1. Introdução
O relativismo é uma doutrina filosófica bastante antiga, apesar da
sua popularidade ter vindo a flutuar ao longo dos anos. Hoje em dia o
relativismo está outra vez na moda, sobretudo nos departamentos de
literatura e crítica literária. Podemos assumir uma posição
relativista em relação a várias coisas. Mas, em geral, o relativismo
caracteriza-se por afirmar que em certas áreas a verdade é relativa a
um certo ponto de vista, quer seja do singular quer seja do plural. O
relativismo caracteriza-se pela negação de que possamos vir a ter um
conhecimento objectivo em relação a certas áreas. Por exemplo,
podemos ser relativistas em relação ao valor estético, e assim
afirmar que uma obra de arte é boa é algo que depende de um certo
ponto de vista. Podemos também ser realistas em relação à ciência,
em relação à moral, em relação à verdade em certas áreas do saber
e à racionalidade.
O relativismo é, a meu ver, uma das correntes filosóficas mais
nefastas de sempre. A razão disto é o facto de pôr em causa toda uma
tradição cultural, abolindo os critérios de excelência académica
porque tanto lutámos; ideais de verdade e racionalidade são agora
rejeitados. Assiste-se assim ao nascimento de duas subculturas
universitárias distintas e que John Searle classificou como: a
subcultura da universidade tradicional, que se caracteriza pelos seus
padrões de racionalidade, verdade e objectividade, onde a
disseminação do conhecimento é uma prioridade; e a subcultura do
pós-modernismo onde todos os padrões de excelência tradicionalmente
aceites são postos em causa.
O que motivou este movimento pós-modernista, foi o espanto de um
pensar específico e localizado num tempo e espaço específicos poder
atingir algo de universal e objectivo. O reconhecimento destas
limitações e da dificuldade em alcançar a objectividade uma vez que
toda a representação emana de um ponto de vista e sob alguns aspectos
e não sob outros, é um dos aspectos mais importantes que deu origem a
esta era de cépticos pós-modernistas. Sem dúvida que no seio deste
cepticismo está a falácia do apelo à ignorância, pois do facto de
não sabermos se é possível alcançar a objectividade não se segue
que não seja de todo possível alcançá-la. Mais adiante faremos as
críticas; para já convém situar o objecto dessa crítica.
O maior «inimigo» do relativismo, e aquele que convém «abater»,
é o realismo. O realismo é aquela doutrina filosófica que está na
base de todas as revindicações de objectividade, verdade e
racionalidade. A ideia que é veiculada, é a de que apesar de
possuirmos representações mentais e linguísticas do mundo em forma de
crenças, teorias, afirmações, etc., existe um mundo que é totalmente
independente dessas representações. Mas esta ideia é consistente com
a existência de certas áreas da realidade que são, de facto,
construções sociais. Por exemplo, o dinheiro, as instituições
sociais, graus académicos, etc. Se nos extinguíssemos, essas coisas
desapareciam connosco, mas as árvores, os animais, o planeta Terra, o
universo continuariam a existir. O conhecimento pode ser caracterizado
por ser «um conhecimento acerca de uma realidade independente da mente
que se exprime numa linguagem pública que contém proposições
verdadeiras, e estas proposições são verdadeiras porque representam
com precisão essa realidade e chegamos ao conhecimento aplicando os
constrangimentos da racionalidade e da lógica a que o conhecimento
está sujeito. Os méritos e deméritos de uma teoria são em grande
parte uma questão de se coadunarem ou não aos critérios implícitos
nesta concepção.» São os princípios implícitos a esta definição
de conhecimento que os relativistas pretendem pôr em causa. E são as
críticas feitas pelos relativistas e, particularmente, por Richard
Rorty, que pretendo analisar.
Este ensaio será assim dividido em três momentos distintos: um
primeiro momento onde apresento e exponho as críticas relativistas de
Rorty à cultura tradicional, um outro de refutação destas críticas,
mostrando porque motivo não colhem, e um último momento onde irei
considerar as consequências que advêm para a cultura tradicional da
aceitação das críticas relativistas.
2. Relativismo e Objectivismo
Um dos problemas associados às teses relativistas de Rorty ¾ apesar
de ele rejeitar o rótulo de relativista ¾ é o facto de ele as expor
de um modo elíptico e incompleto. Torna-se, por vezes, bastante
difícil saber exactamente quais as teses que defende, dada a sua
dificuldade em se comprometer e em clarificar as suas ideias, tornando o
seu discurso um pouco vago e impreciso.
A Filosofia e o Espelho da Natureza é considerada a obra maior de
Rorty, na qual ele apresenta as suas principais ideias ¾ apesar de
modo, por vezes, bastante insuficiente e vago, com demasiadas
referência históricas, o que torna o seu discurso excessivamente
prolixo. Tal como o nome indica, Filosofia e o Espelho da Natureza é
uma metáfora que pretende simbolizar as pretensões de objectividade e
conhecimento que têm feito parte da filosofia e, em particular, da
filosofia analítica e da ciência. A ideia que se encontra por detrás
desta metáfora é a ideia da mente como espelho da natureza. Isto é, a
ideia da mente como um meio de aquisição de representações correctas
e objectivas acerca do mundo. E é esta ideia que Rorty contesta. Parte
das suas objecções vão contra a tese de que é possível obter um
conhecimento objectivo do mundo, um conhecimento fundado que explicaria
o sucesso da ciência. A noção de representação correcta não
implica apenas uma epistemologia, mas também uma teoria da referência
que explique o modo como a linguagem consegue referir uma realidade a
ela exterior. Daí as críticas de Rorty às noções de conhecimento,
mente, linguagem e cultura que perfazem as pretensões da filosofia
analítica que se reivindica de colocar a filosofia no verdadeiro
caminho da ciência. Após a publicação desta obra em 1979, Rorty
dedicou muitos artigos e conferências à disseminação dos seus
ataques à metafísica tradicional. Mas toda esta discussão entre
relativistas e objectivistas se pode resumir numa questão, a saber: se
a primeira pessoa do singular ou do plural se esconde ou não por
detrás de tudo o que dizemos ou pensamos.
