
O Sentido da Vida
Desidério Murcho
O objectivo deste ensaio é defender que a vida humana pode ter
sentido se a ética for objectiva. Para ser preciso, o título deveria
por isso ser “O Sentido da Vida Humana”. Todavia, a expressão “Sentido
da Vida” impôs-se — uma marca linguística de um lamentável
antropocentrismo.
Começaremos por apresentar várias distinções conceptuais, com
o objectivo de conseguir formular com clareza o problema do sentido da
vida. Seguidamente, iremos avaliar algumas das respostas teístas
típicas perante o problema. Não pretendo ser exaustivo nesta matéria,
pois há muitas religiões e diferentes respostas. Todavia, penso que a
posição aqui defendida perante a resposta teísta ao problema do
sentido da vida tem um alcance mais amplo, abrangendo provavelmente
todas as respostas religiosas ao problema. Procurarei mostrar que as
respostas teístas ao problema do sentido da vida são insatisfatórias
por vários motivos. Isto constituirá uma boa motivação para procurar
uma reposta não religiosa ou naturalista ao problema. A ideia defendida
neste ensaio (que a vida humana pode ter sentido se a ética for
objectiva) é uma dessas respostas — aquela que considero mais
adequada.
Um
esclarecimento prévio
Algumas pessoas pensam que o problema do sentido da vida não é
susceptível de ser tratado com seriedade em filosofia e que
consequentemente não é um problema de que a filosofia analítica se
possa ocupar. Todavia, penso que essas pessoas estão enganadas. As
razões pelas quais estão enganadas dividem-se em dois grupos.
Por um lado, estão enganadas porque, pura e simplesmente, há
excelentes estudos filosóficos sobre o tema na tradição analítica.
Portanto, se há excelentes estudos filosóficos sobre o tema, é porque
tais estudos são possíveis. Na bibliografia apresento alguns desses
estudos.
Em segundo lugar, essas pessoas são vítimas de uma ilusão.
Essa ilusão resulta de dois tipos de considerações. Por um lado,
sentem que este é o tipo de tema bom para animar conversas de café
entre amigos, e que por isso não serve como objecto de estudo sério,
sistemático e consequente. Por outro, sentem que o tema em si é
demasiado vago para ser susceptível de um tratamento sério.
Estas duas razões são insuficientes para excluir o problema do
sentido da vida enquanto objecto de estudo sério em filosofia. Por um
lado, não é pelo facto de um dado tema ser susceptível de animar
conversas de café entre amigos que não é susceptível de um
tratamento sério. Afinal, o problema do aborto ou a existência de Deus
são problemas que animam muitas conversas de café entre amigos, apesar
de serem temas acerca dos quais alguns dos melhores espíritos
filosóficos e analíticos apresentaram importantes argumentos e teorias
filosóficas. Por outro lado, apesar de ser de reconhecer que o tema é
escorregadio dado o seu elevado grau de generalidade, esta é uma
característica comum a muitos problemas tradicionais da filosofia. O
problema do sentido da vida é muito geral e obscuro, mas não mais do
que o problema de saber o que é o bem, a verdade ou a arte, que são
problemas filosóficos tradicionais. Em consequência, somos obrigados a
concluir que a segunda razão para excluir o problema do sentido da vida
só pode ser o resultado de uma visão da filosofia que, além de
redutora, resulta talvez de um certo desconhecimento de algumas das mais
importantes obras actuais de filosofia. O problema do sentido da vida
tem sido estudado por alguns dos melhores filósofos analíticos
contemporâneos, como David Wiggins, Thomas Nagel, Robert Nozick ou
Peter Singer.
Na verdade, discutir o problema do sentido da vida na filosofia
analítica tem pelo menos duas vantagens didácticas importantes
relativamente a alguns problemas de áreas mais técnicas da filosofia,
como a lógica filosófica ou a filosofia da linguagem. Em primeiro
lugar, desfaz a ideia errada e infeliz de que a filosofia analítica se
reduz à filosofia da linguagem, lógica e disciplinas adjacentes. Esta
é uma visão infeliz que resulta talvez de um certo desconhecimento de
algumas das mais importantes obras actuais de filosofia. Em segundo
lugar, torna evidente que o que caracteriza a filosofia analítica é o
rigor conceptual, a clareza da argumentação, o cuidado da expressão e
— sobretudo — a capacidade para estudar directamente os problemas da
filosofia. Esta última característica necessita de algum
esclarecimento.
Ao contrário do que acontece com a filosofia continental que
geralmente se estuda e ensina em Portugal, e em que nunca ou raramente
se estuda directamente os problemas filosóficos tradicionais, a
filosofia analítica é precisamente isso que faz. Na filosofia
continental escreve-se coisas como “O Problema da Mente-Corpo em
Descartes”, ou “O Dasein em Heidegger” ou “A Indeterminação da
Tradução em Quine”. Mas não se estuda directamente o problema da
mente-corpo, nem o Dasein, nem a indeterminação da tradução. Isto
acontece porque a filosofia continental perdeu a capacidade para estudar
directamente os problemas da filosofia; a filosofia transformou-se na
sua história; só resta uma floresta de interpretações, mais ou menos
bizantinas, dos grandes textos de filosofia do passado — mesmo quando
esse passado tem apenas 50 anos. É por esta razão que a figura do “comentário
de texto”, que tantas consequências perniciosas tem no ensino da
filosofia, é tão popular entre os praticantes de filosofia
continental. Quando não se tem uma noção clara dos problemas da
filosofia, não se pode compreender cabalmente os grandes textos de
filosofia, quer actuais quer do passado. E quando não se compreendem
cabalmente os grandes textos de filosofia, pouco mais resta fazer do que
o popular “comentário”. É por isso que estudar filósofos, ao
invés de estudar problemas, argumentos e teorias, é a actividade
principal da filosofia continental; e é por isso que em vez de se
ensinar os estudantes a pensar por si mesmos e a encontrar as suas
respostas aos problemas da filosofia, se ensina os estudantes a repetir
o que disse Platão ou Kant, sem que eles percebem muito bem o que
querem dizer todas aquelas expressões filosóficas. Um teste simples é
pedir a um estudante de filosofia continental que faça uma lista com 3
problemas, 3 teorias e 3 argumentos importantes da história da
filosofia. Os resultados serão desastrosos.
