«The best way to know the Milky Way». É
        desta maneira que a L.E.M. Publications nos anuncia o seu novo título, The
        Encyclopedia of Milky Way Civilizations, uma obra em dois gigabytes
        amplamente ilustrada e convenientemente complementada com uma
        documentação abundante. Esta enciclopédia é dirigida pelo cosmólogo
        Kurt Strawson, que contou com a colaboração de algumas dezenas de
        especialistas das mais diversas áreas científicas. A L.E.M. salienta
        que muitos deles participaram em viagens inter-estrelares, e que por
        esse motivo são testemunhas directas do contacto com outras
        civilizações da nossa galáxia.
        Na sua promoção publicitária, a L.E.M.
        Publications enviou-nos uma entrada da sua nova enciclopédia. Trata-se
        de um documento sobre a civilização de Solipse, seleccionado
        aleatoriamente a partir da totalidade da obra. Omitindo as imagens por
        motivos técnicos, temos o prazer de reproduzir aqui esse documento, e
        avisamos os nossos leitores que quem enviar o pedido de aquisição
        desta enciclopédia até a Dezembro de 2185 terá 10% de desconto.
         
        
        SOLIPSE é o segundo dos seis planetas que se
        integram no sistema planetário de Hertz. A atribuição destes dois
        nomes não foi arbitrária, nem obedeceu prioritariamente a critérios
        estéticos. Como veremos, a escolha do nome de Hertz verificou-se em
        função de um dos traços fundamentais da biosfera de Solipse, o único
        planeta vivo de todo este sistema. E quanto a «Solipse»? Tal como
        «Hertz», a atribuição deste nome em substituição do número de
        catálogo é bastante recente, e seguiu-se às descobertas insólitas
        realizadas pelos elementos da Apocalipse 1, que vieram a traduzir-se
        numa revisão radical dos fundamentos das ciências astroculturais (ver
        ASCUL/TEO/12).
        ***************
        Comecemos pelo princípio. A presença humana no
        sistema planetário de Hertz iniciou-se logo na década inaugural das
        viagens inter-estrelares. As sondas terrestres indicaram a existência
        de vida civilizada em Solipse, mas esta informação não provocou um
        entusiasmo assinalável nem nos nossos investigadores, nem nos que
        dirigiam politicamente o Programa de Exploração Galáctica. A ideia de
        uma viagem tripulada não se colocou nem como uma possibilidade remota.
        Hoje, depois de tudo o que sabemos sobre Solipse, este comportamento
        pode parecer-nos incompreensível, mas a este respeito importa não
        esquecer a conjuntura em que decorreu o começo da exploração
        galáctica. A primeira geração de sondas inter-estrelares acabava de
        nos indicar a localização de um número muito elevado de planetas com
        actividade biológica e, entre esses planetas, a frequência de vida
        civilizada também se mostrava surpreendentemente significativa. Nestas
        condições, aqueles que projectaram as viagens inter-estrelares tiveram
        que se regular por critérios extremamente selectivos, e sob esses
        critérios Solipse estava longe de nos surgir como um destino
        prioritário. A civilização solipsana parecia «vulgar» à luz da
        informação recebida. Nessa «vulgaridade» destacava-se o facto de o
        seu desenvolvimento tecnológico corresponder apenas ao da nossa era
        pré-industrial. Foi esse facto que contribuiu em grande medida para que
        o sistema de Hertz não suscitasse uma atenção imediata porque, desde
        o primeiro momento, o interesse dos políticos e dos cientistas
        convergira para a pesquisa de civilizações com um grau elevado de
        sofisticação tecnológica.
        **************
        Sobre as características geológicas e geográficas
        de Solipse, não há nada de extraordinário que possamos referir
        (remetemos os leitores interessados em detalhes técnicos para
        SOLIP/BIO/1, SOLIP/GEO e HERTZ/MAP). Apuraram-se essas características
        com toda a facilidade através dos métodos habituais: a datação
        isotópica permitiu-nos situar o nascimento de Solipse há quatro mil
        milhões de anos terrestres atrás e, dadas as condições iniciais,
        desde aí tudo se processou do modo mais previsível. Surgiu uma
        atmosfera, formaram-se vastos oceanos de água, a atmosfera original foi
        enriquecida com oxigénio pela actividade das primeiras formas de vida,
        tudo segundo os padrões químicos normais para os planetas
        biogenéticos. Se perspectivarmos Solipse com a intenção de obter um
        contraste comparativo com a Terra, só dois aspectos merecem ser aqui
        mencionados: a dimensão e gravidade consideravelmente superiores de
        Solipse, e as diferenças na distribuição da superfície sólida sobre
        a superfície total. Em relação ao primeiro aspecto, devemos
        acrescentar que a gravidade de Solipse resultou, ao nível da morfologia
        biológica, num cenário dominado por espécies «animais» de pequena
        ou média dimensão que se apresentam quase invariavelmente em forma de
        disco. Domina assim uma certa monotonia morfológica, onde as
        semelhanças externas escondem frequentemente diferenças internas
        profundas. Não deixa de ser interessante constatar que entre muitas das
        espécies mais primitivas e os solipsanos inteligentes se registe uma
        semelhança impressionante nos atributos exteriores. Nas espécies
        «vegetais» de Solipse também é nítido o efeito da gravidade: embora
        possam fixar-se no solo atingindo profundidades consideráveis, à
        superfície encontram-se quase sempre condenadas a permanecer na
        condição de tapetes de musgo. Vemos assim que a biosfera solipsana
        evoluiu, nas suas linhas fundamentais, segundo a divisão frequente
        entre espécies «animais» e «vegetais» -- as aspas justificam-se
        pela polémica taxonómica descrita em ASTRO/TAX/32 --, mas toda esta
        evolução processou-se fora dos oceanos, onde as condições parecem
        não ter sido propícias para o desenvolvimento de vida pluricelular.
        Esses oceanos ocupam mais de sete décimos da superfície solipsana. Dos
        restantes três décimos, uma parte encontra-se dispersa por todo o
        globo em ilhas de pequena dimensão, incessantemente criadas e
        destruídas pela actividade geológica que percorre a crosta oceânica.
        As marés poderosas do corpo de líquido de Solipse varrem e submergem
        essas ilhas com uma violência inexcedível, produzindo condições sob
        as quais a vida nunca se pôde desenvolver. Só no único continente de
        Solipse se reuniram circunstâncias favoráveis para a emergência da
        biosfera actual. Este continente assemelha-se a um anel, um anel
        granítico que se prolonga pela maior parte do equador solipsano. Foi
        aí que, há quinhentos milhões de anos terrestres, a vida ousou ir
        para além dos limites oceânicos, e foi aí que trezentos e cinquenta
        milhões de anos depois a «invenção» da trissexualidade possibilitou
        uma enorme aceleração evolutiva, que há cerca duzentos mil anos
        acabou dar origem a uma civilização extremamente discreta na sua
        aparência.
        Pelos aspectos gerais de Solipse que acabámos de
        descrever, o desinteresse inicial manifestado pelos investigadores
        torna-se mais compreensível. Num planeta quase vulgar habitado por
        formas de vida quase vulgares, o que poderíamos aprender com uma
        espécie que em duzentos mil anos de existência civilizada pouco ou
        nada evoluíra tecnologicamente? Até ao final do século XXI, só uma
        pequena facção de biólogos contrariou esta atitude, esforçando-se
        por incluir Solipse nas linhas prioritárias do Programa de Exploração
        Galáctica (ver SOLIP/BIO/12). Na opinião desses biólogos, os
        dados recolhidos pelas sondas justificavam uma investigação mais
        detalhada, porque esses dados tornavam manifesta a existência de um
        fenómeno verdadeiramente «estranho»: a migração regular da única
        espécie inteligente de Solipse. É certo que os fenómenos de
        migração são muito frequentes, também é certo que este tipo de
        fenómeno se encontra bem compreendido pelos biólogos, mas no caso
        instanciado pelos solipsanos civilizados não se mostrava possível
        correlacionar esse comportamento com os factores causais comuns. A
        migração dos solipsanos, para além de nem obedecer a uma regularidade
        sazonal, fazia-se acompanhar de acontecimentos profundamente
        enigmáticos. Durante dois anos -- segundo o calendário assente na
        translacção de Solipse, que aqui será ignorado em todas as outras
        referências cronológicas -- todos os elementos da espécie permaneciam
        abaixo da linha equatorial, onde se situava toda a área urbanizada do
        planeta. Essa área distribuía-se por cerca de trinta pequenas cidades,
        que na sua totalidade reuniam os seis milhões de habitantes
        inteligentes de Solipse. Na sua modalidade urbana, o comportamento dos
        solipsanos decorria normalmente. Partilhavam uma existência sem
        sobressaltos, fundada numa sociabilidade invejável que se estendia dos
        laços individuais aos vínculos estabelecidos entre as cidades. A sua
        tecnologia, mesmo sendo de carácter elementar, mostrava-se mais do que
        suficiente para responder a todas as necessidades materiais, permitindo,
        para além disso, que cada indivíduo não precisasse de sacrificar
        muito do seu tempo à actividade económica. A partir desta ordem social
        harmoniosa, a civilização solipsana pôde constituir uma cultura
        dominada por diversas actividades lúdicas extremamente ritualizadas,
        uma cultura onde a procura de riqueza ou poder ilimitados parecia nunca
        ter encontrado qualquer lugar. No entanto, todo este modo de vida
        desenrolava-se apenas por períodos de dois anos. Depois chegava o
        momento da migração. Os seis milhões de solipsanos abandonavam
        massivamente as suas cidades, e partiam para o hemisfério superior de
        Solipse, para aí subsistirem também durante dois anos. Logo que
        transpunham a linha equatorial, o seu comportamento alterava-se
        radicalmente. A sociabilidade própria da condição urbana
        desvanecia-se num instante, emergindo no seu lugar um «egoísmo»
        generalizado, capaz de romper com todos os laços de afecto
        anteriormente estabelecidos. Os solipsanos dispersavam-se então por uma
        ampla longitude do continente. Muitos escolhiam o isolamento completo,
        outros preferiam formar pequenos grupos, grupos que muitas vezes reuniam
        indivíduos que nem sequer tinham habitado a mesma cidade. Seguiam-se
        dois anos terríveis. Longe de todas as comodidades urbanas, os
        solipsanos viam-se forçados a enfrentar uma luta permanente pela
        sobrevivência individual. Conseguir comida e evitar os predadores
        tornavam-se preocupações quase exclusivas. Quase, porque a sua
        preocupação prioritária residia no contacto com os seus semelhantes.
        Desse contacto sempre imprevisível podia resultar todo o tipo de
        agressão. Alguns dos grupos mais fortes chegavam a construir locais
        próprios para o exercício da crueldade sem restricções. No entanto,
        após dois anos de barbárie ininterrupta, os solipsanos dirigiam-se de
        novo para o hemisfério inferior, procuravam as suas cidades de origem,
        e aí retomavam o seu comportamento civilizado por mais dois anos, tudo
        como se nada tivesse acontecido.
