David Hume é tradicionalmente classificado como uma filósofo
céptico e até mesmo irracionalista. Mas, o que significa ser um
céptico? Neste ensaio vou tentar clarificar em que sentido é que Hume
pode ser considerado um céptico e que tipo de cepticismo lhe
pode ser coerentemente atribuído.
O ensaio está dividido em três partes. Na primeira parte começarei
por caracterizar o cepticismo radical, que é a versão tradicional do
cepticismo. Defenderei que este tipo de cepticismo, sendo auto-refutante
e abstracto, não podia ser o defendido por Hume. Caracterizarei em
seguida o cepticismo epistemológico, diferente do cepticismo radical
(uma espécie de falibilismo). Defenderei que Hume é partidário de um
cepticismo epistemológico moderado.
Na segunda parte tentarei caracterizar aquilo que se costuma chamar
"o lado construtivo da filosofia de Hume". Perante o dilema
(ou pseudo-dilema) céptico, ou seja, perante a não fundamentação
dedutiva do nosso conhecimento comum, Hume propõe o hábito como
sendo simultaneamente a origem e a explicação das crenças humanas
básicas. Esta solução, também chamada de "solução
céptica", pode ser utilizada por quem queira defender a
interpretação irracionalista da filosofia de Hume. No entanto, esta
defesa só poderá ser considerada se o hábito for tomado como
um propensão subjectiva mais ou menos irregular, o que não é o caso
na filosofia de Hume. Para sublinhar o carácter não subjectivo e
universal do hábito apresentarei a definição que Hume dá do hábito
como instinto e introduzirei a ideia de "sabedoria da
natureza" como estando na origem dessa propensão universal.
Na terceira parte, tentarei mostrar como a ideia de um Hume céptico
é incompatível com a ideia de um Hume anti-metafísico (má
metafísica); como o temperamento científico de Hume dá indicação de
que ele não é um céptico no sentido forte; e como o cepticismo não
é um resultado da filosofia de Hume mas apenas um instrumento ao
serviço tanto da vida comum como das novas ciências da natureza. Para
mostrar isto será também necessário clarificar o conceito(s) de
razão implícitos nesta discussão e descartar definitivamente a
hipótese irracionalista.
I
O cepticismo radical é uma posição filosófica impossível de ser
sustentada por duas razões. Por um lado, é auto-refutante porque
qualquer versão dele que tentemos formular utiliza necessariamente
processos racionais, processos esses que estão a ser postos em causa
pelo próprio argumento. Esta ideia já pode ser encontrada no Enquiry
quando Hume diz:
"Pode parecer uma tentativa muito estranha dos
cépticos destruir a razão por meio dos argumentos e do
raciocínio: no entanto é este o grande escopo de todas as suas
inquirições e disputas" (E, XII, II, 124). (1)
Por outro lado, o cepticismo radical é uma posição que não pode
ser adoptada por ninguém, pois, perante qualquer proposta céptica
deste tipo, somos ainda obrigados a continuar a pensar. Por outras
palavras, a única maneira de convencer as pessoas da validade de uma
proposta deste tipo é dizer-lhes que pensem nela e, ao pensarem nela,
estão inevitavelmente a nega-la. David Hume usa também um argumento
deste género contra o cepticismo radical. Por exemplo, Hume ao
comparar as propostas de um copernicano ou de um ptolemaico às
propostas de um céptico diz o seguinte:
"Um copernicano ou um ptolemaico, cada qual
apoiando o seu diferente sistema de astronomia, podem esperar
suscitar uma convicção, que permanecerá constante e duradoura, no
seu auditório. (…) Mas um pirrónico não pode esperar que a sua
filosofia venha a ter uma influência constante e duradoira, no seu
auditório" (E, XII, II, §128).