Outra característica importante da filosofia analítica e que é
quase incompreensível para quem está habituado à filosofia
continental é o facto de nesta forma de fazer filosofia se discutirem
ideias, ao invés de nos limitarmos a usar as palavras dos filósofos
para construir maus argumentos de autoridade. O trabalho em filosofia
continental consiste em grande medida em desejar confusamente defender
uma dada ideia vaga. Mas tudo o que o estudante se sente obrigado a
fazer é a apresentar de forma confusa uma série de citações e
paráfrases de vários autores que aceitam mais ou menos essa ideia.
Argumentos cuidados, rigorosos e claros em defesa da ideia nunca
aparecem nesses trabalhos; a consideração e discussão cuidada dos
argumentos contrários à ideia que o estudante quer defender não são
julgadas necessárias. De modo que o trabalho em filosofia continental
consiste muitas vezes apenas em maus argumentos de autoridade; como é
óbvio, só porque Kant defendeu uma certa coisa, e Santo Agostinho
também, assim como Platão e Hegel, não se segue que isso é verdade
— pois muitos outros filósofos de renome defenderam o contrário
disso. Ao invés, é precisamente isso que se faz na filosofia
analítica; em filosofia analítica discute-se ideias desassombradamente
e não há “tabus”. Só porque grandes filósofos analíticos
defendem algo, não se segue que o estudante tenha de o defender também.
Na filosofia analítica não há ortodoxias; a heterodoxia é normal. É
por isso que vale a pena fazer uma chamada de atenção: apesar de este
ser um ensaio que defende uma resposta naturalista ao problema do
sentido da vida, não se segue de maneira nenhuma que esta seja a
ortodoxia em filosofia analítica. Na verdade, há muitos filósofos
analíticos que discordariam do que eu vou escrever, quer por serem
teístas (como Richard Swinburne ou Alvin Plantinga), quer por acharem
que a vida não tem sentido (como é o caso de Thomas Nagel ou de Peter
Singer). E a crítica que irei apresentar à resposta teísta ao sentido
da vida não é de forma alguma a perspectiva da filosofia analítica
face ao teísmo; na verdade, “a perspectiva” da filosofia analítica
quanto à religião ou ao teísmo é coisa que não existe —
diferentes filósofos analíticos têm diferentes perspectivas.
Finalidades
últimas e valor
O primeiro passo em qualquer estudo filosófico (assim como
noutras áreas) é procurar saber com clareza qual é o problema que
estamos a tentar resolver. Ora, o problema do sentido da vida é de
difícil formulação. Talvez seja por isso que algumas pessoas pensam
que se trata de um falso problema. Se não conseguirmos formular com
clareza o problema do sentido da vida, a probabilidade de sucesso na sua
resolução é quase nula. Além disso, não compreenderemos também as
diferentes teorias e argumentos avançados na história da filosofia
para responder a este problema. Enquanto não compreendermos claramente
o problema como algo real e não como uma fantasia filosófica ou uma
confusão verbal, não poderemos avançar no nosso estudo.
O problema do sentido da vida é de difícil formulação devido
à ambiguidade da expressão “sentido da vida”. Esta ambiguidade,
por sua vez, resulta da ambiguidade da palavra “sentido”. Noutros
contextos, a palavra “sentido” pode referir-se ao sentido das
palavras, mas aqui é óbvio que não é disso que se trata. No nosso
contexto, podemos querer dizer duas coisas quando nos referimos ao
sentido da vida: 1) podemos estar a falar da direcção, do propósito,
da finalidade da nossa vida; 2) ou podemos estar a falar do valor da
nossa vida. Como, por outro lado, há vários tipos de finalidades, e
como nem todas as finalidades são susceptíveis de dar sentido à nossa
vida, o próprio sentido 1 da expressão é origem de mais confusões.
Comecemos por esclarecer dois tipos diferentes de finalidades.
Se me perguntarem com que finalidade apanhei hoje de manhã o
comboio, respondo que foi para me dirigir para a faculdade. O que dá
sentido à minha viagem de comboio é o meu desejo de ir para a
faculdade. Claro que agora podemos perguntar com que finalidade vou para
a faculdade. Eu posso responder que vou para a faculdade porque preciso
de trazer alguns livros da biblioteca e quero assistir a alguns
seminários. E agora podem perguntar-me qual é a finalidade disso.
E nunca mais se acaba. A pergunta pela finalidade tem esta
característica: aparentemente, podemos sempre continuar a fazê-la. É
como a pergunta “Porquê?” — que, a propósito, é muitas vezes
uma pergunta pela finalidade de algo (“Porque é que apanhaste o
comboio esta manhã?”).
Mas será que podemos realmente continuar sempre a exigir mais
uma resposta? Não haverá aquilo a que os filósofos chamam “finalidades
últimas”? Sem dúvida que sim. Quando faço várias coisas para
preparar um chá, o prazer que tenho a beber chá é uma finalidade
última: não faz sentido perguntar com que finalidade gosto de beber
chá. E compreende-se porquê: o meu gosto de beber chá é algo que dá
um sentido a tudo o que faço para poder beber chá, é a razão de ser
de tudo o que faço para beber chá; mas, em si, o meu gosto por chá
não é um meio para qualquer outra finalidade; é uma finalidade em si,
uma finalidade última. O mesmo acontece com tudo o que faço para ir
para o colégio: estou a satisfazer o meu gosto por filosofia; e isto é
um fim em si, não é algo que eu faça em função de outra coisa
qualquer.
