A tese segundo a qual certas proposições necessárias
        só podem ser conhecidas empiricamente, argumentada por Kripke (1980;
        1993: 162-191), contraria aquilo que foi defendido pela filosofia
        tradicional. A filosofia tradicional defendeu que se uma proposição é
        necessária não pode ser conhecida por meios empíricos, que todas as
        proposições necessárias conhecidas são conhecidas a priori.
        Apesar da distinção de domínios das modalidades ser já evidente a
        partir do uso tradicional dos termos "necessário" e "a
        priori" aplicados a proposições verdadeiras, a maior parte
        dos autores da filosofia tradicional defendeu a co-extensionalidade
        necessidade-aprioridade.
        
Vou procurar argumentar a favor da plausibilidade da tese kripkeana
        e, consequentemente, da plausibilidade da sua refutação da tese
        tradicional. Na medida em que Kant é um explícito representante da
        tese tradicional, procurarei defender a plausibilidade da refutação
        Kripkeana da tese Kantiana.
        
        
        1.
        
Começo por destacar as teses em conflito e suas possíveis versões.
        
Tese tradicional (TT): Se p é uma proposição necessária então
        p é conhecida a priori.
        Tese Kripkeana (TK): Para alguns valores de p, p é uma proposição
        necessária e p só pode ser conhecida empiricamente.
        
A tese tradicional pode ser interpretada em sentido amplo e em
        sentido restrito. Em sentido amplo (se p é uma proposição necessária
        então p é a priori), afirma que é em virtude de uma verdade
        ser necessária que ela é a priori, que todas as proposições
        necessárias são a priori. Interpretada em sentido restrito,
        isto é, restringida a proposições conhecidas (se p é uma
        proposição necessária e se p é conhecida, então p é conhecida a
        priori), afirma que todas as verdades necessárias conhecidas são
        conhecidas a priori, que é por meios a priori que
        conhecemos proposições necessárias.
        
A tese tradicional é susceptível de três versões que poderão ser
        distinguidas, embora Kant, como se verá mais adiante, as pareça
        confundir:
        
Versão ( I ): Se p é necessária então sabemos a priori
        que p
        Versão (II): Se p é necessária então sabemos a priori que p
        é necessariamente verdadeira.
        Versão (III): Se p é necessária então sabemos a priori que p
        é necessária.
        
A versão (I) afirma que se uma proposição é necessária então
        conhecemos a priori o valor de verdade dessa proposição, isto
        é, sabemos a priori que é verdadeira. A versão (II) afirma que
        se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o
        seu estatuto modal específico, isto é, sabemos a priori que é
        necessariamente verdadeira. A versão (III) afirma que se uma
        proposição é necessária então conhecemos a priori o seu
        estatuto modal geral, isto é, sabemos a priori que é
        necessária sem atender ao facto de ser ou não verdadeira.
        
A versão (II), que é a conjugação da versão (I) e (III), é a
        versão defendida por Kant que parece não distinguir o conhecimento do
        estatuto modal geral de uma proposição necessária do conhecimento do
        seu valor de verdade.
        
Estas versões da tese tradicional poderão ter as suas
        correspondentes restritas. A versão (III) restrita equivale à versão
        (II) restrita, porque se p é necessária e se p é conhecida, então
        saber que p é necessária é saber que p é necessáriamente
        verdadeira. A versão (II) restrita é a versão defendida por Kant para
        quem o conhecimento de uma proposição necessária p é o conhecimento
        de p não só como verdadeira mas como necessariamente verdadeira.
        Assim, se p é necessária e se p é conhecida, então sabemos a
        priori que p é necessariamente verdadeira.
        
(TK) é também susceptível de duas versões, ambas defendidas por
        Kripke:
        
Versão fraca (I´): Para alguns valores de p, p é necessária e
        sabemos só aposteriori que p
        Versão forte (II´): Para alguns valores de p, p é necessária e
        sabemos só a posteriori que p é necessariamente verdadeira.
        
