AP - O que é a Inteligência Artificial?
LMP - É uma disciplina científica muito ligada à Informática,
nascendo com a Informática, mas estendendo-se também às Ciências
Cognitivas. Portanto à Filosofia, à Linguística, à Neurologia, à
Antropologia, e que penso de futuro vai estar cada vez mais ligada a
essas áreas e não apenas à Informática. Como disciplina científica
visa estudar a inteligência. A inteligência num sentido lato, quer
dizer, não só o colher informação como o processar essa
informação, "pensar", e como agir em resultado desse
processamento. Muitas vezes julga-se que a Inteligência Artificial quer
imitar o que o homem faz, mas isso não é verdade. O Homem é uma das
maneiras de ser inteligente. Sei lá, os chimpanzés são inteligentes,
os seres extraterrestres hão-de ser inteligentes, e portanto o que a
Inteligência Artificial quer estudar é as propriedades da
inteligência, quer seja no Homem, no extraterrestre, no animal, ou no
robô. E portanto não há um desejo de imitar exactamente o que o Homem
faz. O Homem tem certas limitações: por exemplo não consegue fazer
rapidamente grandes cálculos como um computador faz. Mas faz outras
coisas que o computador não faz. Por outro lado, o Homem erra quando
pensa e nós, quando fazemos um computador para ser inteligente, não
queremos que o computador erre. Logo aí não estamos necessariamente a
querer imitar o Homem exactamente no seu uso da inteligência. Também a
inteligência é distribuída, quer dizer, a inteligência não está
apenas numa pessoa mas está por exemplo num conjunto de pessoas, numa
equipa, numa equipa de engenheiros, por exemplo. Portanto a
inteligência é uma propriedade distribuída. Também aí não estamos
apenas a imitar, ou a querer imitar a inteligência de um homem mas
também queremos estudar formas de inteligência, mesmo que ela esteja
distribuída por diversos computadores, ou diversos seres ou até uma
mistura de computador e Homem, ou de robô e Homem. Aliás não há uma
oposição entre Homem e robô, quer dizer, o Homem evolui com os
computadores e os computadores evoluem com o Homem. Os computadores
estão adaptados ao Homem e o Homem também se adapta aos computadores.
E portanto o que há é uma simbiose, afinal de contas, em que
justamente não fazia muito sentido imitar o Homem pois se o Homem faz
bem aquilo que faz, qual era o interesse de estar a imitá-lo? Interessa
é um computador fazer aquilo que complementa o que o Homem faz.
AP - No fundo é potenciar, ou seja, além do que o Homem faz,
conseguir fazer mais do que aquilo que o Homem faz.
LMP - Conseguir fazer mais mas pode ser com a ajuda do Homem, quer
dizer pode ser uma equipa a dois, Homem e computador, e a equipa é que
vai mais longe do que qualquer das duas partes.
AP - Aliás, isso até era uma questão que queria pôr. É que na
base de uma máquina inteligente ou que tem inteligência artificial
existirá sempre um Homem também inteligente que programou a máquina
para isso ou que conseguiu criar essa máquina. Uma coisa está
dependente da outra. Certo?
LMP - Exacto. É claro, quando se cria, quando se cria uma criatura
digamos assim, nunca se sabe muito bem o que é que ela vai fazer. É o
caso do Frankenstein, aquele romance do século passado, da Mary
Shelley, que a gente conhece dos filmes. Quando o criador cria uma
criatura, por vezes a criatura adquire uma liberdade própria. E também
nós não poderemos pensar que o computador está constantemente
dependente de nós. Como uma criança, que nos primeiros anos está
dependente de nós, mas depois torna-se independente. O que faz com que
nós não estejamos constantemente a ter que ajudar a criança. Portanto
com os computadores também se pretende dar-lhes as capacidades de forma
a eles se tornarem cada vez mais independentes, independentes de nós,
não quer dizer que não estejam em colaboração connosco. Não
precisam é de uma ajuda constante. Mas também é verdade que o que
nós pomos no computador, actualmente, é essencialmente programado na
totalidade por seres humanos, e nessa medida as limitações do
computador são as nossas limitações. Se o computador não faz isto ou
aquilo é porque nós não sabemos dizer-lhe como fazer. Não tanto que
por princípio ele esteja limitado à partida.
AP - Mas vocês podem programar o computador de modo a que ele
consiga aprender com a experiência?
LMP - Exactamente, sim isso hoje em dia é vulgar. Os computadores
aprendem, como aqueles computadores que jogam xadrez. Vão aprendendo,
vão-se tornando melhores à medida que jogam.
AP - Aliás, um dos exemplos que quase todas as pessoas falam é do
Deep Blue, um computador que joga xadrez. É um exemplo não sei se
extremo, mas um exemplo muito utilizado sobre inteligência artificial,
não é?
LMP - Sim, é um bom exemplo. Quando a inteligência artificial
começou a ser estudada, logo no princípio dos anos 50 - o primeiro
computador aparece em 48 - um dos grandes cientistas na origem do
computador, o inglês Alan Turing, interessava-se por pôr o computador
a jogar xadrez. Ele achava que o xadrez, sendo bastante complicado, no
entanto estaria ao alcance dos computadores. Mas demorou-se 30 e tal
anos para se conseguir os níveis dos humanos. Houve de facto um
esforço continuado de investigação em inteligência artificial nesse
domínio, e foi um grande sucesso ter-se atingido esse objectivo.
AP - E parece que já naquele famoso duelo entre o computador e o
Kasparov houve uma segunda partida em que de facto o computador ganhou,
ganhou ao Homem...
LMP - Sim, o computador ganhou o torneio. Foram várias partidas.
AP - Até o Kasparov disse que achava que não tinha recuperado
psicologicamente duma partida que perdeu, e que acabou por ser batido
pelo computador no torneio. Ou seja, provou-se de facto que os
computadores conseguem ser melhores do que o Homem, até porque não
acusam cansaço psicológico, não é?
LMP - Claro. Portanto podem-nos substituir em certo tipo de tarefas.
Fala-se hoje em dia muito da exploração espacial, que vai ser
sobretudo feita por robôs inteligentes, porque é muito difícil,
perigoso, e demora muito tempo, para mandar alguém. Mas também ao
fundo do mar. As pessoas talvez não tenham a noção de que o fundo do
mar nos é praticamente desconhecido. Hoje em dia sabe-se que há novas
formas de vida junto às bocas vulcânicas no fundo do mar, com uma
química diferente até. De certa maneira são extraterrestres, no
sentido de que não estão na terra, estão no mar. E para ir ao fundo
do mar explorar as suas riquezas, e o nosso planeta é cinco sétimos
mar, já começam a ser os robôs inteligentes que são enviados para
explorar.
AP - Ou seja, são robôs que também a nível da percepção,
visão, audição, tacto, têm todas as capacidades de um humano.
LMP - Têm que ter todos esses órgãos sensoriais senão não
conseguiam...
AP - E é possível recriar a 100% todas essas capacidades sensoriais
humanas, a nível de tacto, visão, olfacto...
LMP - Claro, as capacidades sensoriais são orientadas para o meio
especial em que vai actuar....mas há todas essas modalidades sensoriais
de facto.
AP - ... e que conseguem a 100%, ou melhor ainda, representar o
equivalente à percepção à humana?
LMP - Eu talvez não pusesse a questão assim, porque quando se manda
um robô para o fundo do mar não se está a pretender imitar os
órgãos sensoriais humanos, porquanto os requisitos são diferentes.
Mas existem robôs, que não estão no fundo do mar, que têm
capacidades sensoriais nalguns casos superiores à humana, embora no
caso da visão, que é muito difícil, isso não suceda. Mas há um
progresso constante. Inclusivamente hoje em dia há próteses que
permitem a cegos ver. Por intermédio de uma prótese informática, que
consiste numa "chip" colocada no crânio com eléctrodos
penetrando no cérebro, e a que se liga uma câmara, para que os cegos
comecem a entender as imagens fornecidas pela câmara.
AP - Isso já é utilizado?