Hume vai ainda mais longe e defende que as propostas do céptico,
se fossem levadas a sério, teriam como consequência inevitável o
desaparecimento de toda a humanidade:
"… toda a vida humana teria de perecer,
se os seus princípios prevalecessem de maneira universal e
permanente. Cessaria imediatamente todo o discurso e toda a
acção; os homens ficariam numa total letargia, até que as
necessidades da natureza, insatisfeitas, ponham fim à sua
miserável existência" (E, XII, II, § 128).
Hume mostra, através destes dois argumentos, que o cepticismo totalmente
impossível, pois se, por um lado, ele não pode ser avaliado
sem se utilizarem os princípios que ele próprio põe em causa,
por outro lado, ele nem sequer pode ser aceite, como que numa
profissão de fé, pois isso levaria à extinção da espécie
humana.
Assim sendo, parece óbvio que Hume não defendia (nem podia
defender) um cepticismo radical. No entanto, isto não significa
que Hume não defendesse nenhum tipo de cepticismo. Hume pode ser
visto como defendendo um cepticismo epistemológico
semelhante ao que hoje se costuma chamar de falibilismo. O
cepticismo epistemológico questiona a eficácia da nossa
capacidade para conhecer o mundo objectivamente, põe em causa a
eficiência das nossas faculdades. Este tipo de cepticismo, ao
contrário do cepticismo radical, pode ser coerentemente
sustentado. Mas mesmo aqui podemos traçar vários graus de
cepticismo epistemológico. Numa versão mais forte, a
falibilidade das nossas faculdades é vista como inerente à
condição humana e, como tal, inultrapassável. Numa versão mais
fraca, a falibilidade é vista como apenas uma característica
secundária das nossas capacidades cognitivas, que pode ser
limitada se utilizarmos métodos adequados. O falibilismo
de Hume parece seguir claramente a versão mais fraca de
cepticismo epistemológico. Nas próximas secções espero tornar
esta afirmação evidente.
II
Hume é por alguns considerado um céptico no sentido forte e
um irracionalista por duas razões. Em primeiro lugar, ele usa de
facto argumentos cépticos fortes na sua filosofia. Em segundo
lugar, a solução que ele propõe perante esses argumentos
cépticos parece, à primeira vista, ser irracionalista. Vejamos
então como funcionam os argumentos cépticos no Enquiry e
quais são as soluções propostas por Hume.
A ideia fundamental é a de que muitas das nossas crenças não
têm uma justificação racional (o que significa para Hume aqui,
não têm demonstração). Usando o exemplo mais conhecido (e para
economia de metáforas):
"Que o sol não se há-de levantar
amanhã, não é uma proposição menos inteligível e não
implica maior contradição do que a afirmação de que ele
se levantará. Por conseguinte, em vão tentaríamos mostrar
a sua falsidade. Se fosse demonstrativamente falsa, implicaria
contradição" (E, IV, I, §21).
Este exemplo pretende ilustrar como o nosso conhecimento acerca
das questões de facto (o sol a nascer é uma questão de
facto) se baseia exclusivamente na experiência.
Assim sendo, não é possível refutar uma afirmação acerca de
uma questão de facto recorrendo apenas à razão (o que
significa aqui, por demonstração). O conhecimento acerca do
mundo empírico tem de se basear na experiência e é nesse
sentido que ele não se fundamenta "no raciocínio ou em
qualquer processo do entendimento" (E, IV, II, §28).
A tese de Hume é assim a de que as nossas crenças acerca do
mundo empírico não são justificáveis através da razão (não
são demonstráveis).
Hume mostra assim que as nossas crenças acerca do mundo
empírico não são fundamentadas na razão (não podem ser
demonstradas). No entanto, o facto interessante sublinhado por
Hume é o de que nós temos de facto crenças acerca do mundo
empírico. A pergunta que se segue é então: se essas
crenças não têm origem na razão (não podem ser demonstradas),
em que é que se baseiam? É ao tentar responder a esta pergunta
que surge o dito "lado construtivo" da filosofia de
David Hume. É-nos então sugerido que essas crenças comuns não
têm origem na razão (faculdade pura que constrói
demonstrações), mas sim na imaginação (faculdade que
usa informação empírica nas suas construções). Este é o
primeiro passo da "solução céptica".