3. Cepticismo e Racionalidade
Segundo Rorty, só poderíamos justificar o nosso conhecimento acerca
do mundo se esse mundo fosse por nós criado. Caso contrário,
afirmações como «o mundo é tal e tal» ou «o mundo é
objectivamente tal e tal» não fazem sentido. Pois, para ele,
«conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente;
portanto, compreender a possibilidade e natureza do conhecimento é
compreender o modo pelo qual a mente se torna apta a construir tais
representações.»[Rorty (1979), pp.15]. Assim, saber em que consiste o
conhecimento «[...] é descobrir algo acerca da mente, e
reciprocamente»[Rorty (1979), pp.15].
O problema que está aqui em causa e que levou Rorty a negar a
possibilidade de conhecimento objectivo, é o problema de saber como
podem certas representações do mundo, as quais dependem de um ponto de
vista da primeira pessoa, situado e temporalmente localizado, fornecer
um conhecimento objectivo. Conhecer algo é conhecer algo exterior à
nossa mente, mas o meio de aquisição de conhecimento é subjectivo,
depende de uma representação perspectívica, que possui elementos não
objectivos, não exteriores à mente. Uma vez que todos os processos de
aquisição de conhecimento dependem de uma perspectiva da primeira
pessoa, esses conhecimento possuem, necessariamente, elementos
subjectivos. E logo, o conhecimento objectivo é impossível. Assim
sendo, defende Rorty, tudo o que nos resta é comparar as várias
descrições que possuímos.
Não penso que este raciocínio esteja correcto, pois do facto de
nenhuma das nossas representações do mundo ser impessoal, uma vez que
essas representações são indexada a uma mente que as tem, não se
segue que elas não possam ser correctas e fornecer um conhecimento
objectivo daquilo que representam. Segundo Thomas Nagel, o problema é o
de que «uma vez que é impossível abandonar inteiramente o nosso
próprio ponto de vista sem deixar de existir, a metáfora de sair para
o exterior de nós próprios tem de ter outro significado. Temos de
confiar cada vez menos em certos aspectos individuais do nosso ponto de
vista, e temos de confiar cada vez mais em qualquer outra coisa, menos
individual, que também é parte de nós.» [Nagel (1986), pp.67].
Essa coisa menos individual que faz parte de nós de que Nagel nos
fala, é a razão ou a mente racional. Mas para objectar ao relativismo
de Rorty não basta dizer que a razão pode funcionar como um quadro
objectivo de referência, é preciso mostrar que ela funciona
efectivamente como tal. Nagel apresenta várias razões que justificam
esta pretensão objectivista da razão. Mas penso que é suficiente para
mostrar a implausibilidade das teses cépticas de Rorty o seguinte
argumento de Nagel:
O pensamento reconduz-nos sempre ao uso da razão incondicional se
tentarmos colocá-lo em causa em termos globais, porque não podemos
criticar algo com coisa nenhuma; e não podemos criticar o mais
fundamental com o menos fundamental. A lógica não pode ser afastada
pela antropologia. A aritmética não pode ser afastada pela
sociologia nem pela biologia. E a ética também não pode, segundo
julgo. [...] Podemos ser levados a reexaminar as nossas convicções
aritméticas ou morais ao apontarem-nos influências culturais, mas o
exame terá de efectuar-se usando o raciocínio aritmético ou ético
de primeira ordem: não se podem deixar pura e simplesmente esses
domínios para trás, substituindo-os pela antropologia cultural.
[Nagel (1997), pp.30]
O problema de Rorty ao criticar a possibilidade do conhecimento
objectivo é o facto de este não se aperceber que só poderá criticar
esta possibilidade de um ponto de partida objectivo. Só se pode
criticar uma teoria filosófica com argumentos; por outro lado, esses
argumentos pressupõem certos princípios lógicos de inteligibilidade,
sem os quais seriam destituídos de sentido. Mas esses princípios
lógicos são por sua vez objectivos, são necessários a qualquer
discurso dotado de sentido. Pois, como nos diz Kant, «[...] não é a
universalidade do assentimento que prova a validade de um juízo (isto
é, a validade do mesmo como conhecimento), mas que, se essa validade
objectiva fosse encontrada de modo casual, ele não poderia produzir uma
prova da concordância com o objecto (Objeckt); pelo contrário, só a
validade objectiva constitui o fundamento de um consenso universal
necessário.» [Kant (1788), A 25]
O que acontece é que qualquer proposta revisionista implica já um
apelo à razão, como condição de inteligibilidade da própria
proposta. Qualquer tentativa de pôr em causa a validade objectiva de um
raciocínio constitui necessariamente uma tentativa de fornecer razões
contra ele, tentativas estas que têm de ser racionalmente avaliadas, se
são para serem levadas a sério.