        Como explicar este comportamento migratório? As
        hipóteses habituais sucumbiam imediatamente perante os factos
        conhecidos. Sabia-se que, na superfície do continente solipsano, as
        condições ambientais normalmente consideradas relevantes eram quase
        idênticas nos dois hemisférios. Este facto, para além de excluir a
        possibilidade de se explicar a migração através da procura de
        condições ambientais mais favoráveis, excluía também qualquer
        explicação que apontasse essas condições como causa suficiente para
        as alterações de comportamento, até porque essas alterações não se
        registavam em nenhuma das outras espécies migratórias observadas em
        Solipse. Embora tudo parecesse indicar que a migração dos solipsanos
        civilizados não obedecia a uma causalidade essencialmente biológica, a
        hipótese de que o seu comportamento derivava de uma espécie de
        patologia de ordem cultural também não se mostrava plausível. Como
        compreender essa patologia, estranhamente cíclica e massiva, à luz da
        racionalidade exímia que transparecia nas cidades solipsanas? Foi este
        o enigma lançado pelos biólogos no final do século passado. Embora a
        escassez dos dados disponíveis os tivesse feito prescindir da
        apresentação de hipóteses explicativas, a sua familiarização com
        fenómenos migratórios dos mais diversos tipos levou-os a afirmar que a
        migração dos solipsanos, dada a sua singularidade, indiciava a
        existência de uma biosfera surpreendente.
        Este pequeno foco de entusiasmo por Solipse não
        contagiou as instâncias poderosas, que responderam com a crítica
        habitualmente destinada às «intromissões» dos biólogos: estes, ao
        sugerirem que o comportamento dos solipsanos só poderia ser
        compreendido através do estudo da sua base biológica, estavam a
        colocar em questão a «autonomia nomológica» das ciências
        astroculturais (ver ASCUL/HIS/103) e a pressupor um
        «reducionismo biológico incompatível com os resultados da
        exploração galáctica». Começamos hoje a verificar que, na maior
        parte dos casos, esta crítica tem funcionado como um simples pretexto
        para dissimular um desinteresse pelos mundos vivos não-civilizados e
        pelas civilizações sem tecnologia avançada. A falta de influência
        dos biólogos tem sido uma das notas dominantes do Programa de
        Exploração Galáctica, e se nos viemos a interessar por Solipse não
        foi pela necessidade de investigação biológica. A primeira viagem
        tripulada ao sistema de Hertz deu-se por um motivo bem diferente. Em
        2168, as nossas sondas comunicaram-nos notícias surpreendentes: a
        migração dos solipsanos cessara subitamente, e com ela cessara a dupla
        personalidade da espécie. O comportamento característico do
        hemisfério superior, para além de se ter estendido a todo o
        continente, assumira proporções nunca antes registadas. Durante um
        único ano terrestre, todas as cidades de Solipse sucumbiram perante uma
        anarquia selvática, e cerca de setecentos mil solipsanos pereceram sob
        as ruínas da sua civilização. O que estaria a acontecer? Ninguém
        sabia, ninguém se atrevia sequer a apresentar publicamente conjecturas
        explicativas, e este estado de ignorância inesperada veio reforçar o
        impacto da crise solipsana sobre a comunidade científica. De um momento
        para o outro, décadas depois do primeiro contacto com o sistema de
        Hertz, a humanidade centrava a sua atenção em Solipse, na expectativa
        inédita de testemunhar a morte de uma civilização. Estávamos perante
        uma coincidência extraordinária de um ponto de vista estatístico: uma
        espécie inteligente encaminhava-se para a extinção, e com ela
        desmoronava-se perante o nosso olhar uma civilização com duzentos mil
        anos de história. A vontade de presenciar este instante terminal fez
        surgir inevitavelmente a ideia de uma viagem tripulada ao sistema de
        Hertz, uma ideia que se impôs no Programa de Exploração Galáctica
        sem ter de enfrentar qualquer resistência significativa. É certo que a
        situação vivida pelos solipsanos, independentemente da sua raridade,
        possuía um interesse considerável paras as ciências astroculturais (ver
        ASCUL/TEO/662), mas arriscamos sugerir que na origem do entusiasmo por
        Solipse esteve também uma certa atracção mórbida, que se estendeu da
        comunidade científica a toda a humanidade.
        ***************
        Tinham decorrido apenas cinco anos desde o momento em
        que a crise solipsana se tornara conhecida quando, sob a liderança de
        Albert Musaazi, a Apocalipse 1 partiu para o sistema de Hertz, levando
        consigo dez técnicos de astronavegação e vinte cientistas
        disciplinarmente diversificados. A permanência em cronotúneis foi
        breve e decorreu em condições físicas favoráveis (ver
        APOC/TRA/1), o que foi decisivo para que se pudesse encontrar a
        civilização solipsana num estado aproveitável para as investigações
        projectadas. Da espécie inteligente de Solipse restavam apenas uns dois
        milhões de elementos, a degradação das cidades prosseguia a um ritmo
        acelerado, mas duas delas, situadas a escassos quilómetros do oceano
        inferior, apresentavam um estado de conservação bastante mais elevado
        que o das restantes. Este facto ditou a localização da base de
        pesquisa da Apocalipse 1, construída numa ilha suficientemente alta
        para não submergir por completo sob o efeito das marés solipsanas. A
        partir daí, a escassas dezenas de quilómetros das cidades menos
        degradadas, quinze investigadores puderam planear as suas actividades de
        pesquisa, permanecendo à margem da «loucura» colectiva que subjugara
        os solipsanos inteligentes.
        O objectivo prioritário dos investigadores foi o de
        recolher informação detalhada sobre os aspectos culturais da
        civilização solipsana. Esse tipo de informação escasseava, sobretudo
        porque se desconhecia completamente a linguagem dos solipsanos.
        Tentou-se superar este desconhecimento através da captura de alguns
        indivíduos, mas esta estratégia produziu resultados desastrosos: os
        solipsanos capturados, para além de não terem mostrado qualquer
        disposição para actos comunicativos, acabaram invariavelmente por se
        suicidar, sem que tivessem precisado de qualquer instrumento externo
        para fazerem cessar as suas funções vitais. O âmbito de pesquisa
        ficou assim restringido ao espaço ocupado pelas duas cidades costeiras.
        Através delas foi possível aprender muitíssimo sobre a organização
        social dos solipsanos, mas nada do que se aprendeu lançou qualquer luz
        sobre a crise civilizacional, e mesmo em relação ao antigo
        comportamento migratório a única descoberta relevante só veio adensar
        o mistério. Descobriu-se que antes de se ter dado a derrocada
        civilizacional todos os «portões» de cada cidade obedeciam a um
        mecanismo autónomo, a um relógio extremamente complexo e preciso que
        no momento programado isolava toda a área urbana. Depois de ter
        impossibilitado o acesso a essa área, o relógio desencadeava uma
        série de operações mecânicas que culminavam invariavelmente no
        lançamento de um gaz venenoso por toda a cidade. Dois anos depois, esse
        mesmo relógio conduzia todo o processo de reabertura da cidade.
        Constatou-se que cada uma das trinta cidades de Solipse ainda
        apresentava vestígios nítidos destas máquinas. Deste modo, tornou-se
        óbvia a existência de uma relação importante entre o fenómeno
        migratório e o funcionamento dos relógios: estes engenhos gigantescos
        destinavam-se certamente a assegurar que ninguém pudesse viver no
        espaço urbano durante o período que se seguia ao abandono massivo das
        cidades. Mas qual era o motivo para uma medida tão drástica? Para este
        e para outros enigmas, que se iam acumulando através da observação
        pormenorizada das cidades, as respostas tardavam em aparecer. Decorreram
        meses de pesquisa fastidiosa. A recolha e classificação dos dados
        habituais só ocasionalmente foi pontuada por alguma descoberta
        interessante (ver APOC/TRA/13), mas todas essas descobertas
        limitavam-se a reforçar a convicção de que a «chave» para
        compreender o modo de vida dos solipsanos permanecia completamente
        escondida. A desmotivação apoderava-se dos investigadores. Só uma das
        descobertas se mostrara encorajante: os solipsanos possuíam uma
        linguagem escrita. No entanto, o que se sabia sobre essa linguagem era
        muito pouco, sobretudo porque não se encontrara um único texto com uma
        dimensão aproveitável para a análise linguística. As duas cidades
        costeiras tinham sido examinadas com uma precisão milimétrica, mas de
        todo esse esforço só resultara a recolha de algumas placas de pequena
        dimensão, que exibiam uma sequência de símbolos extremamente breve.
        Tudo parecia indicar que para os solipsanos a linguagem escrita não
        desempenhava um papel importante como veículo de comunicação, e assim
        a cultura solipsana continuava a resistir a todas tentativas de
        compreensão.
        Os projectos centrais da Apocalipse encaminhavam-se
        para um fracasso humilhante. Esse fracasso teria sido inevitável se,
        numa das cidades mais próximas da linha equatorial, não se tivesse
        registado um foco de violência com proporções invulgares. Na
        ausência de estratégias de pesquisa mais promissoras, os
        investigadores decidiram acompanhar esse evento com uma atenção
        minuciosa. Não se arrependeram. O contacto observacional tornou
        imediatamente manifesta a singularidade do que estava a decorrer: dois
        grupos de solipsanos travavam uma batalha ininterrupta, e um desses
        grupos, muito inferior do ponto de vista numérico, possuía um nível
        de organização extraordinariamente elevado. O grupo mais numeroso --
        do qual faziam parte cerca de cinco mil indivíduos -- obedecia ao
        comportamento anárquico que se tornara característico desde o início
        da crise civilizacional. Muitos dos elementos desse grupo chegavam a
        agredir-se entre si, por vezes até à morte, e nos seus movimentos era
        nítida a ausência de qualquer estratégia estruturada por objectivos a
        médio ou longo prazo. No grupo minoritário, que ocupava uma posição
        predominantemente defensiva, assistia-se a um comportamento muito
        diferente, no qual transparecia uma estratégia bem definida, que todos
        tentavam executar sem nunca perder de vista a disciplina hierárquica e
        a especialização de funções. A maneira de agir destes solipsanos
        --que em número não ultrapassavam a casa das centenas -- veio renovar
        o ânimo dos investigadores. Provavelmente, tinha-se conseguido
        localizar os sobreviventes da catástrofe civilizacional, aqueles que
        teimavam em lutar pelo antigo modo de vida e procuravam resistiam ao
        contágio pela loucura colectiva. Se isto era verdade, havia que actuar
        com toda a urgência, havia que tentar por todos os meios estabelecer
        contacto com esses solipsanos. O seu comportamento suportava a
        convicção de que por fim seria possível estabelecer laços
        comunicativos bem sucedidos. Albert Musaazi, o líder da Apocalipse,
        tomou uma decisão ousada: isolar a zona central da área onde decorria
        a batalha, de modo a proteger o grupo minoritário dos seus ofensores e
        a criar condições favoráveis para o contacto comunicativo. A
        execução deste plano não foi fácil e quase conduziu a um fracasso
        sangrento, mas os solipsanos organizados, a partir do momento em que
        pareceram compreender o propósito dos nossos investigadores,
        auxiliaram-nos a isolar a zona pretendida. Tudo corria pelo melhor,
        excediam-se as expectativas iniciais, mas quando a construção do
        «cerco» estava quase concluída o comportamento dos solipsanos sofreu
        uma viragem surpreendente. O aliados inesperados dos elementos da
        Apocalipse decidiram abandoná-los, dispersaram e misturaram-se na
        multidão, deixando-os completamente sós na área isolada. Todo o
        esforço realizado parecia ter sido em vão. Mas uma nova surpresa veio
        relançar o entusiasmo: existia uma vasta «biblioteca» dentro do
        espaço cercado.
