Peter Singer é um dos mais destacados especialistas em
        ética aplicada, autor de uma vasta e respeitável bibliografia. À
        semelhança de Rethinking Live and Death, esta obra destina-se
        não tanto aos especialistas, mas ao grande público.
        Ao longo dos seus 11 capítulos, Singer pretende mostrar que uma vida
        conduzida segundo padrões éticos é compensadora. Dado o carácter de
        divulgação da obra, o autor apressa-se desde logo a desfazer
        equívocos que resultam de se associar a ética a um conjunto de
        preceitos religiosos mais ou menos sem fundamento, ou pelo menos de
        fundamento duvidoso. Não é disso, obviamente, que se trata. A ética
        filosófica não é constituída por um conjunto de preceitos religiosos
        indiscutíveis e geralmente acriticamente aceites, mas antes pela
        tentativa racional e crítica de agir de forma correcta.
        
Este livro de Peter Singer constitui uma leitura apaixonante e
        informativa. A sua prosa é clara e os seus argumentos apresentam-se com
        o rigor claro e simples que constitui o objectivo nem sempre conseguido
        da filosofia analítica. A inteligência de um grande autor como Peter
        Singer permite ao leitor ter a sensação — sempre agradável — de
        ver as perplexidades e as objecções que nos vão surgindo com a
        leitura respondidas uma ou duas páginas à frente.
        
Ao longo dos seus 11 capítulos abordam-se os vários aspectos da
        questão "Como havemos de viver?" Repare-se na interessante
        subtileza do título, que não é "Como devemos viver?" Esta
        opção de Singer justifica-se pelo facto de o livro não apresentar
        propriamente um argumento ético sobre como devemos viver, mas antes
        qualquer coisa como um argumento prático sobre como é mais provável
        que vivamos felizes. Neste sentido, Singer inscreve-se numa tradição
        praticamente perdida desde há 2500 anos e muito cultivada pelos gregos.
        Na Grécia Antiga as escolas de filosofia disputavam entre si a questão
        de como viver feliz. Com a tradição cristã, este tipo de questão
        estava, desde logo, resolvida: devíamos todos viver segundo os
        preceitos cristãos. Mas, hoje, altura em que o cristianismo é apenas
        mais uma de muitas outras religiões que defendem preceitos distintos,
        há outra vez lugar para discutir e apresentar propostas em torno desta
        questão e é isso que Peter Singer faz neste seu excelente livro.
        Espero que este exemplo de Peter Singer seja rapidamente seguido. A
        explosão de grupos religiosos e/ou místicos deste final de século
        mostra que as religiões tradicionais não conseguem já responder à
        ansiedade que algumas pessoas sentem quanto ao sentido das suas vidas.
        Se o argumento razoável e o pensamento claro não oferecer respostas a
        esta questão, as pessoas terão a tendência para acreditar
        (erradamente) que o pensamento disciplinado e preciso só serve para
        conferir o troco do jornal e para descobrir vacinas, ficando a questão
        do sentido da vida relegado para formas de "pensamento" (?)
        irracionais ou de tendência irracional.
        
Quando se fala em ética, neste final de século, há pelo menos duas
        questões que surgem sempre e que Peter Singer aborda neste livro: a
        questão do fim da história e dos projectos ético-políticos e a
        questão da base genética da ética. Acho surpreendente que Singer
        tenha conseguido tratar temas de alguma profundidade de forma tão
        acessível.
        
A questão do fim da história é a seguinte. Não há hoje rivais
        sérios ao projecto da democracia capitalista ocidental e aos valores
        que lhe estão associados. Parece por isso que a história chegou ao
        fim, no sentido em que não haverá outro modelo de sociedade a suceder
        ao actual. Esta ideia foi defendida por Fukuyama e o livro onde ele o
        defende está publicado em Portugal (O Fim da História e o Último
        Homem). Peter Singer mostra — quanto a mim de forma definitiva —
        que esta ideia está errada por uma razão fundamental: a sociedade
        capitalista, tal como a conhecemos, não tem futuro porque não existem
        recursos suficientes para a sustentar a longo prazo. O consumismo febril
        e irracional desempenha um papel fundamental na nossa sociedade do ponto
        de vista político, económico e social e sem este elemento cai por
        terra todo o modelo de sociedade ocidental. Singer nunca extrai uma
        conclusão geral dos dados e argumentos que oferece, mas acho que a
        conclusão é clara: ou mudamos o modelo de sociedade que cultivamos, ou
        nos extinguiremos. Em qualquer caso, este modelo não subsistirá.
        
