"Na série televisiva, "Os homens que faziam os
filmes", Hitchocock disse, e cito de memória, "Os
psiquiatras acreditam que se traçarmos a origem de um problema até
à sua origem na infância de um individuo, resolvemos esse problema,
mas eu acho que isto não é verdade"". Dervin, Daniel,
Through a Freudian Lens Deeply, p. 47-48
Hitchcock foi muitas vezes acusado de apresentar uma caricatura da
psicanálise nos seus filmes. Mas, esta caricatura pode ser entendia
como um comentário crítico deliberado dirigido à psicanálise. Neste
ensaio vou analisar dois filmes de Hitchcock, o Vertigo e o Psycho
e mostrar que eles podem ser vistos como apresentando argumentos fortes
contra a psicanálise freudiana.
Nos seus primeiros textos Freud defendia a psicanálise enquanto
terapia. Seguindo esta estratégia a avaliação da psicanálise seria
levada a cabo olhando apenas para os seus resultados terapeuticos: se
funciona-se seria uma boa terapia. Desta maneira saber se a psicanálise
era uma boa teoria sobre a mente humana seria uma questão em aberto. A
partir do momento em que ela se mostra como uma terapia eficaz isto
seria suficiente para que possa ser justificadamente usada pelos
médicos.
Mais tarde, e perante algumas falhas terapêuticas da psicanálise, a
estratégia de Freud mudou. Ele passou a defender que mesmo perante
essas falhas terapêuticas a psicanálise era uma boa teoria acerca da
mente humana.
Os dois filmes de Hitchcock de que vou falar confrontam a
psicanálise nas suas duas encarnações: enquanto terapia e enquanto
teoria. À questão de saber se a psicanálise é eficaz enquanto
terapia Hitchcock responde (em Vertigo - A Mulher que Viveu Duas
Vezes) que não só não é eficaz como é mesmo perigosa. À
questão de saber se a psicanálise é uma boa teoria acerca da mente
humana Hitchcock responde (em Psycho) que a psicanálise não
consegue explicar uma das coisas principais às quais se propunha -
explicar os "demónios do irracional" (usando as palavras de Spellbound
- A Casa Encantada).
Vertigo
O plot do filme Vertigo é, resumidamente, o seguinte: Elster quer
livrar-se da sua mulher e prepara uma armadilha a Scotty (James Stewart)
de forma a que este possa ser testemunha do suicídio simulado dela.
Para o fazer contrata uma rapariga e transforma-a numa loira. Elster
constrói uma personagem femenina, Madleine (Kim Novak) irresistível
para Scotty e rodia-a de mistério e neuroses num crescendo que culmina
com o suposto suicídio de Judy do qual Scotty é testemunha. Na
realidade é a mulher de Elster que caí da torre da igreja e não se
trata de um suicídio genuíno. Scotty, sem saber o que realmente se
passou, fica tão perturbado que tem de ser internado numa instituição
psiquiátrica para se recuperar do choque. Quando finalmente recupera
encontra na rua uma rapariga parecida como Madleine, mas morena - Judy.
Scotty transforma esta rapariga de forma a ela ficar semelhante a
Madleine - pinta-lhe o cabelo de loiro, muda-lhe a roupa e a maquiagem.
A semelhança entre Madleine e Judy é tão grande que Scotty começa a
suspeitar que se trata da mesma pessoa. Para descobrir se é esse o caso
Scotty leva Judy à mesma torre onde a cena do suicídio se passou de
forma a repetir a cena anterior e descobrir a verdade -- mas desta vez a
Judy=Madleine morre realmente.