LMP - Sim. Já está numa fase experimental, já há cegos a fazer
essa aprendizagem. Prevejo que no futuro tais simbioses se tornem cada
vez mais importantes. No fundo é semelhante àquilo que, nos anos 50,
se chamava a Biónica, que era aproveitar a inspiração biológica para
resolver problemas técnicos. Na altura, uma das coisas que teve um
grande sucesso foi revestir os submarinos com uma pele semelhante à dos
golfinhos, para deslizarem muito melhor dentro de água. Agora está a
suceder um pouco ao contrário, quer dizer, nós vamos buscar às
máquinas, neste caso aos computadores, complementos para o nosso corpo
biológico. Se nos virmos como modelo, digamos assim, e criarmos uma
criatura à nossa imagem e semelhança, num segundo passo estamos a
modificar a nossa imagem com elementos da criatura que criámos.
Portanto não somos uns deuses distantes, somos uns deuses que
evoluímos com as nossas criaturas.
AP - Isso coloca a questão que as pessoas muitas vezes põem, se
não é perigoso estar a autonomizar, se não se pode virar contra nós,
se não pode ser uma ameaça à própria espécie humana.
LMP - Tudo é perigoso, o universo é uma coisa complicada. É
perigoso, mas a ciência, o conhecimento, é que permite lidar com os
perigos, e portanto do que nós precisamos não é propriamente de
fechar os olhos, mas sabermos o que estamos a fazer, e, se fizermos
erros, de sabermos corrigi-los. Mas também não se deve ver o
computador como antagónico, e por isso é que eu insisto na imagem de
simbiose entre o Homem e o computador. Quer dizer, não estamos a criar
um ser que se autonomiza e que se queira revoltar contra nós...
AP - ... é muito essa ideia que é promovida pelas ficções
científicas...
LMP - Isso tem muito a ver com a mitologia. O Homem revoltou-se
contra Deus. O Homem em termos mitológicos desobedeceu, foi expulso do
paraíso, e portanto nós temos uma essa ideia de revolta. Mas o Homem e
o computador estão em evolução conjunta. O Homem evolui com os seus
instrumentos. O que somos hoje só podemos sê-lo porque inventámos o
fogo, porque inventámos as armas, porque inventámos as vacinas, a
agricultura, tudo isso. O computador não é mais do que uma
continuação natural dessa evolução Tem a novidade de que pela
primeira vez estamos a automatizar a inteligência, embora no séc.
XVII, século de Pascal e de Leibniz, houvesse máquinas para somar e
subtrair, calculadoras, que já estavam a automatizar o pensamento.
AP - Que critérios existem para se dizer que esta máquina tem
inteligência artificial, até porque uma simples calculadora faz uma
conta que nós fazemos? Como se distingue uma máquina que não se pode
considerar de inteligência total de outra?
LMP - A inteligência não é uma essência. Não se pode dizer que
uma coisa tem inteligência como se dissesse que tem carbono.
"Inteligência" é uma propriedade funcional, tem a ver com o
modo como as coisas estão organizadas e é também, parte de um
vocabulário. Quando usamos o vocabulário relativo à inteligência,
usamos o chamado vocabulário intencional. Por exemplo, temos um
termostato que regula a temperatura na sala. Será que é inteligente?
Quando a temperatura está mais baixa ele liga, quando a temperatura
está mais alta ele desliga, e portanto para aquele fim é altamente
inteligente e faz exactamente o que se pretendia dele. Ele tem um
objectivo, tem a intenção de manter a temperatura da sala. É este o
tipo de vocabulário, ter a intenção, alcançar o objectivo...
AP - Mas ele não tem consciência...
LMP - ...é um tipo de vocabulário que é cómodo para descrever
seres humanos ou programas de computador que possam ter comportamentos
intencionais, que se percebe que têm uma intenção por detrás. Um
computador é capaz de controlar um comboio, uma locomotiva, controlar
uma central eléctrica, perceber que há desvios, saber quais as
acções a tomar, e escolher entre as melhores acções. É cómodo
usarmos o vocabulário da inteligência para descrever coisas
complicadas. Certos vírus são altamente inteligentes. Tentam atacar a
célula, a célula defende-se mas o vírus aprende a contra-atacar e a
prevenir-se. O vírus da SIDA, por exemplo, parece ser altamente
inteligente. Por mais que tentemos apanhá-lo, ele faz mutações e
passa a ter outro comportamento. Os vírus são espécies que evoluíram
ao longo de milhões de anos, foram acumulando uma inteligência nos
seus próprios genes, embora não se possam reproduzir e precisem de
nós para o fazer. Os computadores também não se reproduzem.
Actualmente não se reproduzem sozinhos, de certa maneira são parecidos
aos vírus, precisam de nós para se reproduzirem. Também há vírus
benéficos, nós vivemos com eles em simbiose no nosso corpo. Os
computadores, ao serem úteis para nós, estão a encomendar-se junto a
nós para os mantermos e reproduzirmos.
AP - Mas voltando ao exemplo do termostato. Poderá ser inteligente
na medida em que tem uma intenção e que cumpre essa função, mas não
consegue aprender que há uma altura do ano em que está sempre mais
frio, e que há outra altura do ano em que está sempre mais calor.
LMP - Hoje em dia as máquinas aprendem vulgarmente, e há sistemas
de aquecimento que aprendem. Podemos ter de facto um sistema que no
clima de um certo país, por exemplo aqui em Lisboa, aprende ao longo da
experiência como é que os dias em Lisboa progridem, quando é que
deixa de haver luz, e portanto perceber no mínimo coisas tão simples
como "às x horas, nesta altura do ano há y horas de luz, e
portanto, antes de desaparecer o sol o aquecimento liga sem nós termos
que estar a programar". Nós só temos de dizer "antes de
desaparecer o sol comece a trabalhar que é para estar quente quando eu
chegar a casa". Não lhe temos que dizer que o sol desaparece às
tantas horas, e pronto ficou logo programado para o ano inteiro. E
existem sistemas desses que aprendem depois a conciliar: pode ser um dia
de sol mas que também tem vento gelado, ou não tem vento gelado,
depende do vento que haja, depende se há nuvens ou não há nuvens,
depende da humidade. Há sistemas que conciliam toda essa informação
sensorial e tomam uma decisão sobre como regular o clima de uma casa ou
de todo o edifício - são os chamados "edifícios
inteligentes".
AP - Mas por exemplo, pode-se dizer que esse sistema é inteligente e
que o termostato que apenas desliga e liga consoante a temperatura
estiver, não é inteligente. O primeiro é inteligente e o segundo não
é, ou são ambos ?
LMP - Repare, é uma questão de grau...
AP - ... e de complexidade...
LMP - ... e de complexidade. Eu diria que o termostato tem uma
inteligência mínima porque se adapta; usando a adaptação como
critério de inteligência. Há inteligências do tipo 1, do tipo 2, do
tipo 3. Quando se começa a analisar o que é que é a inteligência
começa-se a perceber que há diversas variedades, que vão desde
inteligências elementares a inteligências mais complexas.
AP - E talvez se calhar o senso comum interprete mais como
inteligência artificial quando já o nível de complexidade já é
bastante elevado e muitas vezes ultrapassa as nossas próprias
capacidades, não é? Porque hoje em dia ninguém chama a um termostato
inteligente...
LMP - Olhe já se fala em edifícios inteligentes...
AP - Pois, agora está muito na moda...
LMP - ... carros inteligentes...
AP - ... carros inteligentes. Quer dizer, as palavras e o seu uso
evoluiem.
LMP - ... roupa inclusive, agora lembrei-me.
AP - Também já há?
LMP - Está-se a planear roupa que se adapta ao clima. O dia pode
mudar de repente, a pessoa já não terá aquele incómodo de ter de
tirar o casaco...
AP - Começa o ar condicionado a funcionar...
LMP - Até muito recentemente, a inteligência, para além de existir
em certos mamíferos, só existia no Homem, e portanto nós tínhamos a
tendência de equacionar a inteligência com a nossa inteligência. Mas
há outras formas de inteligência, e há outros graus de inteligência.
