O objectivo destas páginas é não apenas responder
à pergunta do título, mas também fornecer alguns instrumentos
importantes para quem chega à filosofia pela primeira vez. Este texto
será por isso do interesse, espero, de estudantes, professores e
pessoas que querem realmente saber o que é afinal a filosofia.
Definições
Os professores e manuais portugueses de filosofia que se vêem
confrontados com a pergunta "O que é a filosofia?" sentem-se
geralmente impotentes para dar uma resposta que se compreenda --
acabando muitas vezes por se limitarem a confundir a questão com jogos
de palavras, citações autoritárias e textos obscuros. Não é nada
disso o que me proponho fazer.
Para poder responder à pergunta "O que é a filosofia?"
terei de falar primeiro de definições. Tenho de falar de definições
porque quando as pessoas perguntam "O que é a filosofia?"
estão em geral à espera de um tipo particular de definição. A
definição que as pessoas têm em mente é uma definição explícita.
Uma definição explícita é algo como isto: "Uma pessoa solteira
é uma pessoa que não é casada". As definições explícitas
são, na verdade, raras.
Ninguém sabe definir explicitamente a física -- ou, pelo menos, é
muito difícil fazê-lo. Dizer "A física é a ciência que estuda
os fenómenos físicos" não adianta grande coisa; nós também
podemos dizer que "A filosofia é a prática intelectual que estuda
os problemas filosóficos". A primeira definição não é muito
satisfatória porque se não soubermos o que é a física é pouco
provável que saibamos o que são realmente fenómenos físicos e como
se distinguem tais fenómenos dos fenómenos não físicos. A segunda
também não é muito satisfatória porque é pouco provável que quem
não sabe o que é a filosofia saiba o que são realmente os problemas
filosóficos e como se distinguem tais problemas dos problemas não
filosóficos.
Do facto de sermos incapazes de apresentar uma definição explícita
de uma dada noção não se segue que não saibamos do que estamos a
falar. Afinal, sabemos do que estamos a falar quando falamos de física,
mas poucos de nós são realmente capazes de definir a física. E o
mesmo acontece com imensas noções. Por exemplo, eu não sei definir o
que é a cor azul; mas sei reconhecer a cor azul e diferenciá-la das
outras cores -- apesar de haver casos em que hesito, claro; quando estou
perante um azul-esverdeado, não será antes um verde-azulado? Mas os
casos claros são suficientes para eu poder afirmar que sei do que estou
a falar quando digo que o céu é azul.
Mas como posso eu saber o que é a cor azul ou a física se não sei
definir explicitamente nenhuma dessas noções? Bom, posso saber o que
é a cor azul ou a física apesar de não saber definir explicitamente
nenhuma dessas noções porque as definições, em geral, não são tudo
o que há para nos ajudar a compreender as coisas, e porque, em
particular, há outro tipo de definições além das explícitas.
Por exemplo, eu aprendi a distinguir os objectos azuis dos objectos
de outras cores sem que ninguém me tenha fornecido uma definição
explícita da cor azul. Os psicólogos cognitivos poderão estudar em
pormenor como se dá o processo da aprendizagem das cores, mas não é
isso que interessa agora. O que interessa é que, seja qual for o
processo, esse processo não envolveu uma definição explícita.
Provavelmente, envolveu apenas aquilo a que em filosofia e lógica se
chama "definição implícita": se uma pessoa que não sabe o
que é a cor azul mo perguntar, eu posso apontar para vários objectos
que exibam um azul bem vivo e dizer que esses objectos são azuis. Eu
nunca disse explicitamente o que era o azul. Mas a outra pessoa
compreende o que eu quero dizer. É isto a definição implícita.
A definição implícita ocorre quando alguém me pergunta o que é X
e eu, em vez de dizer "X é Y" aponto apenas para vários XX,
ou exibo vários contextos diferentes em que o termo "X" é
usado. Ilustremos este último tipo de definição implícita: muitas
vezes, ao lermos um romance, deparamo-nos com certos termos que
desconhecemos. Todavia, pelo contexto, percebemos do que se trata: pode
ser, por exemplo, um termo raro que refere certos estados de espírito.
A este tipo de definição implícita chama-se "não
ostensiva" ou "contextual". Ao outro tipo de definição
implícita, a que apresenta objectos que são X para explicar o que o
termo "X" quer dizer, chama-se "ostensiva".
Eis uma curiosidade: há por vezes a tendência para pensar que só
as definições explícitas são as "verdadeiras"
definições. Mas não há qualquer razão para pensar isso. Na verdade,
podemos desenvolver métodos extremamente rigorosos, em lógica, de
definições implícitas contextuais. Eu posso apresentar um sistema de
lógica em que nunca defino explicitamente a condicional nem a
negação; mas a totalidade do sistema constitui uma definição
implícita extremamente rigorosa da condicional e da negação -- a
condicional e a negação são aqueles operadores que têm as
propriedades que o meu sistema lógico exibe.
Caracterizações
Voltemos à física e à filosofia. Uma definição implícita muito
simples de física é dizer que a física é o que os físicos fazem e o
que está escrito nos livros de física. E podemos dizer o mesmo
relativamente à filosofia. E, na verdade, esta é a melhor definição
que podemos ter de física ou de filosofia: a prova do pudim, como se
diz por vezes, consiste em comê-lo. A melhor maneira de saber o que é
a física é estudar física; a melhor maneira de saber o que é a
filosofia é estudar filosofia.
Mas isto é injusto. Como pode alguém decidir se está interessado
em física ou em filosofia sem antes saber qualquer coisa sobre isso?
Terá uma pessoa de estudar física ou filosofia durante 2 anos para
depois saber se realmente estava interessado? Não poderemos dizer nada
à partida que ajude as pessoas? Teremos de as mandar ler manuais de
física ou de filosofia para poderem perceber do que tratam tais coisas?
Claro que não. Isto seria ridículo.
Apesar de uma definição implícita de filosofia ou de física ser a
melhor maneira de ficar a saber realmente o que é a física ou a
filosofia, podemos no entanto destacar algumas características mais
importantes destas disciplinas e explicar, de forma não exaustiva, em
que consiste o estudo da física e da filosofia. Chama-se a isto
"caracterização". Nós fazemos isto muitas vezes, quando
não somos capazes de definir algo, nem explícita nem implicitamente.
Por exemplo, eu não sei definir explicitamente o estilo de uma
grande escritora como Marguerite Yourcenar; e se estiver a falar com um
amigo posso não ter um livro desta autora à mão para lhe mostrar
alguns parágrafos e páginas memoráveis. Mas posso caracterizar o
estilo dela. Posso destacar algumas das características mais
importantes do seu estilo. Claro que isto não será uma definição
porque muitos outros escritores poderão ter algumas destas
características ou mesmo todas. Mas estas características de algum
modo conseguirão dar uma ideia do que é o estilo de Marguerite
Yourcenar, sem que o meu amigo tenha de ler a obra completa da autora e
sem que eu tenha de lhe ler alguns dos seus melhores trechos.
E é isso que vou fazer para responder à nossa pergunta. O que é a
filosofia? A minha resposta irá consistir em apresentar algumas das
características mais importantes da filosofia. Mas vou fazer mais:
darei vários exemplos de problemas filosóficos. Assim, com uma
caracterização e recorrendo a exemplos, espero dar uma boa ideia do
que é a filosofia. Acresce a isso que estarei ao mesmo tempo a fornecer
ao leitor alguns instrumentos filosóficos básicos -- como as noções
de "definição" e "caracterização" que já
apresentei -- que lhe permitirão dar os primeiros passos na filosofia.