A versão fraca (I´) afirma que podemos conhecer apenas
        empiricamente o valor de verdade de certas proposições necessárias
        contrariando a versão (I) da tese tradicional restrita. A
        argumentação que está na base da versão fraca (I´), que discutirei
        mais adiante, mostra que o facto de uma proposição ser necessária
        nada tem a ver com o facto de ser conhecida ou com o modo de ser
        conhecida, e que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição
        necessária não é equivalente ao conhecimento do seu estatuto modal
        geral. A refutação da versão (I) da tese tradicional ampla segue-se
        imediatamente: certas proposições necessárias, que se sabe serem
        necessárias, não são conhecidas de facto (os casos de proposições
        matemáticas indecidíveis); segue-se ainda, contrariando a versão
        restrita respectiva da tese tradicional, que certas proposições
        necessárias, que não se sabe serem necessárias, apenas empiricamente
        podem ser conhecidas (casos exemplificativos da versão fraca da tese
        kripkeana).
        
A versão forte (II´) afirma que podemos conhecer apenas
        empiricamente o estatuto modal específico de proposições
        necessárias, contrariando a versão (II) restrita da tese tradicional.
        A argumentação que está na base na versão forte (II´) parte da
        premissa de que só empiricamente podemos conhecer o valor de verdade de
        certas proposições necessárias (versão fraca), e da premissa de que
        conhecemos a priori o seu estatuto modal geral, concluindo que
        só empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal específico.
        Assim, refutando a versão (II) da tese tradicional ampla, mostra que
        certas proposições necessárias não são conhecidas como
        necessariamente verdadeiras, pois não são conhecidas de todo (nos
        casos atrás referidos de proposições matemáticas indecidíveis);
        contrariando a respectiva versão restrita, mostra que certas
        proposições necessárias apenas empiricamente podem ser conhecidas
        como tal (nos casos exemplificativos da versão forte). A tese kripkeana
        não tem uma versão (III´) pois esta equivale à versão forte: se
        sabemos apenas empiricamente o valor de verdade de certas proposições
        necessárias e se sabemos a priori que são necessárias então
        sabemos apenas empiricamente que são necessariamente verdadeiras.
        Embora Kripke não contrarie a ideia de que o estatuto modal geral de
        proposições necessárias conhecidas, é conhecido a priori,
        refuta a ideia de que é em virtude de uma proposição ser necessária
        que conhecemos a priori o seu estatuto modal geral, refuta a
        versão (III) da tese tradicional ampla. Na medida em que o facto de uma
        proposição ser necessária nada tem a ver com o facto de ser conhecida
        (como necessariamente verdadeira), e na medida em que o conhecimento do
        valor de verdade de uma proposição necessária não se confunde com o
        conhecimento do seu estatuto modal geral, podemos conhecer o valor de
        verdade de proposições necessárias sem que saibamos que são
        necessárias. Trata-se dos casos que exemplificam a versão fraca da
        tese kripkeana.
        
O aspecto preliminar da refutação Kripkeana da tese tradicional
        consiste em tomar a distinção de domínios das modalidades envolvidas,
        distinção que é já evidente a partir do uso tradicional das
        noções, e em mostrar que não é o caso que, por definição, aquela
        implicação se verifique: o facto de uma proposição ser necessária
        nada tem conceptualmente a ver com o facto de ser conhecida ou com o
        modo como é conhecida e, portanto, conceptualmente daí não se segue
        que seja a priori. A noção de apriori é uma noção
        epistémica, que caracteriza o modo como uma proposição é conhecida
        (o de ser conhecida independentemente da experiência), e a noção de
        necessidade é uma noção alética, que caracteriza o modo de uma
        proposição ser verdadeira (o de ser verdadeira em todos os mundos
        possíveis).
        