Com o aparecimento do computador e o processamento de informação isso
começou a tornar-se óbvio, começou a entrar na nossa linguagem...
AP - No caso limite, a inteligência do computador hoje permite-lhe
fazer, como o Homem faz, uma síntese criativa? Pode ele equacionar um
dado novo por si próprio, ter uma síntese criativa? Isso é que é
capaz de ser mais difícil.
LMP - Sim. Justamente pode aprender conceitos, e pode aprender novos
conceitos. Pode perceber que sempre que se verifica A também se
verifica B e logo a seguir verifica-se C, e portanto ele percebe que A e
B ocorrem de maneira ligada e por vezes dão origem a C.
AP - Uma outra coisa que eu tinha para lhe perguntar. Quando se fala
em história da inteligência artificial fala-se de Alan Turing. Qual
foi o grande contributo que ele deu para o aparecimento e para a
investigação em inteligência artificial? Dá-me ideia que é uma
pessoa realmente importante.
LMP - É, é muito, muito importante, embora o seu trabalho seja um
bocadinho técnico para o público em geral. O Alan Turing foi um
matemático inglês que, essencialmente, demonstrou que os computadores
podiam fazer tudo o que nós conseguíssemos especificar. Tudo o que
consigamos definir de uma maneira bem definida -- porque temos que saber
o que pretendemos de facto que o computador faça -- então existe um
computador que o faz. E por outro lado provou que qualquer computador
tem essa capacidade. É por isso que nós não temos que ter um
computador para fazer processamento de texto e ter um computador
separado para fazer contas Excel, não é? O computador é completamente
versátil. Tudo o que um computador pode fazer o outro também pode.
Qualquer computador pode vir a executar qualquer programa. Este
resultado é extremamente importante porque dá generalidade ao
computador. Os computadores são todos iguais, é claro. Podem ter mais
ou menos memória, ser mais ou menos rápidos, mas não há nenhuma
limitação de princípio tal que um possa fazer uma coisa que o outro
não faz. Todos eles podem executar qualquer algoritmo, podem correr
qualquer programa. Não há um programa que a gente imagine que o
computador não corra. Portanto, as limitações do computador são,
pode-se dizer, as nossas limitações em fazer os programas para ele.
Foi isto que o Alan Turing provou, em 1934, matematicamente. Para além
de ter realizado o primeiro computador, quer dizer, desenhou e
participou na construção do primeiro computador. Foi realmente o
resultado de base, que é no fundo sobre o que é possível fazer com os
computadores, que deu o grande impulso: se os computadores conseguem
fazer isso tudo então vamos de facto construí-los porque vai ser uma
coisa muito útil.
AP - E fala-se muito também do teste do Turing, no qual...
LMP - Turing preocupou-se muito com a inteligência artificial, sendo
o seu fundador. Eu já vos referi os trabalhos dele sobre xadrez jogado
por um computador. Ele também foi importante por outras razões. Ajudou
e muito a ganhar a 2ª Guerra Mundial, porque fez um computador, o
"Bombe", que decifrava diariamente o código dos submarinos
alemães. Este era mudado e decifrado todos os dias pelos alemães, com
uma máquina chamada Enigma, que os submarinos traziam consigo. O
código era usado para dar instruções aos submarinos alemães sobre o
posicionamento dos comboios de barcos que vinham dos Estados Unidos para
apoiar a Inglaterra. Sem esse apoio os Aliados teriam, diz-se, perdido a
guerra. E como os alemães mudavam o código todos os dias, para o
decifrar a tempo era preciso ter uma máquina para tal, suficientemente
rápida. Turing fez um computador especializado que decifrava o código,
com informações inicialmente obtidas por espiões polacos, e a partir
daí os Aliados sabiam exactamente onde é que iam estar os submarinos
alemães. Mais tarde fez um computador, o "Colossus", com que
decifrava outros códigos Nazis.
AP - Uma história interessante...
LMP - Infelizmente é preciso guerras para muitas vezes a ciência se
desenvolver. Porque a ciência tem imensas possibilidades, só que às
vezes é preciso vir a guerra para se lhe darem os recursos, quando
afinal em tempo de paz também se podiam pôr mais recursos na ciência
e beneficiarmos todos disso...
AP - E depois, ao nível da inteligência artificial, Turing...
LMP - Turing, como estava interessado nisso, pergunta "Quando é
que eu vou poder dizer que o computador é inteligente?", aquilo
que você me estava a perguntar. Ele ficou famoso por ter proposto o
agora chamado "Teste de Turing", que consiste em aferir que o
computador será tão inteligente quanto nós quando não soubermos se
estamos a falar com um computador ou com uma pessoa. Portanto Turing
imagina uma situação em que há um ser humano que está a conversar,
não sabendo se com um computador se com uma pessoa, que estão noutro
lugar. A conversa processa-se através de um terminal, e o teste
consiste em o ser humano adivinhar, ao fim de 5 minutos, se
"sim" ou "não", se está a falar com uma máquina
ou com uma pessoa. Na prática, faz-se a experiência com vários
humanos várias vezes, e quando em média confundirem a identidade do
seu interlocutor com uma probabilidade superior a, por exemplo 80%,
diz-se que o computador é inteligente.
AP - Mas esse teste já acontece?
LMP - Todos os anos há uma competição mundial de programas de
computador que são sujeitos ao teste. Os testes actualmente são sobre
domínios de conversação pré-definidos, quer dizer não é um teste
sobre qualquer assunto, mas são bastante latos. E de facto há
programas que conseguem enganar, passe a expressão, ou melhor não são
detectados se são programas de computador ou se seres humanos que
estão, digamos, do lado de lá do fio. Seria interessante averiguar se
ganhavam os concursos da RTP1 e da SIC...
AP - Ou seja, esse teste ainda é válido nos dias de hoje para bem
definir e dar resposta àquela pergunta de quando um computador é
inteligente.
LMP - Exacto. Ainda ninguém inventou um outro teste melhor.
AP - Isso faz-me pensar na questão da tradução de línguas. Existe
já alguma máquina ou computador que consiga traduzir de acordo com um
determinado contexto linguístico, com todas as implicações que tenha
uma língua?
LMP - Existe, e é usado vulgarmente pelos tradutores profissionais.
É um sistema em aperfeiçoamento, e portanto não totalmente correcto,
mas o que faz é uma primeira tradução, e o tradutor profissional
depois pega nela revê e corrige. Está provado que aumenta a
produtividade do tradutor profissional em cerca de 25%.
AP - Mas em Portugal temos muitas expressões que não são nossas,
por exemplo do Inglês temos o "piece of cake" que é
"uma coisa muito fácil". Todas essas expressões teriam que
ser introduzidas no computador para ele não confundir o sentido literal
com o sentido conotativo, não?
LMP - Claro.
AP - O Altavista tem tradução, e aquilo é um caos completo...
LMP - Mas o Altavista é um sistema simples, que não é muito
diferente da tradução palavra a palavra.
AP - Aquilo é quase ridículo, não serve rigorosamente para nada
porque ainda se fica mais confuso. É melhor ler na língua original.
LMP - Mas por exemplo a União Europeia tem sistemas muito mais
sofisticados. O sistema SYSTRAN é usado diariamente pelos burocratas da
União Europeia, dada a quantidade de línguas que há na Europa, a
quantidade de documentos que é preciso traduzir. Durante anos
desenvolveram-se esses sistemas, e continua-se a fazê-lo.
AP - Pode fazer uma referência a uma evolução geral? Como é que
evoluiu a inteligência artificial a nível de investigação desde os
anos 40 ou 50?
LMP - Princípio dos anos 50. Aliás, salvo erro esse artigo do
Turing, em que fala no teste, é mesmo de 1950 ou 51. É uma história
fascinante, cheia de ricos pormenores. É toda uma telenovela, digamos
assim...