Por outro lado, só podemos discutir a objectividade da ciência com
mais raciocínios científicos, só podemos discutir a objectividade da
moral com mais raciocínios morais, só podemos discutir a objectividade
da filosofia com mais raciocínios filosóficos, e assim por diante. É
claro que daqui não se segue que os resultados alcançados sejam
indiscutíveis, mas apenas que só podemos alcançar resultados na
continuação do mesmo processo ¾ isto é, aquilo a que Nagel chamou de
um discurso de primeira ordem. Daí que qualquer proposta revisionista,
como a proposta relativista de Rorty, tenha de se processar como um
adiantamento do corpo de crenças, competindo com aquelas que está a
tentar eliminar.
Talvez possamos dizer em defesa de Rorty que uma vez que ele recusa o
rótulo de relativista, talvez tenha uma proposta que se constitua
verdadeiramente como alternativa às teorias objectivistas que ele tanto
critica.
3. Verdade como concordância
Rorty rejeita o rótulo de relativista, assumindo-se meramente como
pragmatista. Existe uma passagem particularmente explícita a este
respeito:
«Relativismo» é o epíteto tradicional aplicado pelos realistas ao
pragmatismo. Esta palavra designa geralmente três concepções
pragmatistas. A primeira é a concepção de que toda a crença é
tão boa quanto qualquer outra. A segunda considera a «verdade» um
termo equívoco, tendo tantos significados quantos os procedimentos de
justificação existentes. A terceira é a concepção que defende que
nada pode ser dito sobre a verdade ou a racionalidade, com excepção
das descrições dos procedimentos de justificação familiares que
uma sociedade ¾ a nossa ¾ utiliza numa ou noutra área da
investigação. O pragmatista adopta a terceira concepção, a
etnocêntrica. Não adopta a primeira concepção porque esta se
refuta a si própria, nem a segunda porque ela é excêntrica. Ele
pensa que as suas concepções são melhores do que as dos realistas,
mas não pensa que as suas concepções correspondam à natureza das
coisas.[...] Contudo, não é evidente que o termo «relativista»
seja apropriado à terceira concepção, a etnocêntrica, aquela que o
pragmatista sustenta. Pois este não defende uma teoria positiva que
afirme que algo é relativo a qualquer outra coisa. Em vez disso, ele
reforça a tese puramente negativa de que deveríamos abandonar a
distinção entre a verdade como correspondência aos factos e a
verdade como termo de aprovação de crenças justificadas. [Rorty
(1984): «Solidariedade ou Objectividade?», pp.48].
Rorty defende que as teorias relativistas acerca da verdade são
facilmente refutáveis, sendo a alternativa ao relativismo acerca da
justificação do conhecimento o seu «etnocentrismo», isto é, a tese
de que a justificação é relativa às nossas práticas. A defesa das
nossas crenças relativamente a desafios impostos por outras comunidades
tem de ser sempre circular, mas isto não vicia a defesa, uma vez que
nenhum outro tipo de defesa é melhor ou mesmo tão boa, e a avaliação
tem sempre de ser contra alternativas relevantes.
Há aqui dois momentos a considerar. Um primeiro que irá consistir
na exposição do pragmatismo que Rorty defende, e um segundo em que
iremos ver por que motivo o pragmatismo de Rorty é tão deficiente
quanto aqueles que ele exclui e classifica como relativistas.
O pragmatismo de Rorty pretende-se afirmar como uma crítica ao
conhecimento, à verdade como correspondência, à epistemologia
fundacionalista, à metafísica tradicional, à ciência, em resumo, a
toda uma tradição cultural. O que está por detrás das
revindicações pragmatistas é uma tese historicista segundo a qual
categorias como verdade, conhecimento e linguagem, não são mais do que
funções do seu tempo, essencialmente formadas pela tradição
histórica.
Para Rorty, objectividade é concordância com os nossos pares
culturais. Ele defende este critério na seguinte base:
Não podemos encontrar um guincho celeste que nos eleve para lá da
mera coerência ¾ mera concordância ¾ em direcção a algo como
«correspondência com a realidade tal como ela é em si mesma» [...]
Os pragmatistas gostariam de substituir o desejo de objectividade ¾ o
desejo de estar em contacto com uma realidade que seja mais do que uma
comunidade com a qual nos identificamos ¾ pelo desejo de
solidariedade com essa comunidade.[ Rorty (1991) : «Science as
Solidarity», pp.38-39]
Esta ideia de concordância torna-se bastante implausível se a
analisarmos com um pouco mais de detalhe. Em geral, nós achamos que as
nossas crenças acerca das verdades da ciência e da matemática, por
exemplo, não deixariam de ser verdadeiras se nós não acreditássemos
nelas. Mas o que Rorty defende é a coisa bizarra de que verdades como,
por exemplo, a de que antes de nós seres humanos povoarmos a terra
existiram outros animais muito bem adaptados, os dinossauros, que a
habitaram durante milhões de anos, só são verdadeiras depois de nós
passarmos a acreditar nelas. Mas se isso é o caso então esta
afirmação é falsa, pois ela afirma que existia algo que era verdade
antes de nós existirmos. Assim, segundo o critério de verdade de
Rorty, frases como esta são verdadeiras se são falsas e se são
falsas, são falsas. Em qualquer dos casos não falsas. O que é
inaceitável. O problema com este tipo de critérios relativistas é o
facto de se mostrar inconsistente com o conteúdo das afirmações em
debate, tornando-se bem menos credível que estas.