Teorias e afirmações
Das várias actividades humanas, como a religião, a arte, a ciência
e a filosofia, as duas últimas dedicam-se a resolver problemas. A
física ocupa-se dos problemas físicos, a matemática dos problemas
matemáticos e a filosofia dos problemas filosóficos. Qualquer destas
disciplinas apresenta teorias, que pretendem resolver os problemas de
que se ocupam. A física apresenta teorias físicas, a matemática
teorias matemáticas e a filosofia teorias filosóficas. Chama-se por
vezes "teses" às teorias filosóficas; podemos também
chamar-lhes "doutrinas". Não importa, desde que saibamos do
que estamos a falar.
Mas do que estamos nós a falar quando falamos de teorias? O que é
uma teoria? Bom, uma vez mais, talvez não seja possível oferecer uma
definição explícita de "teoria". Mas é pelo menos
possível apresentar um conjunto de características salientes. Aí
estão elas: em primeiro lugar, as teorias não podem confundir-se com
as coisas nem com os fenómenos. A teoria da relatividade de Einstein
não é um fenómeno físico; a teoria de Einstein procura explicar
vários fenómenos físicos. Uma teoria é constituída por
afirmações. Mas o que quer dizer "afirmação"?
Uma afirmação é algo como isto: "Nenhum objecto pode viajar
mais depressa do que a luz." Promessas, perguntas e exclamações
não são afirmações: "Prometo dizer toda a verdade",
"Quem foi Aristóteles?" e "Fecha a porta!" não
são afirmações. Uma afirmação é o que uma frase declarativa com
sentido nos diz. Uma frase como "O João é boa pessoa"
diz-nos que o João é boa pessoa. Claro que há frases declarativas que
não têm sentido: "As dores de cabeça são muito salgadas"
é uma frase declarativa, mas não parece realmente afirmar coisa
alguma. Em filosofia, dizemos que uma frase destas não tem sentido ou
é absurda -- é uma frase que não tem qualquer valor de verdade. Não
se trata apenas de nós não sabermos qual é o valor de verdade que ela
tem -- não se trata apenas de não sabermos se a frase é verdadeira ou
falsa. É mais forte do que isso. A frase não tem valor de verdade
algum. É muito diferente da frase "Há água em Marte" que é
uma frase verdadeira ou falsa, apesar de ninguém saber se é verdadeira
ou falsa.
Uma das características de qualquer actividade -- intelectual ou
não -- é o facto de dar um significado especial e muito preciso a
certas palavras ou expressões. Isso acontece na ciência, nas artes, na
religião e em várias actividades profissionais. Isto não quer dizer
que estejamos a reformar a linguagem, ou a usar a linguagem de uma forma
falaciosa e propositadamente confusa -- apesar de isso por vezes
acontecer realmente na má filosofia. Isto acontece na má filosofia
porque as pessoas que não têm a devida preparação filosófica têm
tendência para começar a usar as palavras da filosofia sem perceberem
bem o que estão a dizer; e começam a falar do Ser e do Acto e da
Potência e da Metafísica, etc., etc., apesar de terem apenas uma ideia
pálida e muitas vezes errada do que essas palavras querem dizer. Para
estas pessoas, a filosofia não passa de um jogo que se faz com palavras
que mal se conhecem. Isto, claro, não é senão uma pálida imagem do
que é a filosofia.
Em suma: o uso técnico de certos termos em filosofia é um recurso
comum a outras actividades e que nos ajuda a fazer melhor o nosso
trabalho -- mas implica da nossa parte que sejamos capazes de dominar o
sentido especial em que usamos esses termos, se não quisermos que a
nossa actividade seja uma caricatura da verdadeira filosofia. Por
exemplo, em física, o termo "massa" tem um significado
bastante preciso e que não coincide com o significado que, no
dia-a-dia, damos a esta palavra. Em filosofia, os termos
"absurdo" e "sentido" são usados de um modo
ligeiramente diferente do habitual. No dia-a-dia, se eu afirmar uma
contradição, como "Marco Aurélio foi um filósofo e não foi um
filósofo", a nossa primeira reacção é pensar que estamos a
querer dizer que, de um certo ponto de vista e relativamente a certos
aspectos, Marco Aurélio foi um filósofo, mas que de outros pontos de
vista e relativamente a outros aspectos, Marco Aurélio não foi um
filósofo. Mas se insistirmos na nossa afirmação, dizendo que não é
isso que queremos dizer, mas antes que ele foi e não foi um filósofo,
independentemente dos pontos de vista e dos aspectos que tivermos em
mente, a nossa reacção natural é exclamar "Isso é
absurdo!" ou "Isso não faz sentido!".
Usamos estas mesmas expressões para qualificar afirmações
claramente falsas. Se eu disser que a água do mar é óptima para matar
a sede, a reacção é a mesma: "Isso é absurdo!" ou
"Isso não faz sentido". Do ponto de vista do uso técnico que
se faz em filosofia do termo "sentido" ou "absurdo",
uma afirmação só não tem sentido (isto é, só é absurda) quando
não é susceptível de ter valor de verdade. Assim, a afirmação
"Marco Aurélio foi um filósofo e não foi um filósofo" não
é uma afirmação absurda: é uma afirmação com sentido. É uma
afirmação com sentido visto que é falsa -- na verdade, é
necessariamente falsa. Dado que é falsa, tem um valor de verdade; dado
que tem um valor de verdade, tem sentido. O mesmo acontece com a
afirmação "A água do mar é óptima para matar a sede".
Do ponto de vista popular ou comum, dizemos que uma afirmação é
absurda quando é, do ponto de vista conversacional, inútil. Ora, as
frases necessariamente falsas e as frases obviamente falsas são,
geralmente, inúteis do ponto de vista conversacional -- isto é, não
constituem uma contribuição construtiva para uma conversa. Daí que
tenhamos tendência para pensar que essas frases não têm sentido.
As frases que nos interessam são as que exprimem afirmações
susceptíveis de serem verdadeiras ou falsas, ainda que não saibamos se
são verdadeiras ou falsas -- muitas vezes, o objectivo é mesmo tentar
descobrir se são verdadeiras ou falsas. Por exemplo, não se sabe se
Deus existe ou não -- esta é uma questão filosófica tradicional. Mas
só faz sentido discutir esta questão se acharmos que a frase
"Deus existe" exprime realmente uma afirmação; se não
exprime uma afirmação nada há para discutir, porque a frase não pode
ser verdadeira nem falsa.
Mas não será que as frases exprimem muitas outras coisas, além do
que exprimem literalmente? Claro que sim. A frase "Deus
existe" pode exprimir um anseio ou esperança, ou pelo contrário
uma posição irónica perante o mal que grassa no mundo. As frases
podem exprimir muitas coisas. Mas na discussão filosófica
interessa-nos também o seu sentido literal, e não apenas os seus
sentidos laterais. Fugir do sentido literal das frases e pretender que
só os sentidos laterais são importantes é uma visão redutora da
filosofia que contraria a tradição filosófica e que em nada contribui
para a discussão clara, criativa e crítica dos problemas da filosofia.
