A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA
O “ciclo
da borracha” é um evento na história econômica da Amazônia
que enseja farta matéria de estudo. Da atividade extrativa da borracha
decorrem também outros fatos históricos como a conquista
do Acre(1) e a construção
da ferrovia Madeira-Mamoré(2) . Em virtude desses fatos, as fronteiras
amazônicas foram alargadas, surgindo novos estados: Acre e Rondônia.
A seca nas zonas agrestes do sertão do Ceará, Paraíba,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e outros estados nordestinos também
está estreitamente ligada ao ciclo(3)
à medida que os milhares de nordestinos(4) banidos por esse
flagelo formaram o grande contingente de trabalhadores nos seringais do
Pará, Amazonas e Acre.
A espécie que possibilitou
a exploração extrativa e o decorrente fastígio econômico
na Amazônia já era conhecida pelos povos americanos com os
quais os colonizadores europeus tiveram contato. Reis(5)
informa que Cristóvão Colombo, na segunda viagem que fez
à América, viu a goma sendo utilizada pelos índios
do Haiti. Por outro lado, de acordo com Rodrigues, a goma já era
conhecida por antigos povos do México – os Mayás
e os Nauhás. Além do emprego
para necessidade própria, eles estabeleciam o comércio da
goma elástica com outros povos, chegando a promover exportação
em grande quantidade. Segundo o autor:
[...] As cidades do Golpho
do Mexico, pagavam aos Astecas, annualmente,
entre outros, um tributo de 16.000 cargas de gommaelastica,
segundo os melhores historiadores. Entre outros empregos, que lhes davam,
figuravam as bolas para o seu jogo da péla, que se estendeu, entre
algumas das nossas tribusindigenas,
até ao sul do Brazil(6)
.
Ainda segundo Rodrigues(7)
, entre os povos que se espalharam pela América do Sul, uma das
subdivisões da tribo dos Nauhás
que desceu para o rio Amazonas difundiu o uso da goma elástica.
Essa subdivisão tornou-se conhecida como a tribo dos Omáguas.
A forma como os Omáguas extraíam
e preparavam a goma elástica era desconhecida até o século
XVI. Quando as missões portuguesas, em fins do século XVII,
começaram a ter contato com as tribos amazônicas, obtiveram
com essas tribos os produtos que foram enviados para a Europa. Entre esses
produtos estavam os objetos feitos de goma.
As denominações seringueira
e borracha surgiram por um acaso lingüístico. A primeira deveu-se
a uma relação metonímica, uma vez que a seringa sempre
aparecia entre os utensílios fabricados com o látex, levando
os portugueses a denominarem a árvore que produzia esse leite de
seringueira. Quanto à segunda denominação, surgiu
da associação que os portugueses fizeram em relação
aos vasos feitos de goma elástica pelos índios, os quais
lhes pareceram semelhantes aos objetos de couro que utilizavam e denominavam
de borracha. Por extensão de significado, borracha passou a denominar
a substância de que eram feitos os objetos de látex pelos
índios.
Os índios trocavam, com os
missionários portugueses, bolas, seringas ou borrachas por bugigangas.
Os missionários haviam descoberto que a goma era útil para
proteger seus pés da umidade excessiva e cobriam os sapatos com
ela. Posteriormente, passaram a confeccionar os próprios sapatos
da goma. Já em 1755, os calçados de borracha eram utilizados
no Pará e em Lisboa. Aproveitou-se também a capacidade impermeável
da borracha para confeccionar mochilas para os soldados portugueses. Após
Charles Marie de La Condamine enviar para
a França a primeira amostra da goma elástica, em 1735, iniciou-se
o emprego industrial da goma na Europa. As exportações de
sapatos e seringas pelo Pará datam de 1850. Além de objetos
manufaturados, exportava-se também a borracha bruta.
Para que a goma pudesse oferecer
o máximo de rentabilidade à indústria, foi necessário
descobrir uma forma de torná-la resistente ao calor e ao frio e
manter sua elasticidade inalterada. Através do processo de vulcanização,
desenvolvido simultaneamente pelo inglês Thomas Hancook
e pelo americano Charles Goodyear em 1844(8) , isso se tornou possível.