Uma defesa a este tipo de argumento, é dizer que ele não pretende
dizer nada que entre em conflito com o teor das nossas crenças, quer
estas sejam matemáticas, científicas, ou outra coisa qualquer. O que
ele pretende é meramente explicar como elas funcionam de facto.
O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu pensamos é que é inútil
perguntar se existem montanhas ou se será meramente conveniente, para
nós, falar de montanhas.
Pensamos também que é inútil perguntar, por exemplo, se os
neutrinos são entidades reais ou meras ficções heurísticas úteis.
Isto é o tipo de coisa que queremos dizer ao afirmar que é inútil
perguntar se a realidade é independente dos nossos modos de falar
acerca dela. Dado que é compensador falar de montanhas, como sem
dúvida é, uma das verdades óbvias acerca de montanhas é que elas
já existiam antes de falarmos delas. Se não acreditarmos nisso, não
saberemos provavelmente como jogar os jogos de linguagem habituais que
usam a palavra montanha. Mas a utilidade desses jogos de linguagem
não tem nada a ver com a questão de saber se a Realidade, tal como
É Em Si, para lá do modo útil que os seres humanos têm de a
descrever, tem montanhas. [Rorty, «Does Academic Freedom Have
Philosophical Pressupositions?, in Academe, Novembro/Dezembro de 1994,
pp. 56-57]
Mas esta não é uma defesa credível, e continua a entrar em conflito
com as nossas crenças mais básicas. Dizer que certas afirmações são
parte de um «jogo de linguagem», e que só acreditamos nelas para
sabermos como jogar esse jogo é absolutamente inaceitável. Pode até
ser compensador falar de «montanhas» ¾ seja lá o que for que isto
queira dizer. Mas certamente que não é compensador falar no mal moral,
ou falar na existência de milhares de pessoas que morrem todos os anos
vítimas de cancro. Será que só é útil acreditarmos nisso para
sabermos como jogar certos os jogos de linguagem? Mais grave ainda é
quando Rorty explicita o seu critério de verdade como aquilo que é
«bom para nós acreditarmos», à maneira de William James. Por que
razão seria bom para nós acreditarmos numa doença tão grave como o
cancro? Só para podermos participar num jogo de linguagem? Mas não
seria melhor para nós que não existisse uma tal doença do que a
oportunidade de podermos falar sobre ela? Mas se é bom falar sobre ela
para podermos dominar os jogos de linguagem em que esta palavra,
«cancro», ocorre, é porque existe de facto algo lá fora que
corresponde à nossa linguagem. O que é precisamente aquilo que Rorty
não quer aceitar.
Além disso, a ideia de que a objectividade não é mais do que
solidariedade entre os nossos pares culturais contradiz, como vimos, as
afirmações de que pretendemos estar a falar. Deste modo, Rorty não
consegue escapar à autocontradição típica das teses relativistas.
Outro problema associado a esta ideia de concordância ou
solidariedade com os pares culturais é o da vacuidade de um tal
critério. Pois não se percebe quem devemos incluir como nossos pares
culturais. Mas Rorty defende-se desta acusação dizendo:
Dizer que um acordo natural é suficiente origina o espectro do
relativismo. Para aqueles que dizem que a doutrina pragmática da
racionalidade é perniciosamente relativista perguntam: «Natural
concordância entre quem? Nós? Os Nazis? Uma qualquer cultura ou
grupo arbitrário?» A resposta é, claro, «nós.» [Rorty (1991):
«Science as Solidarity», pp.38]
Mas a pergunta que agora temos de fazer é: Nós, quem? É demasiado
vago dizermos que a concordância é entre o nosso grupo, pois não
sabemos quem incluir neste grupo. Suponha-se que incluímos no nosso
grupo o conjunto dos intelectuais vivos em todo o mundo. É um facto que
nem todos aceitamos as mesmas teorias, e é também um facto que a
maioria deles não é relativista ¾ aliás, é por esse motivo que
Rorty escreveu o que escreveu, para os convencer a mudar de posição.
Como a verdade é por Rorty definida como concordância entre «nós»,
então, à luz dos seus próprios critérios, a sua teoria é falsa.
Poderíamos dizer que é falsa agora, mas daqui a uns anos, quando
«nós» tivermos sido substituídos por outros «nós» a teoria passa
a ser verdadeira. Mas isso é um factor irrelevante ¾ além disso Rorty
rejeita contrafactuais achando com são meros «observadores fantasma»
¾, o que importa considerar é que à luz daquilo que Rorty defende,
como alternativa à sua cultura, a sua teoria é falsificada pelos seus
próprios critérios: é autocontraditória. Note-se que não se trata
de uma autocontradição lógica, uma vez que esta inconsistência
depende de uma premissa empírica relativamente à cultura. Mas isso
não obsta ao carácter auto-refutante da sua teoria, uma vez que esta
premissa empírica é uma premissa que poucos contestariam. Logo, à luz
do seu critério de verdade, a sua teoria não é verdadeira, não
podendo assim constituir-se como alternativa a esta cultura, como ele
desejaria.