O facto de nós precisarmos de saber o que exprimem literalmente as
frases da filosofia obriga-nos a evitar tanto quanto possível as
ambiguidades e as vaguezas. Uma frase é ambígua quando exprime mais de
uma afirmação. Se eu disser "A filosofia consiste na sua
história" posso estar querer afirmar duas coisas completamente
diferentes: ou que o trabalho filosófico consiste apenas em fazer a
história do que se fez; ou que o trabalho filosófico que se faz fica
inscrito na história. Para discutirmos ideias -- em filosofia, como em
tudo o resto -- é muito importante a precisão na linguagem: temos de
evitar tanto quanto possível as ambiguidades.
Por vezes, o discurso "filosófico" de algumas pessoas
cultiva a ambiguidade, por acharem que é mais "rico". Mas
isto é uma ilusão. A verdadeira riqueza discursiva e filosófica
resulta do valor das ideias defendidas e não do facto de não se saber
bem o que se está a defender porque se defendem várias coisas, muitas
vezes opostas, ao mesmo tempo. Pelo contrário, este modo de proceder é
empobrecedor porque é redutor -- reduz a filosofia a um jogo de
palavras. A filosofia não é um jogo de palavras; a filosofia não é
um jogo. A uma pessoa sem preparação filosófica, a filosofia pode
parecer um jogo, mas isso é só porque não se tem preparação
filosófica; se eu ler um texto de medicina do século XVI, porque nada
sei de medicina, também me vai parecer que se trata apenas de um jogo
de palavras inconsequente. Mas isso é uma ilusão.
Além da ambiguidade, temos também de evitar a vagueza. Uma frase é
vaga quando não se sabe que afirmação está a exprimir. Isso acontece
realmente muitas vezes em filosofia, e isso pode dar uma vez mais às
pessoas a ideia de que a vagueza é uma propriedade a cultivar em
filosofia. Uma vez mais, isso resulta de não se ter uma preparação
filosófica adequada e, uma vez mais, isso é uma perspectiva redutora
da filosofia. Se queremos pensar, reflectir e ser críticos, temos de
saber sobre o que estamos exactamente a pensar. Mas se a frase que temos
perante nós for de tal modo vaga que não conseguimos saber o que quer
essa frase dizer exactamente, então a discussão não pode prosseguir.
Em filosofia há uma exigência de clareza. A ambiguidade e a vagueza
são incompatíveis com a clareza. Logo, devemos evitar a ambiguidade e
a vagueza. Em filosofia há também uma exigência de honestidade. Mas a
ambiguidade e a vagueza não são compatíveis com a honestidade. Se eu
nunca me comprometer realmente com nenhuma afirmação porque o que digo
é sempre vago e ambíguo, a minha posição será sempre irrefutável.
Mas a honestidade exige que apresentemos as nossas ideias de forma a que
as outras pessoas as possam avaliar criticamente. Logo, devemos ser
claros.
Muito bem. Já compreendemos melhor o que quer dizer
"afirmação". Uma afirmação é o que é expresso por uma
frase declarativa que tenha sentido ou valor de verdade
(independentemente de nós sabermos se a frase é verdadeira ou falsa).
Fala-se por vezes de proposições em vez de afirmações. Há uma
diferença subtil entre as duas coisas, havendo até filósofos que
apostam forte contra a ideia e que existem proposições. Mas essa
diferença não nos interessa agora. Basta-nos perceber que duas frases
diferentes podem exprimir a mesma afirmação ou proposição: as frases
"Portugal é um país pobre" e "Portugal is a poor
country" exprimem a mesma afirmação ou proposição. E uma mesma
frase pode exprimir diferentes afirmações: a frase "Hoje choveu
em Lisboa" pode exprimir a afirmação ou proposição de que no
dia 30 de Junho de 2000 choveu em Lisboa, se for proferida nesse dia, ou
pode exprimir a afirmação ou proposição de que no dia 3 de Dezembro
de 1999 choveu em Lisboa, se for proferida nesse dia.
Consistência e verdade
Agora compreendemos melhor o que é uma teoria, porque compreendemos
melhor o que é uma afirmação. Uma teoria é constituída por um
conjunto de afirmações. Mas nem todos os conjuntos de afirmações
são teorias. As teorias são conjuntos de afirmações que procuram
resolver problemas ou explicar fenómenos. Uma vez que quaisquer
conjuntos de afirmações têm certas propriedades lógicas, as teorias
também têm essas propriedades.
Uma dessas propriedades é a consistência. A consistência é uma
propriedade de duas ou mais afirmações. Duas ou mais afirmações são
consistentes quando podem ser todas verdadeiras. Não quer dizer que
sejam realmente todas verdadeiras; significa apenas que podem ser todas
verdadeiras -- mas talvez sejam todas falsas. Eis um conjunto de
afirmações consistentes:
Portugal é um país africano.
Sócrates era um agricultor tunisino.
Dificilmente quereríamos que estas duas afirmações constituíssem uma
teoria, claro. São afirmações tolas. Mas o que nos importa agora é
que estas duas afirmações são consistentes -- apesar de serem ambas
falsas. Já se vê que o que interessa nas teorias não é apenas que
elas sejam consistentes; interessa que sejam verdadeiras.
Por vezes diz-se que uma teoria é "consistente com os
factos". Isto, claro, é uma forma popular de falar. Podemos falar
assim, desde que compreendamos bem que, a rigor, uma teoria não pode
ser consistente com os factos porque os factos não são afirmações e
a consistência é uma propriedade apenas de afirmações. O que se quer
dizer quando se diz que uma teoria é consistente com os factos é outra
coisa; quer-se dizer que essa teoria é consistente com as descrições
dos factos. Por exemplo, o Holocausto foi um facto -- um facto cujo
horror é difícil de exprimir. Mas não se pode confundir o facto em si
com uma descrição do facto.
Já vimos que a consistência de uma teoria não garante a sua
verdade; mas nem no sentido popular de "consistência com os
factos" a consistência de uma teoria garante a sua verdade.
Vejamos porquê.
Pensemos na seguinte afirmação: "Os animais não podem ter
direitos". Esta afirmação é com certeza consistente com os
factos. Isto é: não há descrições de factos que sejam
inconsistentes com esta afirmação. Mas daí não se segue que esta
afirmação seja verdadeira. Uma maneira fácil de verificar isso é
pensar na afirmação contrária: "Os animais podem ter
direitos". Como também não há descrições de factos que sejam
inconsistentes com esta afirmação, também ela teria de ser
verdadeira, se tudo o que bastasse para a verdade fosse a tal
"consistência com os factos". Mas nesse caso teríamos duas
afirmações contrárias que seriam verdadeiras. Mas isto é absurdo,
porque se duas afirmações são contrárias, não podem ser ambas
verdadeiras. Logo, não é verdade que a "consistência com os
factos" garanta a verdade das teorias.
Algumas pessoas têm tendência para pensar que tudo o que conta nas
teorias filosóficas é serem consistentes. Mas já vimos que a
consistência de uma teoria não garante a sua verdade. Quem pensa isto
está a fazer uma confusão, que resulta talvez do facto de, no caso das
teorias das ciências empíricas, a "consistência com os
factos" garantir a verdade de uma teoria. Mas, precisamente, a
filosofia não é uma ciência empírica. Mas o que quer isto dizer?
