Utilitarismo Moral & Utilitarismo Político
Sara Bizarro
O utilitarismo é normalmente avaliado enquanto teoria moral ou
ética. Enquanto teoria moral, o utilitarismo depara-se com uma
série de paradoxos que dificilmente podem ser ignorados. No entanto,
estes paradoxos só se aplicam a uma versão clássica do utilitarismo.
Se considerarmos uma versão moderna de utilitarismo do tipo da de
Stuart Mill o utilitarismo torna-se uma doutrina coerente e defensável,
senão na sua vertente moral, pelo menos enquanto concepção política.
Neste ensaio vou começar por apresentar a distinção entre
utilitarismo clássico (Bentham & Sidgwick) e utilitarismo moderno
(John Stuart Mill). Depois apontarei algumas das dificuldades com que o
utilitarismo se depara. Em seguida tentarei mostrar como um utilitarismo
moderno do estilo do proposto por Stuart Mill pode ser interpretado
enquanto uma doutrina política evitando os paradoxos
tradicionais. A tese de que o utilitarismo político é uma
proposta coerente permite, entre outras coisas, manter a ideia de que
uma das funções da política é promover o bem-estar humano.
I
O utilitarismo clássico é comummente apresentado como baseado num
princípio deste tipo: "A melhor acção é a que produz a maior
felicidade do maior número". Este princípio foi originalmente
formulado por Francis Hutcheson (1) e mais tarde
adoptado por Jeremy Bentham e Henry Sidgwick. Este princípio é
inconsistente. O exemplo do anfiteatro romano, um entre muitos, mostra
claramente esta inconsistência: Imaginem-se dez mil espectadores que se
juntaram para ver como um ser humano se depara, contra a sua vontade,
com um grupo de leões esfomeados. Como resultado deste espectáculo o
actor sofrerá ferimentos graves, cujo valor negativo será 9.999
unidades de dor. Por outro lado, cada um dos espectadores adquire uma
unidade de prazer sádico, tornando-se assim o valor positivo do
espectáculo 10.000 unidades de prazer. Isto assumindo que, primeiro, o
nível de prazer dos leões se mantém constante; segundo, que o valor
de uma tarde sem este espectáculo seria zero; e, terceiro, que as
consequências a longo praso não alteram o equilíbrio. Nesta
situação o utilitarista clássico seria forçado a defender a
apresentação do espectáculo (2). A inconsistência
ilustrada pelo exemplo do anfiteatro romano mostra como o conceito de
"cálculo da felicidade" é inútil e sem sentido.
Os princípios liberais propostos por John Stuart Mill são um
primeiro passo em direcção a uma concepção de Utilitarismo que não
gere incoerências do tipo acima descrito. Em On Liberty Mill
impede a derivação de situações do tipo "anfiteatro
romano" propondo um princípio segundo o qual o poder só pode ser
exercido sobre um indivíduo, contra a sua vontade, quando este
exercício tem como finalidade prevenir que sejam infligidos abusos
sobre os outros membros da comunidade (3). Neste ponto
seria possível dizer que o "Utilitarismo" de John Stuart Mill
é de facto um Liberalismo. Esta interpretação da posição de Mill é
proposta por Isaiah Berlin (4).
II
O utilitarismo depara-se com uma série de objecções. Uma das
distinções tradicionais é a traçada entre "utilitarismo das
acções" e "utilitarismo das regras". O utilitarismo das
acções defende que cada acção deve ser ponderada de forma que
maximize a felicidade do maior número. O utilitarismo das acções
está aparentemente destinado ao fracasso visto que um cálculo deste
tipo para cada acção moral de cada indivíduo excede em muito as
capacidades humanas (para além de aconselhar acções que nós
consideramos intuitivamente como moralmente erradas e da concepção de
felicidade ser bastante vaga).
O utilitarismo das regras tenta escapar à objecção sobre a
eficácia propondo que não se trata de ponderar cada acção
particular, mas antes de ponderar a construção das regras numa
sociedade como aquelas que proporcionam a felicidade do maior número.
No entanto o utilitarismo das regras também parece ser inconsistente.