Podemos assim compreender a nossa vida como um encadeamento de
acções que procuram atingir diversas finalidades últimas. Isto dá
origem a uma forma errada de entender o problema do sentido da vida.
Essa forma é a seguinte: o problema do sentido da vida consiste em
descobrir a finalidade última
da vida humana. Algumas escolas gregas defendiam que a finalidade
última que devíamos procurar na nossa vida era a satisfação dos
nossos desejos; ou o conhecimento; ou a virtude; ou outra coisa qualquer.
E depois mostravam o que pensavam ser a melhor maneira de atingir essa
finalidade última e única. Penso que esta é uma forma errada de
entender o problema do sentido da vida por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque não é verdade que a existência de
uma única coisa que seja a finalidade última da vida humana seja uma
garantia do sentido da nossa vida. Claro que numa certa acepção fraca
da expressão “sentido da vida”, a existência de uma finalidade
última dá sentido à nossa vida. Mas isso é apenas uma acepção
fraca da expressão. Não é apenas isso que realmente temos em mente
quando perguntamos pelo sentido da vida. Afinal, ainda que a finalidade
última da minha vida seja X, não se segue que faça sentido viver para
alcançar X — a não ser que X tenha, intrinsecamente, algum valor.
Em segundo lugar, porque se acharmos que a nossa vida tem valor
desde que haja uma finalidade última X, não se percebe porque razão
é importante que haja uma única
finalidade última. Na verdade, ao longo da vida, os seres humanos
cultivam várias finalidades últimas. De entre as várias finalidades
últimas que os seres humanos cultivam estão o conhecimento, o amor, a
amizade, o prazer de ver os filhos a crescer e os amigos a prosperar.
Por que razão uma única é mais importante do que várias?
Se pensarmos um pouco, verificamos que as duas objecções
anteriores à ideia de que descobrir o sentido da vida é descobrir uma
única finalidade mostram que há algo que falta nessa concepção do
sentido da vida. O que falta é o valor intrínseco das finalidades
últimas. Se perguntarmos por que razão uma única finalidade há-de
dar mais sentido à nossa vida do que as várias finalidades últimas,
percebemos que a ideia subjacente é que as várias finalidades últimas
não dão sentido à nossa se não forem coisas que tenham valor
intrínseco; ao passo que a ideia de uma única finalidade última é
apresentar algo que tenha realmente valor intrínseco. Mas no momento em
que percebemos isto percebemos uma coisa importante. Percebemos que este
tipo de resposta não dá conta da acepção 2 da expressão “sentido
da vida”.
Imaginemos alguém que, aos 80 anos, olha para a sua vida e
verifica que alcançou todas ou a maior parte das suas finalidades. Pode
até ter alcançado uma única finalidade última qualquer. Significa
isso que a sua vida tem sentido? Não necessariamente. Pois se nenhuma
das suas finalidades tiver valor, o facto de serem finalidades últimas
não é suficiente para dar sentido à sua vida. De modo que para
responder ao problema do sentido da vida é preciso não apenas dizer
quais são as nossas finalidades últimas, quer sejam muitas ou apenas
uma, mas mostrar que essa ou essas finalidades últimas têm
intrinsecamente valor. Mas que quer isto dizer?
De um certo ponto de vista, é redundante perguntar pelo valor de
uma finalidade última. O valor de uma finalidade última é ela mesma
— é por isso que é uma finalidade última. Se eu gosto muito de
chocolate, é este meu gosto que dá valor ao acto de comer chocolate;
que outro valor poderia haver?
O outro valor que estamos a procurar é o valor objectivo; que comer chocolate é um valor para mim, um bem para mim,
dado o meu gosto por chocolate, é óbvio (excluindo os casos em que
comer chocolate me seja prejudicial — por sofrer de diabetes, por
exemplo). Mas será que comer chocolate terá valor de um ponto de vista
universal? É isto que queremos perguntar quando perguntamos em geral
pelo valor: estamos a perguntar pelo valor objectivo — pois o valor
subjectivo é imediatamente óbvio.
O problema do sentido da vida torna-se agora mais claro. Não se
trata apenas de saber que finalidade ou finalidades últimas devemos
adoptar; trata-se de saber que finalidade ou finalidades últimas
devemos adoptar que tenham valor objectivo — e trata-se de saber se
há finalidades últimas que tenham valor objectivo. Assim se compreende
que dizer apenas “Faz X porque isso irá dar-te a felicidade” não
responde ao problema do sentido da vida; pois podemos sem dúvida ser
felizes sem que a nossa vida tenha, todavia, qualquer valor — excepto,
obviamente, para nós próprios.
O problema desta noção mais robusta do sentido da vida é que
parece demasiado robusta. Tão robusta que é provavelmente
insusceptível de ter uma resposta satisfatória, pois parece resultar
de uma confusão conceptual qualquer — como se estivéssemos a exigir
que as ideias verdes pudessem dormir juntas. Mas há algo na ansiedade
humana de dar sentido às nossas vidas que não se satisfaz com a ideia
de que todo o sentido que a nossa vida tem é puramente subjectivo e que
todo o valor que a nossa vida possa ter é apenas subjectivo. Penso que
a religião é uma das formas de tentar responder a esta ansiedade
humana. Mas penso que essa resposta é insatisfatória e é isso que
tentarei mostrar na secção seguinte.