A partir daí, a borracha deixa de representar um pequeno comércio
de manufatura, existente desde os tempos da colônia, e passa a ser
uma matéria-prima requisitada pelo comércio mundial:
A procura intensiva que os mercados
consumidores da Europa e da América passaram a fazer da borracha
silvestre, ante a utilização cada vez maior por que ela se
apresentava aos industriais, animando as solicitações pela
alta dos preços que pagavam , deu um alento fora do comum à
atividade coletora. Onde existia árvore produtora de látex,
registrou-se a aventura. Nas Américas e na África. Ora, de
todas as áreas onde se operava a exploração da floresta
com aquele objetivo, a Amazônia era a que oferecia mais seguras e
amplas possibilidades pela quantidade de seringueiras que parecia fabulosa
pela riqueza que as árvores apresentavam em látex.
A busca às seringueiras pareceu, em conseqüência, sem
fim e negócio de possibilidades ilimitadas [...](9)
.
Os preços em alta da borracha
no mercado internacional atraíram uma corrida à extração
do “ouro negro”. As terras agrárias
foram sendo abandonadas(10) em função
da extração do leite das seringueiras nas regiões
do Marajó, Xingu, Jary, Guamá,
Acará, Moju, Madeira, Solimões,
Purus. A extração do látex também se deu em
terras da Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela.
A falta de estabilidade na terra,
o espírito aventureiro e arrivista que caracterizaram as relações
econômicas no “ciclo da borracha”
são, muitas vezes, apontados como falhas que levaram esse sistema
extrativista da prosperidade econômica à derrocada. As bases
que fundamentavam a lógica desse sistema, entretanto, não
se apoiavam numa economia fixa e sim de transplante. A própria estrutura
física dos seringais demonstrava que o negócio da borracha
exigia apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao
patrão ou seringalista dirigir o processo de extração
do látex baseado numa contabilidade que atava o seringueiro ao trabalho.
As condições de moradia do seringalista e do seringueiro
eram improvisadas de modo que cumprissem seu papel no sistema extrativista.
O tapiri do seringueiro não era exatamente
uma moradia, mas o local de trabalho onde ele transformava, num processo
rudimentar, o látex extraído das seringueiras em pélas
de borracha. O fato de que o sistema não promoveu uma fixação à
terra está na razão de seu funcionamento(11) , pois se tivesse
promovido essa fixação não teria se realizado da forma
que se realizou e os próprios elementos que o integravam não
teriam tido na pirâmide do sistema extrativo a posição
que tiveram. Passaremos a explicitar essas posições a seguir.
As firmas importadoras-exportadoras
e as casas aviadoras
As bases do sistema extrativista da
borracha compunham uma pirâmide em que no topo estavam as
firmas importadoras-exportadoras, representantes
do capital estrangeiro, mais especificamente dos Estados Unidos, Grã-Bretanha,
França e Alemanha. Essas firmas movimentavam o capital de
giro do ciclo, não permitindo nenhuma base sólida à
economia local, como ressalta Antônio Loureiro:
As firmas exportadoras eram, na
realidade, as detentoras do capital movimentador do ciclo, que poderia
ser retirado de circulação, em tempo relativamente rápido,
como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a compra
da matéria-prima e a sua venda em mercado certo, sempre em alta.
A qualquer sinal de crise, o que podia ser previsto com antecedência,
por não terem capital imobilizado, sairiam da região com
relativa rapidez. Os lucros eram investidos no exterior, ou em companhias
de melhoramentos urbanos, garantidos pelo País(12).
As casas aviadoras eram estabelecimentos
comerciais que despachavam mercadorias aos seringais mediante pagamento
em pélas de borracha(13) . Eram
financiadas pelas firmas exportadoras. Funcionavam, a princípio,
exclusivamente, em Belém e depois passaram a se estabelecer em Manaus,
quando o governo do Amazonas decretou o beneficiamento do látex
nessa cidade. Benchimol denomina o período
em que os donos de casas aviadoras estavam estabelecidos e prósperos
em Manaus de “era dos Jotas” numa alusão
ao fato de que a maioria desses aviadores chamavam-seJosés, Joaquins
e Joões. O autor relata que era comum
os aviadores receberem o título honorífico de comendador
como forma de o governo português conferir prestígio àqueles
conterrâneos que haviam conseguido enriquecer fora de sua terra.
