadeiros nem falsos. Por outro lado, Frege
        afirma que a existência de um pensamento para ser expresso é uma
        condição necessária para que uma frase tenha valor de verdade. Além
        do mais, que o termo sigular na frase refira é uma condição
        necessária para a existência de um pensamento. Logo, segue-se que na
        ausência de referente para o termo singular uma frase não expressa um
        pensamento e portanto não tem valor de verdade. Se Frege encara esta
        tese seriamente, porque razão haveria de (i) atribuir sentidos a termos
        singulares vazios, ou, (ii), sustentar que sentidos são composicionais,
        ou ainda (iii) identificar os sentidos de frases com pensamentos?
        
A noção de sentido é obviamente introduzida para dar conta de
        diferentes modos de pensar sobre um objecto. Evans questiona a clareza
        de admitir que haja um modo de pensar sobre um objecto quando não
        existe nenhum objecto sobre o qual pensar. Isto significa, posto noutros
        termos, que Frege considerou seriamente a possibilidade de admitir que
        haja frases na linguagem com significado, que podem ser usadas para
        transmitir pensamentos, às quais a sua teoria semântica não pode ser
        aplicada, e estava preparado a admitir que partes dessas frases podem
        contribuir sistematicamente para a expressão de pensamentos sem
        possuirem o tipo de valor semântico que na teoria fregeana lhes podem
        ser atribuídos apropriadamente. Evans diz:
        
          "Se encontramos frases que aceitamos serem
          inteligíveis e das quais estamos preparados dizer que não têm valor
          de verdade, então devemos rever a avaliação dos valores semânticos
          apropriados das frases. (...) O semântico não tem à sua
          disponibilidade a possibilidade de dizer 'existe um lapso na minha
          teoria, eis um grupo de frases viáveis que podem ser usadas para
          expressar e transmitir pensamentos, mas às quais a minha teoria não
          se aplica (...) Em vez de dizer isto, o semântico deve voltar atrás
          a alterar a sua teoria, especificamente, as atribuições que são
          apropriadamente encaradas como os valores semânticos das frases"
          (Evans, op.cit, p.23)
        
        Evans vai mais longe e questiona que faça sentido dizer de todo que
        pensamentos podem falhar em ter um valor de verdade. Se se nega o valor
        de verdade verdadeiro a uma frase, seguir-se-á certamente que a frase
        é falsa, e vive-versa. Que sentido poderá fazer acreditar em algo que
        não é verdadeiro nem falso? O que é uma crença que não é correcta
        nem incorrecta?
        
Se, como é patentemente o caso, a teoria semântica de Frege foi
        formulada para permitir a investigação de inferências lógicas, e se
        a teoria só pode desempenhar tal papel se a linguagem para a qual a
        teoria é formulada não contém termos singulares ou referenciais
        vazios, e se ao mesmo tempo, Frege encara seriamente a possibilidade de
        termos singulares poderem permitir a expressão de pensamentos, porque
        razão é que Frege haveria de restringir a sua teoria a linguagens nas
        quais a falha de referência não ocorre? Por outro lado, Frege não
        parece sugerir qualquer forma de enunciar explicitamente o que o sentido
        de uma expressão pode ser, ao passo que é possível enunciar
        claramente aquilo que é a referência e valor semântico de uma
        expressão.
        