Mas, como seria de esperar, Rorty não aceita esta conclusão. Em A
Filosofia e o Espelho da Natureza, distingue dois tipos de discurso: o
«normal» e o «hermenêutico». No discurso normal, a verdade é
definida como concordância com os nossos pares culturais, mas quando
não se pode chegar a acordo porque os membros da nossa comunidade
estão comprometidos com diferentes paradigmas, então o discurso é
hermenêutico. Uma vez que o que acontece no caso das discussões entre
os relativistas e os anti-relativistas, é o facto de eles não chegarem
a acordo por se encontrarem comprometidos com paradigmas
incomensuráveis, o seu discurso é hermenêutico. E logo, as suas
afirmações, em si mesmas, não são nem verdadeiras nem falsas. A
discussão é assim um mero processo de retórica, um discurso meramente
«edificante». Mas Rorty não se escapa assim tão facilmente. O facto
de ele achar que dizer de uma teoria que ela é verdadeira não é mais
que lhe fazer um elogio, não se segue que nós, objectivistas, tenhamos
de concordar com isso. Uma vez que ele não se propõe como alternativa,
e uma vez que não consegue refutar o nosso critério de verdade, fica
assim provada a falsidade da sua teoria.
4. Ciência e Solidariedade
Rorty defende uma tese historicista porque acha que a própria
história da filosofia nos encaminhou até ela. Ele pensa que Dewey,
Wittgenstein, Quine, Heidegger e Derrida são os verdadeiros
descendentes de Hegel, que à sua maneira reagem contra a tese kantiana
que vê a filosofia como um meio de descobrir a estrutura a priori do
conhecimento. Para ele, estes filósofos vão pôr em causa esta ideia
de que podemos possuir um descrição objectiva do mundo, afirmando que
as descrições têm uma mera função utilitária. Do facto de a teoria
de Newton, por exemplo, funcionar melhor que a de Aristóteles, não
devemos tirar qualquer conclusão epistemológica.
Enganava-se Aristóteles quanto ao movimento estar dividido em natural
e forçado? Ou referia-se ele a qualquer coisa diferente daquilo em
que falamos quando mencionamos o movimento? Deu Newton respostas
certas às perguntas a que Aristóteles havia dado respostas erradas?
[...] Porque haveríamos de pensar a pergunta «O que é que eles
queriam dizer?» ou «A que se referiam eles?» acabará por ter uma
resposta determinada? Porque não haveria ela de ser respondível de
qualquer um dos modos, dependendo de quais as condições heurísticas
que são relevantes para qualquer propósito historiográfico
particular? [Rorty (1979), pp.210]
Segundo Rorty, a ciência é vista como o modelo exemplar de
objectividade, porque «na nossa cultura, as noções de
"ciência", "racionalidade",
"objectividade" e "verdade", estão todas
interligadas.» [Rorty (1991): «Science as Solidarity», pp.35]. Daí
que não se possa atacar as teorias objectivistas sem se colocar em
causa a ciência.
Uma defesa da objectividade da ciência é sempre colocada em termos
do seu sucesso. Mas, para Rorty, a questão de saber o que faz com que a
ciência tenha sucesso, é uma má questão. Inspirando-se em Thomas
Kuhn, ele defende que o sucesso de uma teoria científica advêm não do
facto de fornecer uma melhor descrição do mundo, mas de exemplificar o
poder de novos vocabulários. O seu ataque ao sucesso da ciência é
bastante insatisfatório e não deixa perceber como se processa essa
recusa da objectividade da ciência. Acabando por fazer estranhas
afirmações como,
Precisamos de deixar de pensar na ciência como um lugar onde a mente
humana se confronta com o mundo, e precisamos de deixar de pensar nos
cientistas como exibindo uma humildade própria face a forças
sobre-humanas.
[...] A minha rejeição das noções tradicionais de racionalidade
podem ser resumidas pela afirmação de que o único sentido no qual a
ciência é exemplar é porque é um modelo de solidariedade humana.
[...] Se dizemos que a sociologia ou a crítica literária «não é
uma ciência,» apenas queremos dizer que a quantidade de acordo entre
os sociólogos e os críticos literários no que respeita àquilo que
conta como trabalho significativo, trabalho que necessita de ser
seguido, é menor do que entre, digamos, os microbiólogos. [Rorty
(1991): «Science as Solidarity», pp.39-40]
O que quer ele dizer com a ciência ser um «modelo de solidariedade
humana»? É porque existe um maior acordo entre eles do que nas
restantes áreas do saber? Mas imagine-se que existe um acordo entre um
grupo de sociopatas que acham por bem matar todas as criancinhas com
olhos verdes. Eles estão todos de acordo. E são solidários?
Solidários com quê? Com a sua causa? Isso não pode ser, porque não
se sabe qual é a causa da ciência, uma vez que Rorty rejeita que seja
a objectividade, a verdade. Sendo assim o que nos resta? Uma conversa
amena em que estejamos todos de acordo? Nesse caso, não precisaríamos
de sermos seres racionais, as moscas estão todas de acordo, uma vez que
não têm capacidades cognitivas para discordarem. Então, se nós
também não as tivéssemos seríamos todos solidários. Mas o que é
isso da solidariedade? Um valor moral objectivo? Não se sabe. Uma vez
que Rorty se mostra incapaz de explicar por que razão os microbiólogos
têm mais acordo entre eles, do que, por exemplo, os sociólogos, então
não temos quaisquer motivos para rever as nossas convicções de que o
objectivo da ciência é fornecer-nos uma descrição objectiva do
mundo. Se não existem noções objectivas, e se tudo se reduz a meras
construções linguísticas, porque motivo existe um maior acordo dentro
da ciência do que dentro da sociologia? Ou por que motivo são os
cientistas mais solidários? Rorty parece estar apenas a dizer que são
mais solidários porque são mais solidários, o que não é aceitável
se ele se quer afirmar como uma alternativa séria à nossa tradição
cultural. Dizer que os cientistas são mais solidários não é um facto
bruto, e se o fosse ele teria de o explicar porquê, uma vez que tal
não é nada evidente. Assim, não existe nenhuma razão porque devamos
rejeitar o objectivismo em prol do seu pragmatismo, uma vez que o modelo
objectivista é muito mais credível, contendo maiores capacidades
explicativas, do que o dele.