A faculdade da imaginação pode ter duas funções
essencialmente diferentes. Por um lado, ela pode dar origem a
actividades fortuitas. Este é o caso da construção das crenças
não básicas que dão origem a princípios mutáveis e
irregulares. Por outro lado, a imaginação pode dar origem
a crenças básicas e universais. Neste caso a
imaginação, através do hábito ou costume está
na origem destas crenças e cria propensões que não são
subjectivas e particulares, mas sim objectivas e universais
(comuns à espécie e essenciais à sobrevivência).
Por outras palavras a solução céptica consiste em apresentar
a faculdade da imaginação, e não a da razão, como origem
dessas crenças básicas. A faculdade da imaginação
através do hábito, que também é chamado de instinto,
é definida como uma certa propensão para formar ideias e
crenças. A imaginação produz dois tipos de princípios:
"princípios permanentemente irresistíveis e
universais" e princípios "mutáveis, fracos e
irregulares". Os primeiros regulam as crenças comuns
básicas e é ao reconhecer isto que encontramos a solução
céptica (2). Assim, podemos concluir sem
hesitação que os argumentos negativos de Hume não são
apresentados ao serviço de uma conclusão puramente céptica, mas
antes como preliminares necessários a uma explicação quase
científica da origem da crença (3).
Nos parágrafos §44-45 (E, V, II) Hume apresenta o hábito
como um instinto implantado em nós pela "sabedoria da
natureza", instinto esse que é em parte responsável pela
sobrevivência dos homens. Segundo esta ideia seria a própria
natureza que nos possibilita a previsão das suas próprias
regularidades. Nesta medida existiria uma espécie de
"harmonia pré-estabelecida entre o curso da natureza e a
sucessão das nossas ideias" (E, XII, II, §44)
permitindo que o homem aja eficazmente, mesmo desconhecendo a
"razão" das suas acções:
"Assim como a natureza nos ensinou o uso
dos membros, sem nos dar o conhecimento dos músculos e dos
nervos, pelos quais eles são actuados, do mesmo modo implantou
em nós um instinto (instint), que impele o pensamento
numa marcha correspondente à que ela estabeleceu entre os
objectos externos, embora ignoremos os poderes e as forças de
que dependem totalmente o curso e a sucessão regulares dos
objectos." (E, V, II, §45)
Neste contexto pode ser feita uma analogia entre as ideias de
Hume e as ideias de Darwin (4). A introdução do
hábito como um instinto essencial à sobrevivência da
espécie humana pode ser considerada uma explicação compativel
com a ideia de selecção natural (5). Muito
embora a comparação entre Hume e Darwin deva ser limitada pelo
facto de em Hume não haver nenhuma ideia de evolução(6)
, podemos ainda assim defender que o tipo de explicação proposta
por Hume pode partilhar do estatuto científico que é normalmente
atribuído às ideias de Darwin, podendo assim a proposta de Hume
ser considerada como uma teoria científica, ainda que uma teoria
científica rudimentar (tal como ele desejava que fosse).
Podemos então concluir que a introdução da ideia de hábito
ou costume na explicação das nossas crenças básicas
não implica nenhum tipo de cepticismo ou irracionalismo. Isto só
aconteceria se o hábito estivesse na origem das nossas
crenças básicas e, mesmo assim, elas fossem arbitrárias, o que,
como já vimos, não é o caso. O hábito fundamenta
crenças básicas, universais, essenciais para a sobrevivência da
espécie. A hipótese do hábito pode além disso
candidatar-se ao estatuto de hipótese científica (explicativa),
quanto mais não seja pela analogia entre ela e a ideia de
selecção natural darwiniana.