O título era concedido pelo governo português e também
pelo Vaticano.
Em alguns casos, a comenda que não
havia sido concedida oficialmente tornava-se corruptela para o comerciante
português rico(14). De todo modo,
o status dos aviadores tinha como base real os seus recursos financeiros
que se mediam pelos bens que conseguiam amealhar, entre eles barcos para
transportar as mercadorias para os seringais, indústrias de alimentos,
fazendas de criação. A importância dos aviadores estava
na dependência que os seringais lhes tinham. Sem os aviamentos, esses
seringais não funcionavam. A relação entre os aviadores
e os seringalistas era, em grande parte, de troca de produtos – produtos
industrializados pelo produto da natureza – apesar de os seringalistas
também receberem em dinheiro o saldo da transação.
A relação de troca repetia-se entre os seringalistas e os
seringueiros. Reproduzia-se, entre o aviador e o seringalista e entre o
seringalista e o seringueiro, a majoração excessiva do valor
dos produtos. Além da majoração dos preços
em geral, o aviador também fornecia aos seringalistas produtos vindos
dos mercados europeus, os quais, mais que encarecer os aviamentos, destoavam
dos hábitos alimentares locais. Leandro Tocantins refere alguns
dos alimentos em conserva que constituíam a alimentação
nos seringais e que contribuíam para o enfraquecimento do organismo
por falta de vitaminas e sais minerais:
[...] Ao esmiuçar-se
as notas de fornecimento para os seringais, há uma revelação
surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva:
carne de bife, carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho,
chouriço, atum, ervilhas, doces enlatados, leite condensado, camarões
em conserva, queijos da Holanda, manteiga francesa, bacalhau português[...]
(15).
O historiador Arthur Reis cita uma
extensa lista de produtos que eram despachados nos aviamentos, dos mais
necessários ao trabalho de extração e para sobrevivência
no meio da floresta, como as tijelinhas
onde se aparava o látex e as armas para defesa, aos requisitados
para outras necessidades, entre elas, o entretenimento, como é o
caso do gramofone. Reis chama a atenção de que os custos
dos aviamentos dependiam da importância dos seringais. Os que possuíam
mais estradas e que, em virtude disso, produziam maior quantidade de látex,
recebiam tratamento prioritário em relação aos seringais
menores. Ressalta também que o custo dos aviamentos tornava-se mais
caro para aqueles seringais que se localizavam em áreas de difícil
acesso, como as dos altos rios ou dos rios encachoeirados. Reis também
destaca que “[...] vezes e mais vezes o seringalista era devedor e não
credor [...].”(16) Isso se dava porque o comércio da borracha
era de risco e daí aviadores e seringalistas estarem sempre preocupados
com a oscilação do preço do produto, especialmente
com a queda excessiva do preço que poderia significar a ruína
financeira, o que de fato ocorreu.
Seringalistas ou coronéis da
borracha
Os seringalistas constituem precisamente
o elo intermediário na pirâmide do ciclo extrativo da borracha.
Ligam-se ao aviador, comprador do produto internamente, e ao produtor ou
extrator, o seringueiro. A imagem clássica do seringalista é
a do homem poderoso, de origem quase sempre nordestina, trajando terno
de linho branco “HJ”, chapéu-chile, utilizando bengala e relógio
de algibeira. Tornou-se também comum a imagem dos seringalistas
como homens rudes e incultos, prestigiados apenas por seu poder econômico.
O historiador Arthur Reis destaca que havia seringalistas que fugiam a
esse padrão, possuindo escolarização e boas maneiras,
adquirindo comportamento requintado através das viagens que faziam,
o qual se ostentava nos ricos palacetes que mandavam construir na cidade.
(17). Pesa também sobre os seringalistas a fama de esbanjadores.
Assim, tem-se a imagem de seringalistas que acendiam charutos cubanos com
notas de quinhentos mil réis. (18) Os seringalistas tornavam-se
senhores em seus domínios em função do sistema
de exploração a que estavam manietados.(19) O débito
dos seringueiros lhes dava amplos poderes sobre eles, inclusive de caçá-los
em fuga e recebê-los de volta com auxílio do poder público.