Mas existe algo de muito mais grave nesta proposta de substituição
de «verdade» por «acordo entre o nosso grupo». Tome-se o seguinte
exemplo. Imagine-se que estávamos no tempo da Alemanha Nazi. Uma vez
que todos estavam de acordo com a ideia de que os judeus eram uma raça
inferior, que eram a praga da humanidade, então isso era o caso. Acho
que não há nada moralmente mais repugnante do que uma teoria que
defenda ou possibilite este tipo de juízos morais.
Mas Rorty defende-se dizendo que ele não quer propor uma
alternativa, mas apenas «minar a confiança do leitor», dizendo que os
seus escritos são mais «terapêuticos» do que «construtivos». E
acrescenta:
Deve-se afirmar que, na prática, devemos privilegiar o nosso próprio
grupo, mesmo que toda a justificação que possamos dar seja circular.
Devemos insistir no facto de que embora nada esteja imune à crítica,
não significa que tenhamos o dever de tudo justificar. Nós, os
intelectuais liberais do ocidente devemos aceitar o facto de que temos
de partir de onde estamos, e que significa que existem muitas ideias
que nós simplesmente não podemos levar a sério. [Rorty (1984):
«Solidariedade ou Objectividade?», pp.55]
É verdade que nada está imune à crítica, mas não se percebe por que
razão ele não pode levar a sério certas ideias, quando as únicas que
dificilmente se poderão levar a sério são as suas, uma vez que
rejeita todos os padrões de verdade, racionalidade, objectividade,
coerência, excelência, etc., que fazem com que uma teoria se apresente
como séria. Se ele pretende que façamos uma revisão tão drástica
nas nossas convicções como aquela que propõe, tem de dar razões para
isso, não há outra forma de o fazer. A não ser que o teor das suas
obras seja meramente panfletário, o que faz com que o não possamos
«levar a sério». Pois, como Thomas Nagel diz:
Esta é a consequência inevitável de tratar a proposta como algo
acerca do qual somos convidados a pensar; e qual é a alternativa?
Aqueles que colocam em causa a posição racionalista defendendo que,
na realidade ela apela, em todos os estádios, a intuições,
práticas ou convenções contingentes e talvez localizadas, podem
tentar aplicar esta análise até às últimas consequências, sempre
que se enfrenta um desafio lançado à razão por meio de raciocínio.
Mas não estou a ver como podem pôr termo ao processo lançando um
desafio que não nos convida, ele próprio, à avaliação racional.
[Nagel (1997), pp. 35]
5. Ciência e Pragmatismo
Ao criticar a ciência como forma de obter um conhecimento objectivo
acerca do mundo Rorty comete, a meu ver, um erro bastante grave. Ao
contestar que certas teorias fornecem representações objectivas da
realidade que descrevem, Rorty acaba por negligenciar o facto de, como
já tivemos oportunidade de dizer, só se poder contestar uma teoria
científica com outra teoria científica ¾ a objecção tem de ser
feita dentro de um discurso de primeira ordem. Não podemos pôr em
causa a veracidade de uma teoria científica com argumentos
filosóficos.
A diferença entre o que é teórico e o que é observável só a
ciência nos pode dizer, uma vez que são as próprias teorias
científicas que explicam o que pode ou não contar como observação,
ou que é observado. Já os inimigos de Rorty, os positivistas, haviam
cometido este erro, caracterizando e louvando a ciência pelo seu
respeito pelos factos brutos.
Um das características da ciência é o facto de ela poder muitas
vezes explicar a verdade das suas teorias. Quando se coloca uma teoria
de pé, ela tem de conseguir explicar uma série de fenómenos para ser
considerada credível, se não conseguir, se falhar na sua previsão é
porque a sua capacidade explicativa é fraca e aquilo que objectivamente
aconteceu explica a razão por que tem de rejeitar ou modificar a teoria
em causa ¾ o que aqui está em causa é uma espécie de
falsificacionismo popperiano. Assim, dentro da própria ciência,
podemos explicar por que motivo uma teoria foi preterida em prol de
outra ¾ a que foi seleccionada tem maior capacidade explicativa. É
isto que explica o avanço na ciência e porque motivo a física
newtoniana é melhor que a aristotélica; não é uma mera «mudança de
vocabulário» como Rorty defende.
[Os pragmatistas] recomendam que nos preocupemos apenas com a escolha
entre duas hipóteses, antes de nos preocuparmos com a existência ou
não de algo que «torne» uma delas verdadeira. Tomar uma tal
posição afasta-nos de questões acerca da objectividade do valor, da
racionalidade da ciência, e das causas da viabilidade de todos os
nossas jogos de linguagem. Todas estas questões teóricas serão
substituídas por questões práticas sobre se devemos manter os
nossos valores actuais, as nossas teorias e práticas ou se devemos
tentar substituí-las por outras. [Rorty (1991): «Science as
Solidarity», pp.41]
Mesmo defendendo que a questão de saber se devemos ou não manter os
nossos valores actuais é prática, Rorty não consegue explicar por que
devemos abandonar as nossas concepções tradicionais. Limita-se a
sugerir que não vale a pena levar a cabo o pesado trabalho de reflexão
filosófica acerca dos nossos valores actuais, das nossas teorias e
métodos. É claro que ele pode defender o que quer que seja, mas a sua
proposta não é credível e deve ser preterida relativamente à
explicação tradicional, dada a sua ineficácia explicativa.