        ***************
        A descoberta da «biblioteca» solipsana, que acabou
        por se tornar conhecida como «solipteca», teve uma importância
        incalculável. Permitiu-nos, antes de mais, encontrar uma
        interpretação plausível para a batalha que se tinha dado na cidade
        equatorial. Corroborava-se a suposição de que o grupo minoritário era
        constituído por solipsanos que pretendiam preservar a sua
        civilização, isto porque, muito provavelmente, o seu objectivo tinha
        sido o de impedir a destruição da solipteca, de impedir o
        desaparecimento da sua própria memória cultural. Esta interpretação,
        a ser verdadeira, sugeria que solipteca devia possuir um grande valor
        informativo, o que se veio a confirmar.
        As diferenças culturais que nos separavam dos
        solipsanos eram cada vez mais manifestas, e este facto não fazia prever
        facilidades no acesso à linguagem solipsana, mas a verdade é que a
        decifração e tradução da solipteca decorreu sem percalços
        significativos (ver SOLIP/LAN e ASLIN/TEO/39). Em parte, isso
        ficou a dever-se aos progressos atingidos pela astrolinguística. No
        entanto, o extraordinário rigor sintáctico da linguagem solipsana
        contribuiu muito para tornar acessível o conteúdo da solipteca.
        Verificou-se que muita da informação recolhida era de natureza
        matemática. Os investigadores da Apocalipse, confrontados com a
        descoberta de todo esse conhecimento, não puderam deixar de se sentir
        surpreendidos. Como era possível que uma civilização tão avançada
        no conhecimento matemático nunca se tivesse empenhado na aplicação
        desse conhecimento? Os solipsanos veneravam a matemática, a lógica e
        algumas das áreas mais abstractas da linguística, mas as ciências
        empíricas não encontravam qualquer lugar nos seus horizontes
        cognitivos. O motivo da sua dedicação às ciências «formais», fosse
        ele qual fosse, decididamente não passava pela procura de instrumentos
        sofisticados para a compreensão da natureza. Os solipsanos não
        mostravam qualquer interesse intelectual pelo mundo físico. Podemos
        até afirmar que nada há de mais estranho à cultura solipsana que a
        ideia de que o conhecimento científico é um meio para controlar
        tecnologicamente a natureza. A atitude dos solipsanos perante a
        realidade natural contribuía assim para explicar seu baixo
        desenvolvimento tecnológico, mas como explicar esta própria atitude? A
        solução para este problema só se começou a esboçar quando os
        investigadores da Apocalipse penetraram no outro domínio privilegiado
        do pensamento solipsano: a reflexão filosófica.
        Não há que hesitar em falar de filosofia
        solipsana. Muita da informação encontrada na solipteca é filosofia
        sem aspas, e uma grande parte dela situa-se claramente no domínio da
        ética. Essa ética destaca-se, como seria de esperar, pelo seu
        carácter formal. Os solipsanos esforçaram-se sobretudo por discernir
        relações interessantes entre o pensamento lógico e a acção moral,
        recusando obstinadamente qualquer abordagem de carácter empírico. É
        interessante constatar que muito do seu pensamento se desenvolve em
        linhas kantianas. Encontramos, por exemplo, tentativas para demonstrar
        por meios puramente a priori que as prescrições morais são
        universalmente aplicáveis. Os solipsanos também concederam uma
        atenção especial aos problemas filosóficos suscitados pela
        matemática. Neste domínio, devemos destacar a existência de uma
        atitude dogmaticamente realista em relação às entidades
        matemáticas. Os solipsanos parecem acreditar em números e em conjuntos
        um pouco como nós acreditamos em árvores e em mesas; o realismo
        matemático faz parte do seu senso comum do mesmo modo que o realismo em
        relação às entidades físicas faz parte do senso comum humano. A
        ideia de que as entidades matemáticas só existem enquanto resultado de
        alguma construção mental surge no pensamento solipsano como uma
        hipótese intuitivamente falsa, como uma hipótese que pela sua
        excentricidade intrínseca se limita a ocupar um lugar ocasional na
        discussão filosófica, sendo usada sobretudo no contexto de reduções
        ao absurdo.
        É compreensível que esta aceitação dogmática do
        realismo matemático nos pareça especialmente estranha logo que
        identifiquemos o traço essencial de toda a filosofia solipsana, que
        consiste na existência de um cepticismo extremo e generalizado em
        relação à realidade do próprio mundo físico. Não foi difícil
        descobrir que os solipsanos tinham vivido sempre atormentados com a
        hipótese solipsista, com a possibilidade de todo o «mundo exterior»
        se reduzir a uma espécie de sonho ou ilusão sem qualquer base real,
        sendo assim insusceptível de existir independentemente da mente daquele
        que o sonha. Os nossos filósofos encontram-se familiarizados com a
        hipótese solipsista pelo menos desde Descartes, que a formulou com toda
        a clareza para depois a tentar refutar. Consta que o seu esforço não
        foi bem sucedido. Seja como for, a opinião que se impôs até hoje é a
        de que essa hipótese não pode ser refutada nem demonstrada
        conclusivamente, mas que este facto não tem qualquer importância
        prática. Como humanos, estamos condenados a agir durante a maior parte
        do nosso tempo sob o suposto de que o mundo exterior é real, e nem o
        mais céptico dos filósofos se consegue furtar a esta situação. Ao
        nível epistémico, os solipsanos tinham pensado essencialmente o mesmo
        e pelos mesmos motivos: a hipótese solipsista não pode ser refutada
        nem demonstrada, já que tudo o que observamos pode ser interpretado
        tanto supondo que o mundo físico é real, como supondo que todo esse
        mundo resulta apenas da nossa própria actividade mental. Neste ponto
        não podemos deixar de citar um dos textos mais significativos da
        solipteca:
         
        
        Vejo pontos luminosos no céu, e disto posso ter a
        certeza. Digo que a esses pontos podem corresponder coisas físicas
        reais, e chamo «estrelas» a essas coisas. Mas será que esses pontos
        luminosos são mesmo estrelas? Nada me garante que não esteja apenas
        perante uma ilusão de estrelas. Só posso saber que quando olho para o
        ceú é como se existissem estrelas. Porquê? Posso explicar isto
        dizendo que as coisas são como se existissem estrelas porque existem
        realmente estrelas, mas posso explicar o mesmo dizendo que as coisas
        são como se existissem estrelas porque tenho a ilusão da existência
        de estrelas. Não há motivos para preferir uma hipótese à outra, a
        não ser que se pressuponha previamente uma delas, e nada do que observo
        ou alguma vez poderei observar pode contribuir para decidir a questão.
        (Para as dificuldades de tradução, ver SOLIP/LAN/120.)
         
        O texto que acabámos de citar podia muito bem ter
        sido escrito por um filósofo terrestre. No entanto, a atitude
        caracteristicamente humana perante a situação epistémica acima
        descrita em nada se assemelha à atitude assumida pelos solipsanos. A
        impossibilidade de refutar o solipsismo nunca lhes surgiu como uma
        simples dificuldade teórica, mas como um facto determinante para a
        condução de todos os tipos de actividade. Diz-nos um solipsano:
         
        
        Eu não sei se por detrás das minhas sensações há
        mundo físico real ou se sou o criador solitário de tudo o que se me
        apresenta. Nenhuma destas hipóteses me parece mais provável que a
        outra. Disto surge a mais terrível de todas as questões. Devo agir
        supondo que o mundo que se me dá pelos sentidos é ou não é real? No
        primeiro caso, reconheço a existência independente dos meus
        semelhantes e de uma sociedade que me tem como elemento, e isso
        permite-me colocar a mim mesmo certas obrigações morais. No entanto,
        se o mundo sensorial é apenas o meu mundo, se tudo o que se me dá é
        um reflexo involuntário da minha própria mente, então tudo me é
        permitido, porque não faz sentido eu estar a agir sob obrigações
        morais perante seres que realmente não existem. O que devo fazer nesta
        situação? Para ser racional, terei que agir em conformidade com o que
        é verdadeiro ou com o que é mais provável que seja verdadeiro, mas
        sendo assim eu não posso saber como agir racionalmente, porque sobre a
        realidade do mundo que se me dá não me é possível atingir qualquer
        conhecimento.
        
         
        Se estas palavras tivessem surgido no contexto da
        cultura humana, elas representariam o ponto de vista crítico e
        desviante de uma minoria. No contexto da cultura solipsana, as
        afirmações citadas são puro senso comum. A indecidibilidade do
        solipsismo percorre toda a história dos solipsanos, constituindo uma
        espécie de obsessão cultural permanente, se é que podemos usar um
        termo patológico como «obsessão» para nos referirmos ao que na
        verdade traduz um racionalismo inexcedível. Os solipsanos tinham sempre
        considerado com toda a seriedade o facto de não ser possível refutar
        ou demonstrar a realidade do mundo exterior, e esforçaram-se por
        retirar desse resultado teórico as conclusões práticas relevantes, de
        modo a poderem agir como seres perfeitamente racionais. Mas que
        conclusões práticas se podem seguir da simples indecidibilidade do
        solipsismo? Afinal, deve-se agir como se o mundo exterior fosse real?
        Neste ponto, a história do pensamento solipsano dá-nos conta de
        sérias divergências, que em última instância radicam na
        impossibilidade lógica de se retirar qualquer conclusão prática apenas
        da indecidibilidade do solipsismo. A grande maioria dos solipsanos,
        aceitando a formulação do dilema acima enunciado, adoptou uma linha de
        raciocínio que acabou por os conduzir a um «solipsismo prático»:
         
        
        Se eu não posso apontar um único motivo epistémico
        que justifique a minha preferência pela realidade ou pela idealidade do
        mundo que se me dá, resta-me admitir que toda a minha acção terá que
        ser indiferente ao valor de verdade de "o mundo que se me dá é
        real". Eu não serei mais racional ao agir supondo que os meus
        semelhantes existem realmente do que ao agir sob a suposição
        contraditória. E no entanto sou forçado a agir, e sei que a minha
        escolha de determinadas acções não será indiferente a uma crença na
        realidade do mundo, mesmo sabendo que essa crença (ou descrença) não
        poderá deixar de ser absolutamente injustificada. Mas agora
        confronto-me com o seguinte resultado: se eu não acreditasse na
        realidade do mundo que se me dá, agiria como se só eu existisse, e
        todas as minhas acções estariam determinadas apenas pelo meu
        interesse, já que não reconheceria a existência de outros seres com
        interesses próprios. Ora, como eu não sei se o mundo que se me dá é
        ou não é real, e como tenho de agir decidindo-me por uma destas
        hipóteses, não tenho outra possibilidade senão a de escolher a
        hipótese que esteja de acordo com o meu interesse. Verifico assim que,
        quer aceite o solipsismo ou permaneça simplesmente céptico, é sempre
        o meu interesse que determina necessariamente todo o curso posterior das
        minhas acções.
         
        
        Nem todos os solipsanos aceitaram este argumento.