Como forma de reforçar seu status, os seringalistas obtinham, por
meio de relações políticas, a compra de patentes da
Guarda Nacional. Desse modo, surgiram os “coronéis
de barranco”. Semelhantemente ao que ocorria com os aviadores, em relação
à comenda, a patente dos coronéis era atribuída por
força do hábito de se considerá-los homens importantes,
mesmo que não a tivessem recebido oficialmente. Atuando como potentados,
os seringalistas exerciam força moral, política e mesmo policial
em seus domínios, estabelecendo vínculos de compadres e afilhados,
fazendo conchavos e acordos para apoiar candidatos às eleições
municipais e estaduais, resolvendo brigas, combatendo as invasões
de seringais vizinhos, justiçando criminosos e exercendo poder para
prender e punir seringueiros que fugissem de seu seringal.
O perfil social do seringalista,
que imprimia obediência no seringueiro e o mantinha subalterno, estava
sustentado em uma fraqueza econômica: o capital fictício.
Os seringalistas não possuíam verdadeiramente
capital, dependiam do financiamento de mercadorias das casas aviadoras.
Sem essas mercadorias, não possuíam uma forma de manter o
vínculo empregatício com o seringueiro, arruinando o seu
empreendimento. Para obter lucro num negócio tão instável,
lançavam mão da sobretaxa de preços nas mercadorias
que repassavam aos seringueiros. O lucro que obtinham dessa sobretaxa era
investido na compra de residências nas capitais
Belém ou Manaus, em tratamentos de saúde, em viagens e em
gastos supérfluos.
Mesmo não existindo um vínculo
empregatício legal entre o seringalista e o seringueiro, o primeiro
impunha ao segundo um regulamento, determinando os seus direitos e deveres.
Deve-se ressaltar que a obediência ao regulamento também se
estendia aos gerentes de depósitos, guarda-livros, encarregados
de escrita, empregados de balcão, comboieiros, fiscais, empregados
de campo, diaristas. Um regulamento de 1934, dos seringais de Octávio
Reis, transcrito por Samuel Benchimol em
seu livro Romanceiro da batalha da borracha, esclarece, na abertura, a
necessidade de sua existência.
‘Toda
a nação tem as suas leis para por ellas
reger-se, e se, estas leis não são obedecidas por seus habitantes
será uma nação em completa desorganização,
onde não poderá haver garantias para os que nella
vivem, nem para quem com ella
mantiver negócios.
Sucede o mesmo com toda a sociedade
que tem os seus estatutos para por elles
regerem-se os seus sócios, e se não se obedece a elles
será uma sociedade desbaratada e sem duração. Até
nas casas de famílias, para serem bem organizadas, teem
que obedecer a uma ordem, sem a qual virá logo a desorganização,
e dahi os resultantes desgostos de família,
que infelizmente é o que mais acontece.
Como, pelo que vemos, tudo precisa
de organização e ordem. Um Seringal, por exemplo, onde habitam
centenas e centenas de almas, com diversos costumes, sexos diversos, e
até nacionalidades diversas, não póde
deixar de ter o seu regulamento, pelo qual todos os seus habitantes possam
orientar-se de seus deveres de acordo com as posições e trabalho
de cada um’. (20)
O caráter mercantil do seringal
é substituído em determinada passagem do regulamento pelo
conceito de família. “[...] Precisamos notar que no seringal somos
uma só família no cumprimento de nossos deveres, sem excepção
de raça, crença religiosa, nacionalidade e posição
[...].”(21) Nos deveres dos gerentes encarregados dos depósitos,
o regulamento prescreve na linha “h”
a exata importância do freguês ou seringueiro nas relações “familiares”
do seringal: “[...] o freguez só
é amigo e cumpridor dos seus deveres quando tem saldo.”(22)
A lógica mercantil do lucro é ressaltada na linha “c”,
componente dos deveres dos empregados de balcão:
[...] o productor
perde dois ou treis dias para vir do centro
reclamar uma caixa de fósforo que lhe saia por engano a mais na
sua conta, deixando de produzir muitas vezes por este pequeno engano, borracha
que lhe daria para comprar uma lata, ficando por este facto
mal visto tanto o empregado do balcão como o guarda-livros que forneceu
a nota, e por muitos são ainda considerados de ladrões. Portanto
é preciso a maximaattenção
para não se enganar nem a favor nem contra a
casa. (23)
Nos deveres do extrator, é
explicitada a sua exclusiva condição de trabalho: “[...]
