"Durante um longo período de tempo, por toda
a feliz Idade de Ouro, só existiram homens à superfície da terra,
não havia mulheres. Zeus criou-as apenas respondendo com o seu rancor
a todos os cuidados que Prometeu tivera para com o homem. (…) Zeus
criou então algo de muito perigoso, algo que deleitava os olhos pela
suavidade e pela beleza, com o aspecto de uma donzela tímida a quem
todos os deuses concederam dons, vestes prateadas e um véu todo
bordado, uma autêntica maravilha. Chamaram-na Pandora, que significa
"a dádiva de todos"; depois de terminada esta bela
calamidade, Zeus mostrou-a a todos e, ao contemplarem-na, tanto os
Deuses como os homens ficaram extasiados. É dela - a primeira mulher
- que descendem todas as outras mulheres, que são a desgraça dos
homens e que têm propensão para praticar o mal"
Hamilton, Edith, A Mitologia, 95-96
As concepções de inferioridade da mulher povoam toda a história da
humanidade. Desde as narrativas míticas, de que o mito de Pandora é um
exemplo, a mulher tem sido considerada não só como inferior, mas
também como uma ameaça constante ao homem. A concepção Aristotélica
da inferioridade física e moral da mulher (por falta de calor e excesso
de humidade) foi uma das mais influentes da história ocidental. Mas as
concepções de inferioridade da mulher multiplicam-se, mesmo nas
sociedades que não sofreram a influência grega. Uma pergunta
inevitável é: porquê? Porque é que a mulher sempre foi vista como
inferior e, de algum modo, perigosa? Porque é que os homens se
esforçaram por dominar as mulheres?
Nalgumas tribos existem mitos segundo os quais a superioridade do
homem foi antecedida pela superioridade da mulher, superioridade esta de
tal modo tirânica que justificaria a dominação presente do homem. Um
exemplo de um mito deste tipo pode ser encontrado na tribo dos Ona
estudada por Anne Chapman: "Na origem, explica Anne Chapman, os
homens eram postos em abjecta submissão e eram obrigados a fazer todos
os trabalhos, incluindo os domésticos, e serviam as suas esposas,
reclusas na grande casa das mulheres de onde saíam os rugidos de
máscaras aterrorizantes. A Lua dirigia as mulheres. Isto durou até ao
dia em que o Sol, homem entre todos os homens, que trazia a caça para
junto da cubata iniciática para alimentar as mulheres, surpreende a
troça das jovens sobre a credulidade dos homens e compreende que as
máscaras não são a emanação de forças sobrenaturais aterradoras
dirigidas contra os homens, mas apenas um subterfúgio utilizado pelas
mulheres para os manter em estado de dependência. Os homens
estrangularem então todas as mulheres, à excepção de três
jovenzinhas, e inverteram os papeis. A Lua voltou para o céu, onde
continua sempre a tentar vingar-se (os eclipses do Sol são disso a
prova)" Héritier, Françoise, "Masculino/Feminino",
15-16
Segundo os evolucionistas do século XIX a humanidade teria passado
por um estado inicial marcado essencialmente pela ignorância da
paternidade fisiológica que levava a um "culto das
deusas-mães" e à dominação feminina. No entanto, os estudos
antropológicos sobre os vários tipos de sociedades conhecidas nunca
encontraram um exemplo totalmente matriarcal. Existem sociedades em que
as mulheres são consideradas iguais aos homens, em maior ou menor grau,
mas não se encontrou nenhuma em que a mulher fosse dominante a todos os
níveis.
Olhemos então para o caso das sociedades em que algumas mulheres
tinham um papel tão importante como o dos homens. Essas sociedades
demonstram uma peculiaridade interessante que caracteriza
invariavelmente essas mulheres.
Um dos casos é o das Iorquesas. As mulheres Iorquesas que pertencem
à mesma linhagem, habitam com os seus maridos e filhos numa casa
dirigida pelas "matronas". Estas matronas possuem
representação no "Grande Conselho dos Anciãos", controlam a
economia através do controlo de mantimentos, e possuem o direito de
veto no que respeita à guerra. Outro caso encontra-se nos índios
canadianos Piegan. Estes índios vivem numa sociedade patriarcal e, no
entanto, existem algumas mulheres que não têm o papel subordinado
comum. A estas dá-se o nome de "mulheres com coração de
homem" e o seu comportamento é em tudo semelhante ao dos homens:
"Não têm contenção nas palavras nem nos actos (algumas urinam
publicamente, cantam cantos de homem e intervêm nas conversas
masculinas). Este comportamento existe pari passu com um domínio
perfeito das tarefas tanto masculinas como femininas que elas executam.
