«The best way to know the Milky Way». É
desta maneira que a L.E.M. Publications nos anuncia o seu novo título, The
Encyclopedia of Milky Way Civilizations, uma obra em dois gigabytes
amplamente ilustrada e convenientemente complementada com uma
documentação abundante. Esta enciclopédia é dirigida pelo cosmólogo
Kurt Strawson, que contou com a colaboração de algumas dezenas de
especialistas das mais diversas áreas científicas. A L.E.M. salienta
que muitos deles participaram em viagens inter-estrelares, e que por
esse motivo são testemunhas directas do contacto com outras
civilizações da nossa galáxia.
Na sua promoção publicitária, a L.E.M.
Publications enviou-nos uma entrada da sua nova enciclopédia. Trata-se
de um documento sobre a civilização de Solipse, seleccionado
aleatoriamente a partir da totalidade da obra. Omitindo as imagens por
motivos técnicos, temos o prazer de reproduzir aqui esse documento, e
avisamos os nossos leitores que quem enviar o pedido de aquisição
desta enciclopédia até a Dezembro de 2185 terá 10% de desconto.
SOLIPSE é o segundo dos seis planetas que se
integram no sistema planetário de Hertz. A atribuição destes dois
nomes não foi arbitrária, nem obedeceu prioritariamente a critérios
estéticos. Como veremos, a escolha do nome de Hertz verificou-se em
função de um dos traços fundamentais da biosfera de Solipse, o único
planeta vivo de todo este sistema. E quanto a «Solipse»? Tal como
«Hertz», a atribuição deste nome em substituição do número de
catálogo é bastante recente, e seguiu-se às descobertas insólitas
realizadas pelos elementos da Apocalipse 1, que vieram a traduzir-se
numa revisão radical dos fundamentos das ciências astroculturais (ver
ASCUL/TEO/12).
***************
Comecemos pelo princípio. A presença humana no
sistema planetário de Hertz iniciou-se logo na década inaugural das
viagens inter-estrelares. As sondas terrestres indicaram a existência
de vida civilizada em Solipse, mas esta informação não provocou um
entusiasmo assinalável nem nos nossos investigadores, nem nos que
dirigiam politicamente o Programa de Exploração Galáctica. A ideia de
uma viagem tripulada não se colocou nem como uma possibilidade remota.
Hoje, depois de tudo o que sabemos sobre Solipse, este comportamento
pode parecer-nos incompreensível, mas a este respeito importa não
esquecer a conjuntura em que decorreu o começo da exploração
galáctica. A primeira geração de sondas inter-estrelares acabava de
nos indicar a localização de um número muito elevado de planetas com
actividade biológica e, entre esses planetas, a frequência de vida
civilizada também se mostrava surpreendentemente significativa. Nestas
condições, aqueles que projectaram as viagens inter-estrelares tiveram
que se regular por critérios extremamente selectivos, e sob esses
critérios Solipse estava longe de nos surgir como um destino
prioritário. A civilização solipsana parecia «vulgar» à luz da
informação recebida. Nessa «vulgaridade» destacava-se o facto de o
seu desenvolvimento tecnológico corresponder apenas ao da nossa era
pré-industrial. Foi esse facto que contribuiu em grande medida para que
o sistema de Hertz não suscitasse uma atenção imediata porque, desde
o primeiro momento, o interesse dos políticos e dos cientistas
convergira para a pesquisa de civilizações com um grau elevado de
sofisticação tecnológica.
**************
Sobre as características geológicas e geográficas
de Solipse, não há nada de extraordinário que possamos referir
(remetemos os leitores interessados em detalhes técnicos para
SOLIP/BIO/1, SOLIP/GEO e HERTZ/MAP). Apuraram-se essas características
com toda a facilidade através dos métodos habituais: a datação
isotópica permitiu-nos situar o nascimento de Solipse há quatro mil
milhões de anos terrestres atrás e, dadas as condições iniciais,
desde aí tudo se processou do modo mais previsível. Surgiu uma
atmosfera, formaram-se vastos oceanos de água, a atmosfera original foi
enriquecida com oxigénio pela actividade das primeiras formas de vida,
tudo segundo os padrões químicos normais para os planetas
biogenéticos. Se perspectivarmos Solipse com a intenção de obter um
contraste comparativo com a Terra, só dois aspectos merecem ser aqui
mencionados: a dimensão e gravidade consideravelmente superiores de
Solipse, e as diferenças na distribuição da superfície sólida sobre
a superfície total. Em relação ao primeiro aspecto, devemos
acrescentar que a gravidade de Solipse resultou, ao nível da morfologia
biológica, num cenário dominado por espécies «animais» de pequena
ou média dimensão que se apresentam quase invariavelmente em forma de
disco. Domina assim uma certa monotonia morfológica, onde as
semelhanças externas escondem frequentemente diferenças internas
profundas. Não deixa de ser interessante constatar que entre muitas das
espécies mais primitivas e os solipsanos inteligentes se registe uma
semelhança impressionante nos atributos exteriores. Nas espécies
«vegetais» de Solipse também é nítido o efeito da gravidade: embora
possam fixar-se no solo atingindo profundidades consideráveis, à
superfície encontram-se quase sempre condenadas a permanecer na
condição de tapetes de musgo. Vemos assim que a biosfera solipsana
evoluiu, nas suas linhas fundamentais, segundo a divisão frequente
entre espécies «animais» e «vegetais» -- as aspas justificam-se
pela polémica taxonómica descrita em ASTRO/TAX/32 --, mas toda esta
evolução processou-se fora dos oceanos, onde as condições parecem
não ter sido propícias para o desenvolvimento de vida pluricelular.
Esses oceanos ocupam mais de sete décimos da superfície solipsana. Dos
restantes três décimos, uma parte encontra-se dispersa por todo o
globo em ilhas de pequena dimensão, incessantemente criadas e
destruídas pela actividade geológica que percorre a crosta oceânica.
As marés poderosas do corpo de líquido de Solipse varrem e submergem
essas ilhas com uma violência inexcedível, produzindo condições sob
as quais a vida nunca se pôde desenvolver. Só no único continente de
Solipse se reuniram circunstâncias favoráveis para a emergência da
biosfera actual. Este continente assemelha-se a um anel, um anel
granítico que se prolonga pela maior parte do equador solipsano. Foi
aí que, há quinhentos milhões de anos terrestres, a vida ousou ir
para além dos limites oceânicos, e foi aí que trezentos e cinquenta
milhões de anos depois a «invenção» da trissexualidade possibilitou
uma enorme aceleração evolutiva, que há cerca duzentos mil anos
acabou dar origem a uma civilização extremamente discreta na sua
aparência.
Pelos aspectos gerais de Solipse que acabámos de
descrever, o desinteresse inicial manifestado pelos investigadores
torna-se mais compreensível. Num planeta quase vulgar habitado por
formas de vida quase vulgares, o que poderíamos aprender com uma
espécie que em duzentos mil anos de existência civilizada pouco ou
nada evoluíra tecnologicamente? Até ao final do século XXI, só uma
pequena facção de biólogos contrariou esta atitude, esforçando-se
por incluir Solipse nas linhas prioritárias do Programa de Exploração
Galáctica (ver SOLIP/BIO/12). Na opinião desses biólogos, os
dados recolhidos pelas sondas justificavam uma investigação mais
detalhada, porque esses dados tornavam manifesta a existência de um
fenómeno verdadeiramente «estranho»: a migração regular da única
espécie inteligente de Solipse. É certo que os fenómenos de
migração são muito frequentes, também é certo que este tipo de
fenómeno se encontra bem compreendido pelos biólogos, mas no caso
instanciado pelos solipsanos civilizados não se mostrava possível
correlacionar esse comportamento com os factores causais comuns. A
migração dos solipsanos, para além de nem obedecer a uma regularidade
sazonal, fazia-se acompanhar de acontecimentos profundamente
enigmáticos. Durante dois anos -- segundo o calendário assente na
translacção de Solipse, que aqui será ignorado em todas as outras
referências cronológicas -- todos os elementos da espécie permaneciam
abaixo da linha equatorial, onde se situava toda a área urbanizada do
planeta. Essa área distribuía-se por cerca de trinta pequenas cidades,
que na sua totalidade reuniam os seis milhões de habitantes
inteligentes de Solipse. Na sua modalidade urbana, o comportamento dos
solipsanos decorria normalmente. Partilhavam uma existência sem
sobressaltos, fundada numa sociabilidade invejável que se estendia dos
laços individuais aos vínculos estabelecidos entre as cidades. A sua
tecnologia, mesmo sendo de carácter elementar, mostrava-se mais do que
suficiente para responder a todas as necessidades materiais, permitindo,
para além disso, que cada indivíduo não precisasse de sacrificar
muito do seu tempo à actividade económica. A partir desta ordem social
harmoniosa, a civilização solipsana pôde constituir uma cultura
dominada por diversas actividades lúdicas extremamente ritualizadas,
uma cultura onde a procura de riqueza ou poder ilimitados parecia nunca
ter encontrado qualquer lugar. No entanto, todo este modo de vida
desenrolava-se apenas por períodos de dois anos. Depois chegava o
momento da migração. Os seis milhões de solipsanos abandonavam
massivamente as suas cidades, e partiam para o hemisfério superior de
Solipse, para aí subsistirem também durante dois anos. Logo que
transpunham a linha equatorial, o seu comportamento alterava-se
radicalmente. A sociabilidade própria da condição urbana
desvanecia-se num instante, emergindo no seu lugar um «egoísmo»
generalizado, capaz de romper com todos os laços de afecto
anteriormente estabelecidos. Os solipsanos dispersavam-se então por uma
ampla longitude do continente. Muitos escolhiam o isolamento completo,
outros preferiam formar pequenos grupos, grupos que muitas vezes reuniam
indivíduos que nem sequer tinham habitado a mesma cidade. Seguiam-se
dois anos terríveis. Longe de todas as comodidades urbanas, os
solipsanos viam-se forçados a enfrentar uma luta permanente pela
sobrevivência individual. Conseguir comida e evitar os predadores
tornavam-se preocupações quase exclusivas. Quase, porque a sua
preocupação prioritária residia no contacto com os seus semelhantes.
Desse contacto sempre imprevisível podia resultar todo o tipo de
agressão. Alguns dos grupos mais fortes chegavam a construir locais
próprios para o exercício da crueldade sem restricções. No entanto,
após dois anos de barbárie ininterrupta, os solipsanos dirigiam-se de
novo para o hemisfério inferior, procuravam as suas cidades de origem,
e aí retomavam o seu comportamento civilizado por mais dois anos, tudo
como se nada tivesse acontecido.