        Entre esses, os mais radicais tornaram-se defensores da ideia de que o
        suicídio é a única maneira de agir racionalmente. «Estou condenado a
        agir irracionalmente», afirmou um destes solipsanos, fazendo notar que
        esse é o resultado inescapável de não se ter qualquer motivo para
        acreditar na realidade ou na idealidade do mundo exterior, sabendo-se no
        entanto que a conduta escolhida envolve uma crença numa destas duas
        hipóteses. Sendo assim, a única possibilidade de se ser racional passa
        necessariamente pela recusa em agir, e só aquele que se suicida é
        capaz de se recusar a agir. A selecção natural encarregou-se de
        eliminar esta teoria, porque todos os que possuiam uma disposição
        genética favorável à sua aceitação mostraram uma tendência
        compreensível para não se reproduzirem. Outros solipsanos sustentaram
        uma posição semelhante, mas mais moderada. O seu ponto de vista
        encontra-se formulado na seguinte passagem:
         
        
        Quando eu decido, por exemplo, caminhar junto ao mar,
        a minha decisão em nada é afectada por eu não saber se o mar existe
        realmente ou se o mar é uma construção da minha mente. No entanto, se
        um que se me dá como meu semelhante me pede ajuda, aí sim, surge o
        problema: eu sentir-me-ia obrigado a ajudá-lo se soubesse que ele é
        realmente um meu semelhante, mas não o ajudaria se soubesse que ele
        não é real. Como eu não me posso decidir por uma destas hipóteses,
        também não sei como agir nessa situação, e é isso que me condena à
        irracionalidade. Significa isto que estou sempre condenado à
        irracionalidade prática? Não. Só em casos como o que está
        instanciado pelo segundo exemplo, porque em casos como aquele em que
        decido passear junto ao mar o facto de não se saber se o mar existe
        realmente não torna a minha decisão irracional, porque esse facto é
        indiferente à minha decisão de passear junto ao mar. Mas o que faz a
        diferença entre os dois casos que apontei e torna o segundo caso tão
        problemático? O segundo caso é problemático porque envolve uma
        decisão em relação a um outro que se me dá como meu semelhante: é o
        facto de poder estar perante mim um outro como eu, um outro que me
        desperta obrigações morais, que torna a minha situação embaraçosa,
        porque eu não sei nem posso saber se esse outro é real e, portanto,
        não posso saber se devo agir moralmente em relação a ele. Este é um
        problema insolúvel, e admito que se o tiver de enfrentar alguma vez
        estou condenado a ser irracional, porque nada me resta senão agir em
        função do meu interesse, que não é justificado por nada para além
        de ser o meu interesse. Significará tudo isto que, para que não esteja
        condenado à irracionalidade, resta-me decidir não agir, fazendo uso do
        suicídio? Não necessariamente. Posso também viver afastado de todos
        os que se me dão como meus semelhantes porque, nesse estado de
        isolamento, nunca terei de enfrentar as situações que me condenam à
        irracionalidade, já que na prática nunca se me colocará o terrível
        dilema de ter ou não ter obrigações morais perante outros.
        
         
        É difícil determinar a popularidade atingida por
        esta postura isolacionista, mas podemos estar certos de que aqueles que
        a ela aderiram não tiveram uma influência significativa na história
        solipsana. Esses solipsanos, ao viverem na convicção de que só um
        modo de vida estritamente solitário pode salvar a racionalidade
        prática, retiraram-se para as áreas mais inóspitas de Solipse,
        colocando-se à margem de todos os desenvolvimentos culturais da sua
        civilização. Deste modo, foram aqueles que aderiram ao solipsismo
        prático que acabaram por protagonizar a história solipsana, uma
        história invulgarmente longa, mas, pelo que sabemos, bastante pobre na
        diversidade dos eventos que a percorreram. Entre os solipsistas
        práticos, surgiram desde o início duas correntes antagónicas, e
        durante muitos milhares anos o domínio sobre Solipse pertenceu
        alternadamente a uma dessas correntes, em ciclos que oscilaram entre os
        cinco e os dez séculos de duração. Todos esses solipsanos
        reconheceram que é o interesse próprio que determina primária e
        necessariamente a atitude prática perante a realidade do mundo
        exterior, mas, como seria de esperar, os interesses próprios dos
        solipsanos estiveram longe de coincidir. Alguns preferiram agir como se
        o mundo exterior não fosse real, o que se traduziu num tipo de conduta
        marcado por um egoísmo anárquico; outros, pelo contrário, preferiram
        agir como se soubessem que o mundo exterior é real, e desenvolveram um
        modo de vida fundado na sociabilidade. Devemos notar que este tipo de
        correlação nunca se obteve em todos os casos. Alguns solipsanos,
        embora tenham decidido viver sob a hipótese da irrealidade do mundo,
        acabaram por preferir a existência em sociedade, porque na sua
        perspectiva o conforto propiciado pela sociabilidade servia melhor os
        seus interesses. Também se registou a situação inversa: alguns dos
        que viveram supondo a realidade do mundo tornaram-se, à semelhança dos
        nossos anarquistas, adversários de todas as formas de organização
        social, justificando a sua posição através de argumentos de ordem
        ética e política. No entanto, estas duas atitudes só se verificaram
        em franjas minoritárias da população solipsana. O suposto realista
        manteve-se sempre estreitamente vinculado ao comportamento sociável, do
        mesmo modo que o suposto inverso produziu o comportamento inverso.
        Formaram-se assim duas tendências que nunca puderam coexistir
        pacificamente, e, por diversas ocasiões, do seu antagonismo permanente
        quase sobreveio a extinção da espécie. Os solipsanos sociáveis
        esforçavam-se por construir uma ordem social estável, capaz de
        viabilizar o progresso cultural, mas os solipsanos anárquicos
        constituiam uma ameaça incontornável à realização desse propósito:
        saqueavam as cidades, destruíam os meios de produção, e muito
        frequentemente liquidavam os seus semelhantes, sem que para isso
        precisassem de um motivo mais forte que o de satisfazer um caprinho
        pessoal momentâneo. Nestas circunstâncias, os solipsanos nunca puderam
        criar um modo de vida civilizado duradouro. Os que preferiam a
        condição sociável tinham que dedicar muito do seu tempo à luta
        ininterrupta contra a anarquia, e mais tarde ou mais cedo todo o seu
        esforço fracassava, em grande parte porque as fileiras dos solipsanos
        anárquicos iam engrossando à medida que se instalava um pessimismo
        progressivo em relação às vantagens da existência em sociedade. As
        cidades acabavam assim por sucumbir, com elas desintegrava-se toda a
        memória cultural que entretando se acumulara, e os solipsanos
        retornavam uma vez mais ao grau zero de civilização.
        Sobre esta longa era da história dos solipsanos, só
        temos conhecimento de um único episódio que veio alterar
        significativamente a estabilidade cíclica. A data desse episódio é
        ainda objecto de polémica, e sobre os seus detalhes pouco ou nada
        sabemos. Mesmo assim, os dados existentes permitem-nos afirmar que
        durante um período de dois ou três séculos quase todos os solipsanos
        adoptaram uma atitude de silêncio rigoroso, um silêncio que atingiu
        todas as formas de comunicação. Ao que parece, este estranho
        acontecimento partiu de um pequeno grupo «para-realista». Os elementos
        desse grupo dedicavam muito do seu tempo à realização de um objectivo
        que era visto como utópico pelos seus semelhantes: demonstrar que mundo
        exterior é real, ou pelo menos que essa é uma hipótese mais provável
        que a sua negação. Com isso procuravam diminuir drasticamente o
        número dos solipsanos anárquicos. Este propósito louvável conduziu,
        no entanto, a resultados perversos. Tudo indica que esses
        «para-realistas» foram inesperadamente bem sucedidos, pelo menos até
        certo ponto. Através de argumentos muitíssimo subtis, conseguiram
        demonstrar que o simples uso de uma linguagem compromete aqueles que a
        usam com a realidade do mundo exterior, que o suposto realista se
        apresenta como uma condição de inteligibilidade do uso referencial da
        linguagem. Ora, o que inicialmente surgia como uma vitória histórica
        do realismo, depressa se revelou como uma ilusão desastrosa nas suas
        consequências. Os argumentos dos «para-realistas» tiveram um sucesso
        extraordinário, mas levaram os solipsanos a tomar uma decisão muito
        diferente da esperada. Os solipsanos, realmente convencidos de que quem
        usa uma linguagem está comprometido com a realidade do mundo exterior,
        não viram nisso qualquer motivo para aceitar o realismo, e decidiram
        antes abandonar o uso de toda e qualquer forma de linguagem de modo a
        permanecerem neutrais. Concluíram que essa é a única maneira de
        salvaguardar a racionalidade. Esta viragem traduziu-se, obviamente, num
        enfraquecimento enorme dos comportamentos sociáveis, e a anarquia
        atingiu níveis quase letais. Muitos dos indivíduos das novas
        gerações cresciam sem aprender o domínio de uma linguagem, já que
        quase todos os solipsanos mais velhos se recusavam a comunicar. Esta
        situação catastrófica, no entanto, guardava em si a chave para a
        reposição da «normalidade». Como todos aqueles que aderiram ao
        comportamento silencioso se recusavam a usar qualquer forma de
        linguagem, os escassos suportes materiais em que os argumentos
        «para-realistas» tinham sido inicialmente apresentados nunca chegaram
        a ser substituídos, e o seu desaparecimento assinalou o fim do
        comportamento silencioso. Os novos solipsanos, como nunca puderam
        conhecer esses argumentos, depressa retomaram o uso da linguagem, e
        deste modo a velha ordem não tardou a ressurgir.
        No entanto, há cerca de quarenta mil anos os ciclos
        históricos foram interrompidos de novo, e desta vez a interrupção
        não se reduziu a um simples acidente de percurso. A viragem partiu,
        naturalmente, da esfera do pensamento filosófico, e deu origem a uma
        revolução profunda. Uma alternativa viável ao solipsismo prático
        tinha acabado de emergir, provavelmente pela primeira vez, e colheu um
        consenso alargado entre os solipsanos, sem o qual não teria sido
        possível o sucesso da fase de transição revolucionária. Essa
        alternativa ficou conhecida por dualismo prático e, como os
        investigadores da Apocalipse depressa puderam reconhecer, nela estava
        presente a chave para a compreensão do comportamento migratório dos
        solipsanos. Toda a doutrina do dualismo prático, que prevalecera até
        à última derrocada civilizacional, assentava numa justificação
        teórica que pode não nos parecer muito persuasiva, mas a verdade é
        que ela exerceu uma influência incalculável sobre os solipsanos. A
        solipteca contém trinta e duas versões dessa justificação, mas a que
        nos parece ser a mais antiga de todas ocorre na seguinte passagem:
         
        
        Comecei então por pensar o que há de mais óbvio:
        que é melhor saber do que não saber, e que, sendo assim, se nada mais
        me permitir decidir entre duas possibilidades, e se uma delas me
        permitir saber algo e a outra não mo permitir, então procedo melhor ao
        preferir a que me permite esse saber. Não sei porque me vi conduzido
        para este pensamento aparentemente vazio e pobre de consequências, mas
        a verdade é que, para grande surpresa minha, retirei daqui a conclusão
        que mudou toda a minha vida. Como foi isto possível? Pensei que, se eu
        agir sempre como se o mundo que se me dá fosse real, é possível que
        esteja a agir sempre sob a falsidade desse pressuposto, o que será o
        caso se o mundo que se me dá não for real, e acontece exactamente o
        mesmo se eu agir supondo que o mundo que se me dá não é real. Num
        caso ou no outro, não me é possível saber se estou a agir sempre sob
        a falsidade do pressuposto em questão. No entanto, pensei eu, se umas
        vezes agir supondo que o mundo que se me dá é real, e se outras vezes
        agir supondo o contrário, pelo menos algumas vezes estarei a agir sob o
        pressuposto verdadeiro e, sendo assim, posso ao menos saber que nem
        sempre estou a agir sob o pressuposto falso. Profundamente emocionado
        com este pensamento, regressei à minha ideia inicial, contemplei a sua
        beleza , e deixei fluir a conclusão inevitável: o melhor é agir por
        vezes supondo que o mundo que se me dá é real, e agir noutros casos
        sob a negação desse pressuposto. Pelo menos assim sei que nem sempre
        vivo sob o engano, e sempre é melhor saber do que não saber.