Religião
Uma das respostas hoje em dia mais populares no que respeita ao
sentido da vida é a resposta religiosa. Ao passo que na Antiguidade
grega e romana as respostas ao problema do sentido da vida eram de
carácter filosófico e cognitivo, hoje em dia é costume pensar que só
a religião pode fornecer uma resposta ao problema. Nesta secção quero
mostrar em linhas gerais qual é a resposta teísta habitual ao problema
e mostrar as suas limitações. Na verdade, penso que o conjunto de
doutrinas sobre o deus cristão que se foram cristalizando ao longo dos
séculos — em parte em resposta aos desafios de filósofos não
religiosos — é um agregado incoerente de doutrinas que só
aparentemente respondem aos anseios humanos mais profundos. Vejamos o
caso concreto da resposta teísta genérica ao problema do sentido da
vida.
Do ponto de vista teísta, Deus é criador. Criou todo o universo
para os seres humanos. Só por si, isto não dá grande sentido à nossa
vida. Dá-nos apenas um lugar de destaque, que talvez seja
emocionalmente reconfortante para algumas pessoas. O que dá sentido à
nossa vida, do ponto de vista teísta, é o facto de Deus ter um plano
para nós: uma finalidade, precisamente. Todo o universo, com os seus
biliões de biliões de estrelas (só na nossa galáxia o número de
estrelas é igual ao número de segundos que há em 2 mil anos — e há
milhões de galáxias), foi criado para nós e com uma finalidade em
vista. A monstruosidade aritmética desta ideia é impressionante. Mas
mais impressionante ainda é o facto de ninguém saber bem que
finalidade é essa. Todavia, mais grave do que ninguém saber que
finalidade Deus nos reservou, são os dois problemas seguintes.
Em primeiro lugar, o teísta defende que é em princípio
impossível saber exactamente quais são os desígnios divinos; podemos
ter algumas ideias aproximadas, mas os desígnios divinos ultrapassam necessariamente
a razão humana. Assim, em última análise, não podemos
compreender qual é o sentido da nossa vida. Um teísta apenas tem a
esperança (do meu ponto de vista, injustificada) de que a sua vida
faça sentido, apesar de o sentido que a sua vida faz, se fizer, ser
insusceptível de ser compreendido pela razão humana. Em resumo, a
resposta teísta é esta: a nossa vida tem sentido, mas não sabemos nem
podemos saber qual é.
Em segundo lugar, do facto de Deus ter reservado para nós uma
finalidade última não se segue que a nossa vida tem sentido na
acepção forte do termo. Como vimos, para que a minha vida tenha
sentido em termos substanciais não basta que tudo o que eu faço se
organize em torno de um conjunto de finalidades últimas; é preciso que
essas finalidades últimas tenham em si valor objectivo — caso
contrário, seremos como psicopatas felizes, que organizam a sua vida em
torno de um dado conjunto de finalidades, sem que no entanto pareça que
se possa dizer que a sua vida tem sentido.
A resposta teísta ao segundo problema é surpreendente e acaba
por nos conduzir ao primeiro. A resposta é a seguinte: viver no
paraíso, junto de Deus, é algo que tem valor em si. E uma vez mais
somos reconduzidos ao primeiro problema: esta ideia é incompreensível.
Por que razão viver eternamente feliz, num júbilo permanente, e junto
de Deus, tem valor objectivo? Se temos a audácia de perguntar por que
razão uma vida ética, como a proposta pelos estóicos ou por
moralistas como Peter Singer, dá sentido objectivo à nossa vida,
estamos obrigados a fazer a mesma pergunta agora. E a resposta teísta
reconduz-nos ao primeiro problema: a vida eterna, no paraíso, junto de
Deus, tem valor objectivo, mas é impossível saber porquê; isso é
algo que só compreenderemos quando lá estivermos. Por outras palavras,
a resposta teísta ao problema do sentido da vida é apenas a esperança
de que um dia iremos dar connosco no paraíso com capacidades superiores
de compreensão, altura em que compreenderemos por que razão tudo fez,
objectivamente, sentido. Em resumo: o teísmo é a esperança de que a
nossa vida faça sentido, apesar de ser impossível compreender que
sentido é esse.
Não me parece que esta perspectiva seja muito satisfatória.
Imagine-se que eu dizia que há leis que explicam o movimento dos
planetas e a queda dos corpos; mas que essas leis são inalcançáveis
pela razão humana. Isto, em si, não explica o movimento dos planetas
nem a queda dos corpos; é apenas uma maneira de nos fazer parar de
pensar acerca disso. Faz-nos parar de pensar porque nos garante que é
impossível descobrir tal coisa, ao mesmo tempo que nos assegura que
basta esperar que compreenderemos tudo, quando mudarmos de nível de
existência — desde que façamos certas coisas, como ser virtuoso e
crer firmemente, contra todos os indícios em contrário, que Deus
existe. Mas se tivermos a audácia de querer continuar a pensar, se
insistirmos em estudar o problema do sentido da vida, que alternativas
nos restam? É isso que iremos ver na próxima secção.
Naturalismo
Uma ideia popular é a de que sem Deus a vida não faz sentido. O
que está subjacente a esta ideia é que a existência de Deus confere
sentido à nossa existência. Como vimos, esta é uma ideia pelo menos
altamente discutível. Logo, parece que não há qualquer conexão entre
a existência de Deus e o sentido da nossa vida. A nossa vida pode fazer
sentido ou não, mas isso parece ser independentemente da existência ou
inexistência de Deus.
Infelizmente, a ideia de que sem Deus a vida não faz sentido tem
tido muito sucesso. A ideia parece ser a seguinte. Se Deus não existe,
se o universo, a vida e nós próprios, somos o resultado da operação
das leis da natureza, então o nosso aparecimento não foi planeado,
não constitui um passo decisivo na prossecução de uma dada finalidade.
Logo, a vida não tem sentido.
