Em 1996 Sokal escreveu um artigo para a revista Social
        Text com o seguinte título: «Transgredir as fronteiras: em direcção
        a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica». Este
        artigo era uma paródia construída à volta de citações de autores
        franceses bastante conceituados. Nele, Sokal defende uma série de
        ideias disparatadas acerca das implicações filosóficas e sociais das
        ciências naturais e da matemática. Entre os autores citados nesse
        artigo estão: Gilles Delleuze, Jacques Derrida, Félix Guatarri, Luce
        Irigaray, Jacques Lacan, Bruno Latour, Jean-François Lyotard, Michel
        Serres e Paul Virilio. A revista Social Text não só aceitou publicar o
        artigo de Sokal, como o incluiu numa edição especial sobre as
        implicações sociais e filosóficas da ciência. Este acontecimento
        ficou conhecido como o «Embuste de Sokal» (a descrição do embuste
        foi feita por Paul Boghossian e publicada no n.o 2 da Disputatio).
        O embuste provocou todo o tipo de reacções. Uma das reacções mais
        comuns, assumida pelos simpatizantes dos autores parodiados, foi a de
        que o embuste não provava nada acerca do «pós-modernismo» em
        geral — provava só que aquela revista e aquele grupo editorial
        tinham sido pouco cuidadosos na selecção dos textos. O livro
        Imposturas Intelectuais tem como principal objectivo mostrar que a
        publicação do artigo de Sokal não foi apenas um descuido, mas antes
        uma consequência das excentricidades do dito «pós-modernismo». Neste
        livro, Sokal e Bricmont propõem-se mostrar como pelo menos oito dos
        mais conceituados autores franceses abusam de conceitos e termos
        provenientes das ciências físicas e da matemática de tal forma que a
        sua honestidade intelectual pode ser posta em causa. Os autores que
        merecem capítulos separados são: Jacques Lacan (cap.1), Julia Kristeva
        (cap.2), Luce Irigaray(cap.4), Bruno Latour(cap.5), Jean
        Baudrillard(cap.7), Paul Virilio(cap.9), Gilles Delleuze e Félix
        Guattari(cap.8). Embora estes autores não se auto-apelidem de
        «pós-modernos», os seus textos são, em geral, considerados como uma
        espécie de bíblias sobre as quais é construído o discurso
        «pós-moderno». Assim sendo, o facto de estes autores abusarem de
        termos e conceitos técnicos das ciências físicas e da matemática
        para defenderem certas teses filosóficas e políticas pode, pelo menos,
        lançar algumas suspeitas sobre a honestidade intelectual da corrente
        «pós-moderna».
        
Sokal e Bricmont propõem-se provar quatro acusações acerca dos
        autores citados. Como Sokal e Bricmont são ambos professores de física
        estas acusações limitam-se a apontar as incorrecções na utilização
        de conceitos científicos. As acusações são as seguintes:
        
1. Os autores usam uma terminologia científica sem saberem bem o que
        ela significa.
        2. Os autores importam noções das ciências exactas sem darem a
        mínima justificação empírica ou conceptual para essa importação.
        3. Os autores exibem uma erudição superficial atirando sem pudor
        palavras complicadas à cara do leitor em contextos em que essas
        palavras não têm qualquer pertinência A finalidade é provavelmente a
        de impressionar e intimidar o leitor que não tem conhecimentos
        científicos.
        4. Os autores manipulam frases sem sentido e usam indiscriminadamente
        jogos de palavras provocando uma verdadeira intoxicação verbal
        combinada com uma indiferença soberba pelo significado que essas
        palavras possam ter.
        
Em suma, Sokal e Bricmont propõem-se desconstruir a reputação que
        estes textos têm de que são difíceis porque são profundos. Afinal,
        se muitas vezes eles parecem incompreensíveis talvez seja porque
        realmente não dizem nada.
        