Kripke pretende assim evidenciar que a tese tradicional não é uma
        tese verdadeira por definição, pelo que a implicação que veicula
        exige argumentos substantivos.
        
        2.
        
Kant defende explicitamente a tese tradicional, pelo menos no seu
        sentido restrito, ao declarar que a necessidade é o critério do
        conhecimento a priori: "se encontramos uma proposição que
        apenas se possa pensar como necessária estamos em presença de um
        juízo a priori" (1985: 38). A necessidade é assim vista
        por Kant como uma condição suficiente da aprioridade.
        
Trata-se então de saber se a tese Kantiana apresenta argumentos
        substantivos para defender que a necessidade é uma condição
        suficiente da aprioridade ou se ela se funda, como parece acontecer, na
        confusão entre a noção epistemológica e a noção alética de
        necessidade.
        
Kant parece simplesmente tomar como garantido e evidente que as
        proposições gerais da Matemática e da Física são necessariamente
        verdadeiras, usando o conceito de necessidade para construir o critério
        da aprioridade. A argumentação de Kant para justificar o carácter a
        priori das proposições e princípios da Matemática e da Física,
        é a de que temos de usar estes princípios e proposições para ter
        experiência, pelo que não os podemos adquirir da experiência. Ora, se
        este é o único modo de Kant argumentar a favor do carácter
        necessariamente verdadeiro daquelas proposições e princípios, então
        poder-se-á afirmar que o filósofo adopta um sentido peculiar de
        "necessidade" enquanto condição necessária da experiência,
        isto é, enquanto condição transcendental: alguma coisa é necessária
        se é verdadeira em todos os mundos de que podemos ter experiência pois
        é sua condição de possibilidade. Assim, admitindo que certas
        proposições gerais são conhecidas a priori dado serem
        imprescindíveis para obter experiência, segue-se que certas
        proposições são epistemicamente necessárias mas não se segue que
        sejam metafisicamente necessárias, que aquilo que descrevem não possa
        ser de outro modo. A argumentação de Kant apenas suporta a ideia de
        que se o estado de coisas fosse de outro modo nada poderia ser
        conhecido, o que é completamente diferente de dizer que não poderia
        ser de outro modo ou que tem necessariamente de ser como é.
        
Se assim for, se Kant usa a noção de necessidade no sentido
        transcendental de condição necessária da experiência, e não no seu
        sentido tradicional, alético, então (TT) apenas defende a trivialidade
        de que todas as proposições que são indispensáveis para ter
        experiência não podem provir da experiência, que tudo o que é
        transcendental é a priori. Neste caso o conflito Kant-Kripke
        seria meramente terminológico: contrariamente a Kripke, Kant não
        usaria a noção de necessidade no seu sentido tradicional de modo de
        uma proposição ser verdadeira. Admitindo não ser legitima esta
        trivialização de (TT), admitindo que Kant usa a noção de necessidade
        no seu sentido tradicional, alético, passo a analisar a plausibilidade
        das duas versões de (TK) e da sua refutação de (TT).
        
        3.
        
A ideia chave de Kant que é comum aos empiristas e que parece
        constituir a razão pela qual (TT) é tradicionalmente defendida, é a
        de que o conhecimento da necessidade não pode provir da experiência.
        Daqui conclui não só que o conhecimento de proposições necessárias
        é a priori (tese tradicional restrita), como parece ainda
        concluir que se uma proposição é necessária então é a priori,
        que é em virtude de uma proposição ser necessária que ela é a
        priori (tese tradicional ampla).
        