O carácter conceptual da filosofia
Pensemos outra vez numa afirmação como "Nenhum objecto pode
viajar mais depressa do que a luz". As afirmações das ciências
empíricas são afirmações do género desta: afirmações que se
referem ao mundo que podemos observar pelos sentidos ou que podemos
inferir a partir de observações e medições complicadas realizadas
com instrumentos como um espectrómetro ou um radiotelescópio. Mas por
mais que façamos medições e observações não iremos descobrir se os
animais têm direitos, nem se Deus existe, nem se há números.
Ao contrário da física e da biologia, a filosofia não tem um
carácter empírico; é um estudo conceptual. Neste aspecto, a filosofia
é mais parecida com a matemática, que também não é uma disciplina
empírica. Mas a filosofia distingue-se da matemática por várias
razões. Em primeiro lugar, não dispõe de métodos formais de
demonstração, como a matemática; em segundo lugar, não se ocupa do
tipo de problemas de que se ocupa a matemática. Mas de que tipo de
problemas se ocupa afinal a filosofia?
Uma vez mais, o melhor é dar exemplos e apontar algumas das
características mais salientes dos problemas filosóficos típicos.
Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristãos têm uma dada concepção
de Deus, os muçulmanos outra e os hindus outra ainda. E há muitas
mais, tantas quantas as religiões. As religiões partem de certas
verdades reveladas pelos seus profetas e inscritas nos seus livros
sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de Deus e encontrar o
caminho da salvação. Mas nada disso são problemas filosóficos. A
filosofia não cultiva dogmas, como a religião; a filosofia faz o
contrário: procura destruir dogmas. Os cristãos, muçulmanos e hindus,
partem do princípio de que existe Deus. A filosofia pergunta: mas que
razões temos para pensar que existe Deus? E, admitindo que existe um
deus sumamente bom e criador, omnisciente e omnipotente, como se explica
a existência do mal? A filosofia faz as perguntas difíceis que muitas
pessoas gostariam de calar, e que efectivamente têm muitas vezes
conseguido calar ao longo da infeliz história humana. Podemos dizer,
poeticamente, que a filosofia é um grito de liberdade contra a
opressão do dogma. E nisto, uma vez mais, a filosofia é semelhante à
ciência.
O que distingue os problemas da filosofia dos problemas da ciência
é o seu carácter conceptual, a sua generalidade e a inexistência de
fronteiras precisas. Os problemas da matemática são também bastante
gerais e em grande medida conceptuais -- mas têm fronteiras muito
precisas. Não se pode determinar matematicamente se os animais têm
direitos; não se pode determinar matematicamente se Deus existe -- e
nem sequer se pode determinar matematicamente se os números existem
independentemente de nós. Qualquer problema com suficiente
generalidade, de carácter conceptual e para a solução do qual não
exista qualquer ciência pode ser um problema filosófico. Os problemas
da matemática têm fronteiras muito claras: têm de poder ser
resolvidos pelos métodos formais da matemática. Em filosofia, pelo
contrário, não há métodos formais para resolver problemas.
Irei de seguida dar alguns exemplos de problemas típicos da
filosofia. Antes, porém, quero esclarecer desde já uma confusão que
costuma subsistir na prática do ensino da filosofia no nosso país.
Essa confusão é a seguinte. Há certas correntes irracionalistas em
filosofia, surgidas no século XIX, que defenderam o fim da filosofia --
falam dramaticamente da "morte da filosofia". O que isto quer
dizer é o seguinte: estas pessoas não acreditam que seja possível
alcançar qualquer tipo de resultados interessantes pela reflexão
filosófica. É como se estivessem intoxicadas pelo positivismo do
século XIX, que afirmava que um dia todo o conhecimento seria
matemático e preciso como a física. Uma vez que a filosofia não é de
modo algum como a física, essas pessoas pensaram que a filosofia era um
projecto sem futuro.
Esta ideia, como todas as ideias filosóficas, deve ser discutida às
claras, com a nossa inteligência crítica, em vez de ser
subterraneamente transmitida aos estudantes como se fosse consensual. E
é claro que não é nada consensual. Nunca se produziu tanta filosofia
de tanta qualidade como hoje em dia; na verdade, produziu-se mais
filosofia nos últimos 60 anos do que em toda a história da filosofia.
É caso para dizer que a filosofia está bem viva.
Mas eu não quero discutir aqui esta ideia da "morte da
filosofia", que paira sobre os manuais e professores do ensino
secundário e superior não como uma ideia claramente articulada, mas
como um pressuposto turvo do qual não se tem bem consciência. O que
quero fazer é mostrar como esta ideia ajuda a lançar a confusão,
desvirtuando a filosofia e transformando-a num parente pobre de
disciplinas respeitáveis como a psicologia, a sociologia, a
antropologia ou os estudos literários. Se temos a filosofia como
profissão e achamos que a filosofia morreu, deveríamos pelo menos ser
consequentes e abandonar completamente a nossa profissão. Ao invés, o
que se verifica é que se cultivam as especulações antropológicas,
sociológicas, etc., sem qualquer base científica, ou que se transforma
a filosofia em crítica literária de má qualidade.
Uma das características da filosofia é o facto de não ser uma
investigação empírica, como já sublinhei; para saber se os animais
têm direitos ou se Deus existe, não tenho de fazer trabalho
científico de campo, não tenho de fazer experiências em
laboratórios, nem tenho de elaborar inquéritos, nem tenho de fazer
estatísticas; limito-me a pensar. Posso ter de usar dados empíricos
fornecidos pelas ciências; mas não compete à filosofia fazer o
levantamento desses dados.
Este modo de proceder tradicional da filosofia, que resulta da sua
natureza conceptual, acaba por contribuir para pseudo-investigações de
quem não sabe distinguir os problemas susceptíveis de serem estudados
pela filosofia dos problemas que só com alguma investigação empírica
podem ser abordados de forma respeitável.
Repare-se na seguinte distinção crucial. Todos nós temos opiniões
sobre vários aspectos do mundo que nos rodeia. Eu vou a um país
estrangeiro e formo uma ideia intuitiva sobre o carácter das pessoas
desse país, comparando-as com as pessoas do meu próprio país. A
formação deste tipo de opiniões é inevitável; mas não se pode
confundir isto com ciência. Ninguém pode dizer, só porque visitou
durante 3 anos a Índia, que os indianos são em geral mais honestos do
que os portugueses. Este resultado não oferece quaisquer garantias; é
suficiente para animar conversas de café com os nossos amigos; mas
basear um estudo sério sobre estas observações não sistemáticas é
uma tolice.
Se temos de basear uma reflexão filosófica sobre dados empíricos,
esses dados empíricos têm de ser fidedignos; não podem resultar da
mera observação de senso comum. Isso é apenas má sociologia ou má
psicologia. Isso não é um estudo sério e honesto. O que é irónico
é que abundam os problemas filosóficos em que podemos reflectir sem
termos de usar informação empírica e só as doutrinas da "morte
da filosofia" afastam as pessoas desses problemas -- fazendo-as
procurar novos problemas que, no entanto, não podem ser seriamente
estudados sem usar os métodos empíricos da sociologia ou da
psicologia.
Outra consequência desastrosa das doutrinas da "morte da
filosofia" é a ideia de que a filosofia é uma arte. Uma vez mais,
podemos defender esta ideia filosófica -- mas às claras, como algo que
tem de ser criticamente avaliado, e não subterraneamente, como algo que
está sempre suposto e latente mas que nunca se manifesta.