Como explicar este comportamento migratório? As
hipóteses habituais sucumbiam imediatamente perante os factos
conhecidos. Sabia-se que, na superfície do continente solipsano, as
condições ambientais normalmente consideradas relevantes eram quase
idênticas nos dois hemisférios. Este facto, para além de excluir a
possibilidade de se explicar a migração através da procura de
condições ambientais mais favoráveis, excluía também qualquer
explicação que apontasse essas condições como causa suficiente para
as alterações de comportamento, até porque essas alterações não se
registavam em nenhuma das outras espécies migratórias observadas em
Solipse. Embora tudo parecesse indicar que a migração dos solipsanos
civilizados não obedecia a uma causalidade essencialmente biológica, a
hipótese de que o seu comportamento derivava de uma espécie de
patologia de ordem cultural também não se mostrava plausível. Como
compreender essa patologia, estranhamente cíclica e massiva, à luz da
racionalidade exímia que transparecia nas cidades solipsanas? Foi este
o enigma lançado pelos biólogos no final do século passado. Embora a
escassez dos dados disponíveis os tivesse feito prescindir da
apresentação de hipóteses explicativas, a sua familiarização com
fenómenos migratórios dos mais diversos tipos levou-os a afirmar que a
migração dos solipsanos, dada a sua singularidade, indiciava a
existência de uma biosfera surpreendente.
Este pequeno foco de entusiasmo por Solipse não
contagiou as instâncias poderosas, que responderam com a crítica
habitualmente destinada às «intromissões» dos biólogos: estes, ao
sugerirem que o comportamento dos solipsanos só poderia ser
compreendido através do estudo da sua base biológica, estavam a
colocar em questão a «autonomia nomológica» das ciências
astroculturais (ver ASCUL/HIS/103) e a pressupor um
«reducionismo biológico incompatível com os resultados da
exploração galáctica». Começamos hoje a verificar que, na maior
parte dos casos, esta crítica tem funcionado como um simples pretexto
para dissimular um desinteresse pelos mundos vivos não-civilizados e
pelas civilizações sem tecnologia avançada. A falta de influência
dos biólogos tem sido uma das notas dominantes do Programa de
Exploração Galáctica, e se nos viemos a interessar por Solipse não
foi pela necessidade de investigação biológica. A primeira viagem
tripulada ao sistema de Hertz deu-se por um motivo bem diferente. Em
2168, as nossas sondas comunicaram-nos notícias surpreendentes: a
migração dos solipsanos cessara subitamente, e com ela cessara a dupla
personalidade da espécie. O comportamento característico do
hemisfério superior, para além de se ter estendido a todo o
continente, assumira proporções nunca antes registadas. Durante um
único ano terrestre, todas as cidades de Solipse sucumbiram perante uma
anarquia selvática, e cerca de setecentos mil solipsanos pereceram sob
as ruínas da sua civilização. O que estaria a acontecer? Ninguém
sabia, ninguém se atrevia sequer a apresentar publicamente conjecturas
explicativas, e este estado de ignorância inesperada veio reforçar o
impacto da crise solipsana sobre a comunidade científica. De um momento
para o outro, décadas depois do primeiro contacto com o sistema de
Hertz, a humanidade centrava a sua atenção em Solipse, na expectativa
inédita de testemunhar a morte de uma civilização. Estávamos perante
uma coincidência extraordinária de um ponto de vista estatístico: uma
espécie inteligente encaminhava-se para a extinção, e com ela
desmoronava-se perante o nosso olhar uma civilização com duzentos mil
anos de história. A vontade de presenciar este instante terminal fez
surgir inevitavelmente a ideia de uma viagem tripulada ao sistema de
Hertz, uma ideia que se impôs no Programa de Exploração Galáctica
sem ter de enfrentar qualquer resistência significativa. É certo que a
situação vivida pelos solipsanos, independentemente da sua raridade,
possuía um interesse considerável paras as ciências astroculturais (ver
ASCUL/TEO/662), mas arriscamos sugerir que na origem do entusiasmo por
Solipse esteve também uma certa atracção mórbida, que se estendeu da
comunidade científica a toda a humanidade.
***************
Tinham decorrido apenas cinco anos desde o momento em
que a crise solipsana se tornara conhecida quando, sob a liderança de
Albert Musaazi, a Apocalipse 1 partiu para o sistema de Hertz, levando
consigo dez técnicos de astronavegação e vinte cientistas
disciplinarmente diversificados. A permanência em cronotúneis foi
breve e decorreu em condições físicas favoráveis (ver
APOC/TRA/1), o que foi decisivo para que se pudesse encontrar a
civilização solipsana num estado aproveitável para as investigações
projectadas. Da espécie inteligente de Solipse restavam apenas uns dois
milhões de elementos, a degradação das cidades prosseguia a um ritmo
acelerado, mas duas delas, situadas a escassos quilómetros do oceano
inferior, apresentavam um estado de conservação bastante mais elevado
que o das restantes. Este facto ditou a localização da base de
pesquisa da Apocalipse 1, construída numa ilha suficientemente alta
para não submergir por completo sob o efeito das marés solipsanas. A
partir daí, a escassas dezenas de quilómetros das cidades menos
degradadas, quinze investigadores puderam planear as suas actividades de
pesquisa, permanecendo à margem da «loucura» colectiva que subjugara
os solipsanos inteligentes.
O objectivo prioritário dos investigadores foi o de
recolher informação detalhada sobre os aspectos culturais da
civilização solipsana. Esse tipo de informação escasseava, sobretudo
porque se desconhecia completamente a linguagem dos solipsanos.
Tentou-se superar este desconhecimento através da captura de alguns
indivíduos, mas esta estratégia produziu resultados desastrosos: os
solipsanos capturados, para além de não terem mostrado qualquer
disposição para actos comunicativos, acabaram invariavelmente por se
suicidar, sem que tivessem precisado de qualquer instrumento externo
para fazerem cessar as suas funções vitais. O âmbito de pesquisa
ficou assim restringido ao espaço ocupado pelas duas cidades costeiras.
Através delas foi possível aprender muitíssimo sobre a organização
social dos solipsanos, mas nada do que se aprendeu lançou qualquer luz
sobre a crise civilizacional, e mesmo em relação ao antigo
comportamento migratório a única descoberta relevante só veio adensar
o mistério. Descobriu-se que antes de se ter dado a derrocada
civilizacional todos os «portões» de cada cidade obedeciam a um
mecanismo autónomo, a um relógio extremamente complexo e preciso que
no momento programado isolava toda a área urbana. Depois de ter
impossibilitado o acesso a essa área, o relógio desencadeava uma
série de operações mecânicas que culminavam invariavelmente no
lançamento de um gaz venenoso por toda a cidade. Dois anos depois, esse
mesmo relógio conduzia todo o processo de reabertura da cidade.
Constatou-se que cada uma das trinta cidades de Solipse ainda
apresentava vestígios nítidos destas máquinas. Deste modo, tornou-se
óbvia a existência de uma relação importante entre o fenómeno
migratório e o funcionamento dos relógios: estes engenhos gigantescos
destinavam-se certamente a assegurar que ninguém pudesse viver no
espaço urbano durante o período que se seguia ao abandono massivo das
cidades. Mas qual era o motivo para uma medida tão drástica? Para este
e para outros enigmas, que se iam acumulando através da observação
pormenorizada das cidades, as respostas tardavam em aparecer. Decorreram
meses de pesquisa fastidiosa. A recolha e classificação dos dados
habituais só ocasionalmente foi pontuada por alguma descoberta
interessante (ver APOC/TRA/13), mas todas essas descobertas
limitavam-se a reforçar a convicção de que a «chave» para
compreender o modo de vida dos solipsanos permanecia completamente
escondida. A desmotivação apoderava-se dos investigadores. Só uma das
descobertas se mostrara encorajante: os solipsanos possuíam uma
linguagem escrita. No entanto, o que se sabia sobre essa linguagem era
muito pouco, sobretudo porque não se encontrara um único texto com uma
dimensão aproveitável para a análise linguística. As duas cidades
costeiras tinham sido examinadas com uma precisão milimétrica, mas de
todo esse esforço só resultara a recolha de algumas placas de pequena
dimensão, que exibiam uma sequência de símbolos extremamente breve.
Tudo parecia indicar que para os solipsanos a linguagem escrita não
desempenhava um papel importante como veículo de comunicação, e assim
a cultura solipsana continuava a resistir a todas tentativas de
compreensão.
Os projectos centrais da Apocalipse encaminhavam-se
para um fracasso humilhante. Esse fracasso teria sido inevitável se,
numa das cidades mais próximas da linha equatorial, não se tivesse
registado um foco de violência com proporções invulgares. Na
ausência de estratégias de pesquisa mais promissoras, os
investigadores decidiram acompanhar esse evento com uma atenção
minuciosa. Não se arrependeram. O contacto observacional tornou
imediatamente manifesta a singularidade do que estava a decorrer: dois
grupos de solipsanos travavam uma batalha ininterrupta, e um desses
grupos, muito inferior do ponto de vista numérico, possuía um nível
de organização extraordinariamente elevado. O grupo mais numeroso --
do qual faziam parte cerca de cinco mil indivíduos -- obedecia ao
comportamento anárquico que se tornara característico desde o início
da crise civilizacional. Muitos dos elementos desse grupo chegavam a
agredir-se entre si, por vezes até à morte, e nos seus movimentos era
nítida a ausência de qualquer estratégia estruturada por objectivos a
médio ou longo prazo. No grupo minoritário, que ocupava uma posição
predominantemente defensiva, assistia-se a um comportamento muito
diferente, no qual transparecia uma estratégia bem definida, que todos
tentavam executar sem nunca perder de vista a disciplina hierárquica e
a especialização de funções. A maneira de agir destes solipsanos
--que em número não ultrapassavam a casa das centenas -- veio renovar
o ânimo dos investigadores. Provavelmente, tinha-se conseguido
localizar os sobreviventes da catástrofe civilizacional, aqueles que
teimavam em lutar pelo antigo modo de vida e procuravam resistiam ao
contágio pela loucura colectiva. Se isto era verdade, havia que actuar
com toda a urgência, havia que tentar por todos os meios estabelecer
contacto com esses solipsanos. O seu comportamento suportava a
convicção de que por fim seria possível estabelecer laços
comunicativos bem sucedidos. Albert Musaazi, o líder da Apocalipse,
tomou uma decisão ousada: isolar a zona central da área onde decorria
a batalha, de modo a proteger o grupo minoritário dos seus ofensores e
a criar condições favoráveis para o contacto comunicativo. A
execução deste plano não foi fácil e quase conduziu a um fracasso
sangrento, mas os solipsanos organizados, a partir do momento em que
pareceram compreender o propósito dos nossos investigadores,
auxiliaram-nos a isolar a zona pretendida. Tudo corria pelo melhor,
excediam-se as expectativas iniciais, mas quando a construção do
«cerco» estava quase concluída o comportamento dos solipsanos sofreu
uma viragem surpreendente. O aliados inesperados dos elementos da
Apocalipse decidiram abandoná-los, dispersaram e misturaram-se na
multidão, deixando-os completamente sós na área isolada. Todo o
esforço realizado parecia ter sido em vão. Mas uma nova surpresa veio
relançar o entusiasmo: existia uma vasta «biblioteca» dentro do
espaço cercado.