J.J.C. Smart apresenta um argumento bastante convincente contra o
Utilitarismo das regras. O argumento é, resumidamente, o seguinte: no
Utilitarismo das regras, as regras são escolhidas porque vão, em
geral, maximizar a felicidade dos indivíduos. No entanto, podem existir
casos particulares em que determinadas acções não maximizarão a
felicidade se seguirem a regra geral. Aqui, o utilitarista encontra um
impasse insuperável pois, manter a regra (cuja única finalidade são
as suas consequências benéficas) é uma mera "veneração
irracional das regras"; por outro lado, não manter a regra reduz o
Utilitarismo das regras ao Utilitarismo dos actos (5).
Se aceitarmos o argumento de Smart somos levados a admitir que, ou
Utilitarismo se reduz ao Utilitarismo dos actos, ou não consegue evitar
a "veneração das regras" e deixa de ser Utilitarismo.
Assim sendo, o utilitarismo depara-se-nos como uma concepção
totalmente incoerente e podemos pensar que o melhor será abandonar de
uma vez por todas qualquer proposta utilitarista, quer no campo da
moral, quer no campo da política. No entanto, não parece ser
desejável descartar a ideia de que uma das funções da política é
promover o bem-estar humano e o utilitarismo é o tipo de posição
política que suporta este tipo de ideia.
III
As discussões acerca do utilitarismo parecem dirigir-se essencialmente
ao utilitarismo clássico e ignorar o utilitarismo moderno de Stuart
Mill. Um utilitarista liberal pode propor uma solução às objecções
apresentadas acima. Um utilitarista liberal pode considerar a parte
liberal da sua doutrina como base para a construção de regras e a
parte utilitária como base para a decisão acerca de acções
públicas onde as regras liberais, ou não se aplicam, ou estão em
conflito. As regras liberais rezumir-se-iam ao respeito por determinados
direitos básicos e a "inviolabilidade" dos indivíduos.
Seguindo esta via ficamos com o utilitarismo dos actos considerado
exclusivamente na sua vertente pública e começando onde acabam as
regras liberais (os direitos invioláveis dos indivíduos). Esta versão
do utilitarismo liberal, ou se preferirmos, do "liberalismo
utilitário" (dependendo se aceitamos que os direitos podem ou não
ser justificados de uma forma utilitária), permite ultrapassar a
situação complicada com que nos deparávamos na secção anterior. A
introdução de uma vertente liberal e de direitos básicos dos
indivíduos bloqueia a maior parte das objecções tradicionais ao
utilitarismo das acções e tratando-se de um utilitarismo dos actos a
objecção de Smart não é relevante.
Mas, existe pelo menos uma objecção ao utilitarismo das acções
que deve ser analisada agora. Segundo D.H. Hodgson o Utilitarismo dos
actos é logicamente auto-refutante (6) porque existem
características essenciais da vida social, como a comunicação, que
dependem de expectativas que não podem ser criadas pelo utilitarismo
das acções. De uma forma simplificada, a ideia de Hodgson é a de que
as relações sociais dependem do respeito pelas promessas e a eficácia
da comunicação depende do pressuposto de que, em geral, as pessoas
dizem a verdade. O utilitarismo dos actos não garante, e
principalmente, não incentiva, estas características, na medida em que
as promessas só devem ser cumpridas se sua "utilidade" se
manter, e a verdade também pode sofrer restrições baseadas em
considerações do tipo utilitário. Esta objecção é, aparentemente,
fatal pelo menos para o utilitarismo moral (7). No
entanto, o seu peso como argumento contra o utilitarismo nas acções
políticas pode ser questionado. De facto, na vida pública, não só
promessas são quebradas e verdades omitidas com bastante frequência,
como também existem justificações comummente aceites para este
procedimento, se ele tiver como finalidade o benefício da comunidade.
Assim, o facto do utilitarismo não incentivar o cumprimento
indiscriminado de promessas e a expressão da verdade, embora fatal ao
nível social, é pelo menos aceitável ao nível político público.
A defesa de um utilitarismo liberal do tipo do proposto por
Stuart-Mill permite apoiar a ideia do Utilitarismo como "filosofia
pública". Aliás, esta ideia já pode ser vagamente encontrada em
John Stuart Mill e versões deste tipo de Utilitarismo foram
recentemente propostas por Goodin (8) e Häyry (9).