AP - Mas de certeza que os programas e os sistemas que foram sendo
criados, ao princípio só se aplicavam a uma determinada área, e aos
poucos foram-se alargando a várias áreas, desde a medicina, à...
LMP - O problema básico da Inteligência Artificial é o da
generalidade. Há quem lhe chame Inteligência Geral, porque justamente
o que pretendemos é desenvolver métodos genéricos, independentes do
domínio. Suponhamos o caso da medicina: há programas para fazer
diagnósticos. Posso dizer que no Hospital da Universidade de Pittsburgh
é usado diariamente, desde há vários anos, um sistema chamado
TRAUM-AID (cf. http://www.cis.upenn.edu/~traumaid/). É um sistema que
faz diagnóstico sobre doentes que chegam à Emergência traumatizados,
porque caíram ou porque tiveram um desastre de automóvel, ou porque
foram esfaqueados, e o problema é o de ter de se tomar uma decisão
muito rápida sobre o que se vai fazer, se vai para a sala de
operações, se vai fazer este teste, aquele, ou qual. Foi provado, ao
longo de muitos testes, que esse programa toma melhores decisões do que
os médicos, e portanto os médicos usam simplesmente o programa, o que
põe problemas éticos. Fala-se tanto na ética ligada à modificação
genética, mas fala-se muito pouco de questões éticas deste tipo: se
se usa ou não um programa para tomar uma decisão médica. E este caso
das emergências é típico, porque em casos em que não há urgência o
médico tem mais tempo. Mas quando é preciso actuar logo, quando é uma
questão de vida ou de morte, e se tem um computador que decide melhor e
mais depressa, vamos pelo computador ou vamos pelo médico?
AP - O problema aí é o do erro, também, não é?
LMP - Pois. Em caso de erro, a quem se imputa a culpa, quem é
acusado de negligência? Os autores do programa de computador, ou o
médico que o usou? Esse é todo um tema que tem sido pouco discutido.
AP - E já há hospitais em Portugal que funcionam assim?
LMP - Em Portugal, que eu saiba não. Neste momento estou a trabalhar
num programa para diagnóstico de doenças mentais com uma firma
americana, que não é para substituir o médico, é para fazer com que
o médico tenha uma actividade mais rentável. O computador dá-lhe
estas e aquelas possibilidades de diagnóstico, o médico pode pôr mais
umas questões, ou fica a saber que tem de perceber se é esta ou aquela
doença, e então examina o doente nesse sentido. E visa-se que o
programa também venha a ser usado por exemplo em países do terceiro
mundo onde não haja médicos, ou se calhar só haja um enfermeiro ou
às vezes nem isso, e então será melhor ter lá um programa que faz
diagnóstico psiquiátrico prévio, para poder despistar doenças ou
encaminhar os doentes.
AP - Mas é tipo, fazem um teste à pessoa e depois o computador
analisa, como é que é?
LMP - Introduzem-se os sintomas, ou o programa pergunta quais são,
se há este sintoma, se há aquele, desde há quanto tempo, etc.
AP - Mas isso levanta imensos problemas éticos... Pode-se colocar um
rótulo a uma pessoa, uma classificação, que às vezes pode não mais
passar. Quer dizer o nosso cérebro é uma coisa por demais complicada,
pode ter-se dado um "click" e aparecerem esses sintomas...
LMP - Muitas vezes o uso desses programas é para despistar doenças
e encaminhar os doentes. Chega um doente, para onde é que ele vai ser
orientado? Acha-se mesmo que ele tem um problema psiquiátrico ou não
tem? Se tem é deste tipo ou daquele? É uma coisa que pode esperar ou
é uma coisa urgente? Quer dizer, não é o programa que vai fazer o
tratamento do doente, mas é para ajudar a encaminhar os casos. Por
vezes na circunstância não há alternativa melhor: mais vale isso do
que simplesmente não fazer nada.
AP - Ou seja, a nível ético, quer neste caso quer no outro que
falava das urgências, concorda que seja utilizado este tipo de
sistemas, que é uma forma de aumentar a eficácia do centro hospitalar?
LMP - Claro. Concordo perfeitamente.
AP - Ou seja, para si pessoalmente a questão ética acaba por não
ter...
LMP - As questões éticas, no fundo, porque é que são difíceis?
Porque são um jogo entre objectivos que colidem. No caso do aborto, há
objectivos que colidem. Há o desejo da mãe, depois há o objectivo de
não acabar com a vida. Portanto o problema ético é sempre um conflito
de se desejar várias coisas ao mesmo tempo que não são possíveis ao
mesmo tempo. E portanto a solução é a de encontrar o justo
equilíbrio. Este depende muito das circunstâncias. Mas isso agora
levava-nos aqui a uma conversa sobre...
AP - Pois, é melhor não entrarmos por aí. Se puder identificar
áreas de investigação, e naturalmente de aplicação, da
inteligência artificial à medicina, à indústria, ...
LMP - A resposta pode parecer altaneira mas são todas as áreas.
Porque na verdade a nossa civilização tem atingido uma complexidade
muito grande, cada vez mais aceleradamente, e nós próprios temos já
dificuldades em lidar com a sua complexidade. Até porque os nossos
cérebros são essencialmente de homens do Paleolítico, e enquanto os
computadores ainda podem evoluir, nós temos grandes dificuldade em
fazê-lo, embora o nosso cérebro tenha as tais características de
versatilidade e de adaptabilidade, a dita inteligência geral, que é a
capacidade fundamental que o computador precisa de ter, e que pode vir a
ser usada quer no diagnóstico médico, quer noutras áreas.
AP - Numa perspectiva larga, quais os traços gerais para o próximo
século ao nível da inteligência artificial? Que previsões se podem
traçar para os próximos 100 anos?
LMP - Esse tipo de especulação é sempre muito subjectiva. Não sou
um cientista que promete o que virá, mas apenas pretendo dar pistas
para que as pessoas elas próprias pensem sobre o assunto, já que as
decisões de investimento podem ser colectivas. Já falámos numa
espécie de biónica ao contrário, em que os homens vão evoluir no
sentido de incorporar próteses informáticas, próteses com
inteligência artificial. Aliás hoje em dia já se começa a pensar
introduzir células jovens no cérebro de pessoas com Alzheimer e outras
deficiências, e o casamento da biologia molecular com a inteligência
artificial vai ser inevitável, porque na verdade o que a biologia
molecular e a genética fazem são na verdade computações. Quer dizer,
o que o ADN faz são computações. Embora o substracto sejam
moléculas, aquilo são computações: há códigos, há instruções,
há instruções para corrigir erros quando eles ocorrem. Portanto, por
um lado a biologia será vista cada vez mais numa perspectiva das
computações que estão a decorrer, por outro, o substracto biológico
será cada vez usado mais para fabricar os próprios computadores. Além
disso, já há actualmente métodos e algoritmos de computação
inspirados na genética: chamam-se Computação Genética e
Programação Genética.
AP - E "chips" orgânicos...
LMP - "Chips" orgânicos virão certamente. Também o
modelo genético da computação é usado para a criatividade dos
computadores. Porque é que os seres vivos têm criatividade? Porque
combinam genes. Quando dois grupos de genes se combinam para dar um
filho ele é uma combinação criativa. E na computação nós usamos
vulgarmente esse método, que consiste em misturar genes de programas e
de parâmetros de programas. Certos genes fazem com que um programa se
comporte duma certa maneira, outros genes de outra, e misturamos genes
de versões diferentes de um programa para ver se a combinação não
dará um programa melhor. Se der, juntamos esse ao "pool"
genético de programas, e começamos a cruzar os programas com os
melhores genes. Se não der, deita-se fora, morre como numa evolução.
Chama-se a isso Programação Genética, e existe na Informática há 20
anos, tal como a Computação Genética, que é um método de
optimização. Esta última é uma técnica de programação vulgar hoje
em dia, e foi inspirada em mecanismos biológicos de evolução. Quanto
mais olharmos para os mecanismos biológicos como computação, maior
inspiração traremos também para os computadores.
AP - A nível do dia a dia do cidadão e do espaço doméstico, qual
o cenário futuro mais provável?