É claro que qualquer pessoa pode fazer o que quiser -- e se quiser
escrever textos sobre temas filosóficos com o objectivo de produzir
obras literárias, ninguém deve interferir. Mas é preciso compreender
que esta ideia não é o projecto original da filosofia; o projecto
original da filosofia não era produzir literatura, mas sim
explicações que satisfaçam a nossa curiosidade sobre os aspectos mais
gerais da nossa estrutura conceptual. Não só é redutor querer encarar
a filosofia unicamente como uma forma de literatura, como é algo que
renuncia ao projecto original de pessoas como Platão, Aristóteles,
Descartes, Hume, Kant ou Frege.
Aliás, é também estranho que as pessoas que em geral encaram a
filosofia como uma forma de literatura, gostam depois de interpretar
filosoficamente as artes. É estranho que possamos escrever filosofia
artisticamente e que possamos interpretar filosoficamente as artes, mas
que não possamos interpretar as artes artisticamente nem escrever
filosofia filosoficamente. Claro que perante os artistas uma pessoa com
formação filosófica consegue impressionar, e perante os filósofos os
ademanes "literários" podem ter o seu efeito. Mas o objectivo
de um estudioso não deveria ser impressionar, mas contribuir
modestamente para o avanço e transmissão do conhecimento.
Os problemas da filosofia
Eis, então, alguns exemplos de problemas da filosofia. A filosofia
desenvolveu ao longo da sua vida milenar várias disciplinas distintas.
Por vezes, alguns problemas surgem em mais do que uma disciplina. Mas é
bom ter uma ideia dos diferentes tipos de problemas estudados por
algumas disciplinas da filosofia.
Comecemos pela ética. A ética não estuda os preconceitos
comportamentais -- preconceitos como a ideia católica de que os
homossexuais não podem casar e que ninguém deve ter relações sexuais
antes do casamento. A ética nada tem a ver com este tipo de coisas.
Este tipo de coisas emana de um certo código religioso de
comportamentos, que pouco se relaciona na verdade com a ética -- é
apenas uma manifestação de uma certa visão religiosa do mundo. Faz-se
por vezes uma distinção entre "moral" e "ética"
querendo reservar para esta última a acepção filosófica, ao passo
que a primeira se referiria aos costumes sociais. Mas esta distinção
é artificiosa e caiu em desuso desde há muito tempo.
A ética ocupa-se de vários tipos de problemas bastante distintos.
Os mais fáceis de compreender são os da ética aplicada, que se ocupa
de problemas como o aborto e a eutanásia. Será o aborto um mal que
deve ser proibido? Repare-se que não se trata de saber se o aborto é
um mal aos olhos de Deus ou do Papa ou de qualquer confissão religiosa;
trata-se de saber se o aborto é, eticamente, e à luz da nossa razão,
algo que deve ser proibido, tal como o assassínio é proibido
independentemente das religiões. O que ocupa a reflexão filosófica
não é apenas a tentativa de dizer "Sim, o aborto é um mal"
ou "Não, o aborto não é um mal". O que distingue a
reflexão filosófica é a fundamentação racional: os argumentos que
sustentam as nossas posições. O que importa são os argumentos que se
apresentam para dizer que sim ao aborto ou para dizer que não. O
trabalho da filosofia consiste em estudar esses argumentos e avaliá-los
criticamente. A filosofia é algo que cada um faz com a sua própria
cabeça, em diálogo crítico com os outros. A filosofia não consiste
em ler textos e "comentar" o que esses textos dizem. A
filosofia consiste em pensar nos mesmos problemas que são tratados
nesses textos, o que é muito, muito diferente.
Mas a ética ocupa-se de outras questões menos óbvias. Por exemplo,
o que quer dizer "Matar inocentes é um mal" ou "Não
devemos matar inocentes"? O que quer realmente dizer a palavra
"dever"? Este tipo de problema é enfrentado pelo que se chama
"metaética". A metaética ocupa-se da questão de saber qual
é a natureza do juízo ético. É a área mais geral e conceptual da
ética. Há várias teorias que tentam responder a este problema,
algumas delas tecnicamente bastante complexas e precisas.
A epistemologia é outra disciplina da filosofia. Neste caso,
trata-se de investigar vários problemas relacionados com o nosso
conhecimento. Uma vez mais, o carácter conceptual da filosofia obriga a
distinguir os problemas filosóficos do conhecimento dos problemas
psicológicos ou sociológicos do conhecimento. Por exemplo, a
psicologia cognitiva tem vindo a conduzir várias investigações sobre
o modo como os seres humanos estruturam vários aspectos do
conhecimento. Piaget, por exemplo, procurou estabelecer etapas
diferenciadas no desenvolvimento cognitivo dos seres humanos. Os seus
estudos estão hoje ultrapassados por investigações mais recentes, mas
tanto os seus estudos como os estudos mais recentes não são estudos
filosóficos nem têm interesse para a filosofia. Os problemas estudados
pela epistemologia ou pela filosofia do conhecimento não se referem de
modo algum ao fenómeno do conhecimento tal como ele ocorre realmente
nos seres humanos; os problemas da epistemologia e da filosofia do
conhecimento são mais gerais e de carácter conceptual.
Um dos problemas da epistemologia mais simples de apresentar é este:
o que é o conhecimento? O conhecimento distingue-se da mera opinião
porque o conhecimento é factivo -- isto é, não podemos conhecer
falsidades, apesar de podermos pensar falsidades. Mas o que é realmente
o conhecimento? Não ser trata apenas de opinião, porque as opiniões
podem ser falsas mas o conhecimento não. Será então que o
conhecimento é apenas a opinião verdadeira? Mas será que podemos
dizer que os atomistas gregos sabiam realmente que tudo é composto por
átomos? Eles tinham realmente essa opinião, e essa opinião veio a
verificar-se séculos depois ser verdadeira; mas, de algum modo, parece
que eles não sabiam realmente que tudo era composto de átomos --
apenas tinham essa opinião que, por acaso, acabou por coincidir com a
realidade. O que está em causa neste problema é a definição de
conhecimento -- algo que não pode determinar-se recorrendo a estudos de
natureza empírica.
Outro problema importante na área da epistemologia é a questão da
justificação do conhecimento -- perante um fragmento particular de
pretenso conhecimento, como podemos saber que se trata realmente de
conhecimento e não de uma ilusão? Por exemplo, todos pensamos que o
mundo exterior é independente de nós; mas que razões teremos para
pensar isso? E não haverá razões para pensar o contrário?
Reserva-se por vezes o termo "epistemologia" para a
filosofia do conhecimento científico, usando-se o termo
"gnosiologia" para a filosofia do conhecimento em geral. Mas
esta terminologia não é usada hoje em dia nas grandes universidades do
mundo inteiro, nem corresponde à realidade do que se estuda quando se
estuda epistemologia. A epistemologia é o estudo filosófico de vários
problemas relacionados com o conhecimento -- independentemente de se
tratar de conhecimento científico ou de outro qualquer tipo de
conhecimento. É a filosofia da ciência que se ocupa de vários
problemas relacionados com o conhecimento científico.
Outra disciplina filosófica é a metafísica, que se ocupa de outro
tipo de problemas. Que tipo de coisas existem no mundo? Admitindo que
existem árvores e mesas e pessoas, será que os números também
existem? E as cores? E os conceitos, como a justiça? Quantos tipos de
existência há, se há mais do que um? E quais são as categorias mais
gerais da realidade? Como poderemos pensar a identidade? Se ao longo de
10 anos formos substituindo as tábuas todas de um bote de madeira, o
bote de hoje será ainda o mesmo do que o bote de há 10 anos? Mas se
não é o mesmo, para onde foi o bote de há 10 anos e quando deixou ele
de existir?