Uma das características da ciência tradicional a que Rorty parece
não dar importância, é o facto de ela conseguir explicar o motivo por
que funciona e como é possível que criaturas limitadas como nós
possamos descobrir algo acerca do mundo. Dizer que as descobertas
levadas a cabo por teorias como a da relatividade de Einstein ou a da
selecção natural de Darwin são meras trivialidades é um erro
grosseiro e um desrespeito para com a comunidade científica. Diria
mesmo uma tremenda falta de solidariedade para com os seus pares
culturais.
Teorias científicas como as que atrás referimos, alargam a nossa
visão do mundo. Estas contribuem não só para um aumento da nossa
cognição como para um aumento do nosso reportório conceptual e
perceptivo ¾ passamos a saber mais do que sabíamos antes. Rorty
defende que uma tal concepção da ciência é mera ilusão. Mas, se o
é, não é mero produto de um erro filosófico que possa ser explicado
através da história da filosofia, através de uma referência a Kant e
aos seus sucessores.
Admitindo-se, disseram os filósofos, que o balanço livresco da
alteração das teorias é enganador, mesmo assim a filosofia pode
fornecer tudo aquilo de que precisar o historiador da ciência.
Procuraremos descobrir as condições em que sucessivas alterações
de convicções produzem algo que não é meramente uma alteração de
convicção mas uma alteração de «esquema conceptual». A noção
de que não faria mal relativizar a igualdade de significado, a
objectividade e a verdade a um esquema conceptual, na medida em que
existem critérios para saber quando e como é que a adopção de um
novo esquema conceptual era racional, foi tentadora por pouco tempo.
Porque agora o filósofo, o guardião da racionalidade, tornou-se no
homem que dizia quando é que se podia começar a significar algo de
diferente, em vez de ser apenas o homem que dizia que se significava.
[Rorty (1979), pp. 213-214]
Com esta ideia de que tudo o que podemos fazer, tanto os filósofos como
os cientistas, é entrar no jogo de criação de novos esquemas
conceptuais, Rorty não só pretende refutar a ideia que está por
detrás das motivações científicas de descoberta do mundo, como
levantar problemas à própria teoria pragmatista. Uma vez que os
pragmatistas definem verdade como «aquilo que é bom que acreditemos»,
ficamos na dúvida se será bom ou não acreditar na sua proposta acerca
do papel da ciência. Que motivos temos nós para achar que as
afirmações dos pragmatistas acerca da ciência são melhores, que
funcionam melhor, do que as dos cientistas? Não é necessário
perguntar se a ciência nos fornece ou não um conhecimento perfeito do
mundo tal como ele é em si, basta dizer que é melhor (porque é bom
para nós) acreditarmos nas afirmações dos cientistas acerca do que é
a ciência porque isso motiva-os a continuarem o seu trabalho. Assim, e
mais uma vez, recusamos as pretensões pragmatistas acerca do que é a
ciência com base nos próprios critérios que eles propõem.
No seu livro A Filosofia e o Espelho da Natureza, Rorty
apresenta várias passagens onde afirma que nós achamos tremendamente
conveniente pensar que a física descreve o mundo tal como ele é em si
mesmo, em vez que pensarmos que o mundo muda conforme mudam as nossas
práticas linguísticas. Mas se isso é assim tão tremendamente
conveniente, se é assim tão bom, e uma vez que o único critério é
precisamente o de conveniência, então seria melhor limitar-nos a
afirmar que a física descreve o mundo tal como ele é em si mesmo. Não
se compreende porque nos alerta Rorty para não pensarmos assim.
Uma defesa de Rorty, e talvez a única possível, seria dizer que sem
a sua alerta inicial seríamos induzido em erro, acabaríamos por ser
levados a acreditar em falsas imagens. Mas em que erro é que
cairíamos? E quem nos induziria a cair nele? Rorty diria que eram os
filósofos tradicionais, aqueles que se encontram na esteira de Kant.
Mas isso não é correcto. Se alguém fosse o responsável do nosso erro
não eram apenas os filósofos, eram acima de tudo os cientistas, pois
são ele que nos prometem fornecer um reflexo objectivo a partir do
espelho da natureza.
Mas, seja o que for que Rorty diga em sua defesa, há um problema a
que ele não pode escapar. Nomeadamente, o problema de saber qual o
conteúdo do nosso erro ao acreditarmos na objectividade da ciência.
Ele não têm meios de responder a uma tal questão a não ser que tente
reocupar o tal ponto transcendental, exterior às nossas práticas e à
nossa linguagem, que é, precisamente, o que ele pretende negar.
Apesar de Rorty recusar o rótulo de relativista e acusar os
relativistas ou de se auto-refutarem ou de serem excêntricos, parece
que Rorty não só não se consegue livrar do rótulo, uma vez que ele
é anti-objectivista e defende que as noções como as de verdade e
conhecimento são relativas a uma cultura, como acaba por se mostrar
excêntrico naquilo que defende, e está o tempo todo a cair em
auto-contradições.