Ora, a conclusão de que é em virtude de uma proposição ser
        necessária que ela é a priori (tese tradicional ampla) não
        pode ser retirada da premissa de que o conhecimento da necessidade não
        pode provir da experiência. Não pode ser retirada porque o facto de
        uma proposição ser necessária não implica que saibamos nem que é
        necessária nem que é verdadeira. Por outro lado, a conclusão de que o
        conhecimento de proposições necessárias é a priori (tese
        tradicional restrita) também não pode ser retirada da premissa de que
        o conhecimento da necessidade não pode provir da experiência. Não
        pode ser retirada porque, admitindo que o estatuto modal geral de
        proposições necessárias não pode ser conhecido por meios empíricos,
        não se segue que o seu valor de verdade e, consequentemente, o seu
        estatuto modal específico, não possa ser conhecido empiricamente.
        
Kant parece não só confundir o estatuto modal e o epistémico de
        uma proposição ( ao fazer depender o conhecimento e o modo de
        conhecimento de uma proposição necessária do facto de ela ser
        necessária), como confunde também o conhecimento do valor de verdade
        com o conhecimento do estatuto modal geral de uma proposição
        necessária ( ao identificar o conhecimento de uma verdade necessária
        com o conhecimento da sua necessidade).
        
Partindo da delimitação do conhecimento genuíno como conhecimento
        dos princípios e proposições gerais da Matemática e da Física, Kant
        parece estabelecer que só temos conhecimento genuíno quando sabemos
        não só que uma proposição necessária é verdadeira mas que é
        necessária, isto é, quando conhecemos o estatuto modal específico de
        uma proposição necessária. Assim sendo, o filósofo reduz a tese
        tradicional à sua versão (II). Esta redução tem como consequências
        quer a impossibilidade de se conhecer o valor de verdade de
        proposições necessárias sem se saber que são necessárias, quer a de
        saber que são necessárias sem se conhecer o seu valor de verdade. Ora,
        a tese kripkeana mostra que aquelas situações são possíveis, e,
        consequentemente, que o conhecimento do valor de verdade de uma
        proposição necessária se não deve confundir com o conhecimento do
        seu estatuto modal geral.
        
        4.
        
A tese tradicional parece ser argumentada desta maneira:
        
Uma verdade necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis e
        não só no mundo actual; ora, se essa verdade fosse conhecida apenas
        por meios empíricos, então dependeria de aspectos do mundo actual,
        pois empiricamente só podemos conhecer factos acerca do mundo actual,
        e, portanto, não seria uma verdade necessária; logo, o conhecimento de
        uma verdade necessária não pode depender da contingência do
        conhecimento limitado ao mundo actual, uma verdade necessária é a
        priori.
        
No argumento acima conclui-se que se uma verdade é necessária
        então é a priori, através de um raciocínio por redução ao
        absurdo: se uma verdade necessária fosse conhecida por meios
        empíricos, aquela verdade dependeria da contingência do mundo actual;
        ora, uma verdade que depende de aspectos do mundo actual não é uma
        verdade necessária.
        
Este raciocínio, ao concluir que uma verdade conhecida por meios
        empíricos não pode ser uma verdade necessária, confunde o estatuto
        modal de uma proposição necessária com o modo como o seu valor de
        verdade é conhecido. Ora, o facto do conhecimento do valor de verdade
        de uma proposição necessária depender de aspectos do mundo actual,
        ser conhecido empiricamente, não implica que essa verdade não seja
        necessária : uma coisa é o estatuto modal de uma proposição, neste
        caso o ser necessária, outra é o seu estatuto epistémico, isto é, o
        modo como é conhecida.
        
Ao concluir que o conhecimento de uma verdade necessária não pode
        depender da contingência do conhecimento limitado ao mundo actual, o
        argumento confunde ainda o conhecimento do valor de verdade de uma
        proposição necessária com o conhecimento do seu estatuto modal geral.
        Ora, não só podemos conhecer o valor de verdade de proposições
        necessárias sem sabermos que são necessárias, como podemos saber que
        são necessárias e não sabermos o seu valor de verdade: uma coisa é
        sabermos que uma proposição é verdadeira e outra é sabermos que é
        necessária, e só quando temos ambos os conhecimentos é que sabemos
        que a proposição é necessariamente verdadeira.
        