         
        
        Logo na sequência deste argumento, o solipsano que o
        apresentou esforçou-se por retirar da sua conclusão consequências
        práticas mais específicas. Pelo que sabemos, os resultados que atingiu
        inauguraram uma nova época histórica. Na sua opinião, como a
        probabilidade de o solipsismo ser verdadeiro é exactamente idêntica à
        probabilidade da sua falsidade, um indivíduo racional deverá viver
        segundo a doutrina do dualismo prático ao aceitar o solipsismo durante
        metade do seu tempo, e ao negar essa posição durante a outra metade.
        Mesmo quem esteja familiarizado com a mentalidade
        solipsana, poderá confrontar-se neste ponto com uma dificuldade
        interessante. Suponhamos que um solipsano, depois de ter decidido viver
        através de fases em que aceita e nega alternadamente a realidade do
        mundo exterior, estabelece que cada uma dessas fases se deve estender
        por um período de tempo bem determinado. Suponhamos agora que o
        solipsano em questão entrou numa fase em que vive como se o mundo
        exterior fosse irreal. Sendo assim, alguns momentos antes de terminar o
        prazo previsto para essa fase, ele poderá duvidar de que o tempo
        estabelecido está realmente no seu termo porque, como vive como se o
        mundo exterior não fosse real, poderá considerar ilusória a
        impressão de que já decorreu quase todo esse tempo. Nestas
        circunstâncias, esse solipsano poderia prolongar indefinidamente a sua
        postura solipsista, arruinando assim o seu modo de vida dualista. Embora
        esta linha de raciocínio possa parecer plausível, a verdade é que ela
        esbarra na aceitação tácita de uma hipótese errada sobre a teia de
        crenças própria dos solipsanos. É certo que os defensores do modo de
        vida dualista agem, durante certos períodos de tempo, sob a hipótese
        de que o mundo exterior é irreal, mas este cepticismo nunca contagia a
        própria noção de duração temporal, simplesmente porque os
        solipsanos nunca conceberam o tempo como uma realidade física que deve
        a sua existência ao mundo exterior. Este é, sem dúvida, um dos
        aspectos mais intrigantes do senso comum solipsano, mas, como veremos
        mais adiante, os resultados das investigações permitiram-nos torná-lo
        compreensível.
        Como decorreu o processo revolucionário que culminou
        no triunfo absoluto do dualismo prático? A partir da solipteca não foi
        fácil obter uma reconstrução histórica razoavelmente precisa deste
        evento, não só porque ele se prolongou por cerca de quinze séculos,
        mas sobretudo porque o estudo da história nunca entusiasmou os
        solipsanos. É certo que a nossa imagem da revolução solipsana
        apoia-se, numa certa medida, nas pesquisas arqueológicas posteriores à
        viagem da Apocalipse (ver ARQ/GEN/109). No entanto, os dados
        relevantes contidos na solipteca, embora consistam quase sempre em
        afirmações fragmentárias e marginais, mostraram-se indispensáveis no
        sucesso ulterior das pesquisas arqueológicas. É altamente improvável
        que, apenas a partir dos indícios encontrados, os arqueólogos pudessem
        ter chegado alguma vez a imaginar as dificuldades insólitas que os
        solipsanos tiveram de enfrentar. Tanto quanto sabemos, em menos de um
        século a aceitação do dualismo prático estendeu-se à esmagadora
        maioria da população. Este acontecimento trouxe consequências sociais
        devastadoras. A velha divisão razoavelmente estável entre solipsanos
        anárquicos e sociáveis desapareceu, deixando no seu lugar uma
        população de solipsanos que tinham escolhido uma existência
        perigosamente esquizofrénica.
        Graças a algumas passagens da solipteca, não foi
        difícil identificar a causa fundamental da instabilidade que então
        emergiu. Quase todos os solipsanos tinham decidido viver aceitando e
        negando alternadamente a realidade do mundo exterior, e neste aspecto o
        consenso era quase global, mas a duração que tinham atribuído a cada
        período de vida variava bastante de indivíduo para indivíduo, já que
        não se mostrou possível determinar de uma maneira objectiva a
        duração correcta ou ideal desses períodos. Alguns preferiam uma
        periodização extremamente breve. Existem mesmo algumas referências a
        solipsanos que, aproximadamente de hora a hora, deixavam de viver
        segundo o solipsismo para logo depois retomarem a sua aceitação. No
        extremo oposto, situavam-se os solipsanos que tinham escolhido uma
        periodização que se desdobrava por períodos de muitos anos de
        duração. Entre ambos os extremos, coexistiam quase todas as possíveis
        soluções intermédias. No entanto, as preferências dos solipsanos em
        relação às periodizações estavam longe de ser arbitrárias, já que
        na maior parte dos casos elas resultavam da aceitação consciente de
        uma justificação racional. Desconhecemos muitos detalhes do debate que
        decorreu sobre este assunto, mas foi possível reconstituir pelo menos
        algumas das linhas fundamentais que o percorreram. Os defensores das
        periodizações longas defendiam a sua posição ao tentarem mostrar que
        a preferência contrária se traduzia numa derrota absoluta do modo de
        vida realista em termos práticos. Afirmavam que quem vive como se o
        mundo exterior fosse real tenderá a desenvolver projectos a médio ou
        longo prazo que só fazem sentido sob o suposto realista, e a procurar
        metodicamente os meios adequados para a sua realização. Esta
        tendência, que se encontra associada à disposição realista para a
        sociabilidade, só se poderia traduzir em resultados visíveis caso se
        vivesse de uma maneira suficientemente estável. Ora, quem vivesse na
        instabilidade permanente gerada por uma sequência de períodos
        demasiado breves, acabaria por nunca viver verdadeiramente como
        um realista, desequilibrando assim a balança e regressando ao velho
        solipsismo prático. Esta linha de argumentação, embora tenha sido
        levada em conta pela maior parte dos solipsanos, parece não ter
        atingido o grau de clareza e evidência que teria sido necessário
        produzir uma adesão sem grandes relutâncias. Contra ela, os defensores
        das periodizações breves apresentaram um argumento muito mais
        objectivo. O ponto de partida desse argumento consiste na simples
        afirmação da imprevisibilidade da morte: mesmo admitindo a
        possibilidade de uma vida imortal, há que considerar seriamente a
        permanente possibilidade de uma cessação súbita e inesperada da
        existência. Nestas circunstâncias, a adopção de uma periodização
        longa coloca em risco o ideal de vida dualista, e quanto mais longa for
        a periodização, maior será esse risco. Como pode isto suceder?
        Importa não esquecer que o ideal dualista prescreve uma vida
        temporalmente constituída por «porções» iguais de existência
        realista e solipsista. Suponhamos então que um solipsano com uma
        periodização extremamente longa, tendo vivido como um realista no
        primeiro período racional da sua existência, acaba por morrer quase no
        fim de um outro período realista. Um solipsano como esse terá então
        vivido menos tempo como solipsista do que como realista, e este
        desequilíbrio terá sido tanto mais grave quanto mais longa tenha sido
        a sua periodização. Sendo assim, as periodizações breves têm a
        vantagem indiscutível de minimizar as probabilidades de desequilíbrio
        por morte inesperada.
        Não sabemos se este debate foi marcado por muitos
        outros argumentos influentes, mas sabemos que a ausência de um consenso
        traduziu-se num predomínio assombroso do comportamento anárquico. E
        não foi difícil explicar esse predomínio: como os solipsanos viviam
        com periodizações de duração muito variável, e como mesmo os que
        tinham periodizações semelhantes iniciavam cada novo período em
        momentos muito diferentes, todos os laços firmes de sociabilidade
        dissolveram-se rapidamente. É certo que os solipsanos, durante os
        períodos realistas, continuavam a mostrar uma disposição sociável,
        mas essa disposição não produzia efeitos significativos, porque a
        constituição de sociedades razoavelmente estáveis era inviabilizada
        pelas diferenças de periodização.
        Este deve ter sido um dos momentos mais críticos da
        história da civilização solipsana. A via exacta que conduziu à sua
        superação ainda não está inteiramente esclarecida, mas as hipóteses
        aceites certamente não se afastam muito da verdade. Logo após a
        descoberta da ideologia do dualismo prático, os investigadores da
        Apocalipse sentiram que por fim estavam na posse de uma boa explicação
        para o comportamento migratório dos solipsanos, que assim se tornava
        perfeitamente compreensível como um resultado da execução dessa
        ideologia. No entanto, subsistia o problema de saber como decorrera a
        emergência do comportamento migratório regular a partir das anteriores
        discrepâncias de periodização. A invenção dos relógios que mais
        tarde acabaram por controlar o acesso a todas as cidades marcou um
        momento decisivo desse processo, mas não podemos ver nesse evento a
        única grande causa da estabilização histórica, já que ele não
        poderia ter decorrido sem a existência prévia de alguma organização
        social minimamente desenvolvida. Sendo assim, o que terá levado ao
        surgimento dessas primeiras sociedades baseadas no dualismo prático?
        Tudo nos leva a crer que esse processo decorreu segundo os desígnios
        cegos da pura selecção natural. A partir do caos inicial caracterizado
        por uma distribuição aleatória das diversas periodizações, essa
        mesma aleatoriedade acabou por dar origem a pequenos grupos de
        solipsanos com periodizações muito semelhantes. Tornou-se assim
        possível desenvolver alguma sociabilidade durante os períodos
        realistas. É claro que isso não pôde acontecer em relação aos que
        tinham adoptado periodizações extremamente breves, mas os que tinham
        escolhido viver segundo períodos bastante longos puderam usufruir de
        algumas das vantagens inerentes à existência em sociedade. A
        selecção natural favoreceu esses grupos. Certamente muitos acabaram
        por se dissolver, mas outros, no entanto, conseguiram aumentar em
        número e em poder. Ressurgiram assim algumas áreas urbanas, e aqueles
        que as habitavam viram-se confrontados com o desafio de procurar,
        durante os períodos realistas, formas de as proteger tanto dos lhes
        eram estranhos como de si mesmos. A invenção dos primeiros relógios
        veio então corresponder a esta necessidade de uma maneira
        extraordinariamente eficaz. Esse passo revolucionário, para além de
        ter reduzido muitíssimo o risco de extinção, viabilizou o
        desenvolvimento de uma organização social duradoura. Os solipsanos que
        começaram a viver sob o ritmo imposto pelos relógios de migração
        adquiriram grandes vantagens sobre todos os outros, já que no início
        de cada período realista não tinham que partir praticamente do zero. O
        seu esforço civilizacional produzia assim resultados cumulativos,
        resultados que tornavam cada vez mais manifesta a superioridade do modo
        de vida migratório. Como seria de esperar, esse modo de vida acabou por
        englobar toda a população.