Deve ter em consideração que quando vem para os seringaes
e se colloca como extractor,
é para produzir borracha [...]”(24) e de negociação
do produto de seu trabalho: “(e) fazer as suas transacções
somente com o deposito onde trabalha para engrandecimento deste, e não
o fazer com outro deposito, mesmo que seja da mesma firma, muito menos
com pessoas extranhasà
casa [...] .(25)
Na visão do seringalista,
a seringueira, fonte da riqueza, “hévea-ouro”,
requer o carinho e o respeito do seringueiro pois, diferentemente do que
parece explicitar o regulamento, ela o transforma em homem livre, apesar
de sua ignorância o prender unicamente ao trabalho de extração:
[...] Portanto, devemos ter carinho
para com a seringueira que nos proporciona tantos dias felizes e não sejaes
ingratos, senhores extractores, para com
a árvore bendita que vos proporciona um trabalho remunerador, que
vos livra do chichote do capataz, que faz
do extractor senhor de si proprio,
dono de sua casa, sabendo a que horas que come e que dorme, vivendo em
contacto diario com a sua familia,
tendo o conceito de todos, merecendo a estima do patrão que trata
o bom productor como um de seus melhores
amigos. Pensem e reflictam que não
há outro mister que favoreça ao homem inculto tantas vantagens,
- digo inculto porque para cortar serringa não precisa ser
formado em cousa alguma, basta somente ter caracter
e vergonha para ser um bom seringueiro. (26)
Num regulamento como esse, que Benchimol
ajuíza não ter sido determinado por um seringalista desumano,
apesar de admitir que os tiranos existiam, é possível perceber
que os seringueiros tinham mais deveres do que direitos. As situações
que prenderam o seringueiro ao seringalista na condição de
semi-escravo deram margem à expressão vilanesca
da figura do seringalista na prosa de ficção, como adiante
se verá.
Os seringueiros
Os nordestinos chegaram em grandes
levas à Amazônia, banidos por períodos de seca inclemente
ocorridos no final da década de 1870.(27) A vinda dos imigrantes
nordestinos constituía uma dupla solução para os governos
do Norte e Nordeste: aumentava a oferta de mão-de-obra nos seringais
amazônicos e diminuía o excedente populacional no Nordeste,
que aumentara com o desenvolvimento da economia algodoeira no início
do século XIX. O interesse dos governos amazônicos nessa mão-de-obra,
com o fito de aumentar a extração do látex, levou-os
a organizarem um serviço de propaganda e a promoverem a concessão
de subsídios para gastos de transporte. Desde 1852, a Companhia
de Navegação e Comércio do Amazonas, criada pelo Barão
de Mauá, iniciara uma linha regular de transportes que favoreceria
o transporte de mercadorias e também dos milhares de nordestinos
arrebanhados para o trabalho de coleta do látex.
O deslocamento de pessoas para o
trabalho nos seringais já ocorria antes da imigração
nordestina. Segundo nos informa Rodrigues, os seringalistas pioneiros que
descobriam uma área rica em seringueiras passavam a explorá-la
e convidavam famílias tapuias a trabalharem nesses incipientes seringais,
oferecendo-lhes “avultados lucros”. Tal
como ocorreria mais tarde com os nordestinos, essas famílias recebiam
um adiantamento em mercadorias, roupas e munições para ser
pago com seringa. Os que aceitavam a oferta abandonavam suas criações
e lavouras e acompanhavam o patrão. Ressalta o autor que desse modo “seguiamfamilias
e extinguiram-se povoações inteiras”. (28) Apesar desse quadro,
foi o deslocamento dos nordestinos que transformou radicalmente o contingente
de mão-de-obra nos seringais e alterou a formação
populacional da Amazônia no século XIX. (29)
Há quase uma unanimidade no
motivo que levou o nordestino a abandonar sua terra e rumar para a Amazônia
para trabalhar nos seringais. A seca e, em decorrência dela, a falta
de condições de sobrevivência, justifica a maioria
dos casos. Há, porém algumas situações em que
o êxodo foi motivado pelo gosto da aventura e/ou pelo desejo de fazer
fortuna, sendo que o último motivo, na maioria das vezes, está
consorciado com a condição de flagelado do imigrante, conforme
se nota nesse depoimento de um agricultor, colhido no livro Romanceiro
da batalha da borracha, de Samuel Benchimol:
‘Vimmode
conhecer isso aqui. Todos me diziam que o Amazonas era uma terra de bondade. Se
ajuntava dinheiro com ciscador. Era
só apanhar dinheiro com as mãos e voltar. Então, eu
disse comigo, que eu ainda hei de conhecer essa terra. Gosto do inverno,
sem comparação. Eu estava em União. A moda lá
é vir pro Amazonas. É só o que se fala por lá.