Esta conclusão parece ser um pouco apressada. Como vimos, do
facto de a nossa vida ser um passo importante na direcção de uma dada
finalidade só dá sentido à nossa vida, no sentido forte e substancial,
se essa própria finalidade tiver claramente valor. O grande problema do
teísmo é explicar por que razão viver no paraíso ao lado de Deus é
algo que tem intrinsecamente mais valor do que o nada. Mas talvez o
teísta esteja apenas a dizer que a vida tem em si sentido e valor e que
o paraíso é apenas o prolongamento disso, para toda a eternidade;
alternativa esta a que o naturalista não pode deitar mão porque para
ele a vida acaba com a morte.
Esta maneira popular de interpretar o teísmo é insatisfatória,
pois depende da ideia de que a vida humana já tem valor intrínseco,
que é precisamente o que estamos a tentar explicar — e portanto não
podemos limitarmo-nos a pressupô-lo, sob pena de cometermos a falácia
do círculo vicioso. E, como vimos, mesmo a ideia teísta mais
sofisticada não é senão a expressão da esperança de que a vida
tenha sentido, apesar de a razão humana não poder compreender que
sentido é esse.
Outra forma de interpretar a ideia teísta seria esta: a vida só
pode ter sentido se puder de algum modo ser prolongada indefinidamente;
uma vida que acaba no vazio é uma vida sem sentido; e isso é o que
defende o naturalista: que a vida acaba no vazio.
Esta ideia também não é muito prometedora, pois empurra-nos
para o sentido fraco da expressão “sentido da vida”. Tudo o que
esta ideia afirma é que a vida humana faz sentido para nós — porque
é agradável para nós. Mas não garante que a vida humana tenha
realmente sentido de um ponto de vista mais substancial. Ainda que fosse
verdade que prolongar indefinidamente o sentido fraco da nossa vida faz
realmente sentido, isso não garantiria que a vida humana teria sentido
de um ponto de vista mais substancial — isto é, não garantiria que
um universo sem seres humanos, ou a inexistência de universo, fosse
algo que fizesse menos sentido do que um universo com seres humanos.
Todavia, a ideia de que prolongar indefinidamente uma vida que
tem sentido em termos fracos dá sentido a essa vida, é também ela
duvidosa. Pelo contrário, há razões para pensar que a minha vida
seria absurda se eu pudesse viver 200 mil anos — quanto mais uma
eternidade inteira. A não ser que a minha vida tenha valor objectivo,
prolongá-la indefinidamente não parece prolongar indefinidamente o
valor subjectivo da minha vida — pelo contrário, parece uma maneira
segura de retirar todo o sentido subjectivo à minha vida. A morte, ao
contrário do que se pensa, pode muito bem ser o que dá sentido à
vida, em termos subjectivos.
Esta última afirmação pode parecer enigmática e sem dúvida
que precisa de alguma defesa, apesar de ser lateral ao nosso tema. Pois
para os nossos propósitos basta-nos mostrar, como já fizemos, que
prolongar uma vida que apenas tem sentido subjectivo não lhe dá
sentido objectivo. A afirmação mais forte de que prolongar uma vida
com sentido subjectivo lhe tira mesmo esse sentido só posso defendê-la
neste ensaio chamando a atenção para a intuição comum de que a
repetição ad eterno de seja
o que for que tenha apenas valor subjectivo torna isso absurdo. Apesar
de beber chá ser algo que faz pleno sentido, beber chá durante toda a
eternidade é absurdo. Apesar de o estudo fazer pleno sentido, estudar
durante toda a eternidade é absurdo. Numa vida eterna, temos a
oportunidade para fazer tudo durante todo o tempo e há uma forte
intuição a favor da ideia de que tudo perderá o sentido subjectivo
que tinha. É o facto de sermos mortais e transitórios que dá sentido
às diferentes finalidades subjectivas que vamos cultivando ao longo da
vida. Se as pudéssemos cultivar a todas eternamente, nenhuma delas
teria para nós mesmos qualquer valor.
Em conclusão, não há qualquer razão para pensar que a
existência de Deus dá sentido à vida. Se a vida humana tem sentido,
isso não se deve à existência de Deus. Mas poderá a vida humana ter
sentido com base em algo que não Deus? Como pode responder o
naturalista ao problema do sentido da vida?
Devemos começar por notar que o sentido subjectivo da nossa vida
não é de modo algum colocado em causa se formos apenas produtos das
leis da natureza, nem se a nossa existência terminar com a morte. No
primeiro caso, porque, como vimos com o teísmo, a existência de um
desígnio para nós, determinado por Deus, em nada nos ajuda a
compreender o sentido substancial da nossa vida. No segundo caso, porque
prolongar algo que não faz sentido não lhe dá sentido, e porque
prolongar algo que tem sentido subjectivo não lhe dá sentido objectivo
(e pode até retirar-lhe o sentido subjectivo).
Do ponto de vista naturalista, o sentido subjectivo da nossa vida
é perfeitamente claro; uma vida realizada e feliz de uma pessoa tem
sentido para essa pessoa precisamente porque ela é realizada e feliz.
Nem a morte nem a inexistência de um sentido mais substancial podem
retirar sentido subjectivo a uma vida feliz e realizada. Claro que
poderá haver vários modelos de vida feliz e realizada (desde o
consumismo frívolo das sociedades ocidentais contemporâneas até à
vida que procura trazer algum bem ao mundo). Mas não é isso que nos
ocupa neste momento.