É claro que há muitos, muitos mais problemas da filosofia. Os
problemas da filosofia têm esta característica em geral: não se podem
resolver recorrendo aos métodos estabelecidos das ciências e implicam
um uso forte da argumentação. Os problemas da filosofia interpelam-nos
e exigem-nos argumentos. É claro que eu acho que o mundo exterior
existe independentemente de mim; mas como posso eu justificar esta
opinião? A filosofia é um pedido sistemático de justificações e
essas justificações são argumentos -- argumentos de carácter
conceptual e não argumentos de carácter empírico.
Argumentos
Mas o que é um argumento? Bom, um argumento é uma forma de
justificarmos uma afirmação. E um argumento é um conjunto de
afirmações. Um conjunto de tal modo organizado que algumas dessas
afirmações fundamentam a afirmação que se quer defender. Por
exemplo, eu posso defender que a vida não faz sentido com o seguinte
micro-argumento:
A vida não faz sentido. Se fizesse sentido, Deus existiria. Mas Deus
não existe.
Este argumento tem uma característica que muito interessa aos
filósofos: é válido. O que é um argumento válido? Repare-se: não
há qualquer maneira de as premissas deste argumento serem verdadeiras e
a sua conclusão falsa. As premissas são "Se a vida fizesse
sentido, Deus existiria" e "Deus não existe". E a
conclusão é "A vida não faz sentido". Não é difícil de
ver que é impossível as premissas serem todas verdadeiras e a
conclusão falsa. Significa isto que estabelecemos assim tão facilmente
a conclusão filosófica de que a vida não faz sentido? Claro que não.
Ainda mal começámos o trabalho crítico da filosofia. O nosso trabalho
só começa quando nos perguntamos: será este argumento razoável? Bom,
já sabemos que é válido -- mas isso quer dizer apenas que é
impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Mas
serão as premissas verdadeiras?
Agora começamos a perceber que este argumento, só por si, é um mau
argumento. Isto acontece porque as duas premissas são pelo menos tão
disputáveis como a conclusão. Se não temos mais razões para aceitar
as premissas de um argumento do que a sua conclusão, então o argumento
é mau, ainda que seja válido. Ora, que razões temos para pensar que
Deus não existe? E que razões temos para pensar que se a vida fizesse
sentido, Deus existiria? Não será possível que a vida faça sentido
apesar de não existir Deus?
Este argumento poderia ser a síntese de um argumento mais vasto,
argumento no qual se defendesse cada uma das suas premissas
cuidadosamente. Nesse caso, este argumento seria tão bom quanto os
argumentos usados para defender cada uma das suas premissas.
E agora já estamos a ver duas características fundamentais da
filosofia: o seu carácter eminentemente argumentativo e o facto de a
argumentação filosófica raramente conduzir rapidamente a resultados
consensuais. Este último aspecto produz por vezes resultados infelizes.
Se começarmos a falar filosoficamente com um amigo sobre Deus e ele
acreditar que Deus existe, rapidamente ele começa a ficar desesperado:
existem tantos argumentos contra a existência de Deus! E parecem todos
tão poderosos! Mas, por outro lado, também existem muitos argumentos a
favor de Deus! E parecem igualmente poderosos! Que fazer?
A tentação popular é dizer: "Não se pode saber se Deus
existe ou não e a filosofia é inútil porque nunca se consegue decidir
nada". Esta é uma reacção compreensível, mas errada. É claro
que nem todas as pessoas têm vocação para a filosofia e portanto nem
todas as pessoas apreciam a discussão pormenorizada, sistemática e
consequente que constitui a tarefa dos filósofos. Mas daí a dizer que
a filosofia nunca conseguirá concluir nada… bom, a reacção
filosófica normal, mas talvez irritante, é perguntar: "Mas como
é que sabes que a filosofia nunca vai conseguir concluir nada? Isso
parece pelo menos tão difícil de provar como conseguir provar que Deus
existe ou que Deus não existe!"
Já Platão tinha alertado para esta dificuldade: as pessoas têm
certas opiniões sobre o mundo que as rodeia e a filosofia coloca essas
opiniões em causa, o que é desconfortável. É natural que as pessoas
resistam, um pouco assustadas, à discussão filosófica -- é que esta
é um pouco vertiginosa. A discussão filosófica exige um grande apego
à verdade -- um apego que tem de ser maior do que o apego pelo nosso
próprio conforto espiritual, feito de verdades caseiras acriticamente
aceites.
Também neste aspecto a filosofia se aproxima bastante da ciência.
Pessoas como Newton e Galileu, pessoas como Einstein e Bohr, procuraram
continuar a pensar quando todo o pensamento parecia inútil e quando
nenhumas garantias de sucesso havia. No tempo de Newton havia várias
teorias diferentes para explicar a queda dos corpos e a gravitação dos
planetas e qualquer pessoa que começasse a estudar essas teorias
contraditórias rapidamente ficaria com a sensação de que jamais seria
possível sair daquele labirinto de razões a favor e contra cada uma
das teorias. Só a persistência pode produzir resultados -- na
filosofia como na ciência.
É claro que hoje estamos habituados a pensar na ciência como algo
que produz resultados. Mas a história da ciência esteve estagnada
durante séculos. Por outro lado, o tipo de desenvolvimentos que se
esperam da filosofia não é o mesmo tipo de desenvolvimentos que
esperamos da ciência. Podemos ainda hoje não poder decidir cabalmente
que Deus existe, nem que Deus não existe; mas sabemos hoje muito mais
do que é necessário acontecer para que Deus exista e do que é
necessário acontecer para que Deus não exista. Em qualquer caso, os
resultados mais palpáveis da filosofia nunca terão o poder de
convencer a multidão como a ciência; a multidão convence-se de que a
ciência é uma coisa séria porque há automóveis e micro-ondas; mas
se tivéssemos exactamente o mesmo conhecimento científico que temos
hoje, mas sem quaisquer aplicações tecnológicas, quem estaria
disposto a encarar a ciência com seriedade? Muitas pessoas teriam
precisamente a mesma reacção que têm hoje em relação à filosofia:
algo que não serve para nada.
Para que serve a filosofia?
A filosofia, diz-se por vezes, não serve para nada. Isto é por
vezes apontado à nossa cabeça como se fosse o argumento final contra a
filosofia. Por vezes, professores e manuais do ensino secundário,
inquietos com esta questão, fazem o pior: jogos sofísticos de palavras
para mostrar que a resposta "A filosofia não serve para nada"
mostra que a filosofia serve para alguma coisa. Isto, claro, é um
disparate de quem sendo licenciado em filosofia pouco mais aprendeu a
fazer do que a comentar textos de filósofos que morreram há séculos,
sem perceber bem o que está a ler e sem saber fazer aquilo que se
espera que uma pessoa com formação em filosofia saiba fazer:
argumentar claramente.
Há três princípios metodológicos que o professor Aires Almeida
transmite aos seus alunos, e que são de uma importância crucial: ser
claro, ser consequente e ser crítico. Quem apresenta o sofisma acima
referido não está a ser consequente. Mas vejamos primeiro qual é o
sofisma. Argumentam essas pessoas do seguinte modo: se a filosofia não
serve para nada, é porque serve para alguma coisa, visto que duas
negativas nos dão uma positiva. Este argumento é sofístico porque é
apenas um jogo inconsequente de palavras. Se essas pessoas fossem
consequentes, deveriam reagir do seguinte modo quando alguém diz que
não está ninguém no cinema: "Ahah! Deve estar lá alguém!"