A animação no Ceará é grande. Só se
fala no Amazonas, nas suas riquezas, nas suas facilidades. As coisas por
lá andam mesmo ruim. A terra anda virando pó. Está
tão seca que nem língua de papagaio. Não há
ninguém que podendo vir não vem.
Sempre tive vontade de conhecer
isto aqui. Todo mundo me falava nela. Eu vim antes que fosse tarde demais.
Dois anos que faz seca. Estamos entrando no terceiro. Lá é
assim: um ano só verão, no outro não há inverno.
Não há quem possa viver. (30)
Esse depoimento foi obtido, de acordo
com o que informa o autor, no período de 1942 a 1944, quando o ciclo
já atravessara a crise que levara a queda vertiginosa do preço
da borracha. Ainda assim, permanecem significativos no relato os mesmos
motivos que levaram à imigração a partir da segunda
metade do século XIX.
No auge da imigração,
compreendido no triênio 1898/1900, a realidade com que o transumante
se deparava, a começar pela viagem que o levaria aos seringais,
era desanimadora dos sonhos de riqueza e das promessas de facilidade na
região amazônica. Viajavam nos porões dos barcos conhecidos
como gaiolas ou vaticanos e chatas.(31)
A passagem, segundo o que lhes informavam quando eram recrutados, seria
paga pelo governo. Ao chegarem aos seringais, os brabos,(32) aspirantes
a seringueiros, descobriam que a passagem assim como as despesas de viagem,
as ferramentas necessárias à extração do látex
e os mantimentos para sobrevivência eram o primeiro débito
que contraíam para o trabalho nos seringais. A saga, muitas vezes
inglória, do nordestino na Amazônia, seduzido por um eldorado
que existia na sua fantasia e não na realidade, é sintetizada
por Miranda Neto:
O nordestino na Amazônia
começava sempre a trabalhar endividado, pois via
de regra obrigavam-no a reembolsar os gastos com a totalidade ou
parte da viagem, com os instrumentos de trabalho e outras despesas de instalação.
Para alimentar-se dependia do suprimento que, em regime de estrito monopólio,
realizava
o mesmo empresário com o qual estava endividado e que lhe comprava
o produto. As grandes distâncias e a precariedade de sua situação
financeira reduziam-no a um regime de servidão. Entre as longas
caminhadas na floresta e a solidão das cabanas rudimentares onde
habitava, esgotava-se sua vida, num isolamento que talvez nenhum outro
sistema econômico haja imposto ao homem. Demais, os perigos da floresta
e a insalubridade do meio encurtavam sua vida de trabalho. (33)
Convém
ressaltar que as doenças que vitimaram milhares de nordestinos,
entre elas o beribéri, advieram da própria qualidade de sua
alimentação – geralmente produtos enlatados e pobres em proteínas.
A dependência dessa alimentação que fazia parte dos
produtos aviados pelos seringalistas não era uma decisão
voluntária do seringueiro, constituía, na verdade, peça-chave
no funcionamento do sistema de extração implantado nos seringais,
uma vez que se os seringueiros passassem a se dedicar à agricultura
de subsistência, à caça ou à pesca reduziriam
o trabalho de coleta e beneficiamento primário do látex que
deveriam cumprir rigorosamente na rotina de um dia de trabalho, ocasionando,
portanto, menor produção de borracha.