***************
A descoberta da «biblioteca» solipsana, que acabou
por se tornar conhecida como «solipteca», teve uma importância
incalculável. Permitiu-nos, antes de mais, encontrar uma
interpretação plausível para a batalha que se tinha dado na cidade
equatorial. Corroborava-se a suposição de que o grupo minoritário era
constituído por solipsanos que pretendiam preservar a sua
civilização, isto porque, muito provavelmente, o seu objectivo tinha
sido o de impedir a destruição da solipteca, de impedir o
desaparecimento da sua própria memória cultural. Esta interpretação,
a ser verdadeira, sugeria que solipteca devia possuir um grande valor
informativo, o que se veio a confirmar.
As diferenças culturais que nos separavam dos
solipsanos eram cada vez mais manifestas, e este facto não fazia prever
facilidades no acesso à linguagem solipsana, mas a verdade é que a
decifração e tradução da solipteca decorreu sem percalços
significativos (ver SOLIP/LAN e ASLIN/TEO/39). Em parte, isso
ficou a dever-se aos progressos atingidos pela astrolinguística. No
entanto, o extraordinário rigor sintáctico da linguagem solipsana
contribuiu muito para tornar acessível o conteúdo da solipteca.
Verificou-se que muita da informação recolhida era de natureza
matemática. Os investigadores da Apocalipse, confrontados com a
descoberta de todo esse conhecimento, não puderam deixar de se sentir
surpreendidos. Como era possível que uma civilização tão avançada
no conhecimento matemático nunca se tivesse empenhado na aplicação
desse conhecimento? Os solipsanos veneravam a matemática, a lógica e
algumas das áreas mais abstractas da linguística, mas as ciências
empíricas não encontravam qualquer lugar nos seus horizontes
cognitivos. O motivo da sua dedicação às ciências «formais», fosse
ele qual fosse, decididamente não passava pela procura de instrumentos
sofisticados para a compreensão da natureza. Os solipsanos não
mostravam qualquer interesse intelectual pelo mundo físico. Podemos
até afirmar que nada há de mais estranho à cultura solipsana que a
ideia de que o conhecimento científico é um meio para controlar
tecnologicamente a natureza. A atitude dos solipsanos perante a
realidade natural contribuía assim para explicar seu baixo
desenvolvimento tecnológico, mas como explicar esta própria atitude? A
solução para este problema só se começou a esboçar quando os
investigadores da Apocalipse penetraram no outro domínio privilegiado
do pensamento solipsano: a reflexão filosófica.
Não há que hesitar em falar de filosofia
solipsana. Muita da informação encontrada na solipteca é filosofia
sem aspas, e uma grande parte dela situa-se claramente no domínio da
ética. Essa ética destaca-se, como seria de esperar, pelo seu
carácter formal. Os solipsanos esforçaram-se sobretudo por discernir
relações interessantes entre o pensamento lógico e a acção moral,
recusando obstinadamente qualquer abordagem de carácter empírico. É
interessante constatar que muito do seu pensamento se desenvolve em
linhas kantianas. Encontramos, por exemplo, tentativas para demonstrar
por meios puramente a priori que as prescrições morais são
universalmente aplicáveis. Os solipsanos também concederam uma
atenção especial aos problemas filosóficos suscitados pela
matemática. Neste domínio, devemos destacar a existência de uma
atitude dogmaticamente realista em relação às entidades
matemáticas. Os solipsanos parecem acreditar em números e em conjuntos
um pouco como nós acreditamos em árvores e em mesas; o realismo
matemático faz parte do seu senso comum do mesmo modo que o realismo em
relação às entidades físicas faz parte do senso comum humano. A
ideia de que as entidades matemáticas só existem enquanto resultado de
alguma construção mental surge no pensamento solipsano como uma
hipótese intuitivamente falsa, como uma hipótese que pela sua
excentricidade intrínseca se limita a ocupar um lugar ocasional na
discussão filosófica, sendo usada sobretudo no contexto de reduções
ao absurdo.
É compreensível que esta aceitação dogmática do
realismo matemático nos pareça especialmente estranha logo que
identifiquemos o traço essencial de toda a filosofia solipsana, que
consiste na existência de um cepticismo extremo e generalizado em
relação à realidade do próprio mundo físico. Não foi difícil
descobrir que os solipsanos tinham vivido sempre atormentados com a
hipótese solipsista, com a possibilidade de todo o «mundo exterior»
se reduzir a uma espécie de sonho ou ilusão sem qualquer base real,
sendo assim insusceptível de existir independentemente da mente daquele
que o sonha. Os nossos filósofos encontram-se familiarizados com a
hipótese solipsista pelo menos desde Descartes, que a formulou com toda
a clareza para depois a tentar refutar. Consta que o seu esforço não
foi bem sucedido. Seja como for, a opinião que se impôs até hoje é a
de que essa hipótese não pode ser refutada nem demonstrada
conclusivamente, mas que este facto não tem qualquer importância
prática. Como humanos, estamos condenados a agir durante a maior parte
do nosso tempo sob o suposto de que o mundo exterior é real, e nem o
mais céptico dos filósofos se consegue furtar a esta situação. Ao
nível epistémico, os solipsanos tinham pensado essencialmente o mesmo
e pelos mesmos motivos: a hipótese solipsista não pode ser refutada
nem demonstrada, já que tudo o que observamos pode ser interpretado
tanto supondo que o mundo físico é real, como supondo que todo esse
mundo resulta apenas da nossa própria actividade mental. Neste ponto
não podemos deixar de citar um dos textos mais significativos da
solipteca:
Vejo pontos luminosos no céu, e disto posso ter a
certeza. Digo que a esses pontos podem corresponder coisas físicas
reais, e chamo «estrelas» a essas coisas. Mas será que esses pontos
luminosos são mesmo estrelas? Nada me garante que não esteja apenas
perante uma ilusão de estrelas. Só posso saber que quando olho para o
ceú é como se existissem estrelas. Porquê? Posso explicar isto
dizendo que as coisas são como se existissem estrelas porque existem
realmente estrelas, mas posso explicar o mesmo dizendo que as coisas
são como se existissem estrelas porque tenho a ilusão da existência
de estrelas. Não há motivos para preferir uma hipótese à outra, a
não ser que se pressuponha previamente uma delas, e nada do que observo
ou alguma vez poderei observar pode contribuir para decidir a questão.
(Para as dificuldades de tradução, ver SOLIP/LAN/120.)
O texto que acabámos de citar podia muito bem ter
sido escrito por um filósofo terrestre. No entanto, a atitude
caracteristicamente humana perante a situação epistémica acima
descrita em nada se assemelha à atitude assumida pelos solipsanos. A
impossibilidade de refutar o solipsismo nunca lhes surgiu como uma
simples dificuldade teórica, mas como um facto determinante para a
condução de todos os tipos de actividade. Diz-nos um solipsano:
Eu não sei se por detrás das minhas sensações há
mundo físico real ou se sou o criador solitário de tudo o que se me
apresenta. Nenhuma destas hipóteses me parece mais provável que a
outra. Disto surge a mais terrível de todas as questões. Devo agir
supondo que o mundo que se me dá pelos sentidos é ou não é real? No
primeiro caso, reconheço a existência independente dos meus
semelhantes e de uma sociedade que me tem como elemento, e isso
permite-me colocar a mim mesmo certas obrigações morais. No entanto,
se o mundo sensorial é apenas o meu mundo, se tudo o que se me dá é
um reflexo involuntário da minha própria mente, então tudo me é
permitido, porque não faz sentido eu estar a agir sob obrigações
morais perante seres que realmente não existem. O que devo fazer nesta
situação? Para ser racional, terei que agir em conformidade com o que
é verdadeiro ou com o que é mais provável que seja verdadeiro, mas
sendo assim eu não posso saber como agir racionalmente, porque sobre a
realidade do mundo que se me dá não me é possível atingir qualquer
conhecimento.
Se estas palavras tivessem surgido no contexto da
cultura humana, elas representariam o ponto de vista crítico e
desviante de uma minoria. No contexto da cultura solipsana, as
afirmações citadas são puro senso comum. A indecidibilidade do
solipsismo percorre toda a história dos solipsanos, constituindo uma
espécie de obsessão cultural permanente, se é que podemos usar um
termo patológico como «obsessão» para nos referirmos ao que na
verdade traduz um racionalismo inexcedível. Os solipsanos tinham sempre
considerado com toda a seriedade o facto de não ser possível refutar
ou demonstrar a realidade do mundo exterior, e esforçaram-se por
retirar desse resultado teórico as conclusões práticas relevantes, de
modo a poderem agir como seres perfeitamente racionais. Mas que
conclusões práticas se podem seguir da simples indecidibilidade do
solipsismo? Afinal, deve-se agir como se o mundo exterior fosse real?
Neste ponto, a história do pensamento solipsano dá-nos conta de
sérias divergências, que em última instância radicam na
impossibilidade lógica de se retirar qualquer conclusão prática apenas
da indecidibilidade do solipsismo. A grande maioria dos solipsanos,
aceitando a formulação do dilema acima enunciado, adoptou uma linha de
raciocínio que acabou por os conduzir a um «solipsismo prático»:
Se eu não posso apontar um único motivo epistémico
que justifique a minha preferência pela realidade ou pela idealidade do
mundo que se me dá, resta-me admitir que toda a minha acção terá que
ser indiferente ao valor de verdade de "o mundo que se me dá é
real". Eu não serei mais racional ao agir supondo que os meus
semelhantes existem realmente do que ao agir sob a suposição
contraditória. E no entanto sou forçado a agir, e sei que a minha
escolha de determinadas acções não será indiferente a uma crença na
realidade do mundo, mesmo sabendo que essa crença (ou descrença) não
poderá deixar de ser absolutamente injustificada. Mas agora
confronto-me com o seguinte resultado: se eu não acreditasse na
realidade do mundo que se me dá, agiria como se só eu existisse, e
todas as minhas acções estariam determinadas apenas pelo meu
interesse, já que não reconheceria a existência de outros seres com
interesses próprios. Ora, como eu não sei se o mundo que se me dá é
ou não é real, e como tenho de agir decidindo-me por uma destas
hipóteses, não tenho outra possibilidade senão a de escolher a
hipótese que esteja de acordo com o meu interesse. Verifico assim que,
quer aceite o solipsismo ou permaneça simplesmente céptico, é sempre
o meu interesse que determina necessariamente todo o curso posterior das
minhas acções.
Nem todos os solipsanos aceitaram este argumento.
