Um certo bochincho indefinível se fazia ao redor. Pouco a pouco uma luminosidade desfocada se intensificava, intermitentemente interrompida por faixas de sombras que se agitavam para lá e para cá.
Onde estava? Não sabia. O som não se aclarava, continuava como um zumbido constante. A sensação que dominava meu corpo era de estupor (creio). Não me lembro se tentei me levantar, mas se tentei não devo ter insistido.
As sombras ainda se moviam. O que queriam? De repente uma parou. Que dizia? Mais sons abafados. Pareceu gesticular. Outras sombras se assomaram. Tive então a sensação de que as sombras se curvavam em minha direção. Era a mim que olhavam? O círculo de sombras agora deixava apenas um pequeno ponto iluminado no meio de um disco escuro. Um baque surdo. Teria mesmo meu peito ficado mais leve? Não saberia dizer. Meu corpo continuava anestesiado.
'Truvosunotre! – gritou a sombra. Ou foi o que julguei ouvir. Mas creio que eu não ouvira de fato.
As sombras deixavam de ser vultos algo entre o cinza e o negro recortados contra a luz. Adquiriam uma tonalidade rósea. Mas ainda eram formas bidimensionais animadas e pouco mais do que isso. O bochincho recrudesceu por um tempo. Suponho que me mexiam, ou cutucavam, ou talvez me perfurassem e me rasgassem.
Êdecin! Êdecin!
Os sons agora pareciam formar palavras. Mas palavras cujo significado fugiam de meu alcance. Não me esforcei para entendê-las. Talvez por julgar inútil, talvez por supô-las indecifráveis. Não sei. Ora pareciam soar familiares. Por vezes, como línguas alienígenas.
Creio haver movido um dedo nessa hora. (Teria mesmo?) Ou quem sabe houvesse contraído toda a mão. Pode ser que ma tivessem pisado. De todo modo, se me perguntassem onde estava a minha mão eu diria apenas que ela estava na ponta de meu antebraço, mas sem nenhuma idéia clara do que isso significava – repetiria apenas mecanicamente a primeira frase que me viria à mente.
A anestesia cedia agora lugar a um leve formigamento. Enquanto isso as sombras perdiam mais um véu e se definiam como silhuetas humanas. Ainda sem face, mas humanas, definitivamente humanas. O ruído apenas que permanecia essencialmente ininteligível – palavras ou quase-palavras soltas, desconexas.
Sim! Definitivamente eu movera um dedo. E agora outro. E então toda a minha mão esquerda. O que era aquilo que eu tateava? Pedras? Areia? Metal? Vidro? Era difícil saber. Aquelas rosadas sombras humanas pareceram responder ao meu movimento – contraíra eu um dedo e as sombras se moviam. Isso me divertiu por um momento, uma nesga de lógica em meio ao resto que permanecia perturbadoramente caótico e irregular. Mas um pensamento deixou-me novamente suspenso em uma espécie de transe. Meu movimento causava a agitação nas sombras ou as sombras agitadas moviam meus dedos ou ainda alguma causa anterior punha a sacudir essas manchas humanas e minhas falanges? O demônio de Descartes pousara sobre mim.
Eram olhos naquelas sombras? Uma delas, suponho, curvou-se mais. Com aqueles olhos (eram mesmo olhos?) tentavam penetrar-me. Mas talvez a mesma névoa que me impedia de vê-los por completo também me cobrisse parcialmente de suas vistas. Fora a sua mão que agarrei (ou a da sombra que segurara a minha)?
Ãtutat! Ãtutat!
Se fora isso, já não era agora. Pode ser que a tenham agarrado com firmeza, mas agora tinha certeza de que minha mão repousava sobre o chão. Um chão duro e áspero. Irregular. Um cheiro de poeira estava no ar. O barulho aumentara novamente. Alguns sons eram sem dúvida vozes.
Com tantas sombras humanas, um leve gosto de ironia que a primeira pessoa que pude divisar tenha sido eu mesmo – ou uma parte de mim. A névoa cedera mais um pouco. Minha cabeça estava inclinada, meu corpo estirado no chão. À minha frente uma perna. Minha perna. Ao menos deveria ser minha. Sim, estava fora de lugar. Ela realmente não estava onde sempre estivera, onde deveria estar. Onde achava eu que deveria estar.
Os membros inferiores são dividos em quatro partes – dizia uma voz anasalada em alguma aula de anatomia dos meus tempos de estudante na então Tchecoslováquia – quadril, coxa, perna e pé. A região do quadril liga os membros inferiores à coluna vertebral formando a cintura pélvica. Sua estrutura óssea é dada pela fusão do íleo, ísquio e púbis, ao qual se conetam músculos como os glúteos. A coxa, sendo formada por um osso único, o fêmur, e quadríceps como o músculo principal, conecta-se proximalmente com o quadril. Distalmente, a coxa articula-se com a porção proximal da perna formando o joelho. A perna é formada por dois ossos: a tíbia e a fíbula, e tem como um dos músculos mais importantes o gastrocnêmio, que forma a batata da perna. A região de articulação entre a perna e o pé é o tornozelo. O pé é formado pelos tarsos, metatarsos e falanges...
A minha perna direita conectava-se, em conformidade com o que o bom professor ensinara, com o meu pé direito via tornozelo. Mas, estranhamente, por íntegra que de resto estivesse, não se ligava à minha coxa direita por meio do joelho. No lugar dessa articulação, um fiambre de fibras musculares, nervos e pele repuxada. Uma das peças de carne que meu pai separava em seu açougue em Pieštany.
Via agora com nitidez, não a confusão presente, mas a banalidade de uns momentos atrás – quanto tempo? Alguns minutos? Algumas horas? Talvez alguns dias. Mas era a minha última lembrança antes da grande escuridão que se seguiu ao flash de luz.
Um tranqüilo café em Paris. Tão tranqüilo quanto um café pode ser nestes tempos. Um café. Um garoto. Isso, um café parisiense e um garoto. Não é, admito, combinação das mais prosaicas (conquanto não seja tampouco algo improvável de todo). Um garoto, belo garoto, corado, loiro – embora completamente diferente na aparência e no jeito, lembrava-me meu filho, do outro lado do Atlântico com minha ex. Um garoto e uma sacola de papel. Deixou ali ao pé da mesinha ao lado. Foi-se. Que seria? O pacote da madama esquecido na loja? Nunca soube por certo.
Vamos perdê-lo! Vamos perdê-lo! – gritou o médico que me atendia.
Um gentil homem, um brasileiro, suponho, deitou sobre meu rosto uma folha da edição do dia anterior de El País. (Ou foi a brisa, igualmente gentil, do início de outono em Paris.) Pude apenas ler parte da manchete:
Bratislava questa mañana...