Fazem tudo depressa e melhor que as outras. Orientam os seus próprios
assuntos sem o apoio dos homens e por vezes até nem deixam que o marido
empreenda seja o que for sem o seu consentimento. Pensa-se que sejam
activas sexualmente e não convencionais no amor, mas elas próprias
aspiram a uma maior virtude do que as outras mulheres. Não temem, em
caso de adultério, ser arrastadas na praça pública porque se as
acusam estão prontas a defenderem-se através da feitiçaria. Não
temem também as consequências místicas dos seus actos. Finalmente,
têm o direito, tal como os homens, a organizar danças ao Sol e a
participar nas ordálias. Elas têm a "força"".
Para se ser uma "mulher com coração de homem" é
necessário ser casada (elas casam várias vezes e em geral com homens
bastante mais novos), ter uma elevada posição social (ter tido
enquanto jovem um bom dote de cavalos) e ter mais de cinquenta anos ou
ser estéril. Segundo Héritier existem mais casos em que as mulheres
estéreis têm uma posição de poder. Ser estéril parece ser a
peculiaridade interessante que caracteriza essas mulheres. Esta
constatação leva à ideia de que a necessidade do homem de dominar a
mulher está relacionada directamente com a maternidade.
De facto, o controle social da fecundidade das mulheres pode ser
considerado como essencial pelo menos nas primeiras sociedades. Isto
porque, segundo os antropólogos, o parentesco é a matriz essencial de
qualquer relação social. As tribos não podem reproduzir-se
exclusivamente dentro de si próprias (o incesto constante levaria ao
desaparecimento da tribo). Como tal, a base da relação das tribos
entre si está na troca de mulheres fecundas. Mas, para a união da
tribo é necessário garantir a paternidade, principalmente a
paternidade dentro da tribo e não, por exemplo, numa tribo inimiga.
Para tal, é necessário que as mulheres estejam sobre a dominação dos
homens, isto não porque elas sejam consideradas promíscuas à partida,
mas porque a maternidade é evidente e a paternidade é apenas aparente.
A evidência da maternidade em contraste com a apenas aparência da
paternidade encontram expressão no artigo do Prof. Pina Cabral "A
lei e a paternidade". Neste artigo são apresentadas as máximas
latinas que representam aquilo a que chamo "angústia da
paternidade". Uma dessas máximas é mater semper certa est, pater
nunquam ("a mãe é sempre certa, o pai nunca"). É por essa
razão que juridicamente a filiação materna é sempre uma declaração
enquanto a paterna é um reconhecimento. O casamento é também uma
forma de tentar garantir a paternidade: pater is est quem nuptiae
demonstrant ("o pai (da criança) é o que se demonstrar estar
casado (com a mãe)).
A angústia da paternidade é apresentada por Rousseau como a
justificação da dominação da mulher pelo homem. Rousseau exprime
essa angústia no estilo eloquente que lhe é usual: "Se há um
estado horrível no mundo, é o de um desgraçado pai que, sem
confiança na mulher, não ousa entregar-se aos doces sentimentos do seu
coração, que duvida, ao beijar o seu filho, se está a beijar o filho
de outro, a testemunha da sua desonra, o usurpador do bem dos seus
próprios filhos. Neste caso, o que é a família senão uma sociedade
de inimigos secretos que uma mulher culpada arma, um contra o outro,
forçando-os a fingir amar-se mutuamente?" Emílio, 186.
A angústia da paternidade parece assim ser a resposta às perguntas
iniciais: Porque é que a mulher sempre foi vista como inferior e, de
algum modo, perigosa? Porque é que os homens se esforçaram por dominar
as mulheres? O esforço masculino de domínio sobre o feminino parece
ser uma tentativa de evitar a angústia da paternidade. Afinal a
sabedoria popular portuguesa diz: "Filhos de minhas filhas meus
netos são, filhos de meus filhos serão ou não".
Sara Bizarro
sarabizarro@yahoo.com
Referências:
Cabral, João de Pina, "A lei e a paternidade: as leis de
filiação portuguesas vistas à luz da antropologia social" in
Análise Social, vol. XXVIII, 1993, 975-997
Hamilton, Edith, A Mitologia, trad. de Maria Luísa Pinheiro,
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991
Héritier, Francoise, "Masculino/feminino", Enciclopedia
Einaudi, volume 20, Parentesco, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989.
Rousseau, Jean-Jacques, Emílio, trad. de Pilar Delvaulx,
Publicações Europa-América, 1990
Tuana, Nancy, The Less Noble Sex, Scientific, Religious and
Philosophical Conceptions of Woman Nature, Indiana University Press,
Bloomington and Indianapolis, 1993