Entre esses, os mais radicais tornaram-se defensores da ideia de que o
suicídio é a única maneira de agir racionalmente. «Estou condenado a
agir irracionalmente», afirmou um destes solipsanos, fazendo notar que
esse é o resultado inescapável de não se ter qualquer motivo para
acreditar na realidade ou na idealidade do mundo exterior, sabendo-se no
entanto que a conduta escolhida envolve uma crença numa destas duas
hipóteses. Sendo assim, a única possibilidade de se ser racional passa
necessariamente pela recusa em agir, e só aquele que se suicida é
capaz de se recusar a agir. A selecção natural encarregou-se de
eliminar esta teoria, porque todos os que possuiam uma disposição
genética favorável à sua aceitação mostraram uma tendência
compreensível para não se reproduzirem. Outros solipsanos sustentaram
uma posição semelhante, mas mais moderada. O seu ponto de vista
encontra-se formulado na seguinte passagem:
Quando eu decido, por exemplo, caminhar junto ao mar,
a minha decisão em nada é afectada por eu não saber se o mar existe
realmente ou se o mar é uma construção da minha mente. No entanto, se
um que se me dá como meu semelhante me pede ajuda, aí sim, surge o
problema: eu sentir-me-ia obrigado a ajudá-lo se soubesse que ele é
realmente um meu semelhante, mas não o ajudaria se soubesse que ele
não é real. Como eu não me posso decidir por uma destas hipóteses,
também não sei como agir nessa situação, e é isso que me condena à
irracionalidade. Significa isto que estou sempre condenado à
irracionalidade prática? Não. Só em casos como o que está
instanciado pelo segundo exemplo, porque em casos como aquele em que
decido passear junto ao mar o facto de não se saber se o mar existe
realmente não torna a minha decisão irracional, porque esse facto é
indiferente à minha decisão de passear junto ao mar. Mas o que faz a
diferença entre os dois casos que apontei e torna o segundo caso tão
problemático? O segundo caso é problemático porque envolve uma
decisão em relação a um outro que se me dá como meu semelhante: é o
facto de poder estar perante mim um outro como eu, um outro que me
desperta obrigações morais, que torna a minha situação embaraçosa,
porque eu não sei nem posso saber se esse outro é real e, portanto,
não posso saber se devo agir moralmente em relação a ele. Este é um
problema insolúvel, e admito que se o tiver de enfrentar alguma vez
estou condenado a ser irracional, porque nada me resta senão agir em
função do meu interesse, que não é justificado por nada para além
de ser o meu interesse. Significará tudo isto que, para que não esteja
condenado à irracionalidade, resta-me decidir não agir, fazendo uso do
suicídio? Não necessariamente. Posso também viver afastado de todos
os que se me dão como meus semelhantes porque, nesse estado de
isolamento, nunca terei de enfrentar as situações que me condenam à
irracionalidade, já que na prática nunca se me colocará o terrível
dilema de ter ou não ter obrigações morais perante outros.
É difícil determinar a popularidade atingida por
esta postura isolacionista, mas podemos estar certos de que aqueles que
a ela aderiram não tiveram uma influência significativa na história
solipsana. Esses solipsanos, ao viverem na convicção de que só um
modo de vida estritamente solitário pode salvar a racionalidade
prática, retiraram-se para as áreas mais inóspitas de Solipse,
colocando-se à margem de todos os desenvolvimentos culturais da sua
civilização. Deste modo, foram aqueles que aderiram ao solipsismo
prático que acabaram por protagonizar a história solipsana, uma
história invulgarmente longa, mas, pelo que sabemos, bastante pobre na
diversidade dos eventos que a percorreram. Entre os solipsistas
práticos, surgiram desde o início duas correntes antagónicas, e
durante muitos milhares anos o domínio sobre Solipse pertenceu
alternadamente a uma dessas correntes, em ciclos que oscilaram entre os
cinco e os dez séculos de duração. Todos esses solipsanos
reconheceram que é o interesse próprio que determina primária e
necessariamente a atitude prática perante a realidade do mundo
exterior, mas, como seria de esperar, os interesses próprios dos
solipsanos estiveram longe de coincidir. Alguns preferiram agir como se
o mundo exterior não fosse real, o que se traduziu num tipo de conduta
marcado por um egoísmo anárquico; outros, pelo contrário, preferiram
agir como se soubessem que o mundo exterior é real, e desenvolveram um
modo de vida fundado na sociabilidade. Devemos notar que este tipo de
correlação nunca se obteve em todos os casos. Alguns solipsanos,
embora tenham decidido viver sob a hipótese da irrealidade do mundo,
acabaram por preferir a existência em sociedade, porque na sua
perspectiva o conforto propiciado pela sociabilidade servia melhor os
seus interesses. Também se registou a situação inversa: alguns dos
que viveram supondo a realidade do mundo tornaram-se, à semelhança dos
nossos anarquistas, adversários de todas as formas de organização
social, justificando a sua posição através de argumentos de ordem
ética e política. No entanto, estas duas atitudes só se verificaram
em franjas minoritárias da população solipsana. O suposto realista
manteve-se sempre estreitamente vinculado ao comportamento sociável, do
mesmo modo que o suposto inverso produziu o comportamento inverso.
Formaram-se assim duas tendências que nunca puderam coexistir
pacificamente, e, por diversas ocasiões, do seu antagonismo permanente
quase sobreveio a extinção da espécie. Os solipsanos sociáveis
esforçavam-se por construir uma ordem social estável, capaz de
viabilizar o progresso cultural, mas os solipsanos anárquicos
constituiam uma ameaça incontornável à realização desse propósito:
saqueavam as cidades, destruíam os meios de produção, e muito
frequentemente liquidavam os seus semelhantes, sem que para isso
precisassem de um motivo mais forte que o de satisfazer um caprinho
pessoal momentâneo. Nestas circunstâncias, os solipsanos nunca puderam
criar um modo de vida civilizado duradouro. Os que preferiam a
condição sociável tinham que dedicar muito do seu tempo à luta
ininterrupta contra a anarquia, e mais tarde ou mais cedo todo o seu
esforço fracassava, em grande parte porque as fileiras dos solipsanos
anárquicos iam engrossando à medida que se instalava um pessimismo
progressivo em relação às vantagens da existência em sociedade. As
cidades acabavam assim por sucumbir, com elas desintegrava-se toda a
memória cultural que entretando se acumulara, e os solipsanos
retornavam uma vez mais ao grau zero de civilização.
Sobre esta longa era da história dos solipsanos, só
temos conhecimento de um único episódio que veio alterar
significativamente a estabilidade cíclica. A data desse episódio é
ainda objecto de polémica, e sobre os seus detalhes pouco ou nada
sabemos. Mesmo assim, os dados existentes permitem-nos afirmar que
durante um período de dois ou três séculos quase todos os solipsanos
adoptaram uma atitude de silêncio rigoroso, um silêncio que atingiu
todas as formas de comunicação. Ao que parece, este estranho
acontecimento partiu de um pequeno grupo «para-realista». Os elementos
desse grupo dedicavam muito do seu tempo à realização de um objectivo
que era visto como utópico pelos seus semelhantes: demonstrar que mundo
exterior é real, ou pelo menos que essa é uma hipótese mais provável
que a sua negação. Com isso procuravam diminuir drasticamente o
número dos solipsanos anárquicos. Este propósito louvável conduziu,
no entanto, a resultados perversos. Tudo indica que esses
«para-realistas» foram inesperadamente bem sucedidos, pelo menos até
certo ponto. Através de argumentos muitíssimo subtis, conseguiram
demonstrar que o simples uso de uma linguagem compromete aqueles que a
usam com a realidade do mundo exterior, que o suposto realista se
apresenta como uma condição de inteligibilidade do uso referencial da
linguagem. Ora, o que inicialmente surgia como uma vitória histórica
do realismo, depressa se revelou como uma ilusão desastrosa nas suas
consequências. Os argumentos dos «para-realistas» tiveram um sucesso
extraordinário, mas levaram os solipsanos a tomar uma decisão muito
diferente da esperada. Os solipsanos, realmente convencidos de que quem
usa uma linguagem está comprometido com a realidade do mundo exterior,
não viram nisso qualquer motivo para aceitar o realismo, e decidiram
antes abandonar o uso de toda e qualquer forma de linguagem de modo a
permanecerem neutrais. Concluíram que essa é a única maneira de
salvaguardar a racionalidade. Esta viragem traduziu-se, obviamente, num
enfraquecimento enorme dos comportamentos sociáveis, e a anarquia
atingiu níveis quase letais. Muitos dos indivíduos das novas
gerações cresciam sem aprender o domínio de uma linguagem, já que
quase todos os solipsanos mais velhos se recusavam a comunicar. Esta
situação catastrófica, no entanto, guardava em si a chave para a
reposição da «normalidade». Como todos aqueles que aderiram ao
comportamento silencioso se recusavam a usar qualquer forma de
linguagem, os escassos suportes materiais em que os argumentos
«para-realistas» tinham sido inicialmente apresentados nunca chegaram
a ser substituídos, e o seu desaparecimento assinalou o fim do
comportamento silencioso. Os novos solipsanos, como nunca puderam
conhecer esses argumentos, depressa retomaram o uso da linguagem, e
deste modo a velha ordem não tardou a ressurgir.
No entanto, há cerca de quarenta mil anos os ciclos
históricos foram interrompidos de novo, e desta vez a interrupção
não se reduziu a um simples acidente de percurso. A viragem partiu,
naturalmente, da esfera do pensamento filosófico, e deu origem a uma
revolução profunda. Uma alternativa viável ao solipsismo prático
tinha acabado de emergir, provavelmente pela primeira vez, e colheu um
consenso alargado entre os solipsanos, sem o qual não teria sido
possível o sucesso da fase de transição revolucionária. Essa
alternativa ficou conhecida por dualismo prático e, como os
investigadores da Apocalipse depressa puderam reconhecer, nela estava
presente a chave para a compreensão do comportamento migratório dos
solipsanos. Toda a doutrina do dualismo prático, que prevalecera até
à última derrocada civilizacional, assentava numa justificação
teórica que pode não nos parecer muito persuasiva, mas a verdade é
que ela exerceu uma influência incalculável sobre os solipsanos. A
solipteca contém trinta e duas versões dessa justificação, mas a que
nos parece ser a mais antiga de todas ocorre na seguinte passagem:
Comecei então por pensar o que há de mais óbvio:
que é melhor saber do que não saber, e que, sendo assim, se nada mais
me permitir decidir entre duas possibilidades, e se uma delas me
permitir saber algo e a outra não mo permitir, então procedo melhor ao
preferir a que me permite esse saber. Não sei porque me vi conduzido
para este pensamento aparentemente vazio e pobre de consequências, mas
a verdade é que, para grande surpresa minha, retirei daqui a conclusão
que mudou toda a minha vida. Como foi isto possível? Pensei que, se eu
agir sempre como se o mundo que se me dá fosse real, é possível que
esteja a agir sempre sob a falsidade desse pressuposto, o que será o
caso se o mundo que se me dá não for real, e acontece exactamente o
mesmo se eu agir supondo que o mundo que se me dá não é real. Num
caso ou no outro, não me é possível saber se estou a agir sempre sob
a falsidade do pressuposto em questão. No entanto, pensei eu, se umas
vezes agir supondo que o mundo que se me dá é real, e se outras vezes
agir supondo o contrário, pelo menos algumas vezes estarei a agir sob o
pressuposto verdadeiro e, sendo assim, posso ao menos saber que nem
sempre estou a agir sob o pressuposto falso. Profundamente emocionado
com este pensamento, regressei à minha ideia inicial, contemplei a sua
beleza , e deixei fluir a conclusão inevitável: o melhor é agir por
vezes supondo que o mundo que se me dá é real, e agir noutros casos
sob a negação desse pressuposto. Pelo menos assim sei que nem sempre
vivo sob o engano, e sempre é melhor saber do que não saber.