Esta acusação é dolorosamente provada através da citação e
        análise de blocos de textos dos autores citados. Nestes textos são
        usadas ideias das ciências físicas e da matemática que os autores, ou
        não compreendem, ou distorcem com a finalidade de defenderem
        determinadas teorias filosóficas. Entre os temas científicos favoritos
        destes autores encontramos: a mecânica quântica, a teoria do caos e o
        teorema de Gödel (estas teorias são explicadas nos cap. 6 e 10). As
        teses filosóficas que são supostas seguirem-se da «nova ciência»
        são sempre uma ou outra forma confusa de «relativismo». Sokal e
        Bricmont provam claramente pelo menos duas ideias: estes autores não
        compreendem as teorias científicas e os resultados matemáticos a que
        se referem e tentam retirar das ciências resultados filosóficos e
        políticos que não se seguem delas.
        
Para além desta tarefa exaustiva de desconstrução dos textos dos
        intelectuais franceses, Sokal e Bricmont também têm alguns
        comentários interessantes a fazer às teses menos disparatadas da
        epistemologia contemporânea(cap.3). A ideia central é a de que há uma
        crise geral na epistemologia contemporânea do século XX. Esta crise
        tem essencialmente duas origens: por um lado, posições como as de
        Popper, Lakatos e do Círculo de Viena, defenderam uma codificação da
        investigação científica fazendo dela uma actividade demasiado
        específica e rigorosa, demasiado separada das outras actividades
        racionais comuns; por outro lado, as reacções a essas tentativas,
        representadas no livro através das teses de Kuhn e Feyerabend, deram
        origem a um cepticismo irrazoável.
        
A concepção da ciência como determinada por uma série de regras
        definidas não é coerente com a realidade da investigação
        científica. Mesmo a proposta falibilista de Popper, segundo a qual as
        teorias científicas não podem ser confirmadas mas podem ser
        falsificadas, tem dificuldades práticas óbvias — o trabalho
        central dos cientistas não é o de tentarem exaustivamente encontrar
        contra-exemplos para as suas teorias e, de facto, não seria razoável
        abandonar uma teoria bem sucedida por ela falhar uma previsão. Em
        geral, a tentativa de colocar as ciências exactas numa posição
        totalmente diferente das outras actividades racionais humanas dá origem
        a uma série de distorções com consequências bastante perniciosas.
        
Autores como Kuhn e Feyerabend reagiram a esta tentativa sublinhando
        as diferenças entre a realidade da investigação científica e as
        idealizações expressas por Popper. Segundo Kuhn, grande parte da
        actividade científica, a «ciência normal», desenvolve-se no interior
        de certos «paradigmas». Esses paradigmas definem o género de
        problemas a serem estudados, os critérios através dos quais uma
        solução pode ser avaliada e os procedimentos considerados aceitáveis.
        De tempos a tempos a dita «ciência normal» entra em crise e
        assistimos a uma mudança de paradigma. Os exemplos comuns são a
        ruptura de Galileu e Newton com a física aristotélica ou a ruptura
        entre a teoria da relatividade e da mecânica quântica em relação à
        mecânica clássica.
        
Sokal e Bricmont aceitam que esta é uma representação razoável da
        história da ciência e da sua evolução. O problema com a posição de
        Kuhn só surge quando aparece a ideia da «incomensurabilidade» dos
        paradigmas. Embora os estudiosos de Kuhn se entretenham a discutir os
        vários sentidos da palavra «incomensurabilidade» (e também da
        palavra «paradigma») pelo menos um desses sentidos possíveis é a
        ideia de que não é possível fazerem-se comparações racionais entre
        as teorias concorrentes. Isto acontece porque a noção que nós temos
        do mundo depende e é condicionada de uma forma radical pelas teorias
        que, por sua vez, dependem do paradigma em vigor. Mas, a dita
        «incomensurabilidade» das teorias não se segue do quadro histórico
        traçado sobre a evolução da ciência. Os paradigmas não se abandonam
        por motivos irracionais. Claro que muitas vezes existem uma mistura de
        boas e más razões nas mudanças de paradigma, mas isso não significa
        que as más razões sejam as dominantes.
        