O que poderá desencadiar a crença que termos singulares vazios
        podem ter sentido, quando esses sentidos seriam modos de pensar sobre
        objectos não-existentes; quando os sentidos de termos devem dar conta
        do conteúdo cognitivo de uma expressão, e nestes casos, não há nada
        que se possa conhecer acerca de objectos inexistentes? Os exemplos que
        Frege fornece são (na maioria dos casos) nomes próprios ficcionais, ou
        descrições definidas. É sabido que (depois de Russell) as
        descrições definidas podem ser tratadas de forma que faça sentido que
        elas não sejam incluídas na categoria de termos singulares, mas antes
        na categoria de termos quantificacionais. Daí descrições definidas
        podem ser coerentemente tratadas numa teoria semântica, contribuindo
        para o valor semântico de frases que as contenham, quer exista ou não
        um item que satisfaça a descrição. Quanto a termos ficcionais, o
        próprio Frege afirma que eles concernem o "reino da ficção"
        e não o "reino da verdade". Logo, parece que os casos de
        termos singulares vazios não são verdadeiras ameaças para a teoria.
        Por outro lado, se a possibilidade de existência de termos singulares
        vazios com sentido é séria, então, não parece haver razão para
        Frege não alterar a teoria semântica de modo a acomodar uma lógica
        livre, a atribuir o valor de verdade falso a frases que contenham termos
        singulares vazios, ou a adoptar uma lógica trivalente. Em qualquer
        caso, Frege parece não estar justificado em manter simultaneamente a
        teoria para os valores semânticos de uma linguagem que mantem e em
        admitir que há termos singulares vazios que expressam sentidos, e que
        permitem a expressão de pensamentos. O próprio Frege não parecia
        sentir-se muito confortável com a admissão que pensamentos expressos
        por meio do uso de termos vazios são pensamentos genuínos, remetendo
        tais pensamentos para o domínio da ficção, chamando-lhes pensamentos
        ilusórios por vezes:
        
          "Mas o sentido da frase 'Guilherme Tell
          disparou contra uma maçã que estava na cabeça do seu filho' não é
          mais verdadeiro que aquele da frase 'Guilherme Tell não disparou
          contra uma maçã que estava na cabeça do seu filho'. Não digo que o
          sentido seja falso, caracterizo-o antes como fictício." (Frege,
          Posthumous Writings, p. 175).
        
        O perigo de inconsistência é, parece, mais sério, se levarmos em
        consideração argumentos à la Williamson (ver por exemplo op.cit.,
        pp. 187-189). Se se assumir que uma frase 'a é P' expressa um
        pensamento, então podemos fazer asserções que a é P, onde 'a' é um
        termo singular vazio. O princípio de bivalência (na formulação do
        princípio proposta por Williamson) diz que se a elocução de uma frase
        S numa ocasião diz que a é P, então S é verdadeira ou falsa. Além
        do mais, S é verdadeira só e só se a é P, e S é falsa se e só se
        não é o caso que a é P. Mas S não é verdadeira (por hipótese, dado
        que 'a' não refere). Logo, não é o caso que a é P. Mas, também, S
        não é uma frase falsa. Logo, não é o caso que a não seja P. Mas
        isto é uma contradição evidente. Ambas as consequências não podem
        simultaneamente obter. Portanto, uma das premissas deve ser rejeitada.
        Qual delas é que Frege deveria rejeitar?A hipótese de que o princípio
        de bivalência é válido não seria rejeitada, dado que a lógica de
        base que Frege adopta na sua teoria semântica é clássica. Os
        restantes princípios acerca da verdade e falsidade usados não parecem
        ser questionáveis para Frege. Logo, o que se pode questionar é que uma
        frase que contenha um termo singular vazio possa ser usada para
        expressar pensamentos, para fazer asserções. A rejeição desta
        hipótese pode ser reforçada pelas afirmações que Frege faz em
        diferentes momentos, algumas das quais mencionadas acima, que levantam
        dúvidas em relação à plausibilidade de encarar seriamente o
        (possível) sentido expresso por frases com termos singulares vazios. De
        facto, como pode uma frase dizer que a é P, se a não existe e não é
        possível avaliar se a se encontra ou não na extensão de P?
        