A questão da base biológica da moralidade foi introduzida por
        Richard Dawkins no livro também publicado em Portugal O Gene
        Egoísta. Em termos gerais, Dawkins defende que o egoísmo é um
        aspecto fundamental da ética humana porque foram os egoístas que mais
        se reproduziram. Um dos aspectos fracos desta ideia é o facto de ser
        incapaz de explicar a existência quase universal de religiões e de
        preceitos éticos em todas as sociedades humanas; outro dos pontos
        fracos é o facto de não ter em conta dados antropológicos quanto a
        alguns aspectos invariantes em todas as sociedades humanas.
        
Singer oferece uma explicação engenhosa para a existência de
        religiões, apoiando-se em parte em dados antropológicos quanto a
        aspectos invariantes dos preceitos éticos de várias sociedades
        humanas. Não vou apresentar aqui o argumento em todo o seu detalhe, mas
        já lhe dou uma boa ideia se lhe disser que Singer defende que o
        altruísmo é uma das características fundamentais para a nossa
        sobrevivência como espécie. Os membros da nossa espécie incapazes de
        comportamentos altruístas foram expulsos da sociedade e não
        sobreviveram; e se não foram expulsos, por conseguirem dissimular-se,
        não conseguiram de certeza deixar muita descendência, uma vez que
        cuidar da sua própria descendência é uma atitude altruísta. Logo, as
        pessoas que hoje existem são por natureza altruístas. Este aspecto do
        altruísmo genético poderá explicar por que razão as sociedades
        religiosas sobreviveram e as outras não: todas as religiões do mundo
        estimulam certos comportamentos altruístas em relação ao grupo de
        origem. Claro que alguns desses comportamentos altruístas em relação
        ao grupo são imorais e repugnantes porque significam o massacre e a
        guerra de terceiros (como nas cruzadas e no esclavagismo que se seguiu
        aos Descobrimentos); mas isso não abala o argumento de Singer — no
        máximo, mostra que hoje é necessário perceber que todas as pessoas (e
        não apenas as do nosso grupo) merecem o nosso altruísmo.
        
A recensão vai longa e tenho de terminar por aqui. Quero apenas
        destacar aquele que é, talvez, o mais brilhante capítulo, intitulado
        "Tit for Tat" e que em português se traduz como "Pagar
        na mesma moeda". Neste capítulo, Singer mostra o verdadeiro
        significado ético da solução de Axelrod para o dilema do prisioneiro
        e a lição que dela devemos retirar. O dilema do prisioneiro é uma
        situação na qual se cada pessoa tiver apenas em conta os seus
        próprios interesses, todos ficam pior, ao passo que se todos tiverem em
        conta os interesses dos outros (i.e., se forem, justamente,
        altruístas) todos ficarão melhor.
        
Um último comentário: numa altura em que se publicou em Portugal o
        livro da Juventude Socialista, O Que é Governar à Esquerda?, este
        livro de Peter Singer mostra o que significa governar à esquerda:
        significa governar em prol de todos e não apenas de alguns. Os dados
        que Singer apresenta dos anos Reagan são impressionantes. Pena é que
        não existam dados desse género em relação aos anos Cavaco Silva.
        Termino com um desses dados: o presidente Bush visitou Tóquio em 1992
        com os presidentes da Chrysler, Ford e General Motors, procurando
        convencer os Japoneses a baixar os seus padrões de qualidade para que
        os americanos conseguissem exportar carros para o Japão. Os Japoneses
        comentaram que estes três executivos receberam em 1990 remunerações
        no valor de mais de 1300 milhões de contos, ao passo que os presidentes
        da Toyota, Honda e Nissan mal ganhavam um quarto desse montante. No
        entanto, eram os primeiros, e não os segundos, que despediam operários
        das suas fábricas e que não eram capazes de competir livremente no
        mercado por serem, pura e simplesmente, incapazes de fazer carros
        melhores do que os japoneses.
        
Desidério Murcho
        desiderio.murcho@kcl.ac.uk