A dificuldade é conceber que a vida possa ter sentido de um
ponto de vista mais robusto. Mas talvez seja melhor tentar esclarecer um
pouco mais esta ideia ainda obscura. Afinal, talvez se trate de uma
ideia incoerente; talvez estejamos a exigir à vida o que não se pode
exigir por ser incoerente. Todavia, não penso que a ideia seja
incoerente, apesar de admitir que é obscura. Uma maneira de a
esclarecer um pouco é estabelecer um teste que determine se a nossa
vida faz ou não sentido em termos substanciais. Esse teste pode ter a
forma da seguinte pergunta: “Se os seres humanos não existissem, o
universo teria ou não menos valor do que tem?” Esta pergunta geral
pode aplicar-se a cada um de nós: “Se eu não existisse, o universo
teria ou não menos valor?”
Um aspecto interessante destas perguntas é o facto de elas
clarificarem a pergunta clássica levantada por Leibniz: “Por que
razão há o ser e não o nada?” Esta pergunta pode ser interpretada
como um pedido de explicações para a origem no universo — uma
pergunta que se arrisca realmente a não ter qualquer possibilidade de
resposta. Mas pode ser também interpretada como uma pergunta acerca do
valor do universo. Terá o universo valor, intrinsecamente?
Curiosamente, esta ideia parece-me excessiva, apesar de corresponder à
intuição religiosa de que é preciso que todo o universo tenha um
sentido para que também a nossa vida tenha sentido. Em particular, a
ideia teísta é que o universo tem objectivamente valor, é
objectivamente bom, porque é uma criação divina e porque tudo o que
Deus faz é objectivamente bom. Por que razão o que Deus faz é
objectivamente bom parece-me pouco mais do que uma forma de dramatizar,
numa figura mítica, a esperança humana de que o universo possa ter
algum valor de modo a que também a nossa vida tenha valor. Penso que
isto é excessivo. Não é preciso que todo o universo tenha valor para
que a nossa vida tenha valor, apesar de eu achar que o universo tem
realmente valor, mas não por ter sido criado por Deus.
Uma objecção à pergunta “Se os seres humanos não
existissem, o universo teria ou não menos valor do que tem?” é a
seguinte: a pergunta é incoerente porque se os seres humanos não
existissem não haveria ninguém para atribuir valor a coisa alguma.
Esta objecção não é boa por dois motivos. Em primeiro lugar, ignora
a possibilidade não negligenciável de existirem outros seres
inteligentes no universo, capazes de atribuir valor. Trata-se uma vez
mais de um certo antropomorfismo entranhado. Em segundo lugar, e mais
seriamente, esta objecção está já a presumir o que é preciso ainda
discutir: nomeadamente, a questão de saber se o conceito de valor
objectivo faz algum sentido.
E assim chegámos a uma das questões centrais no que respeita ao
sentido da vida. Repare-se: só podemos conceber que a nossa vida tenha
sentido de um ponto de vista substancial se houver, objectivamente,
valor. Dizer que uma vida humana tem sentido de um ponto de vista
substancial é dizer que essa vida tem objectivamente valor.
Valor
objectivo
A ideia de valor objectivo é hoje impopular, sobretudo em
algumas zonas mais vulneráveis da cultura. A moeda corrente, o dogma
aceite, é a ideia de que todos os valores são subjectivos.
Infelizmente, trata-se de uma ideia encarada como óbvia, e não como
uma doutrina filosófica que é necessário defender com argumentos
sólidos.
Não é possível tratar deste tema aqui. O importante é
sublinhar o seguinte: muitos filósofos defendem a objectividade de
certos domínios de valores — a objectividade da ética, por exemplo,
como Thomas Nagel e Kant. Presumindo que estes filósofos têm razão, a
expressão “valores objectivos” não é, pelo menos, incoerente.
Apesar de não ser obviamente possível defender aqui a
objectividade da ética ou de outros domínios, vale a pena dar uma
ideia de como podemos defender a objectividade de um destes domínios. A
ética é o caso mais claro. O ataque subjectivista à ética é muitas
vezes o resultado de uma concepção errada da objectividade do
conhecimento em geral. Pensa-se que a objectividade da ciência, por
exemplo, consiste na descrição de factos da natureza. E que seria por
esses pretensos factos serem susceptíveis de um determinado tipo de
descrição que a ciência seria objectiva. Mas dado que não há “factos
éticos”, a ética não poderia ser objectiva como a ciência.
Esta concepção tem duas dificuldades: explicar o que é um
facto e mostrar como a objectividade da ciência resulta da existência
desses pretensos factos. Tanto quanto sei, não há respostas
satisfatórias a qualquer destes dois desafios. E a verdade é que há
uma concepção muitíssimo mais clara da objectividade da ciência —
ou de qualquer outro domínio do conhecimento. Essa concepção é a
seguinte: o que explica a objectividade de qualquer domínio do
conhecimento são os processos de prova e justificação usados nesse
domínio de conhecimento, e não a ideia de “espelhar” os
misteriosos factos. É assim que se explica as diferenças entre a
astrologia e a astronomia. Ambas “espelham” em parte os mesmos
factos; mas no caso da astronomia temos processos de prova e
justificação que são por natureza objectivos, o que não temos no
caso da astrologia. Na ciência, há processos de prova e justificação
concebidos precisamente para eliminar a subjectividade; e a ciência é
mais ou menos bem sucedida consoante esses processos eliminam
efectivamente a subjectividade. Assim, uma dada afirmação de um dado
domínio do conhecimento é objectiva se na sua justificação não se
faz apelo a perspectivas pessoais ou humanas, não se faz apelo ao modo
específico como os seres humanos percepcionam o mundo, ou a processos
de racionalização subjectivos e pessoais, e se, pelo contrário, se
apela a razões que qualquer ser pensante consegue reconhecer como
universais.