Assim, a conclusão de que se uma proposição é necessária então
        é conhecida a priori (tese tradicional ampla) não só resulta
        da confusão assinalada entre o estatuto modal e o epistémico de uma
        proposição, como tem a consequência, imediatamente refutável, de que
        todas as proposições necessárias são conhecidas. Digo imediatamente
        refutável porque certas proposições matemáticas, como é o caso da
        Conjectura de Goldbach, embora sejam necessárias e saibamos a priori
        que o são, não são conhecidas de todo, isto é, sendo indecidíveis,
        não se sabe se são verdadeiras ou falsas. Por outro lado, a conclusão
        de que se uma proposição necessária é conhecida então é conhecida a
        priori (tese tradicional restrita), também não só resulta da
        indistinção entre o conhecimento do valor de verdade de uma
        proposição necessária e o conhecimento do seu estatuto modal geral,
        como pode ser imediatamente contrariada. Pode ser contrariada porque
        podemos conhecer só empiricamente não só o valor de verdade de uma
        proposição necessária (versão fraca de (TK)) como o seu estatuto
        modal específico (versão forte de (TK)).
        
Sintetizando, a contestação kripkeana do argumento que parece estar
        na base da tese tradicional mostra que, do facto de o valor de verdade
        de uma proposição necessária p só poder ser conhecido empiricamente
        e, portanto, depender de aspectos do mundo actual, não se segue a
        impossibilidade de p ser necessária. Não se segue porque a necessidade
        de uma proposição nada tem a ver com o modo como o seu valor de
        verdade é conhecido ou se é ou não conhecido, sendo possíveis casos
        de proposições necessárias cujo valor de verdade só empiricamente
        pode ser conhecido (versão (I´) de (TK) que contraria a versão
        correspondente de (TT) restrita), e de proposições necessárias cujo
        valor de verdade não é conhecido de todo (como a conjectura de
        Goldbach referida acima, que refuta a versão (I) ampla de (TT)).
        
Basta a versão fraca da tese kripkeana para refutar o argumento que
        está na base da tese tradicional: o conhecimento do valor de verdade de
        proposições necessárias não depende do facto de serem necessárias
        nem do facto de se saber que são necessárias, pelo que é
        perfeitamente plausível que só empiricamente possamos saber que certas
        proposições necessárias são verdadeiras, estando este conhecimento
        limitado a aspectos do mundo actual, sem sabermos que são necessárias.
        É claro que a exemplificação da versão fraca da tese kripkeana,
        embora não exija que a pessoa em questão conheça o estatuto modal
        geral das proposições necessárias conhecidas apenas empiricamente,
        exige que alguém estabeleça que essas proposições são de facto
        necessárias. O cumprimento desta exigência permite a versão forte da
        tese kripkeana.
        
Mostrei que a versão (II) da tese tradicional, parece ser a versão
        adoptada por Kant ao não distinguir a versão (I) e (III). Ora, esta
        indistinção é imediatamente refutada pela versão fraca da tese
        Kripkeana que mostra que podemos conhecer o valor de verdade de certas
        proposições necessárias sem que saibamos que são necessárias.
        
        5.
        
A versão forte da tese Kripkeana acrescenta argumentos que permitem
        contrariar a versão (II) da tese tradicional restrita que é, como se
        viu atrás, a versão adoptada por Kant dada a indistinção da versão
        (I) e (III).
        
