Quando tentam compreender o método científico, os filósofos
desenvolvem diversas concepções da racionalidade científica e
interpretam a história da ciência de acordo com essas concepções.
Filosofias da ciência diferentes produzem assim reconstruções
racionais diferentes para a história da ciência. Mas em que diferem
essas reconstruções? Será que alguma delas é superior às restantes?
Imre Lakatos ocupou-se seriamente destas questões. Examinou com
acuidade as filosofias da ciência mais influentes e propôs a
metodologia dos programas de investigação, uma tentativa original de
proporcionar uma melhor reconstrução racional da história da
ciência. Essa tentativa estrutura os ensaios reunidos em «História da
ciência e suas Reconstruções Racionais». Com este livro, as
Edições 70 dão a conhecer ao público português a obra de Lakatos,
um dos filósofos da ciência mais marcantes deste século.
Lakatos teve um percurso filosófico invulgar. Morreu em 1974 com
pouco mais de 50 anos, e tinha já cerca de quarenta quando iniciou as
investigações que o tornaram conhecido. Karl Popper foi quem mais
influenciou essas investigações. «Mais do que ninguém», declara
Lakatos, «ele mudou a minha vida. Tinha quase quarenta anos quando
entrei no campo magnético do seu pensamento. A sua filosofia ajudou-me
a fazer a ruptura final com a visão hegeliana do mundo, que eu
defendera durante cerca de vinte anos.» Na década de intensa
actividade que precedeu a sua morte, Lakatos não chegou a publicar
qualquer livro, mas muitos dos seus artigos foram postumamente reunidos
em três volumes. O primeiro, «Proofs and Refutations», apresenta-nos
um diálogo delicioso sobre a lógica da descoberta matemática. Os
outros volumes receberam o título convencional de «Philosophical
Papers», e é de um deles que provêm os ensaios traduzidos agora para
português.
O ensaio introdutório ocupa-se do problema da demarcação entre
ciência genuína e pseudociência. A resposta de Popper para este
problema diz-nos que as teorias científicas distinguem-se das
pseudocientíficas em virtude de serem refutáveis, e que a atitude
científica consiste em submeter as teorias a «testes cruciais» que
visam refutá-las ou falsificá-las. Lakatos, no entanto, considera
ingénuo o falsificacionismo de Popper, alegando que este não está de
acordo com o comportamento dos cientistas. Quando rejeitam uma teoria,
os cientistas não o fazem «apenas porque os factos a contradizem».
Perante dados empíricos adversos, não hesitam em invocar hipóteses
auxiliares para salvar as teorias. Vêem esses dados não como
«refutações» das suas conjecturas, mas como simples «anomalias»
que não requerem uma solução imediata. Os testes cruciais de que
Popper fala são assim ficções historicamente infundadas; os relatos
desses testes «são forjados muito depois de as teorias terem sido
abandonadas». Como alternativa ao falsificacionismo, Lakatos sugere que
para resolver o problema da demarcação é melhor pensar não em
teorias ou conjecturas isoladas, mas em unidades mais abrangentes, pois
«a ciência não é simplesmente ensaio e erro, uma série de
conjecturas e refutações». Lakatos designa essas unidades por
«programas de investigação». A questão torna-se assim a de saber o
que é um programa de investigação e o que torna científico um desses
programas.
No segundo ensaio, que intitula o livro, Lakatos explora em
profundidade as relações entre a filosofia e a história da ciência,
acabando por apresentar a sua própria metodologia filosófica como um
programa de investigação historiográfico. Para além de desenvolver a
crítica ao falsificacionismo, Lakatos examina as metodologias
indutivista e convencionalista. Enquanto os indutivistas destacam na
história da ciência a realização de generalizações a partir de
proposições bem comprovadas, os convencionalistas valorizam antes a
descoberta de sistemas de classificação novos e mais simples. Para
Lakatos, no entanto, os grandes momentos da história da ciência
resultam de programas de investigação «progressivos». Mas o que é
afinal um programa de investigação? No terceiro ensaio, onde Lakatos
mostra como as diversas filosofias da ciência reconstroem a revolução
copernicana, encontramos a resposta mais elaborada para esta questão.
Um programa de investigação consiste numa série de teorias em
desenvolvimento. Essas teorias giram em torno de um «centro firme»
constituído pelas proposições fundamentais do programa, que dão
origem a inúmeros problemas e são consideradas irrefutáveis. A
«heurística» do programa proporciona meios para resolver esses
problemas, e a sua «cintura protectora» de hipóteses auxiliares
protege o núcleo firme. Quando as modificações teóricas conduzem a
previsões bem sucedidas de factos novos, o programa é progressivo, mas
se essas modificações forem apenas manobras «ad hoc», então o
programa torna-se degenerativo. Lakatos defende que, entre as
metodologias disponíveis, só a dos programas de investigação permite
considerar racional a revolução copernicana, sendo esse o seu grande
mérito em relação às metodologias rivais.
Com «História da ciência e suas Reconstruções Racionais», o
leitor português pode conhecer o pensamento de Lakatos numa boa
tradução. Falta agora traduzir, e publicar, o admirável «Proofs and
Refutations».
(Recensão publicada no Público)