O que o chamado “método científico” trouxe de
revolucionário à ciência foi precisamente a ideia de um conjunto de
procedimentos concebidos para eliminar a ilusão que resulta da
perspectiva e da subjectividade: as experiências laboratoriais têm de
ser susceptíveis de serem repetidas por terceiros, o mesmo acontecendo
às observações dos fenómenos; os raciocínios têm de ser claros e
claramente justificados; não se pode fazer apelo a experiências
pessoais, místicas ou não; etc. Infelizmente, muitas pessoas pensam
ainda que há uma única coisa que caracteriza “o” método
científico — o recurso à experimentação — e que é isso que
explica a objectividade da ciência. Com este modelo de objectividade é
claro que a ética, por exemplo, cai imediatamente fora do domínio da
objectividade. Mas a verdade é que muitas ciências não podem proceder
a experimentações (não há experimentação possível que demonstre
ou refute directamente o Big Bang ou a teoria da evolução); e não há
um único método científico, mas vários processos concebidos para
eliminar o erro e a ilusão.
Dado este modelo de objectividade, a ética não fica de modo
automático e por definição excluída desse domínio. Pois o que conta
é saber se o pensamento ético é público, se faz apelo a
justificações de carácter não subjectivo, se tem métodos para
controlar o erro e a ilusão que resultam da subjectividade. Dado que a
ética filosófica procede precisamente deste modo, distinguindo-se da
ética religiosa, por exemplo, temos entre as duas o mesmo tipo de
diferença que temos entre a astronomia e a astrologia.
Como é natural não é em dois parágrafos que se pode tratar
tão espinhoso tema; o nosso objectivo é apenas contrariar a opinião
comum de que a ética é necessária e trivialmente subjectiva e mostrar
que essa opinião resulta de uma insuficiente compreensão das bases da
objectividade da ciência. Dado que o que nós queremos é estabelecer
que a vida humana pode ter valor se a ética for objectiva, não temos
de mostrar que a ética é realmente objectiva; basta-nos mostrar que,
sob a hipótese de a ética ser objectiva, a vida humana pode ter
sentido.
O leitor pode pensar
que responder ao problema do sentido da vida invocando a objectividade
da ética não é satisfatório. De algum modo, o que queríamos era que
a vida humana tivesse objectivamente e em si um valor próprio,
independentemente do valor que poderá ter se conduzirmos uma vida
ética. De algum modo, responder ao problema do sentido da vida humana
com a objectividade da ética parece ser uma derrota; não parecia ser
isso que estávamos à espera. Não poderemos conceber que a vida humana
tenha objectivamente valor em si, independentemente do tipo de vida que
se escolhe viver? Na verdade, penso que esta pergunta clarifica o que
há de errado com algumas respostas, nomeadamente religiosas, ao
problema do sentido da vida. Pois procurar que a vida humana tenha em si
valor, independentemente do tipo de vida que um ser humano escolhe,
coloca monstros humanos como Hitler a par de homens como Gandi. A ideia
de que toda a vida humana é sagrada porque foi criada por Deus é
provavelmente uma tentativa de responder a uma pergunta originalmente
deficiente.
Acho difícil de conceber um valor próprio para a vida humana,
que seja independente dos valores que nos são familiares. Não me
parece que consigamos compreender outros valores que não os que nos
são familiares; ter valor é ter valor estético, ético ou cognitivo.
E ainda que possamos querer insistir no valor intrínseco da vida
humana, não vejo como esse valor poderia ser objectivo. No máximo,
posso conceder que a vida de uma pessoa tem valor para essa pessoa; mas
não me parece concebível que tenha valor de um ponto de vista
universal. Se essa vida tiver objectivamente valor, terá de ser porque
os valores éticos ou outros que nos são familiares são, eles mesmos,
objectivos, e porque essa vida cultivou esses valores. Esta ideia parece
corresponder à intuição de que uma vida mesquinha, egocêntrica e
fútil é absurda — isto é, não tem sentido: é objectivamente
destituída de valor, por mais que tenha valor para quem viveu essa
vida.
Vejamos um exemplo, de modo a ilustrar esta ideia. Consideremos a
vida de uma pessoa virtuosa. Essa pessoa trouxe bem ao mundo; pautou a
sua vida por valores como o altruísmo, a temperança, a bondade, a
ajuda ao próximo. Procurou contribuir para resolver problemas do seu
mundo, como a fome ou a miséria, a falta de acesso ao conhecimento ou
à arte. Será que essa vida tem sentido, de um ponto de vista
substancial? A resposta depende de saber se o bem que essa vida trouxe
ao mundo é ele mesmo objectivamente um valor. Se for, então a resposta
à nossa pergunta é clara: um universo sem esta pessoa seria um
universo objectivamente com menos valor do que um universo com esta
pessoa.
É bom reparar que deste ponto de vista o sentido da vida humana
não está inteiramente dado à partida. Isto é, ainda que a pura
existência de uma vida humana possa ter desde logo algum valor
cognitivo, ético ou outro, o valor da vida dessa pessoa dependerá do
que ela própria fizer. A sua vida terá tanto mais sentido quanto
maiores bens cognitivos, éticos ou outros criar. Esta é uma ideia
importante, que explica aliás algumas das nossas intuições quando
avaliamos a vida de um ser humano.
Uma intuição comum é a seguinte ideia: a vida de um grande
artista, de um grande cientista ou de um grande benfeitor, é uma vida
plena de sentido, ao contrário da vida de um psicopata, de um ditador
ou de um terrorista. Esta intuição não é fácil de explicar se não
tivermos maneira de perceber que o sentido da vida é algo que depende
essencialmente do valor objectivo dos bens criados por essa vida; se
continuarmos pensar que a vida humana tem valor em si mesma, a vida de
Gandi tem tanto sentido como a de Hitler — pois ambos acabaram por
morrer, nenhum deles obedeceu a um plano divino, e a existência de
ambos ficou a dever-se às leis da natureza e não à vontade de Deus. E
se tudo o que contasse para o sentido da vida fosse o facto de as
pessoas alcançarem os seus propósitos (o sentido subjectivo da vida),
a vida de um assassino como Hitler teria o mesmo sentido do que a de um
benfeitor como Gandi. Só quando compreendemos que o sentido da vida
humana é uma consequência dos bens objectivos que essa vida trouxe à
existência podemos explicar a intuição comum de que entre a vida de
Hitler e a de Gandi há uma diferença fundamental.