Logo na sequência deste argumento, o solipsano que o
apresentou esforçou-se por retirar da sua conclusão consequências
práticas mais específicas. Pelo que sabemos, os resultados que atingiu
inauguraram uma nova época histórica. Na sua opinião, como a
probabilidade de o solipsismo ser verdadeiro é exactamente idêntica à
probabilidade da sua falsidade, um indivíduo racional deverá viver
segundo a doutrina do dualismo prático ao aceitar o solipsismo durante
metade do seu tempo, e ao negar essa posição durante a outra metade.
Mesmo quem esteja familiarizado com a mentalidade
solipsana, poderá confrontar-se neste ponto com uma dificuldade
interessante. Suponhamos que um solipsano, depois de ter decidido viver
através de fases em que aceita e nega alternadamente a realidade do
mundo exterior, estabelece que cada uma dessas fases se deve estender
por um período de tempo bem determinado. Suponhamos agora que o
solipsano em questão entrou numa fase em que vive como se o mundo
exterior fosse irreal. Sendo assim, alguns momentos antes de terminar o
prazo previsto para essa fase, ele poderá duvidar de que o tempo
estabelecido está realmente no seu termo porque, como vive como se o
mundo exterior não fosse real, poderá considerar ilusória a
impressão de que já decorreu quase todo esse tempo. Nestas
circunstâncias, esse solipsano poderia prolongar indefinidamente a sua
postura solipsista, arruinando assim o seu modo de vida dualista. Embora
esta linha de raciocínio possa parecer plausível, a verdade é que ela
esbarra na aceitação tácita de uma hipótese errada sobre a teia de
crenças própria dos solipsanos. É certo que os defensores do modo de
vida dualista agem, durante certos períodos de tempo, sob a hipótese
de que o mundo exterior é irreal, mas este cepticismo nunca contagia a
própria noção de duração temporal, simplesmente porque os
solipsanos nunca conceberam o tempo como uma realidade física que deve
a sua existência ao mundo exterior. Este é, sem dúvida, um dos
aspectos mais intrigantes do senso comum solipsano, mas, como veremos
mais adiante, os resultados das investigações permitiram-nos torná-lo
compreensível.
Como decorreu o processo revolucionário que culminou
no triunfo absoluto do dualismo prático? A partir da solipteca não foi
fácil obter uma reconstrução histórica razoavelmente precisa deste
evento, não só porque ele se prolongou por cerca de quinze séculos,
mas sobretudo porque o estudo da história nunca entusiasmou os
solipsanos. É certo que a nossa imagem da revolução solipsana
apoia-se, numa certa medida, nas pesquisas arqueológicas posteriores à
viagem da Apocalipse (ver ARQ/GEN/109). No entanto, os dados
relevantes contidos na solipteca, embora consistam quase sempre em
afirmações fragmentárias e marginais, mostraram-se indispensáveis no
sucesso ulterior das pesquisas arqueológicas. É altamente improvável
que, apenas a partir dos indícios encontrados, os arqueólogos pudessem
ter chegado alguma vez a imaginar as dificuldades insólitas que os
solipsanos tiveram de enfrentar. Tanto quanto sabemos, em menos de um
século a aceitação do dualismo prático estendeu-se à esmagadora
maioria da população. Este acontecimento trouxe consequências sociais
devastadoras. A velha divisão razoavelmente estável entre solipsanos
anárquicos e sociáveis desapareceu, deixando no seu lugar uma
população de solipsanos que tinham escolhido uma existência
perigosamente esquizofrénica.
Graças a algumas passagens da solipteca, não foi
difícil identificar a causa fundamental da instabilidade que então
emergiu. Quase todos os solipsanos tinham decidido viver aceitando e
negando alternadamente a realidade do mundo exterior, e neste aspecto o
consenso era quase global, mas a duração que tinham atribuído a cada
período de vida variava bastante de indivíduo para indivíduo, já que
não se mostrou possível determinar de uma maneira objectiva a
duração correcta ou ideal desses períodos. Alguns preferiam uma
periodização extremamente breve. Existem mesmo algumas referências a
solipsanos que, aproximadamente de hora a hora, deixavam de viver
segundo o solipsismo para logo depois retomarem a sua aceitação. No
extremo oposto, situavam-se os solipsanos que tinham escolhido uma
periodização que se desdobrava por períodos de muitos anos de
duração. Entre ambos os extremos, coexistiam quase todas as possíveis
soluções intermédias. No entanto, as preferências dos solipsanos em
relação às periodizações estavam longe de ser arbitrárias, já que
na maior parte dos casos elas resultavam da aceitação consciente de
uma justificação racional. Desconhecemos muitos detalhes do debate que
decorreu sobre este assunto, mas foi possível reconstituir pelo menos
algumas das linhas fundamentais que o percorreram. Os defensores das
periodizações longas defendiam a sua posição ao tentarem mostrar que
a preferência contrária se traduzia numa derrota absoluta do modo de
vida realista em termos práticos. Afirmavam que quem vive como se o
mundo exterior fosse real tenderá a desenvolver projectos a médio ou
longo prazo que só fazem sentido sob o suposto realista, e a procurar
metodicamente os meios adequados para a sua realização. Esta
tendência, que se encontra associada à disposição realista para a
sociabilidade, só se poderia traduzir em resultados visíveis caso se
vivesse de uma maneira suficientemente estável. Ora, quem vivesse na
instabilidade permanente gerada por uma sequência de períodos
demasiado breves, acabaria por nunca viver verdadeiramente como
um realista, desequilibrando assim a balança e regressando ao velho
solipsismo prático. Esta linha de argumentação, embora tenha sido
levada em conta pela maior parte dos solipsanos, parece não ter
atingido o grau de clareza e evidência que teria sido necessário
produzir uma adesão sem grandes relutâncias. Contra ela, os defensores
das periodizações breves apresentaram um argumento muito mais
objectivo. O ponto de partida desse argumento consiste na simples
afirmação da imprevisibilidade da morte: mesmo admitindo a
possibilidade de uma vida imortal, há que considerar seriamente a
permanente possibilidade de uma cessação súbita e inesperada da
existência. Nestas circunstâncias, a adopção de uma periodização
longa coloca em risco o ideal de vida dualista, e quanto mais longa for
a periodização, maior será esse risco. Como pode isto suceder?
Importa não esquecer que o ideal dualista prescreve uma vida
temporalmente constituída por «porções» iguais de existência
realista e solipsista. Suponhamos então que um solipsano com uma
periodização extremamente longa, tendo vivido como um realista no
primeiro período racional da sua existência, acaba por morrer quase no
fim de um outro período realista. Um solipsano como esse terá então
vivido menos tempo como solipsista do que como realista, e este
desequilíbrio terá sido tanto mais grave quanto mais longa tenha sido
a sua periodização. Sendo assim, as periodizações breves têm a
vantagem indiscutível de minimizar as probabilidades de desequilíbrio
por morte inesperada.
Não sabemos se este debate foi marcado por muitos
outros argumentos influentes, mas sabemos que a ausência de um consenso
traduziu-se num predomínio assombroso do comportamento anárquico. E
não foi difícil explicar esse predomínio: como os solipsanos viviam
com periodizações de duração muito variável, e como mesmo os que
tinham periodizações semelhantes iniciavam cada novo período em
momentos muito diferentes, todos os laços firmes de sociabilidade
dissolveram-se rapidamente. É certo que os solipsanos, durante os
períodos realistas, continuavam a mostrar uma disposição sociável,
mas essa disposição não produzia efeitos significativos, porque a
constituição de sociedades razoavelmente estáveis era inviabilizada
pelas diferenças de periodização.
Este deve ter sido um dos momentos mais críticos da
história da civilização solipsana. A via exacta que conduziu à sua
superação ainda não está inteiramente esclarecida, mas as hipóteses
aceites certamente não se afastam muito da verdade. Logo após a
descoberta da ideologia do dualismo prático, os investigadores da
Apocalipse sentiram que por fim estavam na posse de uma boa explicação
para o comportamento migratório dos solipsanos, que assim se tornava
perfeitamente compreensível como um resultado da execução dessa
ideologia. No entanto, subsistia o problema de saber como decorrera a
emergência do comportamento migratório regular a partir das anteriores
discrepâncias de periodização. A invenção dos relógios que mais
tarde acabaram por controlar o acesso a todas as cidades marcou um
momento decisivo desse processo, mas não podemos ver nesse evento a
única grande causa da estabilização histórica, já que ele não
poderia ter decorrido sem a existência prévia de alguma organização
social minimamente desenvolvida. Sendo assim, o que terá levado ao
surgimento dessas primeiras sociedades baseadas no dualismo prático?
Tudo nos leva a crer que esse processo decorreu segundo os desígnios
cegos da pura selecção natural. A partir do caos inicial caracterizado
por uma distribuição aleatória das diversas periodizações, essa
mesma aleatoriedade acabou por dar origem a pequenos grupos de
solipsanos com periodizações muito semelhantes. Tornou-se assim
possível desenvolver alguma sociabilidade durante os períodos
realistas. É claro que isso não pôde acontecer em relação aos que
tinham adoptado periodizações extremamente breves, mas os que tinham
escolhido viver segundo períodos bastante longos puderam usufruir de
algumas das vantagens inerentes à existência em sociedade. A
selecção natural favoreceu esses grupos. Certamente muitos acabaram
por se dissolver, mas outros, no entanto, conseguiram aumentar em
número e em poder. Ressurgiram assim algumas áreas urbanas, e aqueles
que as habitavam viram-se confrontados com o desafio de procurar,
durante os períodos realistas, formas de as proteger tanto dos lhes
eram estranhos como de si mesmos. A invenção dos primeiros relógios
veio então corresponder a esta necessidade de uma maneira
extraordinariamente eficaz. Esse passo revolucionário, para além de
ter reduzido muitíssimo o risco de extinção, viabilizou o
desenvolvimento de uma organização social duradoura. Os solipsanos que
começaram a viver sob o ritmo imposto pelos relógios de migração
adquiriram grandes vantagens sobre todos os outros, já que no início
de cada período realista não tinham que partir praticamente do zero. O
seu esforço civilizacional produzia assim resultados cumulativos,
resultados que tornavam cada vez mais manifesta a superioridade do modo
de vida migratório. Como seria de esperar, esse modo de vida acabou por
englobar toda a população.