III
A concepção de Hume como um céptico num sentido forte está
em contradição com outras atitudes fundamentais da sua
filosofia. De facto, o "temperamento científico" de
Hume mostra como a sua filosofia não pode ser considerada como
irracionalista ou relativista (no sentido dado hoje a estes
termos). No ensaio The Sceptic, Hume discute a diferença
entre moral e ciência e caracteriza assim as teorias científicas
utilizando de novo o exemplo da disputa entre copernicanos e
ptolomaicos:
"Se eu examinar os sistemas COPERNICANO
e PTOLOMAICO, pretendo, com as minhas investigações, conhecer
a situação real dos planetas; ou seja, por outras palavras,
pretendo dar-lhes, na minha concepção, as mesmas relações
que eles têm entre eles no céu. Para esta operação da mente
parece muitas vezes existir um standard real na natureza das
coisas, embora ele seja frequentemente desconhecido; nem a
verdade ou a falsidade são variáveis pelas várias apreensões
da humanidade. Embora seja possível que toda a humanidade
conclua que o sol se move e a terra permanece em repouso, mesmo
assim, o sol não se move nem um milímetro, sejam quais forem
os raciocínios dos homens e tais conclusões são para sempre
falsas e erradas". (7)
Neste texto está absolutamente claro que Hume, embora admita
que a verdadeira natureza das coisas seja frequentemente
desconhecida, não vê nenhuma impossibilidade de princípio no
conhecimento dessa mesma natureza. Para além disso, a verdade
ou falsidade das teorias científicas é vista como
completamente independente das opiniões dos homens. Assim, a
concepção de um Hume irracionalista ou mesmo relativista no
sentido contemporâneo parece ser incompatível com a ideia de o
Hume de "temperamento científico" que se manifesta
nesta passagem.
Para além da confiança nas novas ciências da natureza e do
facto de Hume propor ele próprio hipóteses explicativas do
comportamento quasi cientificas, existe ainda uma outra
característica da filosofia de Hume incompatível com a defesa
do cepticismo. Essa característica é a sua posição
anti-metafísica. A estratégia anti-metafísica de Hume exclui
de uma forma definitiva qualquer possibilidade de defesa de um
cepticismo forte pois este tipo de cepticismo é sempre
apresentado através de argumentos abstractos ou metafísicos
que, como já vimos, são inadequados no tratamento das questões
de facto.
Assim, tanto o "temperamento científico" de Hume
como a sua posição "anti-metafísica" indicam que a
sua filosofia não deve ser considerada como uma filosofia
céptica no sentido forte. Mas existe ainda a possibilidade de
defesa de um cepticismo epistemológico fraco, um falibilismo
fraco, um cepticismo regrado ou mitigado. Este tipo de
cepticismo é adoptado por Hume como uma estratégia
metodológica que pode ser útil em vários níveis. O
cepticismo mitigado parece exercer para Hume pelo menos duas
funções, uma ao nível filosófico e outra ao nível da
"vida comum". Ao nível da vida comum, das opiniões
comuns dos homens, o cepticismo mitigado parece poder ter um
papel importante na medida em que os homens são naturalmente
dogmáticos, fixistas e precipitados nas suas opiniões, e esta
é a causa dos muitos erros que cometem:
"Os homens, na sua maioria, são
naturalmente inclinados a ser afirmativos e dogmáticos nas
suas opiniões; ao verem os objectos apenas de um lado e sem
terem nenhuma ideia de qualquer argumento que sirva de
contrapeso, atiram-se precipitadamente aos princípios para
que se sentem inclinados, e são sem indulgência para com os
que alimentam sentimentos contrários" (E, XII,
III,§129).
Assim, ao nível da vida comum o cepticismo mitigado tem um
papel muito importante, principalmente do ponto de vista
social (enquanto que o cepticismo radical não pode ter
nenhuma influência benéfica para a sociedade – E,
XII, II, §128).