A premissa central da argumentação de Kripke em defesa da versão
        forte da sua tese, da existência de verdades necessárias que só
        empiricamente podem ser conhecidas como tal, é a de que certas
        proposições que não são matemáticas têm uma característica que é
        própria das proposições matemáticas, a de que sabemos a priori
        que se são verdadeiras são necessariamente verdadeiras: "a
        análise filosófica diz-nos que não podem ser contingentemente
        verdadeiras, pelo que qualquer conhecimento empírico da sua verdade é
        automaticamente um conhecimento empírico de que são necessárias"
        (1980: 159). O argumento pode ser assim expresso:
        
(1) Sabemos a priori que se p então necessáriamente p
        / Sabemos por "análise filosófica" que certas proposições
        verdadeiras são necessariamente verdadeiras
        (2) Sabemos só aposteriori que p / Só podemos saber por meios
        empíricos que aquelas proposições são verdadeiras
        (3) Sabemos só a posteriori que necessariamente p /Só
        empiricamente podemos saber que aquelas proposições são
        necessáriamente verdadeiras.
        
A premissa (1) afirma que conhecemos a priori o estatuto modal
        geral de certas proposições, que sabemos a priori que certas
        proposições são necessárias nada dizendo acerca do seu real valor de
        verdade.
        
A premissa (2) afirma que só empiricamente podemos conhecer o seu
        valor de verdade , que só empiricamente sabemos que são verdadeiras.
        
Em (3) conclui-se que só empiricamente podemos conhecer aquelas
        proposições como necessariamente verdadeiras.
        
A conclusão (3), a versão forte de (TK), exige aquilo cuja
        possibilidade já tinha sido demonstrada na versão fraca: que o valor
        de verdade de certas proposições necessárias só pode ser conhecido
        por meios empíricos (premissa (2)). Exige ainda que saibamos a
        priori que essas proposições são necessárias (premissa (1)).
        
Na maior parte dos casos, nos casos não triviais do Necessário a
        posteriori, a premissa (1) não pode ser demonstrada fazendo apelo
        apenas à tese semântica da Designação Rígida, a alguma lógica
        modal elementar e a certos princípios lógicos incontroversos. É
        exigido, para a sua demonstração, a admissão do Essencialismo
        substantivo, isto é, de certos princípios essencialistas não
        triviais. Utilizarei aqui três exemplificações correspondentes a
        três tipos de casos kripkeanos do Necessário a posteriori,
        sendo as duas últimas exemplificações correspondentes a casos não
        triviais do Necessário a posteriori:
        
1º- Sabemos a priori, por meio da tese semântica da
        Designação Rígida, de alguma lógica modal elementar e do princípio
        lógico da Necessidade da Identidade, que:
        Se Véspero (se existe) é idêntico a Fósforo então necessariamente
        Véspero é idêntico a Fósforo.
        Ora, só por meios empíricos podemos saber que:
        Véspero é idêntico a Fósforo.
        Então só empiricamente podemos saber que:
        Necessáriamente Véspero (se existe) é idêntico a Fósforo.
        
2º- Admitindo a premissa essencialista de que a actual composição
        química da substância que designamos rigidamente por "água"
        é uma propriedade essencial da água, uma propriedade que a água
        possui necessariamente em todos os mundos possíveis em que existe,
        sabemos a priori que:
        Se a água tem a composição química H2O então necessariamente a
        água tem a composição química H2O.
        Ora, só empiricamente sabemos que:
        A água tem a composição química H2O
        Então só empiricamente sabemos que:
        Necessariamente a água tem a composição química H2O.
        
3º - Admitindo a premissa essencialista de que ter os progenitores
        que se tem no mundo actual é uma propriedade essencial da pessoa em
        questão, sabemos a priori que:
        Se Édipo é filho de Jocasta necessariamente Édipo é filho de
        Jocasta.
        É apenas empiricamente que sabemos que
        Édipo é filho de Jocasta.
        Então só empiricamente sabemos que:
        Necessáriamente Édipo é filho de Jocasta.
        
