A Filosofia da Mente contemporânea tem-se
        desenvolvido mantendo uma relação estreita com os avanços da
        Inteligência Artificial. Uma das questões principias que tem sido
        tratada pela Filosofia da Mente é a de saber se os estados cognitivos
        dos homens podem ser duplicados por máquinas (computadores num sentido
        lato). Existem duas posições comuns em relação a esta questão. Uma
        posição fraca segundo a qual os estados cognitivos humanos
        podem ser apenas simulados por computadores e uma posição forte
        segundo a qual os estados cognitivos humanos podem ser replicados
        por computadores. Segundo a tese fraca os computadores apenas simulam os
        estados cognitivos humanos quando perante o mesmo input produzem
        o mesmo output. Segundo a tese forte os computadores podem
        replicar as relações causais internas presentes na cognição humana.
        
        Computacionalismo e Conexionismo
        
Entre aqueles que defendem a tese forte existem duas correntes
        principais: o computacionalismo clássico e os conexionismo.
        Segundo computacionalismo clássico os sistemas cognitivos são
        máquinas que processam representações simbólicas através de um
        processador central (este é o tipo de sistema usado até hoje pelos
        computadores correntes). Segundo o conexionismo os sistemas cognitivos
        consistem em redes neuronais constituídas por nódulos que se
        relacionam entre si criando padrões mais ou menos estáveis. O
        computacionalismo clássico usa como modelo a estrutura sintáctica da
        linguagem. O conexionismo usa como modelo as estruturas neuronais do
        cérebro. O computacionalismo clássico precede historicamente o
        conexionismo.
        
        O Teste de Turing
        
Turing propôs um teste através do qual poderíamos decidir se os
        estados cognitivos humanos são manipulação de símbolos. O teste
        proposto por Turing consistia em levar a cabo uma experiência com duas
        pessoas e um computador. Nesta experiência uma pessoa isolada faz uma
        série de perguntas que são respondidas pelo computador e pela outra
        pessoa. O computador passa o teste se o indivíduo que faz as perguntas
        não conseguir descobrir qual dos interlocutores é a máquina e qual é
        humano. Turing previa que os computadores estariam brevemente aptos a
        passar este teste (o teste é proposto por Turing em "Computing
        Machinery and Inteligence", Mind, 1950).
        
O Teste de Turing foi tradicionalmente considerado como um argumento
        a favor do computacionalismo clássico. A ideia era a de que se um
        computador passasse o teste de Turing então estaria provado que os
        estados cognitivos humanos podem ser replicados pelos computadores.
        
        O Quarto Chinês
        
Em 1980 Searle propôs outro teste conhecido como o argumento do
        Quarto Chinês. O argumento consiste numa experiência de pensamento na
        qual imaginamos um sujeito que apenas fala inglês fechado num quarto
        com um manual sofisticado que relaciona uns caracteres chineses com
        outros caracteres chineses. O individuo pratica a manipulação destes
        símbolos, seguindo as regras propostas no manual. Passado algum tempo
        ele é capaz de responder a mensagens enviadas pelos seus guardas
        chineses com tal eficácia que eles não conseguem descobrir se ele é
        ou não Chinês (Searle, "Minds, Brains and Programs", Behavioural
        and Brain Sciences, 1980).
        
O Quarto Chinês de Searle foi tradicionalmente considerado como um
        argumento contra o computacionalismo clássico na medida em que nesta
        experiência não dizemos que o indivíduo fala Chinês e sendo assim
        existe uma diferença essencial nos estados mentais de um indivíduo que
        apenas manipula símbolos e num indivíduo que fala uma língua. A
        experiência do Quarto Chinês de Searle põe em causa a relevância do
        Teste de Turing.
        
        Avaliação do Teste de Turing e do Quarto Chinês
        
Para analisar a relevância do Teste de Turing e da experiência do
        Quarto Chinês para a Filosofia da Mente contemporânea é necessário
        clarificar o que estas duas experiências de pensamento realmente
        implicam.
        