LMP - Vamos ao cenário doméstico. Bom, hoje em dia ele é cada vez
menos doméstico. Muita gente tem um computador em casa, está ligado à
Internet e, digamos, em pleno cenário doméstico estamos ligados a todo
o mundo. Mas eu percebo a sua pergunta. Provavelmente os
electrodomésticos vão estar ligados entre si e ligados à web, ligados
aos telemóveis. Hoje em dia, nas grandes feiras informáticas, por
exemplo a CeBit, já começam a aparecer electrodomésticos com
capacidades de trocar informação, e já existem standards de
comunicação e linguagens convencionadas para isso acontecer. Vamos
portanto caminhar para situações em que o frigorífico sabe o que tem
dentro, se tem lá os filetes, se ainda há bifes, se falta o leite,
etc. E quando faltar faz a encomenda pela Internet ao supermercado. E
nós podemos telefonar para casa e interrogar o frigorífico...
AP - Olha, "Há peixe para o jantar?"...
LMP - "Sim senhor!" "Então põe a
descongelar..." O frigorífico até poderá mandar depois para o
forno, que é previamente ligado. Vai haver uma maior interligação dos
electrodomésticos duma casa.
AP - Li recentemente uma notícia de um aspirador que funcionaria
sozinho, sem ninguém ter que estar ali... LMP- Isso é muito mais
difícil por causa do problema da visão dos obstáculos, e da
locomoção. O que provavelmente ocorrerá é que certas zonas da casa
terão que se adaptar para que possam existir esses tipos de robôs. No
chão é difícil mas talvez possam andar no tecto. O tecto está
relativamente livre, e talvez possa haver uns carris no tecto, e o robô
possa descer dependurado do tecto. É mais fácil evitar obstáculos, a
locomoção já tem os caminhos pré-definidos, e talvez possa fazer
aspirações e verificar se está tudo bem arrumado. De um ponto de
vista de informática no lar os diversos electrodomésticos vão estar
cada vez mais ligados num todo, e nós poderemos comunicar com eles e
deixar-lhes mensagens à distância. Uma área doméstica que vai
aparecer em breve, para além do comércio electrónico que hoje em dia
já existe, em que a pessoa tem as suas listas de compras no computador,
encomenda e vão levar a casa, é a área do entretenimento. Actualmente
temos 50-60 canais de TV Cabo, mas viremos a ter centenas de canais e
poderemos além disso fazer "download" de vídeos em arquivo
que desejamos ver. Não teremos que ver apenas o que está a ser
transmitido na altura: a televisão torna-se interactiva e poderemos
encomendar no próprio momento, especificamente para nós, aquele filme
que desejávamos ver. Portanto o número de possibilidades de programa
vai a crescer, e nós já não teremos tempo nem paciência para
procurar e escolher. Toda a gente tem essa experiência, de chegar a
casa e ter que ver as várias páginas de jornal mais a revista da TV
Cabo para saber o que vai dar. Ora, neste momento até tenho um projecto
de investigação a ser preparado no sentido de produzir um programa de
inteligência artificial que nos ajuda a escolher programação. Ele
permite-nos explicitar do que gostamos. Dizer, por exemplo, gosto muito
de filmes, mas não gosto de filmes a preto e branco, a não ser que
sejam os filmes do Bogart, aí já gosto, mas mesmo assim só daqueles
depois de 1935. Posso informar o computador destes meus gostos. Quem diz
filmes diz documentários, do tipo tal ou do tipo tal. Se estiver a
pensar viajar para um certo país, estarei muito interessado se aparecer
um documentário sobre esse país, e quero vê-lo. Ou então porque os
meus filhos estão a estudar um certo tópico para um trabalho escolar.
Nós diremos ao nosso computador, que estará ligado à televisão, as
nossas preferências e as nossas regras, mas vamos poder mudar as regras
ao longo do tempo. E se estão várias pessoas numa sala, o programa
poderá conciliar as preferências de uns e de outros. Também é óbvio
que se dissermos gostar de futebol o computador não deverá dar-nos
futebol 24 horas por dia. Terá que saber dosear. E ainda perceber que
se gosto de um programa dum tipo provavelmente também gosto de um
programa daquele outro tipo. Como saberá? Porque houve pessoas com
gostos e escolhas semelhantes aos meus, e que fizeram escolhas de
programas que eu nunca vi mas que, por analogia, poderei gostar. Então
o programa propõe-nos uma oferta. Isso permitirá conciliar a rotina
com a variedade e novidade. É uma coisa que vai surgir de certeza.
Aliás a companhia americana TiVo já está a dar passos nesse sentido
(ver em http://www.tivo.com/ ).
AP - Provavelmente esse género de sistemas, tal como os
electrodomésticos de que falava há pouco, aparecerão inicialmente a
custos muito elevados e que progressivamente irão baixando e
tornando-se acessíveis a um maior número de pessoas. Outro aspecto que
eu achava interessante seriam aplicações a nível da Internet.
LMP - Nós temos a Internet, e cada vez mais muito da nossa vida vai
passar por canais que acedem às coisas que nos interessam mas que
estão dispersas. Vamos precisar de agentes artificiais aos quais
comunicamos os nossos interesses, aquilo de que estamos à procura.
Aliás existem já alguns, simples, que vão à procura pela Web de
coisas que nos interessam, e depois alertam-nos mandando mensagens a
dizer o que encontraram. Tal como para os programas que nos ajudarão a
escolher programas de televisão, também daremos instruções a esses
agentes na forma de regras a seguir.
AP - Podemos ter regras específicas nossas, não é?
LMP - Sim. Um agente artificial será o nosso intermediário com a
Web, tal como podemos indicar a um agente de viagens o tipo de viagem
que procuramos, e ele nos encontra propostas. Mas o nosso agente
artificial para a Web vai ter poder de negociação. Por exemplo,
podemos estar interessados em quadros de um certo período. Poderão
estar à venda na Web tais quadros, e nós, que não podemos estar
atentos a tudo o que se passa por esse mundo fora, teremos esse agente a
quem dizemos que quadros deste período negoceie, comece a negociar
entre tanto e tanto. Ele terá uma margem de liberdade para negociar,
fora disso consulta-nos. Esses agentes vão precisar de inteligência,
está-se mesmo a ver. E poderão ir mais longe, fazendo contratos em
nosso nome. Tal como temos advogados para realizar contratos, haverá
agentes que fazem esses negócios e esses contratos por nós.
AP - Para fazer uma síntese, segundo a sua opinião, não teremos
uma perspectiva futura pessimista de oposição entre máquina e o
homem, e uma possível revolta da máquina, mas sim uma perspectiva de
simbiose e de evolução conjunta da máquina e do homem, e de uma
interacção e interajuda para a vida e para as tarefas diárias.
LMP - É isso que eu considero uma evolução natural, numa sociedade
democrática. Porque essa não é uma questão científica, é um
problema político. Nós vamos usar os computadores ou vamos fazer
robôs para substituir soldados no terreno? Já vimos como está a
evoluir a guerra inteligente, com os mísseis e tanques inteligentes.
Hoje em dia pesquisam-se tanques que actuam no terreno, comunicam entre
si, actuam como se fosse uma equipa conjunta. Não está lá nenhum ser
humano dentro, e são capazes de tomar decisões no local. Caminha-se
para aí, não é? Caminha-se para a automatização da guerra. Mas os
foguetões desenvolvidos para a guerra fria põem agora satélites em
órbita que permitem todas estas comunicações entre computadores. Quer
dizer o uso que damos à tecnologia não está pré-determinado. O que a
ciência faz é gerar uma série de possibilidades. Depois, quais as
possibilidades que são aproveitadas e o uso que se faz da tecnologia
normalmente escapa ao cientista. Quando este faz estudos dos genes que
permitem corrigir doenças genéticas isso poderá ser usado para
modificar as pessoas, para as transformar em robôs. Portanto as pessoas
em geral devem estar a par do avanço da ciência para se aperceberem
destas opções. Não só porque os avanços da ciência são
fascinantes em si, muito mais interessantes que qualquer telenovela, mas
porque têm que estar informados para em conjunto exercerem a pressão e
os seus direitos políticos no sentido da sociedade evoluir para aqui ou
para ali. Numa sociedade em que o que mais conta é a ganância e o
lucro, é óbvio que as coisas vão correr mal.