Casulo (1987: 161-169 ) discute os casos do Necessário a
        posteriori de Kripke que envolvem a admissão de propriedades
        essenciais não triviais (2º e 3º casos), e considera que a
        reivindicação de que, admitindo a existência de propriedades
        essenciais, existem proposições necessárias que são conhecidas
        apenas a posteriori, é ambigua. A tese-conclusão segundo a qual
        sabemos só a posteriori que p é necessária (sendo p uma
        proposição acerca de uma propriedade essencial de um objecto), pode
        ser interpretada como significando que:
        
(A) sabe-se a posteriori que p é necessária
        (B) sabe-se a posteriori que p é necessariamente verdadeira.
        Ora, argumenta Casulo, admitindo a existência de propriedades
        essenciais, segue-se que o valor de verdade de uma proposição que
        atribua uma propriedade essencial a um objecto pode ser apenas conhecido
        a posteriori, mas não se segue que que o seu estatuto modal
        geral possa apenas ser conhecido a posteriori.
        
O argumento de Casulo não contraria o de Kripke. A interpretação
        kripkeana da tese-conclusão não é (A), a de que conhecemos só a
        posteriori o estatuto modal geral de p, mas sim (B) a de que só a
        posteriori conhecemos o seu estatuto modal específico. (B) é a
        versão forte da tese do Necessário a posteriori. A
        reivindicação de Kripke de que necessariamente p é conhecível apenas
        a posteriori, é uma reivindicação acerca do estatuto modal
        específico de uma proposição, baseada no facto de p ser uma
        proposição acerca de um objecto possuindo uma propriedade essencial, e
        de o valor de verdade de p ser conhecível apenas a posteriori.
        Kripke não defende que o estatuto modal geral de proposições acerca
        de propriedades essenciais de um objecto é a posteriori. Pelo
        contrário, argumenta que sabemos por análise filosófica, a priori,
        que se uma frase de identidade ou de atribuições de essência é
        verdadeira, então é necessariamente verdadeira.
        
A tese kripkeana defende ser possível conhecer a posteriori o
        valor de verdade de proposições necessárias (versão fraca), bem como
        o seu estatuto modal específico (versão forte). No entanto não nega
        que o reconhecimento do estatuto modal geral de certas proposições,
        nomeadamente se são necessárias independentemente do facto de se saber
        se são verdadeiras ou falsas, seja a priori.
        
De facto todos casos do Necessário a posteriori envolvem uma
        premissa a priori acerca do estatuto modal geral de uma frase de
        identidade ou de atribuição de essência, que é uma condicional da
        forma éP®ÿPù : sabemos só a posteriori que necessariamente
        Véspero é Fósforo, a partir do nosso conhecimento a priori da
        premissa "Se Véspero é Fósforo então necessariamente Véspero
        é Fósforo" (e do conhecimento da premissa a posteriori
        "Véspero é Fósforo"); sabemos só a posteriori que
        necessariamente a água é H2O, a partir do nosso conhecimento a
        priori da premissa "se a água é H2O então necessariamente a
        água é H2O" (e do conhecimento da premissa a posteriori
        "Água é H2O"); sabemos só a posteriori que
        necessariamente Édipo é filho de Jocasta, a partir do nosso
        conhecimento a priori da premissa "Se Édipo é filho de
        Jocasta, necessáriamente Édipo é filho de Jocasta" (e do
        conhecimento da premissa a posteriori "Édipo é filho de
        Jocasta").
        
        6.
        
Em reforço da legitimidade da conclusão (3) do argumento (1)-(3),
        que corresponde à versão forte de (TK), Kripke (1993:180) parece
        propor um princípio adicional que pode ser assim formulado: se uma
        verdade é uma consequência lógica de duas verdades e se uma delas é a
        posteriori, então aquela é a posteriori. Retirado do
        contexto epistémico, o argumento (1)-(3) é válido, isto é, a
        conclusão é uma consequência lógica das premissas. Veja-se a
        seguinte exemplificação do argumento:
        
(4) Se água é H20 então necessariamente água é H20
        (5) Água é H20
        (6)\Necessariamente água é H20
        
Das premissas (4) e (5) segue-se logicamente, por modus ponens, a
        conclusão (6). A justificação para (6) ser conhecida a posteriori
        está no facto de uma das premissas nas quais se baseia ser a
        posteriori. Assim, (4) é a priori: sabemos por
        "análise filosófica" que se a constituição química actual
        da água é H20 então a água é H20 em todos os mundos possíveis; (5)
        é a posteriori dado ser uma descoberta científica; (6) é a
        posteriori pois é uma consequência lógica de (4) e (5).
        
