Karl Popper já é um autor conhecido entre os portugueses. Muitos
dos seus livros estão disponíveis nas nossas livrarias, mas,
curiosamente, isso não sucede com as suas três obras mais
significativas (The Logic of Scientific Discovery, Conjectures
and Refutations e Objective Knowledge), em que Popper
desenvolveu uma teoria da ciência abrangente e inovadora, que constitui
um dos marcos da filosofia do século XX. É claro que também existe a
filosofia política de Popper, mas a importância desta vertente do seu
pensamento é muito mais questionável. O Mito do Contexto, o
título agora publicado pelas Edições 70, não exclui essa vertente
política, mas situa-se sobretudo no domínio da filosofia da ciência.
Apresenta-se, aliás, como uma defesa da ciência e da racionalidade.
O Mito do Contexto reúne diversos ensaios, muitos baseados em
conferências, em que Popper discute, de forma extremamente acessível,
os temas que sempre lhe foram caros. No ensaio que intitula o livro,
desenvolve a sua oposição a uma das teorias filosóficas mais
influentes: o relativismo. Ao aceitarem o mito do contexto, os
relativistas defendem que qualquer discussão racional produtiva exige
que os participantes partilhem um contexto comum de pressupostos
básicos. Sem deixar de denunciar os perigos de um optimismo excessivo
quanto aos poderes da razão, Popper tenta mostrar que esta doutrina
está errada. Depois de considerá-la em diversos contextos
específicos, como o da linguagem e o da ciência, conclui com uma
apreciação lógica geral: salienta que o mito do contexto resulta
"da visão errónea de que toda a discussão racional tem de
começar a partir de 'princípios' ou, como muitas vezes são
denominados, 'axiomas', os quais, por seu turno, devem ser aceites
dogmaticamente, se pretendermos evitar um retrocesso infinito."
O mito do contexto, no entanto, não é o único que Popper pretende
dissolver. Os mitos de que a objectividade científica depende do
"espírito imparcial dos cientistas", de que a ciência se
baseia em observações puras, não impregnadas de teoria, de que as
teorias científicas, sendo apenas instrumentos para a realização de
previsões, não proporcionam qualquer descrição profunda da
realidade, contam-se entre os alvos principais das críticas de Popper.
Todas estas críticas, dispersas pelos restantes ensaios, se integram na
defesa da concepção falsificacionista da ciência. Segundo esta
concepção, o método científico não se caracteriza pelo uso de
inferências indutivas, ou seja, fazer ciência não é estabelecer
teorias a partir de dados observacionais. Os dados observacionais só
têm relevância quando são utilizados para tentar refutar ou
falsificar teorias científicas. Estas começam por ser conjecturas
ousadas e injustificadas, e só adquirem valor em virtude de
sobreviverem a tentativas severas de refutação. Deste modo, a
evolução do conhecimento científico tem um carácter darwinista.
Uma das questões que recebe mais atenção em O Mito do Contexto
é a do estatuto das ciências sociais. Será que estas diferem
crucialmente das ciências naturais? Popper defende que não, atribuindo
a popularidade da resposta contrária a uma imagem errada do método das
ciências naturais. Em "Razão ou Revolução?", sem dúvida o
ensaio mais polémico do livro, esta questão conduz a uma crítica dura
ao tipo de investigação sociológica promovido pela escola de
Frankfurt. "Alguns dos expoentes famosos da sociologia
alemã", declara Popper, "que dão o seu melhor em termos
intelectuais e que o fazem com a melhor consciência do mundo estão,
todavia, creio, apenas a falar de trivialidades numa linguagem sonante,
tal como foram ensinados." Denunciando o "culto da
incompreensibilidade", que desde Hegel tem afectado um amplo sector
da cultura alemã (e não só), Popper defende que tal culto acaba por
traduzir-se em "dizer as maiores banalidades em linguagem
sonante". Para quem foi educado neste culto, acrescenta, é
"inconcebível que possa haver ideias importantes que valha a pena
compreender, com as quais não possamos concordar ou das quais não
possamos discordar de imediato."
Este tipo de crítica não surpreenderá quem já estiver
familiarizado com o pensamento de Popper. Na verdade, O Mito do
Contexto, que em diversos momentos se torna repetitivo e até
simplista, não traz nada de significativamente novo ao legado
popperiano. Ainda assim, constitui uma boa introdução. E vem reforçar
um aspecto curioso de Popper: embora tenha sempre insistido na
importância de sermos críticos em relação às nossas próprias
ideias, foi um dos filósofos que menos mudou de ideias ao longo da sua
obra.
Pedro Galvão
Recensão publicada no Público.