AP - E inclusivamente numa sociedade globalizada... LMP- Envolve a
discussão do como se aplica o dinheiro em ciência. Politicamente,
quando há dinheiro ele vai para a Saúde ou para tanques de guerra mais
sofisticados? Vai para armas biológicas letais, ou vai para outro fim
mais desejável, como para conseguir que os cegos possam começar a ver
com a ajuda do computador? Essa discussão tem passado muito ao lado do
interesse das pessoas. Os jornais trazem muito pouco sobre ciência,
fala-se pouco sobre isso, programas de televisão específicos há
poucos, debates na televisão muito menos. Há mil debates sobre o
pontapé que um futebolista deu numa bola, mas questões importantes
para todos nós acerca da ciência não se debatem. Temos que começar
por aí, por vocês jornalistas, que têm um papel muito importante em
trazer a debate estas questões.
AP - Já estamos a alongar a nossa conversa, mas só mais três
coisas. Primeiro, o futuro está a passar por uma maior relação com a
máquina, o que faz com que muitas vezes o homem deixe de trabalhar com
um colega e trabalhe só com o computador. O facto de se porem emoções
no computador é para evitar que o homem caia um bocado na solidão, é
em parte para colmatar esse vazio criado pela ligação intensa entre
homem e máquina, ou existem outras razões? Tem sentido não deixar o
homem cair na solidão fazendo com que o computador consiga estabelecer
um diálogo simpático com o homem?
LMP - Penso que não há ninguém que proponha realisticamente que
substituamos as relações com os seres humanos por relações com o
computador, mas o perigo existe de na verdade isso se tornar num
sucedâneo. Li recentemente um livro sobre isso, "The De-Voicing of
Society" de John L. Locke, em como as pessoas já não falam umas
com as outras, já não têm tempo para falar, estão sempre a fazer
"zapping", já perderam o vocabulário, são seres passivos em
que só lhes entra informação, e não são capazes de produzi-la
articuladamente. O relacionamento humano está a ficar muito mais pobre,
e ainda por cima as pessoas querem relacionar-se com outros que estão
à distância, através da Web, porque os mais próximos dos seus
interesses imediatos estão é acessíveis via a Web, e voltam as costas
aos que estão mais próximos fisicamente, em favor daqueles que estão
mais próximos, digamos, intelectualmente. Mas isso não tem a ver
propriamente com a reacção emocional do computador. No sentido que eu
o vejo, esse é mais um problema de comunicação, o de o computador
não estar apenas atento ao que escrevemos no teclado, mas tenha uma
câmara que perceba também o nosso estado de espírito, e possa reagir
em conformidade com ele. Sei lá, o computador poder-me-ia dizer:
"Luís, já estás a fazer muitos erros pá, não seria melhor ires
agora para casa? Deixa isso para amanhã, estás com um ar cansado, já
ontem trabalhaste 10 horas e tal..."
AP - Isso acaba por ser útil, e acaba por ter uma função. Se não
existe outra pessoa ao lado que consiga identificar esses sintomas e
consiga fazer esse comentário, se calhar, se partir da máquina é
melhor do que não partir de ninguém.
LMP - Exacto.
AP - Só mais uma pergunta mesmo, a nível de investigação em IA em
Portugal, como é que estamos? Muito atrasados em relação aos
restantes países?
LMP - Em Portugal, em certas áreas, estamos na verdade na crista da
onda da inteligência artificial. Acho eu.
AP - Em que áreas, especificamente?
LMP - Não sendo suficientemente humilde, na zona em que trabalhamos
eu e a minha equipa, e que verdadeiramente conheço, é uma área em que
somos reconhecidos mundialmente.
AP - E é qual?
LMP - É a zona de Representação de Conhecimento e Raciocínio.
AP - Mas a ideia que me dá essa designação é que acaba por ser
tudo um encadeamento de regras, tipo "se...então", de
construções lógicas. E o computador trabalha em função de um
determinado número de implicações lógicas, e só a partir daí é
que consegue ser inteligente, não é?
LMP - Exactamente. Ele precisa dessas funções lógicas de maneira
bastante assídua, mas também essas funções lógicas não estão
fixas, não se pode dizer que há estas e tais maneiras de raciocinar
hoje em dia, e que daqui a uns anos não há outras maneiras de
raciocinar. Bem pelo contrário. Os métodos de raciocinar têm
evoluído e os próprios computadores ao obrigarem-nos a pensar sobre
isso -- e eu trabalho nessa área dos métodos de raciocínio -- fazem
com que percebamos que afinal os podemos melhorar, e até inventar novos
métodos de raciocínio. Por exemplo, a demonstração por absurdo é
uma coisa que as pessoas aprendem na escola, nomeadamente que se uma
hipótese conduz a uma contradição então é porque a hipótese era
falsa. O método de redução ao absurdo foi inventado pelos Gregos. A
dada altura não existia, mas depois de inventado e aceite passou a
raciocinar-se também assim, passou-se a ensinar nas escolas e
vulgarizou-se. Como esse há vários outros métodos de raciocínio que
têm sido inventados recentemente, por virtude da própria necessidade
de ensinar o computador a raciocinar. E alguns desses métodos irão
emigrar para as escolas, irão mesmo. Portanto o raciocínio, a
capacidade de pensar, é uma coisa que está sempre em aberto, nada nos
impedindo de pensar de outra maneira. Mas também os métodos de
raciocínio não chegam, porque o computador não está a raciocinar,
digamos, num aquário, numa cúpula; o robô tem que estar inserido num
mundo, tem que ter órgãos sensoriais, tem que ter uma capacidade de
acção, tem que saber observar as consequências da sua acção, tem
que ter um corpo, em resumo, não pode ser simplesmente um espírito
desenraizado. E, justamente, uma coisa são as diversas componentes do
que é necessário para ter inteligência artificial no seu aspecto de
análise, e depois tem o outro aspecto que você há bocadinho referiu
que é o de síntese, em que é preciso agarrar nestas partes todas e
fazê-las funcionar em conjunto. Fazê-las funcionar com o braço
mecânico e com a lente de televisão, com as rodinhas, e tudo o mais
que for necessário. Porque a inteligência artificial também tem um
aspecto de engenharia, e na verdade visa construir algo artificial. A
dada altura é preciso agarrar nas peças e pô-las todas juntas, e isso
não é nada fácil.
AP - Mas é possível programar uma máquina ou fazer um sistema com
capacidade criativa? Ou seja que junta a experiência que tem e a partir
daí elabora, tal como nós o fazemos?
LMP - Nós não sabemos bem em que consiste a nossa capacidade
criativa, portanto também não sabemos muito bem ensiná-la ao
computador. O querermos ensinar o computador a ser criativo vai-nos
obrigar a perceber melhor a nossa própria criatividade. E provavelmente
a criatividade acabará por ser um misto de computador-homem. Aliás há
já muitos artistas que usam o computador. Quer artistas plásticos quer
músicos, que utilizam o computador para aumentar a sua criatividade. O
computador é um instrumento de criatividade, e eu nem sei se nós
queremos um computador simplesmente criativo. A criatividade do
computador tem que fazer sentido para nós, e portanto, penso eu que
será um processo conjunto.
AP - E relativamente aos sentimentos. É possível a um computador
reconhecer e exprimir sentimentos?
LMP - Por enquanto é possível. Tudo é possível enquanto não for
demonstrado impossível, o que é quase impossível de fazer...
AP - Ou seja, pode-se dizer que não há limites. Acaba por não os
haver...
