How Are We to Live? Ethics in an Age of Self-Interest, de Peter Singer; Oxford University Press, 1997, 336pp; Prometheus Books, 1995, 262pp
Desidério Murcho


Peter Singer é um dos mais destacados especialistas em ética aplicada, autor de uma vasta e respeitável bibliografia. À semelhança de Rethinking Live and Death, esta obra destina-se não tanto aos especialistas, mas ao grande público.

Ao longo dos seus 11 capítulos, Singer pretende mostrar que uma vida conduzida segundo padrões éticos é compensadora. Dado o carácter de divulgação da obra, o autor apressa-se desde logo a desfazer equívocos que resultam de se associar a ética a um conjunto de preceitos religiosos mais ou menos sem fundamento, ou pelo menos de fundamento duvidoso. Não é disso, obviamente, que se trata. A ética filosófica não é constituída por um conjunto de preceitos religiosos indiscutíveis e geralmente acriticamente aceites, mas antes pela tentativa racional e crítica de agir de forma correcta.

Este livro de Peter Singer constitui uma leitura apaixonante e informativa. A sua prosa é clara e os seus argumentos apresentam-se com o rigor claro e simples que constitui o objectivo nem sempre conseguido da filosofia analítica. A inteligência de um grande autor como Peter Singer permite ao leitor ter a sensação — sempre agradável — de ver as perplexidades e as objecções que nos vão surgindo com a leitura respondidas uma ou duas páginas à frente.

Ao longo dos seus 11 capítulos abordam-se os vários aspectos da questão "Como havemos de viver?" Repare-se na interessante subtileza do título, que não é "Como devemos viver?" Esta opção de Singer justifica-se pelo facto de o livro não apresentar propriamente um argumento ético sobre como devemos viver, mas antes qualquer coisa como um argumento prático sobre como é mais provável que vivamos felizes. Neste sentido, Singer inscreve-se numa tradição praticamente perdida desde há 2500 anos e muito cultivada pelos gregos. Na Grécia Antiga as escolas de filosofia disputavam entre si a questão de como viver feliz. Com a tradição cristã, este tipo de questão estava, desde logo, resolvida: devíamos todos viver segundo os preceitos cristãos. Mas, hoje, altura em que o cristianismo é apenas mais uma de muitas outras religiões que defendem preceitos distintos, há outra vez lugar para discutir e apresentar propostas em torno desta questão e é isso que Peter Singer faz neste seu excelente livro. Espero que este exemplo de Peter Singer seja rapidamente seguido. A explosão de grupos religiosos e/ou místicos deste final de século mostra que as religiões tradicionais não conseguem já responder à ansiedade que algumas pessoas sentem quanto ao sentido das suas vidas. Se o argumento razoável e o pensamento claro não oferecer respostas a esta questão, as pessoas terão a tendência para acreditar (erradamente) que o pensamento disciplinado e preciso só serve para conferir o troco do jornal e para descobrir vacinas, ficando a questão do sentido da vida relegado para formas de "pensamento" (?) irracionais ou de tendência irracional.

Quando se fala em ética, neste final de século, há pelo menos duas questões que surgem sempre e que Peter Singer aborda neste livro: a questão do fim da história e dos projectos ético-políticos e a questão da base genética da ética. Acho surpreendente que Singer tenha conseguido tratar temas de alguma profundidade de forma tão acessível.

A questão do fim da história é a seguinte. Não há hoje rivais sérios ao projecto da democracia capitalista ocidental e aos valores que lhe estão associados. Parece por isso que a história chegou ao fim, no sentido em que não haverá outro modelo de sociedade a suceder ao actual. Esta ideia foi defendida por Fukuyama e o livro onde ele o defende está publicado em Portugal (O Fim da História e o Último Homem). Peter Singer mostra — quanto a mim de forma definitiva — que esta ideia está errada por uma razão fundamental: a sociedade capitalista, tal como a conhecemos, não tem futuro porque não existem recursos suficientes para a sustentar a longo prazo. O consumismo febril e irracional desempenha um papel fundamental na nossa sociedade do ponto de vista político, económico e social e sem este elemento cai por terra todo o modelo de sociedade ocidental. Singer nunca extrai uma conclusão geral dos dados e argumentos que oferece, mas acho que a conclusão é clara: ou mudamos o modelo de sociedade que cultivamos, ou nos extinguiremos. Em qualquer caso, este modelo não subsistirá.