Assim, para defender a ideia de que os paradigmas se alteram por
        motivos essencialmente irracionais é necessário algo mais do que a
        descrição histórica da evolução das ciências proposta por Kuhn. Em
        particular, é necessária uma tese que defenda que os paradigmas das
        ciências exactas são escolhidos de uma forma irracional. Mas esta tese
        histórica não pode, por sua vez, ser avaliada. Se as ciências exactas
        são desenvolvidas através de métodos irracionais o que é que nos
        garante que as ciências históricas estejam em melhor posição? Se
        alguma ciência pode ser racional, o melhor candidato são as ciências
        exactas. Isto acontece não porque os físicos sejam mais inteligentes
        que os historiadores, mas porque os problemas que os físicos estudam
        são, em geral, menos complexos, têm menos variáveis, são mais
        fáceis de medir e controlar. Se mesmo nestas condições as ciências
        físicas não conseguem deixar de ser irracionais, então por certo
        também as ciências históricas serão irracionais. Mas, se assim for,
        a tese histórica de que a mudança de paradigmas tem motivações
        irracionais é, também ela, irracional. Este argumento é decisivo. Ele
        mostra que a tese de que a mudança de paradigmas é essencialmente
        irracional não é sustentável — refuta-se a si mesma. Mas, se a
        tese de Kuhn for apenas que nem todas os motivos para a mudança de
        paradigma são racionais, então a dita «incomensurabilidade» das
        teorias não se segue.
        
Outra posição analisada é a de Paul Feyerabend. Aqui, de novo,
        Sokal e Bricmont estão de acordo com as linhas gerais das teses de
        Feyerabend sobre o método científico. A ideia de que a ciência pode
        ser organizada segundo regras fixas e universais é utópica e
        prejudicial. No entanto, da rejeição dessa ideia não se segue que em
        ciência «vale tudo» (anything goes). À primeira vista, Feyerabend
        parece simplesmente ignorar a distinção clássica entre contexto da
        descoberta e contexto da justificação. De facto, nos processos de
        investigação científica todos os meios são admissíveis. O cientista
        pode até chegar às suas hipóteses através de alucinações ou
        sonhos. No entanto, a justificação das teorias deve ser racional,
        mesmo que essa racionalidade não possa ser codificada de uma forma
        definitiva. Os exemplos extremos apresentados por Feyerabend são todos
        em relação ao contexto da descoberta. Mas o problema com as propostas
        de Feyerabend está no facto de que ele nega a validade da distinção
        entre contexto da descoberta e contexto da justificação. Sokal e
        Bricmont concordam que a distinção entre estes contextos é exagerada
        na epistemologia tradicional. No entanto, daqui não se segue que não
        exista qualquer distinção.
        
Em suma, a epistemologia tradicional, ao tentar traçar uma linha
        entre as ciências exactas e as outras actividades racionais humanas,
        idealizou as ciências exactas criando delas uma imagem insustentável.
        Como reacção surgiram epistemologias que pretendiam mostrar a ciência
        tal como ela é na realidade da investigação científica e, por
        comparação com as idealizações da epistemologia tradicional, esta
        descrição parecia apontar métodos quase irracionais. A proposta de
        Sokal e Bricmont é a de que existe apenas uma racionalidade humana e
        ela encontra-se em todas as áreas de investigação que pretendem dizer
        algo acerca do mundo. As ciências exactas são mais bem sucedidas
        porque os seus objectos de estudo são, em geral, mais simples e mais
        controláveis. As ciências humanas têm objectos mais complexos, mas
        não são radicalmente diferentes das ciências exactas, pelo menos no
        que diz respeito a requisitos mínimos de racionalidade.
        