LMP - É muito difícil provar que algo é impossível, não é
verdade? E portanto se nós acreditamos na nossa inteligência, se
acreditamos no nosso conhecimento, na capacidade de percebermos o mundo
cada vez melhor, e portanto também de dominarmos a realidade,
modificando e construindo artefactos, tudo é possível. Estarmos a
dizer que algo não é possível é sempre referente ao estado de
ignorância que nós temos...
AP - Mas presentemente, no estado da ciência actual e a
investigação actual, é possível haver uma relação afectiva com o
computador?
LMP - É. Hoje em dia há bastante investigação sobre a
inteligência emocional, a qual também está aí na moda por causa do
livro Emotional Intelligence e dos trabalhos do casal Damásio. Mas o
que é certo é que, mesmo antes disso, já se fazia investigação no
uso das emoções no computador. Até porque o computador precisa de
dialogar com o homem. Precisa de entender por exemplo as expressões
faciais do homem, fazer expressões faciais que o homem entenda. Existem
robôs, por exemplo o Cog, do laboratório de IA do MIT, que tem olhos,
com duas câmaras de televisão como pupilas, e por cima deles
sobrancelhas móveis, além de umas orelhas móveis também. Quando ele
põe as sobrancelhas assim, de um certo modo, mostra que não está a
perceber o que lhe estamos a dizer, e ele próprio reage às minhas
sobrancelhas ou ao meu sorriso, pois também exibe um sorriso
articulável. Quer dizer, para o computador a emoção é uma forma de
comunicação também, que usa para se relacionar. E portanto, para
comunicar com o computador também o podemos fazer através das nossas
expressões faciais. As emoções existem porque evolucionariamente se
verificaram necessárias à comunicação, e o computador precisará
cada vez mais delas.
AP - Mesmo para ele sobreviver no meio, não é?
LMP - Por exemplo, um computador pode estar num estado emocional
optimista ou pessimista. Um computador que esteja num estado pessimista
ou céptico, quando está a resolver um problema está sempre com
dúvidas. Não sabe se realmente tem a boa informação, vai
constantemente confirmar, vai fazer mais umas contas, e pronto, pode
estar tão pessimista que não chega a fazer nada porque está sempre em
grande em dúvida, e pode-se dizer que entra em depressão. É o que
chamamos a pesquisa em largura.
AP - Mas isso também é programado, não é?
LMP - É. O computador optimista, crédulo, assim que encontra uma
pista para um resultado acha que aquilo está no caminho da solução e
vai logo para a frente, às vezes com maus resultados. É o que chamamos
a pesquisa em profundidade.
AP - Quando conhecemos uma pessoa poderemos criar empatia com ela,
poderemos simpatizar logo à primeira, e há pessoas que à partida,
até sem ter trocado uma palavra, olhamos para elas e não simpatizamos.
É possível programar a máquina, ou a máquina ter esse tipo de
relacionamento, aleatoriamente, relacionar-se com uma pessoa e não
gostar e relacionar-se com outra e mostrar alguma afectividade...
LMP - Penso que as máquinas têm que gostar das pessoas, não é?
Isso será uma das leis da robótica, a 1ª lei da robótica: "Todo
o robô gostará de qualquer pessoa".
AP - A esse nível já existem limites, pode dizer-se que aí existe
um limite ético à inteligência artificial.
LMP - Repare, muitas vezes nós gostarmos ou não de uma pessoa tem a
ver com fero-hormonas, os sinaisinhos químicos invisíveis, os cheiros
que a gente nem dá por isso. Tem a ver com a constituição facial das
pessoas ou a sua atitude, que nos faz lembrar às vezes o nosso pai ou a
nossa mãe. Está provado estatisticamente que as pessoas se casam com
pessoas semelhantes aos pais, fisionomicamente semelhantes, em média.
Isso está mais que provado, com centenas de milhares de casos. Também
há a questão das raças: a pessoa empatiza mais ou se calhar percebe
melhor as emoções de alguém da sua raça do que de outra raça porque
há pequenas diferenças que nós não conseguimos interpretar. Aliás
é vulgar dizer-se que para nós os orientais parecem-nos todos um pouco
iguais e vice versa, porque não temos o treino de entender aquele tipo
de fisionomia. Portanto nós vamos ter que ter computadores que saibam
adaptar-se, o computador vai ter de perceber: "Ah, não, este
sujeito é provavelmente japonês e então tenho que fazer assim... e
nunca digo que não, e tal e coisa... ". Se imaginarmos um robô,
digamos ao balcão de um aeroporto a fazer o "check-in", ele
vai ter que saber adaptar-se culturalmente, isso é inevitável.
AP - Esse tipo de cenário, estava a pensar em mercado de trabalho,
retira ao homem a necessidade propriamente dita de trabalhar. O homem
passa a ter um estatuto completamente diferente. É complicado também
porque o robô começa a substituir o homem. Julgo que o homem está a
evoluir para uma mentalidade em que isso não o preocupa minimamente
porque poderá então fazer coisas que sempre quis fazer, e o indivíduo
em sociedade ganha uma autonomia maior, mas poderá criar problemas não
é?
LMP - Claro. A tendência é para que os robôs possam fazer aquilo
que nós não gostamos de fazer.
AP - Sim, mas por exemplo, ao dono de uma empresa pode-lhe ficar mais
barato meter não sei quantas máquinas a fazer o serviço que os
humanos, os quais mesmo que não gostassem necessitavam de fazer porque
precisam ter um salário. Isso poderá ser perigoso.
LMP - Eu não sei se vai ser mais barato comprar um robô sofisticado
ou fazer antes um implante num ser humano que o transforme num robô.
Eventualmente esse implante, ligado a um computador central, programa
esse ser humano. Isso é um cenário possível. E nós sabemos ao que a
ganância do lucro pode levar, e que o capitalismo selvagem levará
certamente a isto. Porque se já temos seres humanos com uns corpos
óptimos, articulados, que se sabem mover coordenadamente, com olhos
excelentes, não sei para quê fazer um robô...
AP - Isso é extremamente perigoso, não é? Dá ideia que é um
pouco assustador. Será que isso é positivo?
LMP - Não será certamente positivo para esses seres humanos, mas
será positivo para os outros que vão beneficiar disso, não é? Mas
tal não é um problema novo. Quer dizer, muito do mundo funciona à
custa de explorar pessoas. Pergunto se a grande maioria das pessoas
actualmente não são robôs, com os seus algoritmos diários,
programados para se levantarem a tal hora, terem que ir para o emprego
fazer actividades repetitivas, levados a comprar coisas que não lhes
interessam para nada, programados pelo marketing para ter estes e
aqueles pensamentos e estes e aqueles desejos. Pergunto se não estamos
já todos robôtizados?
AP - O grande problema é que o homem, mesmo que não dê por isso,
mesmo que seja robôtizado, tem a consciência da consciência, mesmo
que tenha um chipzinho implantado, a não ser que ampute essa
consciência da consciência. Mesmo que tenha lá o chipzinho a
funcionar ele vai ter sempre uma consciência daquele: "porque é
que eu estou sempre a vir para aqui, porque é que, vai ter sempre esse
tipo de trabalho, etc." É difícil dar uma consciência da
consciência ao computador.
LMP - Tecnicamente não é complicado, porque basta que um programa
possa processar outro programa, e nós fazemos isso. A capacidade de se
ver ao espelho é possível.
AP - Isso pode colocar também o computador em pânico, ele começa a
interrogar-se, pode levá-lo à inacção. Por exemplo, há seres
humanos em que leva...
LMP - Exactamente.
AP - Às tantas o computador começa a equacionar, e ele tem muitos
mais dados. Por isso é que eu digo que é um bocado difícil um
computador ter a consciência da consciência como o ser humano, porque
tem à sua disposição uma informação tão vasta...