6. Considerações Finais
Toda a posição de Rorty que poderíamos designar como
«anti-ismos», é definida por aquilo que ele nega. Ele diz mesmo que a
sua filosofia é mais «edificante» do que «construtiva», seja lá o
que for que ele quer dizer com isto. Mas, no essencial, defende uma
posição anti-fundacionalista, no que diz respeito à epistemologia,
uma posição anti-representacionalista no que diz respeito à filosofia
da linguagem, uma posição anti-essencialista, relativamente à
metafísica, e uma posição anti-realista e anti-anti-realista. Nenhum
destas posições constitui uma teoria, mas uma colecção de
considerações acerca da rejeição destas teorias.Segundo Rorty, os
filósofos devem imitar as virtudes morais que as comunidades
científicas exemplificam, mas devem conjuntamente abandonar a ideia de
método científico ou método filosófico. O trabalho deles é
encorajar a invenção de novas metáforas, criando novos vocabulários.
Os filósofos devem limitar-se a um trabalho de hermenêutica, ajudando
diferentes áreas da cultura a relacionarem-se com outras, evitando os
conflitos, tal como os liberais políticos tentam acalmar os conflitos
entre diferentes desejos e esperanças. Só assim haverá espaço para
um tipo de filosofia pós-filosófica, um tipo de critica cultural, para
a qual não é necessário qualquer experiência especial. O trabalho
principal dos filósofos é o de afastar a má filosofia e as más
ideias que estão a tornar-se um obstáculo ao trabalho útil de fazer
com que as pessoas sejam mais felizes.
Penso que o projecto de Rorty, para além dos problemas internos que
já discutimos, dificilmente se poderá constituir como credível. É no
mínimo estranho achar que se pode propor uma nova cultura que se limita
a brincar com os textos da cultura tradicional, a qual é essencialmente
objectivista, sobretudo quando acreditamos que essa cultura tradicional
é impraticável.
Acho no entanto que a filosofia de Rorty afecta não apenas a
filosofia, mas toda uma cultura. Ele põe em causa tudo aquilo por que
achávamos digno lutar, tudo aquilo em que acreditávamos. Por exemplo,
que sentido faz continuar a fazer ciência, como ele pretende que se
continue, se o objectivo da ciência é impossível de alcançar? Penso
que o que Rorty nos propõe é que abandonemos os padrões tradicionais
de objectividade, verdade e racionalidade, pretendendo abrir caminho a
uma transformação social e política altamente limitada. Ao
abandonarmos a noção de verdade objectiva e os nossos critérios de
excelência, tanto faz ler o jornal Crime como Os Miseráveis de Victor
Hugo, e tanto faz que adoptemos uma teoria patética como aquela que
afirma da Lua que ela é feita de queijo, como uma teoria que afirma que
a lua é feita de minerais e rochas. Searle chega mesmo a dizer que nos
departamentos de literatura, onde o relativismo é mais popular, já
não se fala de «clássicos» ou de «as grandes obras de literatura»,
mas, indistintamente, de textos, que tem a implicação de evitar
juízos de valor acerca da qualidade desses mesmos textos.
Não tenho dúvidas em afirmar que se optarmos por seguir as
propostas relativistas, estamos condenados a uma era de irracionalidade.
Mas, não penso que o relativismo vá muito longe. Afinal, todos os
géneros de relativismo, até mesmo o de Rorty, como tivemos
oportunidade de provar, são auto-refutantes. A não ser que sejamos de
facto irracionais, não podemos adoptar uma posição em que tudo vale.
Em defesa do objectivismo apenas posso dizer que este é a condição
de possibilidade de certas práticas, principalmente das nossas
práticas linguísticas. Não podemos coerentemente negar o objectivismo
ou o realismo argumentando a favor de outra alternativa, pois só
podemos argumentar coerentemente se pressupusermos o objectivismo. Caso
contrário, o nosso discurso torna-se ininteligível, e então já não
o poderemos refutar.
Em relação à questão do nosso ensaio, «Relativismo ou
Objectivismo?», penso que ficou provado que, a não ser que sejamos
irracionais, só nos resta optar pelo objectivismo.
7. Bibliografia
Rorty, R. (1979), A Filosofia e o Espelho da Natureza (Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1988).
(1989), Contingência Ironia e Solidariedade (Lisboa: Ed. Presença,
1988).
(1991) Objectivity, Realism and Truth: Philosophical Papers, vol. 1
(Cambridge: CUP).
(1998) Thuth an Progress: Philosophical Papers, vol. 31 (Cambridge:
CUP).
(1984) «Solidariedade ou Objectivismo» in Crítica nº 3 (Abril,
1988), pp.45-62. (Este artigo encontra-se em: Objectivity, Realism and
Truth: Philosophical Papers). Kant, I. (1788) Crítica da Razão
Prática, Trad. Artur Morão, Edições 70, Liboa, 1994. Nagel, T.
(1997) A Última Palavra, Gradiva Lisboa, 1999. (Crítica ao
relativismo, em geral).
(1986) The View from Nowhere, OUP, Oxford. Malachowski, A. (ed.) (1990)
Reading Rorty, Blackwell, Oxford. (Contém muitos artigos de crítica a
Rorty). Putnam, H. (1992) Renovar a Filosofia, Instituto Piaget, Lisboa,
1998.
(1990) Realism With a Human Face, Harvard University Press, Cambridge.
(Crítica ao relativismo de Rorty)
(1983) «Why Reason can´t be Naturalized» in Realism and Reason:
Philosophical Papers, vol. 3, CUP, Cambridge.
Searle, J. «Rationality and Realism: What is at Stake?» in Dødalus,
Vol. 122, No. 4, Fall 1992, pp.55-84. (Crítica à influência do
relativismo na academia).
Célia Teixeira
celia.teixeira@clix.pt