Por último, Sokal e Bricmont tentam clarificar o carácter político
        das posturas ditas pós-modernas(cap.12). A tese filosófica favorita do
        pós-modernismo costuma ser uma ou outra forma vaga de relativismo. O
        relativismo é normalmente considerado como sendo defendido por certas
        correntes «de esquerda». Os «advogados da ciência» são muitas
        vezes considerados como sendo «de direita». Assim, a por vezes chamada
        «guerra das ciências» é frequentemente vista como um conflito
        político entre progressistas e conservadores. Mas esta situação não
        é assim tão linear. Como Sokal e Bricmont sublinham, existe uma longa
        tradição anti-racionalista nas correntes políticas de direita. A
        esquerda, por sua vez, tem uma longa tradição de parceria com a
        ciência na luta contra o obscurantismo. O que é curioso no fenómeno
        dito «pós-moderno» é precisamente a ideia de um anti-racionalismo de
        esquerda.
        
Na origem deste novo anti-racionalismo estão, segundo Sokal e
        Bricmont, vários factores diferentes. Por um lado, apareceram novos
        movimentos sociais, como as associações anti-racistas, feministas e
        homossexuais, que abraçaram as filosofias pós-modernas como base para
        as suas teses (por exemplo as «filosofias da diferença»). Por outro
        lado, a ciência tem sido vista como uma instituição social ligada ao
        poder económico e militar e assume muitas vezes um papel odioso. As
        tecnologias, por sua vez, também têm uma série de efeitos
        desastrosos. Este tipo de motivos levaram muitas pessoas a associarem-se
        ao relativismo (confundindo relativismo com pluralismo) e a tomarem uma
        posição adversa em relação à ciência. Infelizmente, estas
        posições não acertam no alvo que as motiva. Em vez de apontarem o que
        há de pior na ciência, elas atacam o que há de melhor — o
        facto de ser uma tentativa racional de compreensão o mundo. Em vez de
        abraçarem filosofias tolerantes e pluralistas e desmistificadoras dos
        discursos dominantes acabam por apenas aumentar o número de
        mistificações existentes.
        
Por fim, as consequências das tendências «pós-modernistas» no
        meio académico são claramente desastrosas. A desonestidade intelectual
        de alguns dos autores pós-modernos revela-se, por exemplo, no facto de
        utilizarem um certo tipo de ambiguidade para se resguardarem da
        crítica. Sokal e Bricmont mostram como os textos dos pós modernos são
        ambíguos na medida em que podem quase sempre ser interpretados de duas
        maneiras: ou como afirmações verdadeiras, mas relativamente banais, ou
        como afirmações radicais, mas manifestamente falsas. Estas
        ambiguidades parecem ser deliberadas num grande número de casos e têm
        algumas vantagens para aqueles que as utilizam. As interpretações
        radicais servem para cativar os leitores pouco experientes e, se alguém
        põe a claro o absurdo destas interpretações, os autores podem sempre
        responder que foram mal compreendidos, defendendo-se de novo com a
        interpretação banal. Esta táctica é infelizmente bastante comum no
        dito «pós-modernismo».
        
O embuste de Sokal foi recebido com entusiasmo por aqueles que estão
        simplesmente, irritados com a arrogância pós-moderna, com a
        verbosidade crua e a existência de uma comunidade intelectual na qual
        todos repetem frases que ninguém compreende (o artigo que deu origem ao
        embuste está incorporado no primeiro apêndice do livro, acompanhado de
        um segundo apêndice onde se indicam todas as incorrecções e
        disparates que nele aparecem). O livro Imposturas Intelectuais mostra de
        uma forma sistemática como a «arrogância pós moderna» abusa de
        conceitos das ciências exactas para defender teses filosóficas
        duvidosas. O embuste de Sokal e o livro a que ele deu origem devem ser
        suficientes para pelo menos lançar algumas suspeitas sobre as posturas
        ditas pós-modernas.
        
Sara Bizarro
        sarabizarro@yahoo.com
        
Esta recenção foi publicada na revista Disputatio