        Podemos dizer que essa foi a época em que os
        solipsanos conheceram os seus dias mais felizes. Durante os períodos
        realistas, assistia-se ao florescimento progressivo de uma organização
        social bem sucedida, e o funcionamento dos relógios garantia a sua
        preservação nos períodos em que os solipsanos se deslocavam
        massivamente para mais um incursão ao «estado da natureza» no
        hemisfério superior. Não há registo de qualquer tipo de conflito
        violento entre as cidades, e mesmo ao nível das relações individuais
        os períodos realistas eram marcados por um predomínio invulgar da
        pacifidade, explicável somente pela oportunidade de que os solipsanos
        dispunham para libertar todos os seus instintos agressivos durante os
        períodos solipsistas. Estas circunstâncias fizeram emergir uma cultura
        admirável, uma cultura que ainda se mostra profundamente enigmática de
        um ponto de vista humano.
        Já aqui foi mencionada a riqueza do pensamento
        lógico e matemático dos solipsanos. Esse foi, sem dúvida, o domínio
        privilegiado da sua actividade espiritual, mas sabemos hoje que o uso
        das linguagens simbólicas próprias desse domínio nem sempre se
        destinou a finalidades estritamente cognitivas. Confrontados com
        inúmeras «teorias» lógicas e matemáticas aparentemente sem
        importância ou mesmo sem o menor sentido, os investigadores que
        trabalhavam em torno da solipteca decidiram interrogar alguns solipsanos
        sobre o seu propósito. As respostas não foram muito esclarecedoras,
        mas deram a entender que essas «teorias» resultavam sobretudo da
        experiência estética dos solipsanos. Esta descoberta inaugurou um
        campo de investigação inédito, onde as tentativas de melhorar a nossa
        compreensão dos solipsanos parecem redundar frequentemente num non
        sense absoluto. No vasto conjunto de obras dedicadas a este tema --
        obras pouco recomendáveis para qualquer leigo -- podemos encontrar uma
        profusão inquietante de referências a geometrias trágicas, algoritmos
        barrocos ou funções metafóricas. As diferenças entre os diversos
        tipos de narrativas axiomáticas, onde se destacam as convergentes e as
        divergentes, têm captado uma atenção particularmente intensa. Um
        outro foco de interesse é aquele que tem incidido sobre a arte «underground»
        solipsana, um estilo artístico que nunca foi muito apreciado,
        identificável em grande parte pela presença de um gosto obsessivo por
        falácias extremamente subtis e pela acumulação de resultados
        paradoxais. Sabemos que os apreciadores deste estilo procuravam atingir
        estados de fruição estética muitíssimo angustiantes, acabando
        frequentemente por cometer suicídio. No extremo oposto destes
        horizontes sombrios, encontramos muitas «teorias» solipsanas que,
        segundo a opinião predominante, devem ser concebidas sobretudo como
        obras humorísticas. Entre as curiosidades encontradas nesta área
        podemos apontar, por exemplo, um sistema de lógica modal com oito
        quantificadores e trezentos e vinte seis valores de verdade que, segundo
        parece, tem resultados que despertam reacções profundamente
        hilariantes na maior parte dos solipsanos. É certo que através de uma
        mistura insólita de matemática, teoria da arte e psicologia
        extraterrestre, continuam a decorrer as pesquisas sobre o significado
        das obras de arte solipsanas, mas já são muitos os que defendem o
        abandono deste campo de investigação por acreditarem que ele só se
        pode traduzir em afirmações sem sentido sobre um horizonte estético a
        que nunca poderemos aceder.
        Sobre os múltiplos aspectos da cultura da era
        migratória, devemos também destacar aqueles que se referem à
        experiência religiosa dos solipsanos. A religiosidade solipsana,
        caracterizada por uma crença frequente na existência de Deus durante
        os períodos realistas, começou por se nos apresentar como uma
        descoberta surpreendente. Se os solipsanos se mostravam sempre tão
        cépticos quanto à existência do mundo físico, como se dispunham tão
        facilmente a acreditar na existência de Deus? Este enigma, no entanto,
        não inviabilizou a compreensão do pensamento teológico dos
        solipsanos, sem dúvida mais acessível que a sua actividade estética.
        À semelhança da teologia tipicamente humana, a teologia solipsana
        centra-se numa representação de Deus onde se destaca a sua
        omnipotência e a sua benevolência. A existência do mal, também
        reconhecida pelos solipsanos, confrontou-os com um dos problemas
        teológicos mais discutidos na nossa galáxia (ver RELIG/TEOL/22):
        se Deus realmente pode fazer tudo e deseja o bem, como é possível
        explicar a existência do mal? Os solipsanos, mantendo a crença na
        omnipotência e na benevolência de Deus, conseguiram explicar a
        existência do mal de uma maneira muitíssimo adequada à sua teia de
        crenças. Para esse efeito, limitaram-se a excluir a omnisciência da
        sua representação de Deus. À primeira vista, a própria omnipotência
        parece implicar a omnisciência -- se Deus pode fazer tudo, então pode
        saber tudo --, mas os solipsanos furtaram-se a esta conclusão ao
        esclarecerem o alcance da omnipotência divina. Deus não pode fazer com
        que as coisas são não sejam idênticas a si mesmas, Deus não pode
        fazer do número cinco o resultado da soma de dois com dois, e no
        entanto estes «limites» ao poder divino não refutam a omnipotência
        de Deus, simplesmente porque não podemos esperar que um ser omnipotente
        faça o que é absolutamente impossível de se fazer. Ora,
        pensaram os solipsanos, a demonstração da realidade de um mundo
        exterior é uma impossibilidade absoluta para qualquer sujeito
        cognitivo, e é por isso que Deus, mesmo sendo omnipotente, não pode
        saber se o mundo que criou é ou não é real. A racionalidade de Deus
        leva-o então a agir durante metade do tempo sob o pressuposto de que a
        sua obra é real, e a agir durante a outra metade, obviamente, sob o
        pressuposto contrário. Todo o mal existente no mundo torna-se assim
        explicável como um resultado dos actos divinos praticados durante os
        períodos em que Deus procede como se as suas criaturas não fossem
        reais.
        Esta imagem de Deus reflecte de uma maneira
        extraordinariamente nítida a teia de crenças dos solipsanos. Já se
        tornou claro que essa teia, embora esteja centrada num cepticismo
        radical em relação à realidade de todo o mundo físico, não nos
        permite caracterizar os solipsanos como uma espécie vitimada por alguma
        loucura colectiva. A sua racionalidade não pode ser seriamente colocada
        em questão. Reafirmamos que os solipanos, para além de terem procurado
        justificar as suas crenças fundamentais de uma maneira objectiva,
        esforçaram-se também por agir sempre em conformidade com essas
        crenças. Toda a história dos solipsanos se estruturou pela procura
        ininterrupta de um modo de vida racional. Na verdade, quase que podemos
        identificar essa história, num estilo idealista, com a história do
        próprio pensamento solipsano, e é isto que faz com que os solipsanos
        nos pareçam irremediavelmente estranhos. As condições económicas ou
        tecnológicas nunca fizeram funcionar o motor da sua história de uma
        maneira decisiva. Foi a argumentação filosófica que desempenhou esse
        papel, e fê-lo com uma exclusividade surpreendente. Já vimos como o
        surgimento inesperado de um novo argumento filosófico desencadeou
        instantaneamente um vasto processo revolucionário. Nada parece estar
        mais longe da nossa própria história, onde a influência das ideias
        filosóficas, nas raras ocasiões em que se faz notar com clareza, tem
        de se desenvolver através de uma longa rede de mediações e pressupõe
        a existência de condições sociais muito favoráveis. O mesmo pode ser
        dito sobre qualquer outra das espécies inteligentes conhecidas. Sendo
        assim, a que diferença podemos atribuir a excepção instanciada pelos
        solipsanos?
        ***************
        A história solipsana parecia avançar quase sempre
        de «cima» para «baixo» ou, se preferirmos a terminologia marxista,
        da superestrutura para a infraestrutura. Esta ilusão ontológica, no
        entanto, desvaneceu-se irreversivelmente quando os solipsanos começaram
        a ser estudados a um nível ainda mais «baixo», ou seja, não através
        da sua organização política e económica, não através das suas
        condições tecnológicas, mas através da sua estrutura puramente
        biológica. Foram os biológos da Apocalipse 1 que descobriram o aspecto
        crucial da extraordinária da biosfera solipsana, marcada por uma
        singularidade que se manifestou de uma forma progressivamente complexa e
        diversificada ao longo da história natural de Solipse, uma
        singularidade que ainda hoje continua a surpreender-nos. A estrela Hertz
        recebeu o seu nome devido a essa singularidade, devido à admirável
        biosfera hertziana de Solipse, uma biosfera que evoluiu em função de
        uma estranha capacidade partilhada pela maior parte das espécies que
        nela emergiram: a capacidade de emitir dados sensorais ilusórios
        através das ondas hertzianas apropriadas.
        A origem da actividade biológica hertziana permanece
        enigmática (ver SOLIP/BIO/30 e seguintes), mas pelo que sabemos
        tudo terá começado com a «invenção da rádio», isto é, com o
        surgimento da capacidade para usar o sistema nervoso das espécies
        dotadas de audição como um receptor radiofónico. Os emissores
        conseguiam assim capturar as suas presas com mais facilidade,
        induzindo-lhes alterações na percepção auditiva capazes de as atrair
        para áreas que as deixavam vulneráveis. Outros emissores, pelo
        contrário, limitavam-se a suprimir os ruídos suscitados pela sua
        própria presença, e aumentavam também desta maneira as probabilidades
        de uma captura bem sucedida. A tendência para uma especialização no
        sentido da «sedução» ou da «dissimulação» -- técnicas usadas
        tanto para fins ofensivos como defensivos --, surgiu assim logo nesta
        fase inicial, onde as espécies que dependiam demasiado do seu sentido
        auditivo acabaram por se extinguir. Toda esta situação, no entanto,
        não redundou na destruição do valor da audição como instrumento de
        sobrevivência, já que muitas das espécies usadas como receptores
        desenvolveram também capacidades emissoras capazes de iludir aqueles
        que procuravam enredá-las no mesmo tipo de ilusão. Desenvolveu-se
        assim uma escalada evolutiva onde presas e predadores se especializaram
        tanto em reconhecer de uma maneira cada vez mais subtil os dados
        auditivos ilusórios como em emitir representações ilusórias cada vez
        mais perfeitas, mais próximas do ambiente auditivo normal. Esta
        escalada, no entanto, sofreu uma viragem brusca quando se deu o segundo
        grande salto evolutivo: a «invenção da televisão».