Podemos dizer que essa foi a época em que os
solipsanos conheceram os seus dias mais felizes. Durante os períodos
realistas, assistia-se ao florescimento progressivo de uma organização
social bem sucedida, e o funcionamento dos relógios garantia a sua
preservação nos períodos em que os solipsanos se deslocavam
massivamente para mais um incursão ao «estado da natureza» no
hemisfério superior. Não há registo de qualquer tipo de conflito
violento entre as cidades, e mesmo ao nível das relações individuais
os períodos realistas eram marcados por um predomínio invulgar da
pacifidade, explicável somente pela oportunidade de que os solipsanos
dispunham para libertar todos os seus instintos agressivos durante os
períodos solipsistas. Estas circunstâncias fizeram emergir uma cultura
admirável, uma cultura que ainda se mostra profundamente enigmática de
um ponto de vista humano.
Já aqui foi mencionada a riqueza do pensamento
lógico e matemático dos solipsanos. Esse foi, sem dúvida, o domínio
privilegiado da sua actividade espiritual, mas sabemos hoje que o uso
das linguagens simbólicas próprias desse domínio nem sempre se
destinou a finalidades estritamente cognitivas. Confrontados com
inúmeras «teorias» lógicas e matemáticas aparentemente sem
importância ou mesmo sem o menor sentido, os investigadores que
trabalhavam em torno da solipteca decidiram interrogar alguns solipsanos
sobre o seu propósito. As respostas não foram muito esclarecedoras,
mas deram a entender que essas «teorias» resultavam sobretudo da
experiência estética dos solipsanos. Esta descoberta inaugurou um
campo de investigação inédito, onde as tentativas de melhorar a nossa
compreensão dos solipsanos parecem redundar frequentemente num non
sense absoluto. No vasto conjunto de obras dedicadas a este tema --
obras pouco recomendáveis para qualquer leigo -- podemos encontrar uma
profusão inquietante de referências a geometrias trágicas, algoritmos
barrocos ou funções metafóricas. As diferenças entre os diversos
tipos de narrativas axiomáticas, onde se destacam as convergentes e as
divergentes, têm captado uma atenção particularmente intensa. Um
outro foco de interesse é aquele que tem incidido sobre a arte «underground»
solipsana, um estilo artístico que nunca foi muito apreciado,
identificável em grande parte pela presença de um gosto obsessivo por
falácias extremamente subtis e pela acumulação de resultados
paradoxais. Sabemos que os apreciadores deste estilo procuravam atingir
estados de fruição estética muitíssimo angustiantes, acabando
frequentemente por cometer suicídio. No extremo oposto destes
horizontes sombrios, encontramos muitas «teorias» solipsanas que,
segundo a opinião predominante, devem ser concebidas sobretudo como
obras humorísticas. Entre as curiosidades encontradas nesta área
podemos apontar, por exemplo, um sistema de lógica modal com oito
quantificadores e trezentos e vinte seis valores de verdade que, segundo
parece, tem resultados que despertam reacções profundamente
hilariantes na maior parte dos solipsanos. É certo que através de uma
mistura insólita de matemática, teoria da arte e psicologia
extraterrestre, continuam a decorrer as pesquisas sobre o significado
das obras de arte solipsanas, mas já são muitos os que defendem o
abandono deste campo de investigação por acreditarem que ele só se
pode traduzir em afirmações sem sentido sobre um horizonte estético a
que nunca poderemos aceder.
Sobre os múltiplos aspectos da cultura da era
migratória, devemos também destacar aqueles que se referem à
experiência religiosa dos solipsanos. A religiosidade solipsana,
caracterizada por uma crença frequente na existência de Deus durante
os períodos realistas, começou por se nos apresentar como uma
descoberta surpreendente. Se os solipsanos se mostravam sempre tão
cépticos quanto à existência do mundo físico, como se dispunham tão
facilmente a acreditar na existência de Deus? Este enigma, no entanto,
não inviabilizou a compreensão do pensamento teológico dos
solipsanos, sem dúvida mais acessível que a sua actividade estética.
À semelhança da teologia tipicamente humana, a teologia solipsana
centra-se numa representação de Deus onde se destaca a sua
omnipotência e a sua benevolência. A existência do mal, também
reconhecida pelos solipsanos, confrontou-os com um dos problemas
teológicos mais discutidos na nossa galáxia (ver RELIG/TEOL/22):
se Deus realmente pode fazer tudo e deseja o bem, como é possível
explicar a existência do mal? Os solipsanos, mantendo a crença na
omnipotência e na benevolência de Deus, conseguiram explicar a
existência do mal de uma maneira muitíssimo adequada à sua teia de
crenças. Para esse efeito, limitaram-se a excluir a omnisciência da
sua representação de Deus. À primeira vista, a própria omnipotência
parece implicar a omnisciência -- se Deus pode fazer tudo, então pode
saber tudo --, mas os solipsanos furtaram-se a esta conclusão ao
esclarecerem o alcance da omnipotência divina. Deus não pode fazer com
que as coisas são não sejam idênticas a si mesmas, Deus não pode
fazer do número cinco o resultado da soma de dois com dois, e no
entanto estes «limites» ao poder divino não refutam a omnipotência
de Deus, simplesmente porque não podemos esperar que um ser omnipotente
faça o que é absolutamente impossível de se fazer. Ora,
pensaram os solipsanos, a demonstração da realidade de um mundo
exterior é uma impossibilidade absoluta para qualquer sujeito
cognitivo, e é por isso que Deus, mesmo sendo omnipotente, não pode
saber se o mundo que criou é ou não é real. A racionalidade de Deus
leva-o então a agir durante metade do tempo sob o pressuposto de que a
sua obra é real, e a agir durante a outra metade, obviamente, sob o
pressuposto contrário. Todo o mal existente no mundo torna-se assim
explicável como um resultado dos actos divinos praticados durante os
períodos em que Deus procede como se as suas criaturas não fossem
reais.
Esta imagem de Deus reflecte de uma maneira
extraordinariamente nítida a teia de crenças dos solipsanos. Já se
tornou claro que essa teia, embora esteja centrada num cepticismo
radical em relação à realidade de todo o mundo físico, não nos
permite caracterizar os solipsanos como uma espécie vitimada por alguma
loucura colectiva. A sua racionalidade não pode ser seriamente colocada
em questão. Reafirmamos que os solipanos, para além de terem procurado
justificar as suas crenças fundamentais de uma maneira objectiva,
esforçaram-se também por agir sempre em conformidade com essas
crenças. Toda a história dos solipsanos se estruturou pela procura
ininterrupta de um modo de vida racional. Na verdade, quase que podemos
identificar essa história, num estilo idealista, com a história do
próprio pensamento solipsano, e é isto que faz com que os solipsanos
nos pareçam irremediavelmente estranhos. As condições económicas ou
tecnológicas nunca fizeram funcionar o motor da sua história de uma
maneira decisiva. Foi a argumentação filosófica que desempenhou esse
papel, e fê-lo com uma exclusividade surpreendente. Já vimos como o
surgimento inesperado de um novo argumento filosófico desencadeou
instantaneamente um vasto processo revolucionário. Nada parece estar
mais longe da nossa própria história, onde a influência das ideias
filosóficas, nas raras ocasiões em que se faz notar com clareza, tem
de se desenvolver através de uma longa rede de mediações e pressupõe
a existência de condições sociais muito favoráveis. O mesmo pode ser
dito sobre qualquer outra das espécies inteligentes conhecidas. Sendo
assim, a que diferença podemos atribuir a excepção instanciada pelos
solipsanos?
***************
A história solipsana parecia avançar quase sempre
de «cima» para «baixo» ou, se preferirmos a terminologia marxista,
da superestrutura para a infraestrutura. Esta ilusão ontológica, no
entanto, desvaneceu-se irreversivelmente quando os solipsanos começaram
a ser estudados a um nível ainda mais «baixo», ou seja, não através
da sua organização política e económica, não através das suas
condições tecnológicas, mas através da sua estrutura puramente
biológica. Foram os biológos da Apocalipse 1 que descobriram o aspecto
crucial da extraordinária da biosfera solipsana, marcada por uma
singularidade que se manifestou de uma forma progressivamente complexa e
diversificada ao longo da história natural de Solipse, uma
singularidade que ainda hoje continua a surpreender-nos. A estrela Hertz
recebeu o seu nome devido a essa singularidade, devido à admirável
biosfera hertziana de Solipse, uma biosfera que evoluiu em função de
uma estranha capacidade partilhada pela maior parte das espécies que
nela emergiram: a capacidade de emitir dados sensorais ilusórios
através das ondas hertzianas apropriadas.
A origem da actividade biológica hertziana permanece
enigmática (ver SOLIP/BIO/30 e seguintes), mas pelo que sabemos
tudo terá começado com a «invenção da rádio», isto é, com o
surgimento da capacidade para usar o sistema nervoso das espécies
dotadas de audição como um receptor radiofónico. Os emissores
conseguiam assim capturar as suas presas com mais facilidade,
induzindo-lhes alterações na percepção auditiva capazes de as atrair
para áreas que as deixavam vulneráveis. Outros emissores, pelo
contrário, limitavam-se a suprimir os ruídos suscitados pela sua
própria presença, e aumentavam também desta maneira as probabilidades
de uma captura bem sucedida. A tendência para uma especialização no
sentido da «sedução» ou da «dissimulação» -- técnicas usadas
tanto para fins ofensivos como defensivos --, surgiu assim logo nesta
fase inicial, onde as espécies que dependiam demasiado do seu sentido
auditivo acabaram por se extinguir. Toda esta situação, no entanto,
não redundou na destruição do valor da audição como instrumento de
sobrevivência, já que muitas das espécies usadas como receptores
desenvolveram também capacidades emissoras capazes de iludir aqueles
que procuravam enredá-las no mesmo tipo de ilusão. Desenvolveu-se
assim uma escalada evolutiva onde presas e predadores se especializaram
tanto em reconhecer de uma maneira cada vez mais subtil os dados
auditivos ilusórios como em emitir representações ilusórias cada vez
mais perfeitas, mais próximas do ambiente auditivo normal. Esta
escalada, no entanto, sofreu uma viragem brusca quando se deu o segundo
grande salto evolutivo: a «invenção da televisão».