LMP - Mas repare, uma coisa é o mecanismo da consciência, ou seja,
o poder reflectir, o poder especular -- e especular vem de espelho, tem
a mesma raiz que espelho -- mas outra coisa é ter informação. Não
vale a pena especular no vazio, não é verdade? E a sensação que
tenho é que as pessoas hoje em dia pura e simplesmente não percebem
como é que a sociedade funciona. Não têm a noção dos mecanismos
globais económicos, não têm a noção dos métodos de marketing e de
campanhas para as induzir a ter este tipo de estilo de vida ou aquele,
ou seguir aquela moda ou aquela outra, não têm o conhecimento acerca
dos determinantes biológicos que os levam a comportarem-se desta ou
daquela maneira, não percebem ou sabem muito pouco de sociologia. Hoje
em dia há uma quantidade de conhecimentos acerca da civilização que a
maior parte das pessoas não tem, porque os seus cérebros estão
ocupados com conhecimentos irrelevantes sobre o futebol, sobre as modas,
sobre as telenovelas... Pergunto-me como é que as pessoas podem ter
consciência quando não têm informação de base e não têm espaço e
tempo mental, mesmo que tenham a informação de base. Aliás ela está
acessível, está nas bibliotecas, está em todo o lado, quem quiser
tem-na. Têm é uma falsa consciência. É-lhes prescrito, olhe, a
consciência que você deve ter é esta outra. E são conscientes, mas
com essa.
AP - Quais os benefícios, as possíveis vantagens de dar emoções a
uma máquina, ou fazer com que a máquina se relacione com o ser humano
de maneira emocional?
LMP - Ora bem, hoje em dia as emoções estão muito na moda. Mas as
emoções são antigas e correspondem ao cérebro, ao paleocérebro,
essencialmente ao cérebro dos répteis, em que a emoção é um estado
global do organismo provocado sobretudo por agentes químicos, por
hormonas que se espalham no cérebro, e a partir do deste espalham-se no
corpo. Um réptil com uma inteligência limitada tem que reagir de
maneiras muito esquemáticas, do tipo, "se há perigo fujo",
"se há perigo luto", ou "isto é uma oportunidade sexual
boa, avanço", e coisas assim. Portanto são o tipo de reacções
com uma análise pouco fina da própria situação e das alternativas e
possibilidades de reacção diferentes, e com pouca, também, capacidade
de antever o que vai acontecer no futuro, que é uma característica
maior de alguns mamíferos, e em particular do Homem. Nós prevemos o
futuro e adaptamo-nos previamente, ou então mudamos o futuro para ser
aquilo que queremos. Isso exige as faculdades intelectuais superiores.
Mas as pessoas têm a noção de que as emoções são algo de puro, que
brota de uma fonte interior pristina, completamente pura e incorrompida,
e portanto só têm que seguir as emoções para encontrar a solução.
Como elas vêm lá do fundo, não é, como uma fonte que jorra do fundo
da montanha, de certeza que são boas e não foram ainda corrompidas.
Embora, na verdade, as emoções sejam altamente contraditórias. A
pessoa tem uma noção de que quer isto mas também quer fazer o
contrário, tem não sei quantos desejos contraditórios. E eu pergunto
como resolve as suas emoções. Resolve-as, depois, com a tal
consciência que pensa sobre elas, com a tal consciência reflexiva. E
é portanto por isso que, evolucionariamente, aparece o córtex dos
mamíferos e aparece o neocórtex nos seres humanos, capazes de melhor
controlarem as emoções. Aliás, quem faz ciência, quem teve uma
formação científica, uma das primeiras coisas que aprende é que as
emoções têm que estar separadas digamos, do estudo científico. Têm
que estar separadas porque eu não posso dizer assim, este teorema é
verdadeiro porque eu gosto muito dele, porque achava bom, porque
far-me-ia sentir muito quentinho que ele fosse verdadeiro e seria
óptimo. Pelo contrário, quando o cientista sente isso tem que redobrar
a crítica. O homem de ciência tem que ser sempre muito crítico,
porque de facto acontece isso, a pessoa deseja que o resultado seja
verdadeiro e daí a nada está a fazer um passo errado na demonstração
do teorema. Isso é mesmo verdade. O desejo que aquilo seja verdadeiro,
a emoção, o desejo de ser verdade o que descobriu, o que vai comunicar
aos outros, tudo isso, são estados emocionais, que têm que estar bem
separados da actividade científica. O que não quer dizer que as
emoções não tenham também um valor cognitivo importante...
AP - Qualquer pessoa acho já sentiu um momento em que, mesmo que
esteja a resolver uma equação ou a escrever filosofia ou literatura, a
pessoa está em euforia e em ebulição com aquilo tudo, não é?
LMP - Exacto. Em certas ocasiões a pessoa tem que se, digamos,
auto-hipnotizar. Acreditar que está a fazer a coisa correcta, que está
a atingir desígnios importantes, que dão uma sensação completa de
realização e de bem-estar. E os cientistas sentem isso também. Os
cientistas de certa maneira são um pouco religiosos, porque têm aquele
sentimento de perceber as complexidades do mundo, a própria beleza
dessa complexidade. Mas que também requer um caminho intelectual
difícil, porque hoje em dia vivemos num mundo sem sentido intrínseco.
Hoje em dia é já vulgar não se acreditar em Deus, que o mundo tem um
sentido qualquer, que a existência tem sentido, que o universo vai para
algum lado. Estamos aqui perdidos, demos à costa aqui neste cosmos,
estamos naufragados aqui nesta realidade. Mas para mim isso é
extremamente belo, que não haja sentido nenhum, porque então eu posso
fabricar o sentido que entender. Eu não gostaria de ter um universo em
que o sentido está definido à partida, ter que seguir esse sentido. No
fundo é isso que os filósofos existencialistas nos vieram dizer, que
temos que fabricar o nosso próprio sentido. E hoje em dia, a psicologia
evolucionária acrescenta que há um sentido fabricado pela espécie e
pelas necessidades evolutivas que levaram ao modo de funcionar do
cérebro humano. Mas é um sentido de base, não é um sentido
prédestinado. Isto leva-nos ao tópico da religião artificial. Porque,
a dada altura, não bastam as emoções artificiais. Vamos ter que dar
aos computadores, aos robôs, uma religião. Vamos ter que lhes dar
grandes desígnios, um dos quais há bocado dissemos: "Serás
sempre simpático para todo o ser humano". Vamos ter que fazer uma
lista de mandamentos, afinal de contas.
AP - Mas qual a necessidade desses desígnios para o computador?
LMP - É uma ética. No fundo temos que lhes dar regras de
comportamento, uma ética.
AP - Para ele não sair do controlo, para ele estar determinado
culturalmente, para as suas acções também não fugirem muito da
norma, é isso?
LMP - Não queremos controlar os computadores, até porque
provavelmente vai ser impossível. Isso é apenas um receio um pouco
paranóide perante o desconhecido: Quer dizer, nós queremos controlar o
desconhecido, mas é impossível controlar o desconhecido.
AP - E nessa medida é que se diz que é uma ameaça, que poderá ser
um perigo porque não é controlável?
LMP - Tudo é um perigo. Nós estamos aqui numa sociedade complexa,
num mundo globalizado, num mundo que funciona de maneiras que nós ainda
desconhecemos. Os economistas passam a vida a dizer-nos que conhecem,
mas depois verifica-se que afinal não conheciam. Estamos rodeados de
desconhecido por todos os lados e não devemos ter medo. Os seres vivos
desde que começaram a sua caminhada evolutiva sempre estiveram rodeados
de desconhecido por todos os lados e já chegaram muito longe. Portanto
nós devemos estar relativamente optimistas, se há uma época e se há
um sentido para a vida é o sentido dado por essa evolução, e que hoje
em dia é estudado pela chamada psicologia evolucionária, pela
sociobiologia. Digamos que o nosso sentido é o sentido acumulado da
nossa evolução. Os computadores, na medida em que são uma criação
nossa, é que no fundo nos estão a permitir lidar com essa própria
evolução e a complexidade das coisas. Se desligassem todos os
computadores o mundo parava e torna-se uma coisa completamente
diferente. Penso que as pessoas têm a noção disso, de que eles
evoluíram connosco e connosco continuarão a evoluir...
Luís Moniz Pereira
Universidade Nova de Lisboa
LMP@di.fct.unl.pt