Isto é uma tolice, claro. As línguas como o francês e o português
usam duplas negativas no sentido de negativa simples; dizer que não
está ninguém no cinema quer dizer que o cinema está vazio; dizer que
a filosofia não serve para nada quer dizer que a filosofia para nada
serve.
Mas será verdade que a filosofia não serve para nada? Claro que
não. A filosofia, como a ciência, como a arte e como a religião,
serve para alargar a nossa compreensão do mundo. Em particular, a
filosofia oferece-nos uma compreensão da nossa estrutura conceptual
mais básica, oferece-nos uma compreensão daqueles instrumentos que
estamos habituados a usar para fazer ciência, para fazer religião e
para fazer arte, assim como na nossa vida quotidiana. A filosofia é
difícil porque se ocupa de problemas tão básicos que poucos
instrumentos restam para nos ajudarem no nosso estudo. Os matemáticos
fazem maravilhas com os números; mas são incapazes de determinar a
natureza última dos próprios números -- têm de se limitar a
usá-los, apesar de não saberem bem o que são. Todos nós sabemos
pensar em termos de deveres, no dia a dia; mas a filosofia procura saber
qual é a natureza desse pensamento ético que nos acompanha sem nós
darmos muitas vezes por isso.
Para compreendermos melhor as dificuldades da filosofia é
conveniente pensar numa metáfora. Imagine-se que eu estou a fazer uma
casa. Preciso de usar vários instrumentos, como a pá de pedreiro, e
vários materiais, como o cimento. Mas quando quero fazer uma pá de
pedreiro, ou quando quero fazer o cimento, terei de usar outros
instrumentos mais básicos. E depois terei de ter instrumentos para
fazer os instrumentos com que faço a pá de pedreiro ou o cimento. E
por aí fora. Experimente ir para uma ilha deserta fazer uma casa, sem
levar nada da civilização. Será extremamente difícil: não terá
instrumentos à sua disposição para fazer nada, excepto as suas mãos
e a sua inteligência.
Num certo sentido, é esta a dificuldade da filosofia: estamos a
tentar estudar os próprios instrumentos que usamos habitualmente para
pensar. Por esse motivo, falta-nos instrumentos, falta-nos apoio. Mas
não estamos completamente desamparados; temos a argumentação para nos
ajudar. São os argumentos que fazem a diferença. São os argumentos
que nos permitem ir mais longe na compreensão da nossa estrutura
cognitiva mais profunda, que nos permitem compreender melhor os
conceitos que usamos no pensamento quotidiano, científico, artístico e
religioso.
É agora claro que a filosofia serve para alguma coisa. Serve para
compreendermos melhor a estrutura conceptual que usamos no dia-a-dia, na
ciência, nas artes e na religião. Claro que a filosofia não serve
para distrair o "povo", como o futebol ou a tourada. Mas
também a matemática não serve para isso, nem a religião, nem a arte
em geral. Para que serve "Os Maias" de Eça de Queirós? Para
que serve a teoria da evolução de Darwin? Para que nos serve saber que
só na nossa galáxia há tantas estrelas quantos os segundos que
existem em 3 mil anos? Serve para sabermos mais sobre nós próprios e
sobre o universo em que habitamos. Tal como a filosofia.
Filosofia, história da filosofia e história das ideias
A caracterização da filosofia que ofereci até agora parece
decididamente pouco ter a ver com a filosofia tal como é ensinada nas
escolas portuguesas. Mas isto é só porque Portugal foi afectado pelo
mais rude golpe que a filosofia sofreu na sua história, e que quase a
fez desaparecer: o hegelianismo, que acabou por degenerar no
irracionalismo romântico e que, graças à contribuição do
disparatado positivismo, teve como resultado último o abandono do
projecto original da filosofia -- a tal "morte da filosofia".
Mas a filosofia, felizmente, está bem viva. Só o facto de em Portugal
continuarmos a trabalhar debaixo dos preconceitos hegelianos e
irracionalistas explica o estado actual da situação. Os licenciados em
filosofia pouco mais sabem do que citar e parafrasear textos; não sabem
pensar pela sua própria cabeça. Perante um argumento, reagem como uma
pessoa comum e sem qualquer preparação. Desconhecem os problemas
tradicionais da filosofia, assim como as teorias e argumentos que se
discutem hoje mais do que nunca por esse mundo fora. Sendo este o estado
de coisas, não admira que não se veja qual é a vantagem de se estudar
filosofia, seja no secundário seja no superior.
Pior: a filosofia acaba hoje em dia em Portugal por servir, em certos
sectores, como uma forma sofisticada de tentar inculcar ideologias
obscurantistas anti-ciência e perigosamente perto dos mais negros
devaneios irracionalistas. Esta situação não é exclusiva do nosso
país. Acontece o mesmo em França, Espanha, Itália e Alemanha;
acontece o mesmo em departamentos de literatura americanos e ingleses. E
apesar da denúncia do livro de Sokal (Imposturas Intelectuais) ,
a situação mantém-se: o logro de uma prática pseudo-académica
continua, o uso ideológico da filosofia é um facto e hordas de
estudantes são todos os anos lançados nas mãos de professores que nem
sabem bem o mal que estão a fazer.
Contra este estado de coisas só pode lutar-se de uma maneira:
defendendo o direito inalienável de praticar, estudar e transmitir
outra maneira de fazer filosofia -- uma maneira socrática, crítica,
argumentativa, que consista não na transmissão subterrânea de
preconceitos irracionalistas e obscurantistas ou no comentário vago,
ambíguo e palavroso do texto filosófico e na arte da exegese estéril,
mas antes no exercício crítico da nossa razão, à semelhança do que
fizeram os nossos antecessores -- a cuja memória devemos pelo menos a
homenagem de prosseguir o mesmo esforço de compreensão e discussão
dos problemas, teorias e argumentos da filosofia.
Nas nossas escolas confunde-se filosofia com história da filosofia e
esta última com história das ideias. Uma vez mais, esta confusão
parece resultar da ideia de que a filosofia "morreu"; logo,
só resta fazer a sua história. Isto é de tal forma subterrâneo que
as pessoas não sabem distinguir filosofia de história da filosofia,
havendo até quem afirme, com sabor a Hegel, que a filosofia consiste na
sua história. É impressionante a quantidade de coisas que se inventam
para fugir à filosofia; parece que a filosofia incomoda muita gente.
A filosofia ocupa-se de problemas, teorias e argumentos. A história
da filosofia não se ocupa do estudo dos problemas, teorias e argumentos
da filosofia, a não ser como meio e não como fim em si. Para um
estudante de filosofia, a história da filosofia é um meio para
compreender melhor o que determinado filósofo queria realmente dizer;
para compreender melhor determinado problema, teoria ou argumento. Mas
é apenas um meio. O fim é perguntar-se se o filósofo tem razão,
depois de ter compreendido o que ele queria dizer. Haverá boas razões
para pensar que sim? Ou melhores razões para pensar que não? Estudar
filosofia é aprender a pensar pela sua própria cabeça nos grandes
problemas e argumentos da filosofia, e ter uma atitude crítica em
relação às grandes teorias que os filósofos inventaram para tentar
resolver esses problemas.
