Autofagia

O aviso tinha sido dado anos antes, mas foi solenemente ignorado. Não uma ou duas vezes, mas três.

O primeiro foi quando crianças deixaram de ir à escola e fazer seus deveres tentando alimentar um bicho virtual: apegando-se a um jogo como jamais fariam com um animal de verdade. O segundo foi quando jovens abandonaram sua vida social, grudados em jogos de um mundo de bits e bytes – namorando com seres de pixels. O terceiro foi quando adultos se afeiçoaram a pequenos robôs de estimação que latiam, miavam, abanavam seus rabos – sem deixar cheiros desagradáveis e pêlos no carpete.

Três vezes o galo cantara, mas moucos ouvidos três vezes o negaram. Agora era tarde. Mas ainda assim ignorávamos nosso destino.

Todos na verdade temeram por algo que jamais viria a acontecer: que os IA substituíssem os seres humanos em seus empregos, em sua criação e, tal qual o monstro de Frankstein, se voltassem contra aquele que os haviam gerado. Superada essa fase de apreensão os IA foram rapidamente absorvidos na sociedade – de início nos afazeres domésticos como limpeza, compras e manutenção, depois na criação dos filhos e em sua educação e então eram amigos, cidadãos de fato e de direito.

Seres perfeitos, de moral incorruptível, inteligência ímpar, raciocínio prático e veloz, praticamente infalíveis. Os seres humanos que haviam se afastado tanto uns dos outros viram neles o par perfeito.

Que mulher mais perfeita do que aquela que se dipõe a ouvir e não possui variações misteriosas de humor? Que homem mais perfeito do que aquele que sempre tinha uma observação espirituosa, um elogio franco, uma palavra amiga, jamais esquecendo das datas importantes e nunca abandonando-a para ir jogar futebol com os amigos?

Éramos reféns dos IA. E não sabíamos. Mas mesmo que soubéssemos, o que haveríamos de fazer?