É possível defender uma interpretação do Teste de Turing segundo
        a qual quando um computador o passa com sucesso apenas fica provado que
        ele pode simular os estados cognitivos humanos e não é necessário
        dizer que ele os pode replicar. Nesta interpretação o Teste de Turing
        não é suficiente para defender o computacionalismo clássico no
        sentido forte. Por outro lado, um defensor do computacionalismo
        clássico pode dizer que se a situação do Quarto Chinês ocorrer
        então o indivíduo sabe falar a língua.
        
Na avaliação destas experiências é necessário considerar as
        relações entre simulação e réplica. A distinção entre estas pode
        não ser tão clara como usualmente se considera nestes debates. De
        facto, quando um sistema ou um organismo exprime os mesmos outputs
        perante os mesmos inputs é cientificamente justificável pôr a
        hipótese de que existe um sistema causal interno semelhante. Quando se
        fazem experiências laboratoriais em qualquer ramo da ciência toma-se
        como garantida a credibilidade deste método: constroem-se situações
        artificiais e através dos resultados atingidos nessas situações
        defendem-se hipóteses acerca dos sistemas causais internos. A
        Inteligência Artificial pode ser considerada como um método
        laboratorial muito complexo através do qual se testam as nossas
        hipóteses acerca dos sistemas causais internos responsáveis pela
        cognição humana.
        
Se assim é não podemos traçar uma linha definida entre simulação
        e réplica, entre uma posição forte em relação à inteligência
        artificial e uma posição fraca. Se o Teste de Turing for cumprido com
        sucesso podemos dizer que o computador simula os estados mentais, mas
        temos de acrescentar que se os simula com eficácia a melhor
        explicação para esse facto é a de que os replica adequadamente. Por
        outro lado, se a experiência do Quarto Chinês for possível a melhor
        explicação para esse facto seria a de que a linguagem é apenas
        manipulação de símbolos e que a nossa intuição de que o indivíduo
        não fala Chinês está relacionada com factores extra-linguisticos.
        
Outra forma de avaliar a relevância destas experiências para
        Filosofia da Mente contemporânea é questionar a sua eficácia real. O
        progresso da Inteligência Artificial na segunda metade do século XX
        não permitiu aos computadores passarem o Teste de Turing. Por outro
        lado, até hoje a experiência do Quarto Chinês não foi executada e a
        possibilidade de levar a cabo uma experiência desse tipo com êxito
        pode ser questionada. O facto de que nem uma nem outra experiência
        foram executadas com sucesso mostra que é muito difícil simular os
        estados cognitivos humanos usando apenas manipulações de
        representações simbólicas. Assim sendo, a melhor explicação para
        isto é a de que os sistemas causais internos responsáveis pela
        cognição humana não são semelhantes a estados computacionais, não
        são apenas manipulações simbólicas.
        
Uma das explicações tradicionalmente apresentadas para dar conta da
        dificuldade de simulação dos estados cognitivos comuns é a de que na
        cognição comum existe um conhecimento implícito vastíssimo que se
        manifesta numa série de regras de senso comum. A programação destas
        regras num computador serial é difícil e o falhanço do Teste de
        Turing é atribuído a esta dificuldade (também conhecida por frame
        problem). Outra limitação comum atribuída aos computadores
        tradicionais é a de que eles não são capazes de aprendizagem. Esta
        limitação também pode estar na origem do insucesso do Teste de
        Turing.
        
        Conexionismo
        
O conexionismo tem como principal vantagem o facto de que as suas
        redes neuronais são capazes de aprendizagem. Com o avanço dos sistemas
        de redes neuronais talvez possa ser possível construir uma máquina que
        finalmente passe o Teste de Turing. Se um sistema de redes neuronais
        simular adequadamente o sistema cognitivo humano, então isso será uma
        experiência a favor da hipótese de que esse sistema cognitivo é
        constituído por redes neuronais e não de manipulações simbólicas.
        No entanto, um dos problemas que se depara aos sistemas de redes
        neuronais é o facto de demorarem demasiado tempo a serem treinados,
        muito mais tempo do que os sistemas cognitivos humanos. Este facto
        mostra que as redes neuronais também não têm sido totalmente eficazes
        na tarefa de simular a cognição humana. Assim sendo, a melhor
        explicação é a de que os sistemas cognitivos humanos não são
        constituídos apenas através do treino de redes neuronais.
        