A possibilidade do Utilitarismo ser assumido como uma filosofia pública
é evidente na ideia central de que uma acção deve ser julgada pelas
suas consequências e não pelos seus motivos. Esta característica
torna o utilitarismo ideal como filosofia pública na medida em que
permite que as acções públicas só possam ser julgadas pelas
consequências benéficas que elas possam ter para a comunidade e
incentiva uma política da justificação e da responsabilização
pública.
Outro factor a favor do utilitarismo liberal é precisamente a sua
concepção de "felicidade", "prazer", etc. A
indeterminação deste tipo de conceitos é tradicionalmente considerada
como um argumento contra o utilitarismo (ver Utilitarismo). No
entanto, nas sociedades modernas pluralistas é uma vantangem ter como
guia na avaliação das acções políticas um conceito deste tipo. Com
a noção vaga de felicidade criamos espaço de negociação entre
interesses diferentes e conflituantes, respeitando as tendências
pluralistas das sociedades contemporâneas.
O utilitarismo liberal é também adequado às três ideias
fundamentais das sociedades modernas. São elas a ideia de democracia,
progresso e direito à escolha (note-se que são ideias
profundamente radicadas na cultura americana). A democracia
pode ser vista como uma espécie de Utilitarismo aplicado, na medida em
que, sendo o governo da maioria, defenderá os interesses do maior
número (10). Por outro lado, o utilitarismo liberal
permite a justificação de algumas desigualdades em nome do progresso
e do aumento futuro dos benefícios para a sociedade (sempre garantido
os direitos e liberdades básicos). Por último, o utilitarismo permite
uma justificação do direito à escolha na medida em que o papel
da escolha na procura da felicidade é crucial. Aliás, a noção vaga
de felicidade não impede que aceitemos que a variedade das escolhas
aumenta a possibilidade da felicidade, principalmente numa sociedade
pluralista.
Em suma, nas discussões acerca do utilitarismo muitas vezes ataca-se
exclusivamente a sua versão clássica ignorando o utilitarismo liberal
de John Stuart Mill. O utilitarismo liberal das acções escapa
aos paradoxos propostos pelos críticos do utilitarismo. O utilitarismo
das regras reduz-se de facto ao utilitarismo das acções, mas o
utilitarismo liberal é um utilitarismo das acções. O
utilitarismo das acções ao nível moral é ineficaz e tem resultados
contra-intuitivos. O utilitarismo liberal é um utilitarismo político
que pode (deve) ser eficaz e cujos resultados contra-intuitivos são
bloqueados pela sua vertente liberal. O utilitarismo liberal beneficia
ao usar uma concepção vaga de felicidade pois permite o pluralismo de
fins na sociedade e deixa espaço para a negociação de conflitos
mantendo assim a estabilidade social. Por fim, as ideias de democracia,
progresso e de direito à escolha são três ideias enraizadas na
cultura pública que podem ser explicadas em termos utilitaristas. Assim
sendo, o utilitarismo liberal está longe de ser uma proposta
inconsistente e a ideia de que uma das funções da política é
promover o bem-estar humano encontra nele uma justificação teórica
adequada.
Bibliografia:
- ALLISON, Linclon (ed), The Utilitarian Response, The
Comtemporary Viability of Utilitarian Political Philosophy, Sage
Publications, London, 1990
- BENTHAM, Jeremy, Pinciples of Morals and Legislation,
Prometeus Books, 1988
- BERLIN, Isaiah, "John Stuart Mill and the ends of Life" in
Four essays on Liberty, Oxford University Press, 1969.
- G.E. MORE, "Criticism of Mill's "Proof"", in
Principia Etica, chap.3, Cambridge, 1903, citado de GLOVER,
Jonathan (ed.), Utilitarianism and his Critics, Macmillan
Publishing Company, New York, 1990.
- GLOVER, Jonathan (ed.), Utilitarianism and his Critics,
Macmillan Publishing Company, New York, 1990.