Ao nível filosófico o cepticismo mitigado tem um papel
fundamental na luta contra o dogma e a metafísica irregrada
(má metafísica, ou metafísica não disciplinada, como se
diz nos dias de hoje). O dogmatismo e a arrogância estão
sempre na origem da má metafísica: "O Cavaleiro
andante, que ia à aventura para limpar o mundo dos dragões e
gigantes, nunca alimentou a menor dúvida em relação à
existência desses monstros" (XII, I, 116). O cepticismo
pode regrar os impulsos metafísicos: "limitando as
nossas inquirições a objectos tais que se ajustem
optimamente à estreita capacidade do entendimento
humano" (XII, III, §130). Ou seja, o cepticismo
epistemológico acerca do entendimento humano deve ser usado
como forma de melhorar a nossa metodologia na construção do
nosso conhecimento.
O cepticismo mitigado parece assim ter a uma função principalmente
pedagógica: "Em geral, há um grau de dúvida, de
prudência e de modéstia que, em todos os géneros de
escrutínio e de decisão, deve para sempre acompanhar um
exacto argumentador" (XII, III, §129). O dito cepticismo
mitigado tem a sua função pedagógica na vida comum,
obrigando os homens a ponderar as suas posições e a regrar
as suas inclinações dogmáticas.
A concepção de Hume como um céptico no sentido forte
deve assim ser decididamente descartada. No entanto, ainda é
necessário dizer algo mais sobre a concepção de Hume como
sendo um irracionalista. Para compreender em que sentido é
que Hume pode ser classificado como irracionalista é
necessário analisar o que Hume entende por "razão"
no contexto dos argumentos ditos cépticos. A razão que Hume
rejeita aqui é a razão dos raciocínios abstractos que
congemina deduções com conclusões inaceitáveis para o
senso comum (sendo o cepticismo só uma dessas conclusões).
Um dos exemplos propostos por Hume é o da doutrina da
infinita divisibilidade da extensão. Hume diz a este
respeito: "Mas, o que torna a questão mais
extraordinária é que estas opiniões aparentemente absurdas
são apoiadas por uma claríssima e muito natural cadeia de
raciocínio e não nos é possível aceitar as premissas sem
admitir as consequências" (E, XII, II, 124). Este
é, para Hume, mais um caso em que a razão esquece os seus
limites e se lança em deduções abstractas com resultados
contra-intuitivos. Outro caso é o do cepticismo forte. A
ideia de Hume é então a de que chegamos ao cepticismo
utilizando processos de raciocínio abstractos que são
erradamente importados da "ciência da quantidade e do
número" e que só fazem sentido nesse domínio:
"Parece-me que os únicos objectos da ciência abstracta
ou da demonstração são a quantidade e o número, e que
todas as tentativas para estender esta espécie mais perfeita
do conhecimento além de tais limites são simples sofisma e
ilusão" (E, XII, III, §131). Assim, as
conclusões cépticas são atingidas através da utilização
de métodos dedutivos que não são adequados para falar
acerca de questões de facto.
Mas esta concepção de "razão" enquanto
capacidade abstracta na construção de demonstrações
formais é completamente diferente da implicada no termo
"irracionalismo". A acusação de irracionalista só
poderia ser correctamente atribuída à filosofia de Hume se
ela dissesse algo do tipo "Hume é irracionalista porque
pensa que as teses das ciências não são passíveis de
demonstração" ou seja, "Hume é irracionalista
porque pensa que os raciocínios acerca das questões de facto
não podem ser provados através de raciocínios
abstractos". É só neste sentido que a acusação de
irracionalista pode ser compreendida. De facto, Hume defende
que os raciocínios abstractos não são utilizáveis na nossa
análise das questões de facto. No entanto o tipo de
razão que Hume pensa não poder ser usada na análise das questões
de facto é um tipo de razão muito específico. Na
análise das questões de facto não podemos usar
raciocínios abstractos demonstrativos: "Todas as
restantes inquirições dizem respeito apenas à questão de
facto e à existência; e estas são evidentemente incapazes
de demonstração. Tudo o que é pode não ser.