Neste ensaio, propus-me defender a ideia de que se a ética é
objectiva, então uma vida humana pode fazer sentido, na acepção
robusta do termo, se essa vida se pautar pelos valores éticos
correctos. Mas não é difícil ver que nada há de especial na ética.
Se admitirmos que uma vida ética tem sentido, não é menos fácil
admitir que uma vida que promova outros valores objectivos, se os
houver, terá igualmente sentido: valores estéticos ou cognitivos vêm
imediatamente à mente. O que é importante notar é que a vida humana
não parece constituir por si um domínio separado de valores; o valor
de uma vida humana é o resultado dos valores que nos são familiares e
só se essa vida os cultivar.
Conclusão
Diz-se por vezes que, se a vida humana for o resultado de um
conjunto de acasos naturais, e não o produto de um plano divino, então
não terá sentido. É agora fácil ver uma das razões fundamentais
pelas quais este ataque falha o alvo: o sentido da vida humana, na
acepção mais substancial, não é o facto de a vida humana ter uma
finalidade qualquer. Finalidades, todas as vidas têm; a menos que essas
finalidades tenham objectivamente valor, a vida humana não poderá ter
objectivamente valor.
As escolas de filosofia gregas não apresentavam apenas
diferentes perspectivas teóricas sobre os problemas da filosofia.
Apresentavam também diferentes perspectivas sobre como os seres humanos
terão de viver se quiserem que a sua vida faça sentido. Todavia, o
problema do sentido da vida, tanto quanto sei, só foi tratado
obliquamente pela filosofia grega. Cada escola apresentava a sua
doutrina ou doutrinas relativa à eudemonia (ou felicidade), mas a
questão do sentido da vida estava mais presente como pano de fundo do
que como tema explicitamente tratado. No fundo, cada escola presumia que
uma vida eudemónica (ou feliz) resolveria por si o problema do sentido
da vida. Mas esta, como vimos, não é uma suposição pacífica. É em
princípio possível viver uma vida feliz, mas sem qualquer sentido —
se essa vida não cultivar valores objectivos. Todavia, parece realmente
haver algo na psicologia humana que impede as pessoas de serem
inteiramente felizes a menos que a sua vida tenha objectivamente
sentido. Se assim for, esse será um acaso natural feliz, que permitirá
chegar à vida plena de sentido se nos limitarmos a procurar a
verdadeira felicidade.
A perspectiva naturalista aqui apresentada permite-nos
compreender com alguma clareza, espero, em que consiste o sentido da
vida humana. Um universo sem seres humanos é um universo com menos
valor não porque um deus tenha determinado a nossa existência, mas
porque somos seres capazes de criar coisas que têm objectivamente
valor. Somos capazes de criar ciências e obras de arte, filosofia e
bem-estar. Somos também capazes de criar guerras e fomes, ilusões e
falsidades. O sentido da nossa vida não nos foi dado por uma qualquer
divindade; a escolha está nas nossas mãos. Podemos viver uma vida com
sentido procurando atingir finalidades como o conhecimento, o bem moral
ou a beleza. Ou podemos viver uma vida fútil, egoísta, voltada para
nós próprios, cega e insensível ao que se passa à nossa volta, ou
loucamente motivada contra uma parte substancial da humanidade, como é
o caso dos racismo e da intolerância religiosa. É esta escolha
fundamental que caracteriza, precisamente, a condição humana.
Nota
Agradeço as
sugestões e críticas de Pedro Santos, Sara Bizarro e Célia Teixeira
que me ajudaram a melhorar este ensaio.
Bibliografia
para estudantes
·
Blackburn, Simon (1996)
«Sentido da Vida» in Dicionário
de Filosofia. Gradiva, Lisboa, 1997.
·
Nagel, Thomas (1987) «Morte»
in Que Quer Dizer Tudo Isto?
Gradiva, Lisboa, 1995.
·
Nagel, Thomas (1987) «O Sentido
da Vida» in Que Quer Dizer Tudo
Isto? Gradiva, Lisboa, 1995.
·
Singer, Peter (1993) «Porquê
Agir Moralmente?» in Ética
Prática. Gradiva, Lisboa, 2000.
Bibliografia
para professores
·
Hanfling,
Oswald (org.) (1987) Life and
Meaning. Blackwell, Oxford.
·
Nagel,
Thomas (1979) «Death» in Mortal
Questions. Cambridge University Press, Cambridge.
·
Nagel,
Thomas (1979b) «The Absurd» in Mortal
Questions. Cambridge University Press, Cambridge.
·
Nagel,
Thomas (1986) «Birth, Death, and the Meaning of Life» in The
View From Nowhere. Oxford University Press, Oxford.
·
Nagel, Thomas (1997) «O
Naturalismo Evolucionista e o Medo da Religião» in A
Última Palavra. Gradiva,
Lisboa, 1999.
·
Nozick,
Robert (1981) «Philosophy and the Meaning of Life» in Philosophical
Explanations. Clarendon Press, Oxford.
·
Singer,
Peter (1995) How Are We To Live? Oxford
University Press, Oxford.
·
Swinburne, Richard (1996) Será
Que Deus Existe? Gradiva,
Lisboa, 1998.
·
Wiggins,
David (1987) «Truth, Invention and the Meaning of Life» in Needs, Values, Truth. Blackwell, Oxford, 2.a ed., 1991,
pp. 87-137.
Desidério
Murcho
desiderio.murcho@kcl.ac.uk
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