O historiador Arthur Reis acredita
que as condições a que estava sujeito o seringueiro se justificam
por um processo natural e não como fruto de uma exploração
econômica inescrupulosa:
Tais relações [...]
devem ser explicadas pela barbaria do meio-natureza e do meio-sociedade
em formação. Porque, se o aviador e o seringalista exploram
o seringueiro, este não se comporta melhor. Vinga-se com as armas
de que dispõe e de acordo com o primarismo
de sua inteligência, das coisas e dos homens. Assim é que
negocia às escondidas a produção de sua safra, lesando
o seringalista, entrega-se à madraçaria,
diminuindo a produção ou extraindo látex por
processo proibido para aumentar a purgação e dispor de safra
maior que lhe garantirá saldo-credor. (34)
As relações que procedem
de um processo de espoliação econômica transformam-se,
nessa percepção, num jogo de vingança. A suspeição
sobre a honestidade do seringalista ao lançar a dívida do
seringueiro nos livros mercantis foi, por outro lado, levantada pelo historiador,
ao ressaltar que havia a possibilidade de os seringalistas usarem de expedientes
desonestos para manterem os seringueiros sempre devendo e, em virtude disso,
trabalhando para eles.
O seringueiro, mais do que expropriado
do justo valor do seu trabalho, sofre, na maioria dos casos, a expropriação
do direito de constituir família. Para muitos seringalistas, mulheres
e filhos, tal como a agricultura de subsistência, significavam redução
de produção nos seringais. Daí o ser feminino tornar-se
escasso no momento de alta exploração dos seringais, em oposição
às famílias caboclas que caracterizavam os primeiros tempos
de exploração. A imagem de solidão do seringueiro
e as histórias de seus desregramentos sexuais têm como fonte
de inspiração a ausência ou escassez da mulher no meio
onde se constituíam os seringais.
O auge e a decadência do ciclo
econômico da borracha
Em 1901, a produção
de borracha na Amazônia atingia 29.971 toneladas, quase o dobro do
número atingido em 1891, que fora de 17.790 toneladas. A partir
daí, ocorreu uma produção crescente até 1911,
quando se registrou o ponto mais alto – 44.296
toneladas.(35) A quantidade de borracha produzida não oculta
os sinais de queda nos preços ocorrida de forma mais intensa principalmente
de 1913 em diante, mas é indicadora de que o mercado amazônico
era, até então, o maior mercado produtor de borracha natural
fina.
A fase áurea do ciclo foi
caracterizada pela presença do capital internacional, notadamente
inglês, nas capitais amazônicas. A comprovação
de que os ingleses faziam a linha de frente na comercialização
da borracha ostentava-se na instalação de uma agência
do LondonBankofSouth
America em Manaus.
Alguns acontecimentos ocorridos a
partir de 1850, como a criação da Província do Amazonas
(1850), a introdução da navegação a vapor (1852)
e o decreto imperial que abriu a navegação do rio Amazonas
ao comércio estrangeiro (1871) já prenunciavam os anos de
riqueza promovidos pela exploração da borracha. Segundo Daou,
“[...] entre 1898 e 1900, a borracha foi responsável por 25,7% dos
valores das exportações brasileiras, sendo superada
apenas pelo café (52,7%) ” (36)
O ciclo ocasionou um processo de
transformação urbana durante a segunda metade do século
XIX nas capitais dos estados do Pará e do Amazonas. Esse processo
configurou-se a partir do modelo de modernidade européia. No tocante
à capital paraense, Sarges comenta:
Guardadas as devidas diferenças
em relação às cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo, a cidade de Belém do Pará, apresentaria, assim, a
partir da segunda metade do século XIX, tentativas de adaptação
aos modernos costumes europeus, num profundo contraste com a realidade
amazônica, além das tensões sociais geradas por uma
nova ordem social capitalista emergente. (37)
Sarges pondera
que a iniciativa de modernização ocorrida na cidade de Belém
decorria de uma exigência dos grupos que enriqueciam em função
do comércio da borracha representados por seringalistas, comerciantes
e financistas.(38) As obras realizadas durante o período dos
grandes lucros com a borracha: imponentes edifícios,(39) transformação