Perante este plot parece que o tópico psicológico principal do
Vertigo é o da "repetição compulsiva". Segundo Freud, a
repetição compulsiva é a tendência para tentar "tornar reais os
traumas psíquicos, para viver uma vez mais uma repetição desses
traumas; se se tratar de uma relação afectiva antiga ela é revivida
de uma forma semelhante com outra pessoa" (Freud: Dictionary of
Psychoanalysis, p. 157). Este fenómeno da repetição compulsiva é
considerado por Freud como um dos fenómenos psíquicos mais fortes da
natureza humana: "Nós podemos postular que o princípio da
repetição compulsiva localiza-se no inconsciente, baseia-se em
actividades instintivas e provavelmente está embutido na própria
natureza dos instintos - é um princípio tão poderoso que consegue
derrubar o princípio do prazer, dando a algumas partes da mente o seu
carácter demoníaco" (Freud: Dictionary of Psychoanalysis, p.
157).
No filme Vertigo a repetição compulsiva pode ser encontrada em
várias formas. A um nível mais óbvio Scotty tenta tranformar a Judy
em Madeleine (pintando-lhe o cabelo de loiro, mudando-lhe as roupas e a
maquiagem) de forma a repetir uma "relação afectiva"
anterior. Mas, parece muito provável que a primeira relação entre
Scotty e Judy já é ela também uma repetição de uma outra relação
afectiva ainda mais antiga. Talvez seja possível que, uma vez analisada
a origem dessa relação, encontremos algo do tipo: a relação que
Scotty tinha com a mãe, ou outra mulher presente na sua infância,
adolescência ou juventude (isto explicaria a facilidade com que Elster
inventa a personagem de Madleine para manipular Scotty -- provavelmente
Elster casou-se com uma ex-paixão de Scotty -- quando os amigos se
encontram Scotty admite não ter conheido a mulher de Elster).
Outra forma de repetição compulsiva presente em Vertigo é
representada na sugestão de que a única forma de Scott curar a
acrofobia (medo das alturas) é de alguma forma repetir a experiência
traumática incicial que a provocou e estar numa situação de
"queda eminente". Este é de facto o método terapeutico
proposto pela psicanálise: não se trata apenas de recordar mas também
de re-viver de alguma maneira o trauma original. De facto a estratégia
da psicanálise é a de utilizar a tendência natural para a repetição
compulsiva com uma finalidade terapeutica. Para levar a cabo este
processo o teraputa assume o papel do objecto do trauma permitindo ao
paciênte repetir todo o processo traumático num ambiente
"seguro":
"O neurótico começa o seu tratamento porque acredita no seu
analista, e acredita nele porque começa a ter determinados
sentimentos em relação a ele. A actitude é de facto - sem meias
palavras - uma atitude de enamoramento. O doente repete, ao
apaixonar-se pelo analista, as experiencias psiquicas pelas quais ele
passou antes; ele tranfere para o analista as atitudes psuquicas que
estava dentro dele, e que estavam intimamente ligadas com a origem da
sua neurose. Ele repete também o seu sistema de defesa anterior e
tenta repetir todas as vicissitudes deste periodo já quase esquecido
na sua relação com o analista. Desta forma ele mostra-nos o
verdadeiro amago da sua vida privada; ele reprodu-la como se se
estivesse a passar na altura, e não se limita a recordá-la".
(Freud: Dictionary of Psychoanalysis, p.7)
Assim, nalguns tipos de neuroses, a doença e a cura são
semelhantes. No filme Vertigo Hitchcock aponta para o problema no amago
deste tipo de método. A repetição de experiências dolorosas pode
levar a mais experiências dolorosas e não há garantia de que isso
tenha algum valor terapeutico. Para além disso, se esse método for
exercido fora do divã do psiquiatra as consequências podem ser
desastrosas: no fim do filme a morte de Judy=Madleine representa a
seriedade das consequências deste método. Scotty utiliza Madleine=Judy
na tentativa de curar a sua neurose -- tanto a da acrofobia como a sua
neurose amorosa e o resultado desta tentativa é a de que embora a
acrofobia desapareça os problemas que ficam são muito mais sérios que
a neurose original.
Isto é o oposto do que Freud prentendia quando desenvolveu o seu
método psicanalítico: "A finalidade de todo o trabalho de Freud
era a de ajudar as pessoas a compreenderem-se a si mesmas, de maneira
que nós não fossemos guiados por forças desconhecidas, vivendo vidas
de descontentamento, ou mesmo de total infelicidade, e tornando os
outros também infelizes, o que também nos prejudica a nós"
(Bruno Bettelheim, Freud and Man's Soul).