É possível encontrar contra-exemplos ao princípio segundo o qual
        se uma verdade é uma consequência lógica de duas premissas em que uma
        delas é a posteriori, essa verdade é a posteriori .
        Nesses contra-exemplos, no entanto, as premissas condicionais são
        epistemicamente irrelevantes. Veja-se um contra-exemplo cuja condicional
        tem como consequente o caso típico do contingente a priori de
        Kripke:
        
(7) Se a água é H2O então um metro é o comprimento de S em t0
        (8) A água é H2O
        (9) \Um metro é o comprimento de S em t0
        
A premissa condicional (7) é a priori pois a sua consequente
        é a priori. Embora seja epistemicamente não relevante,
        contrariamente aos casos exemplificativos do Necessário a posteriori
        dados por Kripke, a conclusão não deixa de ser uma consequência
        lógica das premissas. A conclusão (9) é a priori embora seja
        uma consequência lógica de (7) e (8) sendo (8) a posteriori.
        
O contra-exemplo (e semelhantes) parece-me só poder ser refutado se
        ao princípio de Kripke se acrescentar a exigência de relevância
        epistémica. Na medida em que estamos a lidar com contextos epistémicos
        o carácter epistemicamente irrelevante da premissa condicional tem uma
        importância capital. Numa condicional epistemicamente irrelevante o
        conhecimento do valor de verdade da consequente não deriva do
        conhecimento do valor de verdade da antecedente e, portanto, o modo de
        conhecer a consequente não deriva do modo de conhecer a antecedente. É
        a ausência dessa relevância que produz o contra-exemplo: a conclusão
        (9) é uma verdade a priori porque constitui a consequente não
        relevante da premissa condicional (7), pelo que mesmo que só a
        posteriori se possa conhecer a antecedente, a premissa (8), não se
        segue que só a posteriori se possa conhecer a consequente, a
        conclusão (9). O modo de conhecer a antecedente da condiconal, a
        premissa (8), é independente do modo de conhecer a consequente da
        condicional, a premissa (9) e, sendo esta a priori, pode ser
        conhecida a priori.
        
Ora, é porque a premissa condicional, nos casos do Necessário a
        posteriori, não é epistemicamente irrelevante, que o modo de
        conhecer a antecedente determina o modo de conhecer a consequente: dado
        que a premissa condicional (4) estabelece uma relevância epistémica da
        sua antecedente para a sua consequente, (6) só pode ser conhecida a
        posteriori porque (5) só pode ser conhecida a posteriori.
        
Do que ficou dito parece-me poder concluir que o princípio adicional
        do argumento de Kripke, para poder ser mantido, exige a seguinte
        reformulação: se uma verdade é consequência lógica e
        epistemicamente relevante de duas premissas, uma delas a posteriori,
        essa verdade é a posteriori.
        
        Referências Bibliográficas
        
          - Casulo, A.(1987). "Kripke on the a priori and the
            Necessary", in Moser (ed), a priori Knowledge. Oxford:
            Oxford University Press, 161-169.
          
 - Kant, E. (1985). Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação
            Calouste Gulbenkian.
          
 - Kripke, S. (1980). Naming and Necessity. Osford: Basil Blackwell.
          
 - Kripke, S. (1993). "Identity and Necessity", in A.W.
            Moore (ed), Meaning and Reference. Oxford: Oxford University Press,
            161-169.
        
 
        Maria Bouça
        mariabouca@mail.telepac.pt