        
III
        Parece evidente que asserções de indentidade como 'a=a' e 'a=b'
        podem conter conteúdos informativos distintos. A noção de sentido é,
        antes de mais, introduzida para explicar tal diferença cognitiva.
        Assim, alguém pode acreditar que a é P, e duvidar que b é P, mesmo
        quando a = b, sem risco de incoerência. Portanto as duas frases podem
        ser vistas como expressando conteúdos diferentes. Não será tão
        fácil de explicar em que consiste tal diferença cognitiva, isto é, o
        que é que alguém sabe ao saber que a é P, e não sabe ao ignorar que
        b é P. Por outras palavras, não é muito fácil explicar o que são
        sentidos, nem explicar qual o sentido que 'a' expressa e qual o sentido
        que 'b' expressa. Pode-se elucidar o que será o sentido de um nome ao
        dizer que consiste num modo particular de pensar sobre um objecto, que o
        sentido é o modo de apresentação do objecto. Esta elucidação
        metafórica não nos leva muito mais longe, pois não sabemos
        exactamente o que é um modo de pensar sobre um objecto, ou um modo de
        ser apresentado a um objecto. Como a explicação da diferença entre os
        sentidos de dois termos diferentes não é facilmente encontrável, para
        lá de permitir dizer que é em virtude dos sentidos que se pode
        explicar que uma pessoa possa consistente e racionalmente ter atitudes
        diferentes em relação a um só objecto, não parece ser fácil
        explicar o que é que o sentido de um nome fornece para a composição
        do sentido de uma frase, nem como tal composição de um sentido mais
        complexo deve ser feita. Isto está em claro contraste com a relativa
        facilidade com que a referência de um nome pode ser tratada de modo a
        entrar na determinação funcional do valor semântico -- valor de
        verdade -- de uma frase contendo o nome.
        
Parece ser em virtude de compreendermos algo diferente numa frase e
        noutra, que dizemos que duas frases têm sentidos diferentes, e de
        parecer que compreendemos algo com frases que contêm nomes vazios, que
        poderíamos ser levados a dizer que tal compreensão se deve fundar na
        existência de sentidos para nomes vazios. Como parece ser possível
        compreender frases contendo nomes vazios, e como parece que nomes vazios
        têm sentidos, dada também a suposição da composicionalidade dos
        sentidos, parece seguir-se que frases com nomes vazios expressam
        sentidos, neste caso pensamentos.
        
A admissão desta possibilidade tem resultados dificilmente
        compatibilizados com aquilo que Frege espera da noção de pensamento, e
        da relação entre pensamentos e a investigação de inferências
        lógicas. A noção de pensamento é elucidada em diferentes pontos por
        Frege como estando intimamente ligada à noção de verdade. A adopção
        de uma lógica clássica e da teoria semântica Fregeana tem resultados
        inconsistentes com a suposição que nomes vazios têm sentido.
        Portanto, ou a suposição é abandonada, ou a teoria é revista.
        Parecem haver mais razões para manter a teoria que para manter a
        suposição. Os argumentos que levam à introdução da noção de
        sentido não parecem ser suficientemente fortes para forçar a revisão
        da teoria. Por outro lado a teoria semântica de Frege é sistemática,
        económica e simples para, pelo menos, um fragmento da linguagem.
        Portanto, a não ser que se apresentem argumentos mais fortes para
        reconhecer sentidos a nomes vazios, parece que não há necessidade de
        admitir (antes pelo contrário) que pode existir sentido na ausência de
        referência. Uma outra alternativa seria questionar a teoria da
        composicionalidade do sentido, e que da existência de sentido para
        termos singulares se segue que frases que os contenham expressem
        pensamentos. Se for possível argumentar persuasivamente para o
        reconhecimento de sentido para termos singulares vazios, e para a
        expressão de pensamentos por meio do uso de tais nomes, então a teoria
        deveria ser revista para não permitir a existência de pensamentos sem
        valor de verdade. Pelo menos, desde que o princípio de bivalência seja
        válido. Para responder à questão original: que sentido podia Frege
        ver na ausência de valores de verdade?, coerentemente, pouco.
        
Teresa Marques
        mtm1@st-and.ac.uk
        
Bibliografia:
        
Dummett, M., [1973]/[1981], Frege: Philosophy of Language, 2nd
        edition, Duckworth, London.
        Evans, G. [1982], The Varieties of Reference, ed. J. McDowell, Clarendon
        Press, Oxford.
        Frege, Translations From the Philosophical Writings of Gottlob Frege,
        ed. P. Geach & M. Black, 3rd Edition, Blackwell, Oxford.
        Frege [1892], On Sense and Meaning, in Translations From the
        Philosophical Writings of Gottlob Frege, ed. P. Geach & M. Black,
        3rd Edition, Blackwell, Oxford.
        Frege, Posthumous Writings, Blackwell, Oxford.
        Frege, Logical Investigations, Blackwell, Oxford.
        Williamson, [1991], Vagueness, Routledge, London and NY.