Mas muitas pessoas confundem os fins da filosofia com os fins da
história da filosofia e acabam o estudo da filosofia ainda antes de o
terem começado. Isto é, nunca chegam a fazer a pergunta filosófica
crucial: "Será que X tem razão?" Perdem um tempo inusitado
em torno de questões exegéticas e históricas, em torno de questões
hermenêuticas e interpretativas -- e nunca chegam ao estudo filosófico
propriamente dito.
A juntar a esta confusão, há o mito da contextualização. Julga-se
que depois de se dizer que o filósofo X nasceu no ano tal filho da
pessoa tal, e que no seu tempo se travava a guerra Y e que ele falava a
língua H, se está melhor habilitado a compreender o filósofo. Isto
só por si é altamente discutível; mas o pior é ficar-se por esta
contextualização, sem que nunca se discuta realmente o que o filósofo
defendeu. Depois da contextualização vem a paráfrase acrítica e a
citação copiosa, em que as palavras do filósofo são usadas de um
ponto de vista meramente formal -- Hegel "tem a ver" com
dialéctica e Platão com caverna, o Ser é muito importante e tem a ver
com Heidegger. O discurso do estudante consiste em repetir o que leu,
num exercício meramente formal de repetição de palavras que nem sabe
o que querem dizer. Se Kant fala de juízos, falemos então também de
juízos -- mas o que é um juízo? Não se sabe. Hume fala de ideias,
Kant de juízos e pronto. O erro é trocar as coisas, mas nem se sabe
por que razão é tal coisa um erro -- se é que o é.
Isto, claro, não é senão a sombra, na caverna de Platão, da
verdadeira filosofia. Imagine-se que eu me punha a ler um livro de
medicina do século XVI. Eu nada sei de medicina, além do que me
ensinaram no ensino básico. Que posso eu fazer com tal texto? Não
posso compreender quase nada porque não sei sequer medicina
contemporânea, quanto mais a medicina do século XVI. Mas por muito
pouco que eu compreenda o texto, por muita pouca preparação que eu
tenha para compreender o texto, tenho sempre a possibilidade de fazer um
exercício formal: é o chamado "comentário". Um comentário
consiste em dizer mais ou menos pelas mesmas palavras, muitas das quais
eu nem sei o que querem dizer, o que o texto diz. Não é um exercício
crítico -- não se discutem as ideias do autor, não se avaliam os seus
argumentos, não se compreende o problema que o atormentou; limitamo-nos
a dizer mais ou menos o mesmo. É um exercício puramente formal, como
se estivéssemos no quarto chinês de Searle a receber instruções numa
língua que desconhecemos -- não sabemos o que X quer dizer, mas
sabemos que X se usa com Y mas nunca com H.
O quarto chinês é uma ideia filosófica apresentada pelo filósofo
contemporâneo John Searle para argumentar contra a ideia de que uma
máquina pode pensar. Segundo ele, tudo o que uma máquina pode fazer é
manipular símbolos. É como se eu estivesse fechado num quarto, sem
janelas e de uma ranhura me aparecesse de vez em quando um pedacinho de
papel com uns riscos; eu não sei o que esses riscos querem dizer; nem
parecem uma verdadeira linguagem articulada. Mas tenho um livro enorme
dentro do quarto onde cada um desses rabiscos está anotado, seguido de
uma instrução precisa em português, como "Carrega no botão
3". E eu carrego no botão 3. Mas não percebi realmente o
pedacinho de papel que me chegou. Acontece que o pedacinho de papel
estava escrito em chinês e que o livro que eu tenho é um dicionário.
Mas apesar de, para todos os efeitos, eu ser capaz de reagir às ordens
dadas em chinês, eu não compreendia realmente essas ordens:
limitava-me a reagir como um autómato. O mesmo acontece com as pessoas
que, sem uma preparação filosófica prévia, se põem a ler os textos
dos grandes filósofos: aprendem a reagir verbalmente, e copiosamente,
sem perceberem realmente do que estão a falar.
Curiosamente, a história da filosofia e a história das ideias são
fracos candidatos à investigação se acharmos que a filosofia não
pode avançar por abundarem os argumentos contraditórios. Isto porque
as pretensas conexões históricas que interessam à história da
filosofia e à história das ideias são tão discutíveis como os
problemas filosóficos tradicionais. Uma vez mais, claro, a história da
filosofia e a história das ideias surgem como formas de fugir à
filosofia.
Isto não significa que a história da filosofia não tenha a sua
dignidade própria e o seu uso filosófico. Claro que tem. É preciso é
não confundir as coisas. E, sobretudo, é preciso não pensar
ingenuamente que podemos fazer história da filosofia sem saber primeiro
filosofia -- isso é tão absurdo como pretender fazer história da
economia sem saber economia. Este simples facto devia ser suficiente
para as pessoas perceberem que quem quer aprender filosofia não pode
começar pela história da filosofia, pois para estudar história da
filosofia já é necessário saber filosofia.
Em qualquer caso, é muito estranho que se encarem os textos dos
filósofos como se tivessem sido manuais escritos para estudantes --
coisa que manifestamente não foram. O resultado de ler os textos dos
grandes filósofos sem antes ter aprendido filosofia é o comentário
acrítico e palavroso e a incapacidade para reflectir pela sua própria
cabeça sobre o mais simples dos problemas filosóficos. O resultado
último é o facto de as pessoas com esta formação terem, perante a
profusão de argumentos e teorias contraditórias da filosofia, a mesma
reacção que uma pessoa comum: "É claro que não se pode definir
a arte!" Isto é de uma ingenuidade que se compreende numa pessoa
sem formação filosófica, mas não num professor de filosofia. Um
professor de filosofia sabe muito bem que é tão difícil mostrar que
não é possível definir a arte como é difícil tentar defini-la.
Conclusão
A filosofia é uma actividade crítica, que consiste na tentativa de
compreensão sistemática dos nossos conceitos mais básicos. Conceitos
como os seguintes: bem, arte, justiça, beleza, verdade, validade,
igualdade, identidade, liberdade, existência, etc., etc. A filosofia
não é a sua história. A filosofia interpela-nos a enfrentar os mesmos
problemas que os grandes filósofos do passado enfrentaram;
interpela-nos a pensar pela nossa própria cabeça. Um estudante sério
de filosofia aprende a pensar pela sua própria cabeça, aprende a
defender as suas opiniões com argumentos sólidos -- não aprende a
repetir de forma palavrosa o que disse Kant ou Hegel ou Aristóteles.
A atitude que reduz a filosofia a um jogo de palavras inconsequente,
obscuro, palavroso e acrítico é uma traição ao projecto original da
filosofia; é má filosofia. Acho que essa traição tem todo o direito
de existir; mas acho que não tem o direito de procurar calar o projecto
original da filosofia. Isso seria tão absurdo como ter os maus músicos
a calar, nos conservatórios, os músicos de qualidade. Devemos ser
tolerantes. Mas devemos dizer -- cordialmente -- que a pseudofilosofia
não é a única alternativa que existe. Há outras formas de fazer
filosofia; formas mais criativas, mais consequentes, mais claras e,
sobretudo, mais críticas e menos palavrosas. A escolha deve ser livre e
deve haver igualdade de oportunidades para todos.
Desidério Murcho
desiderio.murcho@kcl.ac.uk