Até agora vimos o filme Vertigo como apontando para os problemas
envolvidos na tentativa de utilização da psicanálise sem
supervisionamento médico. O potencial catastrófico desse tipo de
actividade está bem representado nesse filme. Mas o que dizer da
psicanálise quando exercida sob o controlo de um médico? Embora o
filme Vertigo não trate directamente esta utilização da psicanálise
podemos olhar para a crítica que ele faz da ulitização da repetição
compulsiva para curar esse mesmo problema como aplicando-se também a
casos em que um médico está presente. De facto, na primeira
repetição da história amorosa quando Scotty conheçe Madleine ele é
muito mais "saudável" do que na segunda quando ele transforma
Judy e nada garante que no futuro a obcessão de Scotty não se torne
ainda mais profunda. Se isto é assim, o psicanalista está a correr um
risco muito grande ao incentivar a repetição de acontecimentos
traumáticos anteriores. Talvez neste ramo da medecina, tal como
noutros, a solução mais inteligente é a de desistir de fazer com que
os pacientes voltem à "normalidade" e em vez disso
ensinar-lhes e procurar com eles formas de aproveitarem as suas
"a-normalidades" de uma forma positiva. É muito provável que
Hichcock sofresse também de "repetição compulsiva" e isso
está patente, por exemplo, na semelhança de estilo entre os seus
filmes, na fixação no campo dos filmes de suspense, no tipo de
personagens que criava, etc. etc. Mas Hitchcock usou essa tendencia de
uma forma artistica profutiva e isto pode ser considerado a outra
"moral" do filme Vertigo - a perfeição artística do filme
mostra como se pode usar um personalidade obssessiva para contruir uma
obra de arte.
Psycho
Se no filme Vertigo Hitchcock questiona a validade da psicanálise
enquanto terapia, no Psycho ele questiona-a enquanto teoria. Um dos
principios formativos da psicanálise é o de que "não existe
nenhuma distinção qualitativa entre estados de saúde e estados de
neurose" ((Freud, Three Essays, Standard Edition, VII, p. 225). A
psicanálise propõe uma teoria da mente humana e do seu desenvolvimento
que se aplica tanto ás mentes sãs como às mentes perturbadas: "…
as pessoas saudáveis têm de enfrenrar as mesmas dificuldades no
controlo da libido - só que têm mais sucesso do que as não
saudáveis" (idem).
Uma das formas principais de controlar a libido acontece quando a
criança ultrapassa o chamado complexo de Édipo. O rapaz começa o seu
desenvolvimento infantil tendo uma relação muito próxima da sua mãe.
Depois, por ter medo da castração por parte do pai o rapaz ultrapassa
a sua relação amorosa com a mãe e faz parelha com o pai passando a
líbido a ser focada fora da família num contexto cultural mais
alargado. A maior parte das neuroses são o resultado de uma falha em
ultrapassar o complexo de Édipo, mas todas os rapazes passam pelas
mesmas fases. Nas raparigas o medo da castração não existe, por isso
não existe a principal motivação para ultrapassar o complexo de
Édipo e elas mantêm-se mais tempo neste nível de desenvolvimento:
"a rapariga só abandona esta fase muito mais tarde, e mesmo nessa
altura de uma forma apenas parcial" (Freud: A Dictionary of
Psychoanalysis, p. 130-131).
No filme Psycho Hitchcock apresenta um exemplo de um rapaz que não
foi capaz de ultrapassar o seu complexo de Édipo. Norman Bates, o dono
do Motel, é um exemplo de um rapaz que não teve oportunidade de
ultrapassar o complexo de Édipo visto que o seu pai morreu quando ele
era uma criança não podendo incutir o nelo o medo da castração. Por
esse motivo ele teria ficado extremamente ligado à sua mãe de tal
forma que quando ela arranjou um namorado Norman acabou por matá-los
aos dois. Depois desse assassinato Bates transforma-se num serial
killer. Assim, se a história do complexo de Édipo é uma
representação verdadeira da mente humana, este caso seria um exemplo
do pior resultado possível causado por um complexo de Édipo não
resolvido.