Uma solução será talvez a de construir sistemas híbridos,
        parcialmente usando manipulações simbólicas para modelar capacidades
        tipo linguísticas (sintácticas) e redes neuronais para modelar a
        aprendizagem. No entanto, a construção de sistemas híbridos está
        ainda muito longe de produzir máquinas que possam tentar simular as
        capacidades cognitivas humanas.
        
        Filosofia e Inteligência Artificial
        
A filosofia contemporânea de tradição analítica tem seguido e
        participado nos primeiros passos do desenvolvimento da Inteligência
        Artificial (ver o texto de Sofia Miguens, "Alguns
        problemas da Filosofia da AI" neste número da Intelecto). No
        entanto, como nem os sistemas computacionais clássicos, nem os sistemas
        de redes neuronais têm até hoje sido eficazes na simulação das
        capacidades cognitivas humanas, não é ainda possível usar os avanços
        da Inteligência Artificial como testes em relação à constituição
        da cognição humana. Mas, o desenvolvimento futuro da Inteligência
        Artificial pode permitir a construção de testes eficazes deste tipo.
        Se isso acontecer existirão consequências inescapáveis na forma de
        lidar com vários tópicos tradicionalmente filosóficos. Se um
        computador conseguir simular com total eficácia as capacidades
        linguísticas humanas isso terá implicações para a Filosofia da
        Linguagem (que serão diferentes se esse teste for executado por um
        computador tradicional e se for executado por um computador de redes
        neuronais). Se um computador conseguir simular a capacidades de
        construção conceptual humana isso terá implicações para a Filosofia
        da Mente. E assim sucessivamente para cada experiência de simulação
        que tenha sucesso.
        
A Inteligência Artificial tem até agora centrado os seus esforços
        na simulação de capacidades cognitivas humanas - na simulação da
        linguagem, da percepção, reconhecimento de padrões, aprendizagem,
        etc. É de notar que não existem tentativas de simular outras
        capacidades humanas, como a afectividade, a personalidade, o sentido
        estético, o juízo moral, etc. Assim sendo, mesmo que a Inteligência
        Artificial tenha sucesso em simular as capacidades cognitivas humanas,
        esse sucesso não pode ainda ser usado num dos debates mais importantes
        da filosofia da mente: o do problema Mente-Corpo. Esse sucesso indicaria
        apenas que as capacidades cognitivas humanas são puramente materiais
        (cerebrais). O materialismo mais geral só poderá ser defendido
        através dos progressos da Inteligência Artificial se esta for capaz de
        simular um âmbito vasto de estados mentais humanos, só quando for
        possível construir "andróides". Claro que se a Inteligência
        Artificial tiver algum sucesso na simulação de algumas capacidades
        humanas isso pode ser usado como indicador de que o materialismo acerca
        do mental é uma tese plausível. No entanto, só com uma simulação
        mais abrangente das capacidades humanas é que a Inteligência
        Artificial pode contribuir mais decisivamente para a resolução do
        problema Mente-Corpo.
        
Neste novo século teremos de certo oportunidade de testemunhar os
        avanços da Inteligência Artificial e qualquer filósofo contemporâneo
        deve continuar a seguir de perto estes avanços e decidir honestamente
        até que ponto é que esses avanços têm de ser tomados em conta pelas
        suas propostas. No século XXI a Filosofia e a Inteligência Artificial
        poderão beneficiar de um intercâmbio estreito com benefícios mútuos.
        A amplitude desse intercâmbio pode ser assumida de forma diferente por
        cada filósofo e cientista. Mas, pelo menos para a Filosofia, parece-me
        claro que os progressos da Inteligência Artificial não devem nem podem
        ser desprezados.
        
        Sara Bizarro
        sarabizarro@yahoo.com