A questão da base biológica da moralidade foi introduzida por Richard Dawkins no livro também publicado em Portugal O Gene Egoísta. Em termos gerais, Dawkins defende que o egoísmo é um aspecto fundamental da ética humana porque foram os egoístas que mais se reproduziram. Um dos aspectos fracos desta ideia é o facto de ser incapaz de explicar a existência quase universal de religiões e de preceitos éticos em todas as sociedades humanas; outro dos pontos fracos é o facto de não ter em conta dados antropológicos quanto a alguns aspectos invariantes em todas as sociedades humanas.

Singer oferece uma explicação engenhosa para a existência de religiões, apoiando-se em parte em dados antropológicos quanto a aspectos invariantes dos preceitos éticos de várias sociedades humanas. Não vou apresentar aqui o argumento em todo o seu detalhe, mas já lhe dou uma boa ideia se lhe disser que Singer defende que o altruísmo é uma das características fundamentais para a nossa sobrevivência como espécie. Os membros da nossa espécie incapazes de comportamentos altruístas foram expulsos da sociedade e não sobreviveram; e se não foram expulsos, por conseguirem dissimular-se, não conseguiram de certeza deixar muita descendência, uma vez que cuidar da sua própria descendência é uma atitude altruísta. Logo, as pessoas que hoje existem são por natureza altruístas. Este aspecto do altruísmo genético poderá explicar por que razão as sociedades religiosas sobreviveram e as outras não: todas as religiões do mundo estimulam certos comportamentos altruístas em relação ao grupo de origem. Claro que alguns desses comportamentos altruístas em relação ao grupo são imorais e repugnantes porque significam o massacre e a guerra de terceiros (como nas cruzadas e no esclavagismo que se seguiu aos Descobrimentos); mas isso não abala o argumento de Singer — no máximo, mostra que hoje é necessário perceber que todas as pessoas (e não apenas as do nosso grupo) merecem o nosso altruísmo.

A recensão vai longa e tenho de terminar por aqui. Quero apenas destacar aquele que é, talvez, o mais brilhante capítulo, intitulado "Tit for Tat" e que em português se traduz como "Pagar na mesma moeda". Neste capítulo, Singer mostra o verdadeiro significado ético da solução de Axelrod para o dilema do prisioneiro e a lição que dela devemos retirar. O dilema do prisioneiro é uma situação na qual se cada pessoa tiver apenas em conta os seus próprios interesses, todos ficam pior, ao passo que se todos tiverem em conta os interesses dos outros (i.e., se forem, justamente, altruístas) todos ficarão melhor.

Um último comentário: numa altura em que se publicou em Portugal o livro da Juventude Socialista, O Que é Governar à Esquerda?, este livro de Peter Singer mostra o que significa governar à esquerda: significa governar em prol de todos e não apenas de alguns. Os dados que Singer apresenta dos anos Reagan são impressionantes. Pena é que não existam dados desse género em relação aos anos Cavaco Silva. Termino com um desses dados: o presidente Bush visitou Tóquio em 1992 com os presidentes da Chrysler, Ford e General Motors, procurando convencer os Japoneses a baixar os seus padrões de qualidade para que os americanos conseguissem exportar carros para o Japão. Os Japoneses comentaram que estes três executivos receberam em 1990 remunerações no valor de mais de 1300 milhões de contos, ao passo que os presidentes da Toyota, Honda e Nissan mal ganhavam um quarto desse montante. No entanto, eram os primeiros, e não os segundos, que despediam operários das suas fábricas e que não eram capazes de competir livremente no mercado por serem, pura e simplesmente, incapazes de fazer carros melhores do que os japoneses.

Desidério Murcho
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