        A capacidade de induzir ilusões visuais foi, sem
        dúvida, uma das maiores conquistas que atravessou a biosfera solipsana,
        uma conquista só igualada na seu impacto evolutivo pelo surgimento da
        trissexualidade e da própria actividade hertziana. Uma nova época de
        extinções em massa traduziu-se numa mudança radical nas regras e nos
        participantes do jogo inter-específico. O enredo hertziano ascendeu a
        grau ainda mais elevado de subtileza nas técnicas de ilusão sensorial
        e no equilíbrio daí resultante. Enquanto emissores, os solipsanos não
        só desenvolveram gradualmente a qualidade das representações visuais
        emitidas como também enfrentaram o desafio de as tornar coerentes com
        as representações ilusórias auditivas. O surgimento desta capacidade
        fez emergir, ao nível da dimensão receptiva, o desenvolvimento gradual
        de técnicas para detectar as mais ínfimas discrepâncias entre os
        dados obtidos pelos diversos sentidos. Este tipo de procedimento
        comparativo tornou-se decisivo tanto ao nível da emissão como ao da
        recepção, e em ambos os níveis deu origem às primeiras relações
        inter-específicas de simbiose fundadas em laços hertzianos. Na maior
        parte dessas relações intervinham certas espécies solipsanas que se
        destacavam, enquanto emissoras, pela qualidade das imagens visuais
        produzidas, mas que não eram muito dotadas na produção de ilusões
        auditivas e não se mostravam especialmente felizes na articulação dos
        dois tipos de informação sensorial. Nestas circunstâncias, preferiam
        enviar as suas emissões visuais a outras espécies, que acabavam por
        retransmiti-las depois de as terem incorporado convenientemente em
        ilusões auditivas. Os resultados obtidos desta forma geralmente
        beneficiavam ambas as espécies, excepto nos casos em que os indivíduos
        da espécie retransmissora usavam os dados recebidos para iludir a sua
        própria fonte de informação visual ilusória. Estes casos de
        traição, no entanto, parecem ter sido sempre muito raros, mas o mesmo
        já não pode ser dito sobre os casos de pseudo-traição, onde o
        indivíduo da espécie «traída» comete o erro de enviar dados para
        retransmissão a um indivíduo de uma espécie que, na verdade,
        conseguiu iludi-lo ao fazer-se passar por um indivíduo da espécie
        apropriada para a relação simbiótica. Através de um exemplo como
        este, podemos entrever alguma da complexidade que começou a marcar as
        relações inter-específicas depois da «invenção da televisão»,
        uma complexidade produzida não só pelos mais diversos tipos de
        simbiose emissora, mas também por uma diversidade igualmente prodigiosa
        de simbiose na detecção de ilusões. Em ambos os níveis, a
        especialização atingiu graus elevadíssimos, principalmente em
        relação aos dados visuais: certas espécies distinguiam-se no
        tratamento das propriedades cromáticas, outras ao nível da
        luminosidade, outras ainda na sua capacidade para lidar com formas
        geométricas. Os esquemas de simbiose mais eficazes resultavam da
        distribuição desigual de capacidades como estas. Nos ecossistemas mais
        densos eram tantas as espécies que corriam o risco de se tornarem
        vítimas de ilusões para as quais tinham contribuído que muitas delas
        acabaram por desenvolver uma tendência para produzir ilusões
        subtilmente imperfeitas, ilusões que continham uma certa «marca
        pessoal» quase indetectável, de modo a poderem reconhecê-las caso lhe
        fossem devolvidas com o propósito de induzir em erro.
        É certo que a «invenção da televisão» marcou o
        maior salto evolutivo na actividade hertziana da biosfera de Solipse,
        mas não podemos ignorar algumas das invenções que se lhe seguiram.
        Correndo o risco de ceder a um antropomorfismo excessivo, podemos dizer
        que uma dessas invenções se traduziu na emissão de ilusões com um
        conteúdo «olfactivo». Essa inovação, no entanto, veio a não se
        mostrar significativa, já que com ela o «olfacto» dos solipsanos
        acabou quase por desaparecer. O mesmo sucedeu em relação a um certo
        tipo de «sensibilidade eléctrica», que chegara a ser bastante
        frequente e importante antes de ter entrado na teia hertziana. Já as
        ilusões com um conteúdo táctil tiveram um futuro bastante promissor,
        embora a esse nível a perfeição ainda hoje se continue a apresentar
        como um ideal distante. Seja como for, a verdade é que foram muitas as
        espécies que acabaram por triunfar devido aos seus talentos para lidar
        com ilusões tácteis, e não podemos negar que o desenvolvimento desses
        talentos, ao associar-se às capacidades auditivas e visuais, veio
        aumentar significativamente a complexidade das relações
        inter-específicas. Seria errado pensar, no entanto, que toda essa
        complexidade que temos vindo a referir partiu sempre da invenção de
        novos tipos de ilusão sensorial. Há também que apontar um factor
        determinante que até ao momento não foi mencionado: as diferenças que
        sempre se registaram e acentuaram no hardware sensorial das
        múltiplas espécies solipsanas. Devido a essas diferenças, uma
        emissão capaz de iludir quase todos os elementos de uma certa espécie
        acabava por não ter qualquer eficácia sobre os elementos de outra
        espécie. Deste modo, para além de procurarem produzir ilusões
        sensorialmente convincentes, os solipsanos enfrentaram sempre o desafio
        de ajustar as suas emissões às singularidades perceptivas das
        espécies visadas. Esta condição geral de todo o jogo hertziano
        produziu espécies com técnicas de defesa extremamente peculiares.
        Entre essas técnicas, a mais frequente encontra-se em espécies que
        desenvolveram múltiplos orgãos sensoriais do mesmo tipo com qualidades
        perceptivas diferentes. O caso mais notável é o de uma espécie cujos
        elementos, para além de terem dezasseis pares de olhos, conseguem obter
        um tipo de visão diferente com cada um desses pares, o que os torna
        praticamente imunes a ilusões visuais, já que esta característica
        lhes permite detectar esse tipo de ilusões através do confronto
        permanente entre os dados recebidos pelos seus diversos olhos. Uma
        estratégia bastante diferente, mas igualmente eficaz, é aquela que
        podemos encontrar nas espécies que desenvolveram grandes variações no
        hardware sensorial dos seus diversos elementos. Os inimigos
        potenciais de uma destas espécies, quando são confrontados com algum
        dos seus elementos, encontram assim muito mais dificuldades em iludi-lo,
        já que as diferenças intra-específicas de percepção inviabilizam
        qualquer «receita» fixa que possa ser eficazmente aplicada a todos os
        que pertençam a uma espécie com este tipo de defesa.
        Os traços gerais da biosfera solipsana que temos
        vindo a descrever podem parecer-nos bastante estranhos. Devemos evitar
        esta perspectiva, caso queiramos ter uma noção daquilo que realmente
        é estranho mesmo à luz padrões solipsanos de normalidade. Todas as
        biosferas suficientemente ricas acabam por dar origem às suas próprias
        excentricidades, e em Solipse esta regra não encontrou qualquer
        excepção. Os género dos inversores, por exemplo, merece ser
        mencionado a este respeito. Os inversores são predadores de pequeno
        porte individualmente inofensivos, mas colectivamente imbatíveis. O que
        os distingue, no entanto, é a sua técnica de ilusão. Uma tribo de
        algumas centenas de inversores, depois de ter escolhido uma área
        consideravelmente ampla, instala-se nela e dá início à sua
        actividade. Durante algumas semanas, os inversores vão alterando toda
        essa área em múltiplos aspectos, até que esta fica com a aparência
        de uma ilusão sensorial pouco conseguida. Depois, sempre que uma presa
        potencial chega à área transfigurada e sente estar a sofrer uma
        ilusão, os inversores começam a emitir ilusões genuínas, ilusões
        com um grau elevadíssimo de perfeição. A presa, ainda potencial,
        comete então o erro de sentir que regressou à realidade, quando na
        verdade estava a começar a abandoná-la. Esse costuma ser o seu último
        erro.
        Muito menos subtil, mas igualmente invulgar, é a
        técnica própria dos assimuladores. Contrariamente a quase todos os
        outros solipsanos enredados na teia hertziana, os assimuladores não
        procuram ser fidedignos nas suas ilusões. Na verdade, a eficácia da
        sua estratégia repousa em talentos anti-realistas: atacam as suas
        presas e defendem-se dos seus predadores através de emissões que os
        deixam mergulhados em estados súbitos de profunda desorientação
        sensorial, em estados perceptivos próximos da sinestesia total. Este
        tipo de incapacidade para produzir ilusões próximas do ambiente normal
        também caracteriza a mais sinistra das espécies solipsanas: a espécie
        dos cartesiadores, conhecidos entre os biológos por «génios
        malignos». Dada a fraca qualidade das suas ilusões, um génio maligno
        é incapaz de iludir qualquer solipsano adulto, e por isso escolhe as
        suas vítimas entre as crias das espécies que lhe servem de alimento.
        Depois de capturar uma das suas vítimas, o génio maligno vai
        alimentando-a enquanto a mantém num estado permanente de ilusão. Pelo
        que sabemos, o mundo ilusório transmitido inclui certas fronteiras que
        evitam a fuga da vítima. Essas fronteiras não a perturbam nem lhe
        parecem estranhas, já que fazem parte do ambiente que sempre conheceu.
        Por fim, quando a vítima atinge o peso suficiente, o génio maligno,
        que sempre se tinha apresentado como seu progenitor, devora-a sem dela
        deixar o menor vestígio.
        O problema de saber se os génios malignos possuem
        algum tipo de inteligência tem sido bastante discutido, mas este
        assunto inscreve-se numa controvérsia muito mais ampla, já que se
        coloca o mesmo problema em relação a oito espécies extintas. Este
        número de espécies inteligentes ou próximas da inteligência é tão
        elevado que não pode ser visto como o resultado de uma simples
        coincidência estatística. Os biólogos acreditam que a biosfera de
        Solipse, com todo o seu enredo delicado ilusões hertzianas, possui
        condições que favorecem extraordinariamente o desenvolvimento da
        inteligência. No entanto, a breve vida das oito espécies mencionadas
        constitui um indício intrigante das grandes dificuldades que as
        espécies supostamente inteligentes sempre tiveram de enfrentar logo
        depois de terem surgido. Seja como for, só uma única espécie atingiu
        o nível da vida civilizada: aquela que atraiu a humanidade a Solipse
        por se estar a encaminhar rápida e misteriosamente para a extinção.
        De um ponto de vista biológico, esses solipsanos, os solipsanos em que
        temos centrado a nossa atenção, devem o seu sucesso no jogo
        inter-específico a uma peculiaridade que só eles desenvolveram. Embora
        as suas aptidões sensoriais sejam bastante fracas, sobretudo ao nível
        da emissão, foi neles que emergiu uma capacidade emissora de um tipo
        inteiramente novo: a capacidade de emitir emoções. Ao induzir estados
        mentais de medo e dor nos seus potenciais predadores, e de tranquilidade
        e prazer nas suas potenciais presas, os nossos solipsanos conquistaram
        uma posição singularmente privilegiada na biosfera de Solipse. O papel
        desta capacidade para induzir emoções pode ser comparado ao papel que
        a mão humana desempenhou na emergência da nossa espécie. O surgimento
        da emissão de emoções, tal como o surgimento da mão humana, veio
        reforçar decisivamente o desenvolvimento da inteligência. A
        inteligência solipsana, no entanto, depois de se ter traduzido na
        aptidão para raciocinar através de símbolos, esbarrou inevitavelmente
        na questão da realidade do mundo exterior. A herança genética dos
        solipsanos inteligentes, profundamente moldada pela actividade hertziana
        que acabámos de descrever, produziu dispositivos para a formação de
        crenças muito diferentes dos nossos. Os solipsanos evoluiram de uma
        maneira que aguçou extraordinariamente a sua disposição para
        desconfiar de toda a informação recebida pelos sentidos, e esta
        disposição, tendo-se incorporado no nível do pensamento conceptual,
        resultou num cepticismo fortíssimo quanto à realidade do mundo
        físico. Já as crenças relacionadas com a experiência do tempo, por
        exemplo, ficaram fora do alcance desse cepticismo, porque essa
        experiência permaneceu sempre imune às ilusões hertzianas. Também
        não nos deve surpreender o facto de os solipsanos, depois de admitirem
        a realidade do mundo exterior, se disporem facilmente a acreditar em
        Deus. Dadas as condições biológicas que produziram o pensamento
        solipsano, mostra-se mais problemático acreditar na realidade do mundo
        exterior do que na própria existência de Deus. À medida que vamos
        conhecendo melhor todas essas condições, a perplexidade sentida
        inicialmente em relação aos solipsanos civilizados acaba por ceder
        infalivelmente a esta questão: como poderiam eles ser de outro modo?