O comentário de Hitchcock a este cenário psicanalitico é subtil,
mas muito relevante. Quando o psiquiatra explica as causas do
comportamento do Norman Bates referindo a ligação muito forte que este
tinha com a mãe, algo na explicação soa errado. O que está errado
com a explicação do psiquiatra é precisamente que esta história do
complexo de édipo não explica o comportamento de Norman Bates: muitas
crianças cresceram com pais ausentes e com mães que encontram novos
parceiros e não se tornam por isso assassinos. À questão de saber
porque é que Norman Bates matou a mãe o psiquiatra responde que
"ele já era muito perturdado". Mas porque é que ele era tão
perturbado? Porque o pai não estava presente para o ajudar a
ultrapassar o complexo de Édipo? De novo, este cenário do pai ausente
é comum e não dá origem a assassinos (senão todas as mulheres o
seriam). Como é que a psicanálise explica então o caso Norman Bates?
Convém recordar de novo que uma das finalidades da psicanálise é a
de não postular "nenhuma distinção qualitativa entre condições
de saúde mental e condições neuróticas". Assim sendo o
comportamento do Norman Bates teria de ser explicado apelando a quebras
no desenvolvimento pelo qual todas as pessoas passam. No entanto, os
acontecimentos da vida de Bates, embora trágicos, não são suficientes
para construir uma explicação destas. O monologo do psiquiatra e a
última imagem do Norman Bates assumindo a personalidade de mãe são
uma forma visual de sublinhar este paradoxo psicanalítico.
Podemos então concluir que os filmes Vertigo e Psycho sugerem duas
críticas importante à psicanálise: o Vertigo critica-a enquanto
terapia e o Psycho enquanto teoria. É interessante notar que Hitchcock
apresenta estas críticas utilizando o próprio contexto psicanalítico
na construção dos dois filmes. De facto, a melhor forma de criticar
uma teoria é encontrando dificuldades inerentes à prórpia teoria,
assumindo a sua validade e olhando para as suas consequências. Se
encontramos consequências absurdas ou não explicadas pela teoria,
então algo indica que estamos perante uma má teoria.
É interessante notar também que no final dos dois filmes analisados
a psicanálise é comparada como aquilo aa que ela se propunha a
substituir: o tratamento da natureza humana fornecido pela religião
(principalmente pela religião cristã): "Freud era optimista
pensando que a psicanálise iria um dia substituir a religião na
regulação da parte moral das nossas vidas. Freud pensava que a
civisisação tinha de ultrapassar a adoração infantil pelo Deus
pai" Jefferey B. Abramson, Liberation and its Limits, The Moral and
Political Thought of Freud, p. 99
A tentativa de ultrapassar a religião tinha a melhor das intenções
por parte de Freud - ele queria libertar as pessoas da actitude
relogiosa que ele pensava estar a destruir a vida delas. Hitchcock,
atravez de dois detalhes no fim dos dois filmes, põe em causa os
sucesso da psicanálise enquanto substituindo a religião. No filme
Vertigo aparece uma fereira na torre de onde Judy cai que lança o
comentário final: "Deus tende piedade de nós" (God have
mercy).
No Psycho durante o monologo do psiquiatra está no fundo, na parede,
um candeiro com uma forma semelhante a um crufixo, sugerindo que a
explicação cristã que utiliza conceito como Bem e Mal, Deus e o
Diabo, não foi satisfactóriamente substutuída pela explicação
pseudo-científica do psiquiatra. No plano seguinte Hitchcock posiciona
o psiquiatra por baixo do candeiro de forma a sugerir uma figura
diabólica. Desta forma Hitchcock questiona o sucesso do discurso do
psiquiatra enquanto substituição do discurso religioso.