Nenhuma negação de um facto pode implicar
contradição" (E, XII, III, §132). Mas, do
facto de as novas ciências da natureza não serem capazes de
produzir "demonstrações" não se segue que
qualquer tarefa empírica esteja dotada ao fracasso. As
ciências não ficam numa situação pior depois de se darem
conta do seu estatuto, antes resguardam-se contra os excessos
metafísicos e procuram na experiência um guia mais adequado
aos seus intuitos: "Só a experiência é que nos
ensina a natureza e os limites da causa e do efeito e nos
capacita para inferirmos a existência de um objecto a partir
do outro" (XII, III, §132).
No fim da secção XII Hume faz uma classificação dos
dois tipos de raciocínios. A esses raciocínios ele chama de
"raciocínios morais" (E, XII, III, §132)
por oposição aos "raciocínios demonstrativos" que
já vimos não terem um papel credível nas ciências não
demonstrativas. Hume divide então os raciocínios morais em
raciocínios que dizem respeito a factos particulares e
raciocínios que dizem respeito a factos gerais. Na área dos
raciocínios morais que dizem respeito a factos particulares
encontramos, para além de todas as deliberações que dizem
respeito à vida comum, também a história, a cronologia, a
geografia e a astronomia. Na área dos raciocínios morais que
dizem respeito a factos gerais encontramos a filosofia
natural, a física, a química, "onde se investigam as
qualidades, causas e efeitos de uma espécie inteira de
objectos" (XII, III, §132). A argumentação abstracta
não deve ser usada em nenhum destes raciocínios. A razão
abstracta só deve ser usada nos raciocínios acerca de
quantidade e de número. Em suma, podemos reintrepertar o
paragrafo final do Enquiry incluindo o cepticismo forte
na categoria de "sofisma e ilusão":
"Ao passarmos os olhos pelas
bibliotecas, persuadidos destes princípios, que
devastação devemos fazer? Se pegarmos num volume de
teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo,
perguntemos: Contém ele algum raciocínio acerca da
quantidade ou do número? Não. Contém ele algum
raciocínio experimental relativo à questão de facto e à
existência? Não. Lançai-o às chamas, porque só pode
conter sofisma e ilusão." (E, XII, III,§132)
Sara Bizarro
sarabizarro@yahoo.com
Bibliografia:
- Hume, David, Enquiry Concerning Human Understanding,
L. A. Selby-Bigge, Third Edition, Clarendon Press,
Oxford, 1975; tradução portuguesa: Investigação
sobre o Entendimento Humano, trad. De Artur Morão,
Edicções 70, 1989
- Hume, David, "The Sceptic" in David Hume
Essays, Moral, Political and Literary, ed. Eugene F.
Miller, Liberty Classics, Indianapolis, 1985, pp.
159-180
- Hume, David, A Treatise of Human Nature, L.A.
Selby-Bigge, Second Edition, Clarendon Press, Oxford,
1978
- Hume, David, Dialogues Concerning Natural Religion,
ed. By Richard H. Popkin, Hackett Publishing Company,
Indianapolis, Cambridge, 1980
- Biro, John, "Hume's new science of the mind"
in The Cambridge Companion to Hume, ed. David
Fate Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 33-63
- Fogelin, Robert J., "Hume's Scepticism" in
The Cambridge Companion to Hume, ed. David Fate
Norton, Cambridge University Press, 1993, pp. 90-116
- John W. Danford, David Hume and the Problem of
Reason, Yale University
- Monteiro, João Paulo, Hume e a Epistemologia,
Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1984
Notas:
(1)Nas referências ao Enquiry
Concerning Human Understanding referir-me-ei com um E
ao livro, seguindo-se o número da secção, o número da
parte da secção e o respectivo parágrafo.
(2) Ver Biro, John, "Hume's new
science of the mind" in The Cambridge Companion to
Hume, ed. David Fate Norton, Cambridge University Press,
1993, p. 42
(3)