        ***************
        Afinal, por que tinham os solipsanos mergulhado numa
        profunda crise civilizacional, marcada pela dissolução repentina do
        modo de vida dualista? Por que se encaminhavam rapidamente para a
        extinção? Mesmo perante os factos conhecidos sobre a cultura e a
        biologia dos solipsanos, este enigma persistiu teimosamente. A solipteca
        não continha quaisquer dados esclarecedores a este respeito, até
        porque toda a informação nela reunida era anterior ao início da crise
        civilizacional. Os investigadores da Apocalipse viram-se assim
        confrontados com a necessidade de encontrar respostas através do
        contacto directo com os solipsanos sobreviventes. Suspeitavam já que a
        postura solipsista tinha adquirido uma grande supremacia. Teria ocorrido
        algum retorno massivo ao velho modo de vida do solipsismo prático?
        Talvez. Mas como? Porquê? A forte disposição suicida de todos os
        solipsanos capturados bloqueava as investigações. Os biólogos
        tentaram desesperadamente encontrar uma maneira de impedir a
        realização dessa disposição, de modo a que assim fosse possível
        forçar o diálogo, mas nunca estiveram próximos de ser bem sucedidos.
        Esta estratégia foi cancelada por ordem do próprio Musaazi.
        Parecia assim que o regresso à Terra iria ocorrer
        sem as respostas desejadas. No entanto, a decisão de Musaazi partira do
        propósito de poupar ao máximo os recursos disponíveis, para que a
        permanência em Solipse se pudesse prolongar vários meses para além da
        data inicialmente prevista. E isto para que por fim fosse possível
        compreender os motivos da crise solipsana. Mas como? Consta que enquanto
        decorria a agitação proveniente da captura de solipsanos, Musaazi
        continuara a interrogar-se sobre um acontecimento cuja importância
        entretanto fora menosprezada: a fuga dos solipsanos «normais» após a
        recolha da solipteca. Fazendo uso do calendário que vigorara durante a
        era do dualismo prático, Musaazi verificou que esse estranho episódio
        tinha coincidido aproximadamente com o fim de mais um período realista.
        Isto sugeria que esses solipsanos eram de facto defensores da filosofia
        dualista, tendo por isso abandonado a sua cidade quando se iniciara um
        novo período solipsista da sua vida. Sendo assim, era de prever que na
        data em que esse período terminasse eles retomassem a atitude realista
        e regressassem à sua cidade. Seria então mais fácil estabelecer o
        contacto desejado.
        Exactamente na data prevista, identificou-se a
        presença de um grupo organizado de solipsanos «normais» nas ruínas
        da cidade onde fora descoberta a solipteca. Não foi difícil iniciar o
        contacto com aqueles que se apresentaram como líderes desse grupo.
        Estes não pareceram surpreendidos por estarem a lidar com seres
        humanos, e dispuseram-se a corresponder à curiosidade dos
        investigadores, mas só até certo ponto. Toda a crise civilizacional
        que se vivia em Solipse, disseram, resultara do surgimento de um
        argumento poderosíssimo a favor do solipsismo. A esmagadora maioria dos
        solipsanos aceitara esse argumento, e assim rejeitara todo o modo de
        vida dualista, preferindo viver num estado de anarquia bruta. Mesmo
        muitos dos que ainda defendiam o dualismo prático acreditavam no
        solipsismo, e só mantinham o de vida migratório por este estar de
        acordo com os seus desejos pessoais. Apesar das circusntâncias,
        existiam ainda alguns solipsanos que alimentavam a esperança de
        discernir alguma falácia que arruínasse o argumento a favor do
        solipsismo, e por esse motivo conservavam uma atitude de puro cepticismo
        quanto à questão da realidade do mundo exterior. Os líderes que
        participaram no diálogo com os investigadores da Apocalipse contavam-se
        entre esses solipsanos. Pretendiam reabilitar a filosofia dualista, e
        durante os seus períodos realistas lutavam desesperadamente pela
        conservação da sua cidade e da cultura em que ela se desenvolvera. Por
        isso, depois de se terem mostrado agradecidos por os humanos terem
        impedido a destruição da solipteca, reclamaram a sua devolução. Como
        toda a informação da solipteca já tinha sido apropriadamente copiada,
        parecia não haver qualquer motivo para não corresponder ao pedido dos
        solipsanos. No entanto, surgiram algumas dificuldades inesperadas. Os
        investigadores da Apocalipse queriam conhecer detalhadamente o argumento
        que despoletara a crise civilizacional, mas os solipsanos declararam que
        não podiam comunicá-lo antes de lhe ser devolvida a solipteca.
        Receavam que os investigadores, depois de terem conhecido o argumento,
        ficassem imediatamente convertidos ao solipsismo e depois não
        correspondessem ao seu pedido, já que nessas circunstâncias deixariam
        de acreditar na existência real da solipteca e daqueles a quem esta
        pertencia. Os investigadores receavam que os solipsanos, depois de terem
        tudo o queriam, se retirassem mais uma vez sem dar satisfações. De
        nada serviu tentar explicar-lhes que por muito bom que fosse o argumento
        nenhum humano conseguiria aceitar realmente a sua conclusão. Os
        solipsanos, depois de terem reconhecido os humanos como seres racionais,
        pareciam não compreender como isso era possível. Neste ponto o
        diálogo começou a tornar-se verdadeiramente difícil, mas os
        investigadores da Apocalipse acabaram por ceder. Antes, no entanto,
        tomaram providências no sentido recuperar a solipteca caso os
        solipsanos deixassem de colaborar.
        Não foi necessário recorrer a essa estratégia.
        Depois de um diálogo marcado por alguns desentendimentos linguísticos,
        foi possível reconstituir o estranho argumento solipsano a favor do
        solipsismo. Dada a sua importância histórica, não podemos deixar de o
        apresentar aqui, modificando apenas os exemplos originalmente usados.
        Todo o argumento é essencialmente probabilístico. Nele parte-se da
        atribuição de uma probabilidade inicial às duas hipóteses de
        resposta para a questão da realidade do mundo exterior. Começamos
        assim por supor, seguindo a doutrina dualista, que é tão provável que
        o solipsismo seja verdadeiro como que seja falso, ou seja, já que não
        existem quaisquer dados que favoreçam uma das hipóteses, atribuímos
        uma probabilidade «subjectiva» de 50% tanto ao solipsismo como ao
        realismo. Até aqui nada de novo. Mas suponhamos agora que a hipótese
        realista é a verdadeira, e consideremos esta questão desconcertante:
        qual será a probabilidade de os objectos de um certo tipo, e apenas
        esses, serem irreais? Supondo que o mundo exterior é real, qual será a
        probabilidade de tudo nele ser real excepto, por exemplo, os mamíferos?
        Essa probabilidade, respondem os solipsanos, é de 25%. Porquê?
        Partimos dos 50% atribuídos à hipótese realista. Depois, ao
        considerarmos a possibilidade de, sendo o mundo exterior real, tudo nele
        ser real excepto os mamíferos, verificamos que não existem quaisquer
        dados que favoreçam esta hipótese em relação à sua negação. Ela
        deve por isso ser considerada tão provável como a sua negação, e
        assim somos levados a repartir equitativamente os 50% da hipótese
        realista. Neste ponto há que assinalar uma consequência interessante:
        se a probabilidade de tudo ser real excepto os mamíferos é de 25%,
        então a probabilidade de os leões, por exemplo, serem irreais, é pelo
        menos de 25%, já que os leões contam-se entre os mamíferos. Podemos
        compreender o interesse desta consequência se agora considerarmos esta
        questão: partindo novamente do suposto de que o mundo exterior é real,
        qual será a probabilidade de, por exemplo, ser verdadeira a hipótese
        de tudo nele ser real excepto os gorilas? Como mais uma vez não existem
        dados que permitam favorecer esta hipótese perante a sua negação,
        devemos também atribuir-lhe uma probabilidade de 25%. Aqui entramos em
        sérias dificuldades. Neste cenário, qual será a probabilidade os
        leões serem irreais? Essa probabilidade tem de ser inferior a 25%, já
        que metade dos 50% atribuídos ao realismo pertence à hipótese em que,
        sendo o mundo exterior real, só os gorilas não são reais, e os
        restantes 25% não podem ser totalmente atribuídos à hipótese de os
        leões serem irreais, já que devemos atribuir também alguma
        probabilidade, por exemplo, à hipótese em que só os gatos ou só as
        moscas são irreais. Chegamos assim a uma conclusão claramente
        contraditória: a probabilidade de os leões serem irreais é e não é
        inferior a 25%. E os resultados absurdos, obviamente, não ficam por
        aqui. Se, por um lado, atribuímos uma probabilidade de 25% tanto à
        hipótese em que só os mamíferos são irreais como à sua negação,
        e, por outro lado, fazemos o mesmo com a hipótese em que só os gorilas
        são irreais, excedemos a probabilidade de 50% atribuída hipótese
        realista, entrando assim em contradição com a ideia de que tanto o
        realismo como o solipsismo têm a mesma probabilidade. Não é
        necessário apresentar outras consequências paradoxais exploradas pelos
        solipsanos para avançarmos para o ponto crucial do seu argumento: como
        a hipótese de que o mundo exterior é real conduz a resultados
        contraditórios, ela não pode ser verdadeira. Através desta
        estratégia de redução ao absurdo, conclui-se que o solipsismo é
        verdadeiro, que todo o mundo exterior consiste apenas numa construção
        involutária da mente de quem dele tem experiência.
        Pelo que sabemos, a discussão dos aspectos
        probabilísticos deste argumento atingiu um nível técnico muito mais
        avançado. As dificuldades associadas ao chamado «princípio da
        indiferença», em especial, continuam a ser debatidas pelos solipsanos,
        sobretudo entre a minoria que procura manter-se céptica em relação a
        este problema. No entanto, a adesão geral dos solipsanos à tese
        solipsista parece não ter enfraquecido, em grande parte por não ser
        possível construir um argumento análogo que coloque o solipsismo em
        dificuldades semelhantes. Isso acontece, simplesmente, devido uma
        assimetria ontológica inescapável: enquanto que é possível que,
        sendo o mundo exterior real, algumas coisas não sejam reais, é
        absolutamente impossível que o mundo exterior, sendo irreal, inclua
        algumas coisas reais.
        O regresso da Apocalipse 1, para além de ter
        suscitado uma vaga multidisciplinar de «estudos solipsísticos»,
        colocou uma vez mais a humanidade perante o problema ético de saber se
        será ou não imoral interferir na história de uma civilização
        extraterrestre, um problema que no caso dos solipsanos se reveste de uma
        gravidade especial, já que é a sua própria extinção que se encontra
        em causa (ver EXTR/ETC/23). Há quem acredite que a selecção
        natural acabará por favorecer decisivamente os defensores do anterior
        modo de vida dualista, mas as últimas notícias não têm corroborado
        este ponto de vista. Seja como for, é sem dúvida a primeira vez que a
        exploração galáctica nos faz enfrentar o problema insólito de salvar
        uma espécie inteligente que se recusa a acreditar na nossa própria
        realidade.
        Pedro Galvão pmgalvao@mail.telepac.pt