A capacidade de induzir ilusões visuais foi, sem
dúvida, uma das maiores conquistas que atravessou a biosfera solipsana,
uma conquista só igualada na seu impacto evolutivo pelo surgimento da
trissexualidade e da própria actividade hertziana. Uma nova época de
extinções em massa traduziu-se numa mudança radical nas regras e nos
participantes do jogo inter-específico. O enredo hertziano ascendeu a
grau ainda mais elevado de subtileza nas técnicas de ilusão sensorial
e no equilíbrio daí resultante. Enquanto emissores, os solipsanos não
só desenvolveram gradualmente a qualidade das representações visuais
emitidas como também enfrentaram o desafio de as tornar coerentes com
as representações ilusórias auditivas. O surgimento desta capacidade
fez emergir, ao nível da dimensão receptiva, o desenvolvimento gradual
de técnicas para detectar as mais ínfimas discrepâncias entre os
dados obtidos pelos diversos sentidos. Este tipo de procedimento
comparativo tornou-se decisivo tanto ao nível da emissão como ao da
recepção, e em ambos os níveis deu origem às primeiras relações
inter-específicas de simbiose fundadas em laços hertzianos. Na maior
parte dessas relações intervinham certas espécies solipsanas que se
destacavam, enquanto emissoras, pela qualidade das imagens visuais
produzidas, mas que não eram muito dotadas na produção de ilusões
auditivas e não se mostravam especialmente felizes na articulação dos
dois tipos de informação sensorial. Nestas circunstâncias, preferiam
enviar as suas emissões visuais a outras espécies, que acabavam por
retransmiti-las depois de as terem incorporado convenientemente em
ilusões auditivas. Os resultados obtidos desta forma geralmente
beneficiavam ambas as espécies, excepto nos casos em que os indivíduos
da espécie retransmissora usavam os dados recebidos para iludir a sua
própria fonte de informação visual ilusória. Estes casos de
traição, no entanto, parecem ter sido sempre muito raros, mas o mesmo
já não pode ser dito sobre os casos de pseudo-traição, onde o
indivíduo da espécie «traída» comete o erro de enviar dados para
retransmissão a um indivíduo de uma espécie que, na verdade,
conseguiu iludi-lo ao fazer-se passar por um indivíduo da espécie
apropriada para a relação simbiótica. Através de um exemplo como
este, podemos entrever alguma da complexidade que começou a marcar as
relações inter-específicas depois da «invenção da televisão»,
uma complexidade produzida não só pelos mais diversos tipos de
simbiose emissora, mas também por uma diversidade igualmente prodigiosa
de simbiose na detecção de ilusões. Em ambos os níveis, a
especialização atingiu graus elevadíssimos, principalmente em
relação aos dados visuais: certas espécies distinguiam-se no
tratamento das propriedades cromáticas, outras ao nível da
luminosidade, outras ainda na sua capacidade para lidar com formas
geométricas. Os esquemas de simbiose mais eficazes resultavam da
distribuição desigual de capacidades como estas. Nos ecossistemas mais
densos eram tantas as espécies que corriam o risco de se tornarem
vítimas de ilusões para as quais tinham contribuído que muitas delas
acabaram por desenvolver uma tendência para produzir ilusões
subtilmente imperfeitas, ilusões que continham uma certa «marca
pessoal» quase indetectável, de modo a poderem reconhecê-las caso lhe
fossem devolvidas com o propósito de induzir em erro.
É certo que a «invenção da televisão» marcou o
maior salto evolutivo na actividade hertziana da biosfera de Solipse,
mas não podemos ignorar algumas das invenções que se lhe seguiram.
Correndo o risco de ceder a um antropomorfismo excessivo, podemos dizer
que uma dessas invenções se traduziu na emissão de ilusões com um
conteúdo «olfactivo». Essa inovação, no entanto, veio a não se
mostrar significativa, já que com ela o «olfacto» dos solipsanos
acabou quase por desaparecer. O mesmo sucedeu em relação a um certo
tipo de «sensibilidade eléctrica», que chegara a ser bastante
frequente e importante antes de ter entrado na teia hertziana. Já as
ilusões com um conteúdo táctil tiveram um futuro bastante promissor,
embora a esse nível a perfeição ainda hoje se continue a apresentar
como um ideal distante. Seja como for, a verdade é que foram muitas as
espécies que acabaram por triunfar devido aos seus talentos para lidar
com ilusões tácteis, e não podemos negar que o desenvolvimento desses
talentos, ao associar-se às capacidades auditivas e visuais, veio
aumentar significativamente a complexidade das relações
inter-específicas. Seria errado pensar, no entanto, que toda essa
complexidade que temos vindo a referir partiu sempre da invenção de
novos tipos de ilusão sensorial. Há também que apontar um factor
determinante que até ao momento não foi mencionado: as diferenças que
sempre se registaram e acentuaram no hardware sensorial das
múltiplas espécies solipsanas. Devido a essas diferenças, uma
emissão capaz de iludir quase todos os elementos de uma certa espécie
acabava por não ter qualquer eficácia sobre os elementos de outra
espécie. Deste modo, para além de procurarem produzir ilusões
sensorialmente convincentes, os solipsanos enfrentaram sempre o desafio
de ajustar as suas emissões às singularidades perceptivas das
espécies visadas. Esta condição geral de todo o jogo hertziano
produziu espécies com técnicas de defesa extremamente peculiares.
Entre essas técnicas, a mais frequente encontra-se em espécies que
desenvolveram múltiplos orgãos sensoriais do mesmo tipo com qualidades
perceptivas diferentes. O caso mais notável é o de uma espécie cujos
elementos, para além de terem dezasseis pares de olhos, conseguem obter
um tipo de visão diferente com cada um desses pares, o que os torna
praticamente imunes a ilusões visuais, já que esta característica
lhes permite detectar esse tipo de ilusões através do confronto
permanente entre os dados recebidos pelos seus diversos olhos. Uma
estratégia bastante diferente, mas igualmente eficaz, é aquela que
podemos encontrar nas espécies que desenvolveram grandes variações no
hardware sensorial dos seus diversos elementos. Os inimigos
potenciais de uma destas espécies, quando são confrontados com algum
dos seus elementos, encontram assim muito mais dificuldades em iludi-lo,
já que as diferenças intra-específicas de percepção inviabilizam
qualquer «receita» fixa que possa ser eficazmente aplicada a todos os
que pertençam a uma espécie com este tipo de defesa.
Os traços gerais da biosfera solipsana que temos
vindo a descrever podem parecer-nos bastante estranhos. Devemos evitar
esta perspectiva, caso queiramos ter uma noção daquilo que realmente
é estranho mesmo à luz padrões solipsanos de normalidade. Todas as
biosferas suficientemente ricas acabam por dar origem às suas próprias
excentricidades, e em Solipse esta regra não encontrou qualquer
excepção. Os género dos inversores, por exemplo, merece ser
mencionado a este respeito. Os inversores são predadores de pequeno
porte individualmente inofensivos, mas colectivamente imbatíveis. O que
os distingue, no entanto, é a sua técnica de ilusão. Uma tribo de
algumas centenas de inversores, depois de ter escolhido uma área
consideravelmente ampla, instala-se nela e dá início à sua
actividade. Durante algumas semanas, os inversores vão alterando toda
essa área em múltiplos aspectos, até que esta fica com a aparência
de uma ilusão sensorial pouco conseguida. Depois, sempre que uma presa
potencial chega à área transfigurada e sente estar a sofrer uma
ilusão, os inversores começam a emitir ilusões genuínas, ilusões
com um grau elevadíssimo de perfeição. A presa, ainda potencial,
comete então o erro de sentir que regressou à realidade, quando na
verdade estava a começar a abandoná-la. Esse costuma ser o seu último
erro.
Muito menos subtil, mas igualmente invulgar, é a
técnica própria dos assimuladores. Contrariamente a quase todos os
outros solipsanos enredados na teia hertziana, os assimuladores não
procuram ser fidedignos nas suas ilusões. Na verdade, a eficácia da
sua estratégia repousa em talentos anti-realistas: atacam as suas
presas e defendem-se dos seus predadores através de emissões que os
deixam mergulhados em estados súbitos de profunda desorientação
sensorial, em estados perceptivos próximos da sinestesia total. Este
tipo de incapacidade para produzir ilusões próximas do ambiente normal
também caracteriza a mais sinistra das espécies solipsanas: a espécie
dos cartesiadores, conhecidos entre os biológos por «génios
malignos». Dada a fraca qualidade das suas ilusões, um génio maligno
é incapaz de iludir qualquer solipsano adulto, e por isso escolhe as
suas vítimas entre as crias das espécies que lhe servem de alimento.
Depois de capturar uma das suas vítimas, o génio maligno vai
alimentando-a enquanto a mantém num estado permanente de ilusão. Pelo
que sabemos, o mundo ilusório transmitido inclui certas fronteiras que
evitam a fuga da vítima. Essas fronteiras não a perturbam nem lhe
parecem estranhas, já que fazem parte do ambiente que sempre conheceu.
Por fim, quando a vítima atinge o peso suficiente, o génio maligno,
que sempre se tinha apresentado como seu progenitor, devora-a sem dela
deixar o menor vestígio.
O problema de saber se os génios malignos possuem
algum tipo de inteligência tem sido bastante discutido, mas este
assunto inscreve-se numa controvérsia muito mais ampla, já que se
coloca o mesmo problema em relação a oito espécies extintas. Este
número de espécies inteligentes ou próximas da inteligência é tão
elevado que não pode ser visto como o resultado de uma simples
coincidência estatística. Os biólogos acreditam que a biosfera de
Solipse, com todo o seu enredo delicado ilusões hertzianas, possui
condições que favorecem extraordinariamente o desenvolvimento da
inteligência. No entanto, a breve vida das oito espécies mencionadas
constitui um indício intrigante das grandes dificuldades que as
espécies supostamente inteligentes sempre tiveram de enfrentar logo
depois de terem surgido. Seja como for, só uma única espécie atingiu
o nível da vida civilizada: aquela que atraiu a humanidade a Solipse
por se estar a encaminhar rápida e misteriosamente para a extinção.
De um ponto de vista biológico, esses solipsanos, os solipsanos em que
temos centrado a nossa atenção, devem o seu sucesso no jogo
inter-específico a uma peculiaridade que só eles desenvolveram. Embora
as suas aptidões sensoriais sejam bastante fracas, sobretudo ao nível
da emissão, foi neles que emergiu uma capacidade emissora de um tipo
inteiramente novo: a capacidade de emitir emoções. Ao induzir estados
mentais de medo e dor nos seus potenciais predadores, e de tranquilidade
e prazer nas suas potenciais presas, os nossos solipsanos conquistaram
uma posição singularmente privilegiada na biosfera de Solipse. O papel
desta capacidade para induzir emoções pode ser comparado ao papel que
a mão humana desempenhou na emergência da nossa espécie. O surgimento
da emissão de emoções, tal como o surgimento da mão humana, veio
reforçar decisivamente o desenvolvimento da inteligência. A
inteligência solipsana, no entanto, depois de se ter traduzido na
aptidão para raciocinar através de símbolos, esbarrou inevitavelmente
na questão da realidade do mundo exterior. A herança genética dos
solipsanos inteligentes, profundamente moldada pela actividade hertziana
que acabámos de descrever, produziu dispositivos para a formação de
crenças muito diferentes dos nossos. Os solipsanos evoluiram de uma
maneira que aguçou extraordinariamente a sua disposição para
desconfiar de toda a informação recebida pelos sentidos, e esta
disposição, tendo-se incorporado no nível do pensamento conceptual,
resultou num cepticismo fortíssimo quanto à realidade do mundo
físico. Já as crenças relacionadas com a experiência do tempo, por
exemplo, ficaram fora do alcance desse cepticismo, porque essa
experiência permaneceu sempre imune às ilusões hertzianas. Também
não nos deve surpreender o facto de os solipsanos, depois de admitirem
a realidade do mundo exterior, se disporem facilmente a acreditar em
Deus. Dadas as condições biológicas que produziram o pensamento
solipsano, mostra-se mais problemático acreditar na realidade do mundo
exterior do que na própria existência de Deus. À medida que vamos
conhecendo melhor todas essas condições, a perplexidade sentida
inicialmente em relação aos solipsanos civilizados acaba por ceder
infalivelmente a esta questão: como poderiam eles ser de outro modo?