- GOODIN, Robert E., Utilitarianism as a Public Philosophy,
Cambridge University Press, 1995
- HÄYRY, Matti, Liberal Utilitarianism and Applied Ethics,
Routledge, London and New York, 1994
- HODGSON, D.H., "Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?", in
Consequences of Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967
- J.J.C. SMART, "An Outline of a System of Utilitarian
Ethics", in J.J.C. Smart and Bernard Williams, Utilitarianism
For and Against, Cambridge, 1973. Citado de GLOVER, Jonathan
(ed.), Utilitarianism and his Critics, Macmillan Publishing
Company, New York, 1990.
- MILL, John Stuart, Utilitarianism, on Liberty, Essay on
Bentham, ed. by Mary Warnok, A meridian book, 1974
- RAWLS, John, "Social Unity and Primary Goods", in
Utilitarianism and Beyond, eds. Amartiya Sen and Bernard
Williams, Cambridge University Press, 1982
- RAWLS, John, Liberalismo Polítco, Editorial Presença,
1993
- SINGER, Peter, "Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?" in
Consequences of Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967, pp.
211-219
- TOCQUEVILLE, Alexis de, Democracy in America, (1835) ed. P.
Bradley, vol.I, Vintage Books, New York, 1945
Notas
(1) Francis Hutchenson, Inquiry into the Original of
our Ideas of Beauty and Virtue (John Derby, for Wlliam and John
Smith et., 1725), Treatise II, cidado de ALLISON, Linclon (ed), The
Utilitarian Response, The Comtemporary Viability of Utilitarian
Political Philosophy, p.1
(2) HÄYRY, Matti, Liberal Utilitarianism and Applied
Ethics, p.88
(3) "The only purpose for which power can be
rightfully exercised over any member of a civilized community, against
his will, is to prevent harm to others. His own good, either physical or
moral, is not a sufficient warent" in On Liberty,
Introdução (MILL, John Stuart, Utilitarianism, on Liberty, Essay on
Bentham, ed. by Mary Warnok,p.135)
(4) BERLIN, Isaiah, "John Stuart Mill and the ends
of Life" in Four essays on Liberty, Oxford University Press,
1969.
(5)"Briefly they [the arguments] boil down to the
accusation of rule worship: the rule utilitarian presumably advocates
his principle because he is ultimatly concerned with human happiness:
why then should he advocate abiding by a rule when he knows that it will
not in the present case be most beneficial to abide it? The reply that
in most cases it is most beneficial to abide by the rule seems
irrelevant. And si is the reply that it would be better that everybody
should abide by the rule that nobody should. This is to suppose that the
only alternative to "everybody does A" is "no one does
A". But clearly we have the possibility "some people do A and
some don't". Hence to refuse to break a generally beneficial rule
in these cases in wi=hich it is not most beneficial to obey it seems
irrational and to be a case of rule worship." J.J.C. SMART,
"An Outline of a System of Utilitarian Ethics", in J.J.C.
Smart and Bernard Williams, Utilitarianism For and Against,
Cambridge, 1973. Citado de GLOVER, Jonathan (ed.), Utilitarianism and
his Critics, Macmillan Publishing Company, New York, 1990., pag. 200
(6) D.H. HODGSON, "Is Act-Utilitarianism
Self-Defeating?", in Consequences of Utilitarianism, Chapter
2, Oxford, 1967
(7) Peter Singer tenta responder a este argumento em,
"Is Act-Utilitarianism Self-Defeating?" in Consequences of
Utilitarianism, Chapter 2, Oxford, 1967, pp. 211-219
(8)GOODIN, Robert E., Utilitarianism as a Public
Philosophy, Cambridge University Press, 1995
(9) HÄYRY, Matti, Liberal Utilitarianism and Applied
Ethics, Routledge, London and New York, 1994
(10) Alexis de Tocqueville, no seu Democracy in
America, diz: "Democratic laws generally tend to promote the
welfare of the greatest possible number for they imanate from the
majority of the citizens, who ar subject to error, but who cannot have
an interest opposed to their own advantage...The advantage of democracy
does not consist...in favoring the prosperity of all, but simply
contributing to the well-being of the greatest number", Democracy
in America, (1835) ed. P. Bradley, vol.I, Vintage Books, New York,
1945, pp.247-9.
Sara Bizarro
sarabizarro@yahoo.com
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