***************
Afinal, por que tinham os solipsanos mergulhado numa
profunda crise civilizacional, marcada pela dissolução repentina do
modo de vida dualista? Por que se encaminhavam rapidamente para a
extinção? Mesmo perante os factos conhecidos sobre a cultura e a
biologia dos solipsanos, este enigma persistiu teimosamente. A solipteca
não continha quaisquer dados esclarecedores a este respeito, até
porque toda a informação nela reunida era anterior ao início da crise
civilizacional. Os investigadores da Apocalipse viram-se assim
confrontados com a necessidade de encontrar respostas através do
contacto directo com os solipsanos sobreviventes. Suspeitavam já que a
postura solipsista tinha adquirido uma grande supremacia. Teria ocorrido
algum retorno massivo ao velho modo de vida do solipsismo prático?
Talvez. Mas como? Porquê? A forte disposição suicida de todos os
solipsanos capturados bloqueava as investigações. Os biólogos
tentaram desesperadamente encontrar uma maneira de impedir a
realização dessa disposição, de modo a que assim fosse possível
forçar o diálogo, mas nunca estiveram próximos de ser bem sucedidos.
Esta estratégia foi cancelada por ordem do próprio Musaazi.
Parecia assim que o regresso à Terra iria ocorrer
sem as respostas desejadas. No entanto, a decisão de Musaazi partira do
propósito de poupar ao máximo os recursos disponíveis, para que a
permanência em Solipse se pudesse prolongar vários meses para além da
data inicialmente prevista. E isto para que por fim fosse possível
compreender os motivos da crise solipsana. Mas como? Consta que enquanto
decorria a agitação proveniente da captura de solipsanos, Musaazi
continuara a interrogar-se sobre um acontecimento cuja importância
entretanto fora menosprezada: a fuga dos solipsanos «normais» após a
recolha da solipteca. Fazendo uso do calendário que vigorara durante a
era do dualismo prático, Musaazi verificou que esse estranho episódio
tinha coincidido aproximadamente com o fim de mais um período realista.
Isto sugeria que esses solipsanos eram de facto defensores da filosofia
dualista, tendo por isso abandonado a sua cidade quando se iniciara um
novo período solipsista da sua vida. Sendo assim, era de prever que na
data em que esse período terminasse eles retomassem a atitude realista
e regressassem à sua cidade. Seria então mais fácil estabelecer o
contacto desejado.
Exactamente na data prevista, identificou-se a
presença de um grupo organizado de solipsanos «normais» nas ruínas
da cidade onde fora descoberta a solipteca. Não foi difícil iniciar o
contacto com aqueles que se apresentaram como líderes desse grupo.
Estes não pareceram surpreendidos por estarem a lidar com seres
humanos, e dispuseram-se a corresponder à curiosidade dos
investigadores, mas só até certo ponto. Toda a crise civilizacional
que se vivia em Solipse, disseram, resultara do surgimento de um
argumento poderosíssimo a favor do solipsismo. A esmagadora maioria dos
solipsanos aceitara esse argumento, e assim rejeitara todo o modo de
vida dualista, preferindo viver num estado de anarquia bruta. Mesmo
muitos dos que ainda defendiam o dualismo prático acreditavam no
solipsismo, e só mantinham o de vida migratório por este estar de
acordo com os seus desejos pessoais. Apesar das circusntâncias,
existiam ainda alguns solipsanos que alimentavam a esperança de
discernir alguma falácia que arruínasse o argumento a favor do
solipsismo, e por esse motivo conservavam uma atitude de puro cepticismo
quanto à questão da realidade do mundo exterior. Os líderes que
participaram no diálogo com os investigadores da Apocalipse contavam-se
entre esses solipsanos. Pretendiam reabilitar a filosofia dualista, e
durante os seus períodos realistas lutavam desesperadamente pela
conservação da sua cidade e da cultura em que ela se desenvolvera. Por
isso, depois de se terem mostrado agradecidos por os humanos terem
impedido a destruição da solipteca, reclamaram a sua devolução. Como
toda a informação da solipteca já tinha sido apropriadamente copiada,
parecia não haver qualquer motivo para não corresponder ao pedido dos
solipsanos. No entanto, surgiram algumas dificuldades inesperadas. Os
investigadores da Apocalipse queriam conhecer detalhadamente o argumento
que despoletara a crise civilizacional, mas os solipsanos declararam que
não podiam comunicá-lo antes de lhe ser devolvida a solipteca.
Receavam que os investigadores, depois de terem conhecido o argumento,
ficassem imediatamente convertidos ao solipsismo e depois não
correspondessem ao seu pedido, já que nessas circunstâncias deixariam
de acreditar na existência real da solipteca e daqueles a quem esta
pertencia. Os investigadores receavam que os solipsanos, depois de terem
tudo o queriam, se retirassem mais uma vez sem dar satisfações. De
nada serviu tentar explicar-lhes que por muito bom que fosse o argumento
nenhum humano conseguiria aceitar realmente a sua conclusão. Os
solipsanos, depois de terem reconhecido os humanos como seres racionais,
pareciam não compreender como isso era possível. Neste ponto o
diálogo começou a tornar-se verdadeiramente difícil, mas os
investigadores da Apocalipse acabaram por ceder. Antes, no entanto,
tomaram providências no sentido recuperar a solipteca caso os
solipsanos deixassem de colaborar.
Não foi necessário recorrer a essa estratégia.
Depois de um diálogo marcado por alguns desentendimentos linguísticos,
foi possível reconstituir o estranho argumento solipsano a favor do
solipsismo. Dada a sua importância histórica, não podemos deixar de o
apresentar aqui, modificando apenas os exemplos originalmente usados.
Todo o argumento é essencialmente probabilístico. Nele parte-se da
atribuição de uma probabilidade inicial às duas hipóteses de
resposta para a questão da realidade do mundo exterior. Começamos
assim por supor, seguindo a doutrina dualista, que é tão provável que
o solipsismo seja verdadeiro como que seja falso, ou seja, já que não
existem quaisquer dados que favoreçam uma das hipóteses, atribuímos
uma probabilidade «subjectiva» de 50% tanto ao solipsismo como ao
realismo. Até aqui nada de novo. Mas suponhamos agora que a hipótese
realista é a verdadeira, e consideremos esta questão desconcertante:
qual será a probabilidade de os objectos de um certo tipo, e apenas
esses, serem irreais? Supondo que o mundo exterior é real, qual será a
probabilidade de tudo nele ser real excepto, por exemplo, os mamíferos?
Essa probabilidade, respondem os solipsanos, é de 25%. Porquê?
Partimos dos 50% atribuídos à hipótese realista. Depois, ao
considerarmos a possibilidade de, sendo o mundo exterior real, tudo nele
ser real excepto os mamíferos, verificamos que não existem quaisquer
dados que favoreçam esta hipótese em relação à sua negação. Ela
deve por isso ser considerada tão provável como a sua negação, e
assim somos levados a repartir equitativamente os 50% da hipótese
realista. Neste ponto há que assinalar uma consequência interessante:
se a probabilidade de tudo ser real excepto os mamíferos é de 25%,
então a probabilidade de os leões, por exemplo, serem irreais, é pelo
menos de 25%, já que os leões contam-se entre os mamíferos. Podemos
compreender o interesse desta consequência se agora considerarmos esta
questão: partindo novamente do suposto de que o mundo exterior é real,
qual será a probabilidade de, por exemplo, ser verdadeira a hipótese
de tudo nele ser real excepto os gorilas? Como mais uma vez não existem
dados que permitam favorecer esta hipótese perante a sua negação,
devemos também atribuir-lhe uma probabilidade de 25%. Aqui entramos em
sérias dificuldades. Neste cenário, qual será a probabilidade os
leões serem irreais? Essa probabilidade tem de ser inferior a 25%, já
que metade dos 50% atribuídos ao realismo pertence à hipótese em que,
sendo o mundo exterior real, só os gorilas não são reais, e os
restantes 25% não podem ser totalmente atribuídos à hipótese de os
leões serem irreais, já que devemos atribuir também alguma
probabilidade, por exemplo, à hipótese em que só os gatos ou só as
moscas são irreais. Chegamos assim a uma conclusão claramente
contraditória: a probabilidade de os leões serem irreais é e não é
inferior a 25%. E os resultados absurdos, obviamente, não ficam por
aqui. Se, por um lado, atribuímos uma probabilidade de 25% tanto à
hipótese em que só os mamíferos são irreais como à sua negação,
e, por outro lado, fazemos o mesmo com a hipótese em que só os gorilas
são irreais, excedemos a probabilidade de 50% atribuída hipótese
realista, entrando assim em contradição com a ideia de que tanto o
realismo como o solipsismo têm a mesma probabilidade. Não é
necessário apresentar outras consequências paradoxais exploradas pelos
solipsanos para avançarmos para o ponto crucial do seu argumento: como
a hipótese de que o mundo exterior é real conduz a resultados
contraditórios, ela não pode ser verdadeira. Através desta
estratégia de redução ao absurdo, conclui-se que o solipsismo é
verdadeiro, que todo o mundo exterior consiste apenas numa construção
involutária da mente de quem dele tem experiência.
Pelo que sabemos, a discussão dos aspectos
probabilísticos deste argumento atingiu um nível técnico muito mais
avançado. As dificuldades associadas ao chamado «princípio da
indiferença», em especial, continuam a ser debatidas pelos solipsanos,
sobretudo entre a minoria que procura manter-se céptica em relação a
este problema. No entanto, a adesão geral dos solipsanos à tese
solipsista parece não ter enfraquecido, em grande parte por não ser
possível construir um argumento análogo que coloque o solipsismo em
dificuldades semelhantes. Isso acontece, simplesmente, devido uma
assimetria ontológica inescapável: enquanto que é possível que,
sendo o mundo exterior real, algumas coisas não sejam reais, é
absolutamente impossível que o mundo exterior, sendo irreal, inclua
algumas coisas reais.
O regresso da Apocalipse 1, para além de ter
suscitado uma vaga multidisciplinar de «estudos solipsísticos»,
colocou uma vez mais a humanidade perante o problema ético de saber se
será ou não imoral interferir na história de uma civilização
extraterrestre, um problema que no caso dos solipsanos se reveste de uma
gravidade especial, já que é a sua própria extinção que se encontra
em causa (ver EXTR/ETC/23). Há quem acredite que a selecção
natural acabará por favorecer decisivamente os defensores do anterior
modo de vida dualista, mas as últimas notícias não têm corroborado
este ponto de vista. Seja como for, é sem dúvida a primeira vez que a
exploração galáctica nos faz enfrentar o problema insólito de salvar
uma espécie inteligente que se recusa a acreditar na nossa própria
realidade.
Pedro Galvão pmgalvao@mail.telepac.pt