da parte subterrânea da cidade através da construção
de redes de esgotos, de distribuição de água e gás
representavam a “expressão
de poder” das classes em ascensão. O capital que proporcionava altos
rendimentos ao erário público e que patrocinava as mudanças
estruturais na cidade, incluindo uma luxuosa e dispendiosa rede de entretenimento
em que se contavam numerosas casas como o Café Chic,
Café da Paz, MolinRouge,
Chat Noir, Café Madri e Café Riche
e as companhias artísticas vindas da França, Rio de Janeiro,
São Paulo, que proporcionavam grande número de espetáculos
no Teatro da Paz para a sociedade paraense, vinha da “formação
de um excedente econômico na região, resultante da extorsão
do seringueiro, dos lucros obtidos pelos ‘aviadores’
e seringalistas [...]” e da “inversão
de capitais (giro e fixo) por pessoas não residentes na região
[...].” (40)
Além de atender às
necessidades de conforto e bem-estar dos grupos enriquecidos com o comércio
da borracha, as transformações urbanísticas da cidade
de Belém faziam-se necessárias em razão do fluxo de
imigrantes nordestinos que não se deslocavam para os seringais e
contribuíam para o aumento populacional na cidade e no estado como
um todo. No período de 1872 a 1920, a população do
estado passou de 257.237 habitantes para 983.507. O fluxo e a permanência
de estrangeiros na capital também exigiram mudanças estruturais
e urbanísticas, entre elas, a criação de cemitérios,
consulados.
O processo intensivo de urbanização
da cidade de Belém deu-se em grande parte durante a intendência
de Antônio Lemos. Em sua administração, a cidade ganhou
pavimentação de ruas, construção de praças
e jardins, usina de incineração de lixo, limpeza urbana e
um código de posturas que prescrevia a correta utilização
e manutenção do espaço urbano reestruturado. (41)
O padrão de urbanidade que
caracterizava as reformas promovidas por Lemos refletia os gastos dos novos
ricos da borracha que se pretendiam habitantes de uma cidade com ares europeus,
preferencialmente franceses. Em sua obra Galvez,
imperador do Acre, Márcio Souza satiriza os hábitos desses
novos ricos, contrastantes com suas origens locais:
Já se disse que Dona Irene
era uma espécie de folclore familiar de Belém. Vinha de uma
família humilde e tomara o coração do prefeito com
suas ancas largas, muita vivacidade e mais de cem quilos de paixão.
Ela procurava se prevenir contra as falhas de sua infância pobre,
mas quase sempre isso não era possível. Mas era uma criatura
necessária à sociedade paraense que assim podia medir por
ela o padrão de suas boas maneiras. Mulher simples e filha do rio
Madeira, tinha se casado com o prefeito quando este ainda era um jovem
estudante de Direito. Casaram escondido
e a família, para evitar um escândalo, embarcou os dois enamorados
para o Rio de Janeiro, onde mantiveram Dona Irene prisioneira por três
anos, aos cuidados de um preceptor francês e uma governanta alemã.
Saiu essa força da natureza que cheirava a patchuli
e pensava que o cometa de Halley era um número de circo. Mas colecionava
queijos raros que era a paixão de sua governanta de Potsdam
(42).
Assim como Belém, Manaus, capital
do Amazonas, também passou por um processo de reestruturação
durante o período áureo da economia da borracha, mudou radicalmente
seu traçado. Sobre o aspecto da cidade até 1880, antes de
sofrer essa reestruturação, Daou
comenta:
Era marcante a precariedade das
ruas estreitas entrecortadas por igarapés, a simplicidade do casario
e a exclusividade do pequeno comércio. A morfologia social era marcada
pelo caráter disperso da população que permanecia
boa parte do ano pelas matas, dedicada às atividades de coleta,
caça e pesca [...].” (43)
Foi durante o governo de Eduardo Ribeiro,
(44) a exemplo do que ocorreu em Belém com Antônio Lemos,
que Manaus ganhou ares de cidade moderna, passando a ser considerada a ‘capital
da borracha’. A cidade sofreu uma planificação, igarapés
foram aterrados, as ruas foram modificadas para facilitar o trânsito.
A água foi canalizada e um reservatório de água construído.
Houve também a conclusão de obras monumentais como o Teatro
Amazonas, o Palácio da Justiça, além da construção
de escolas, pontes. Em 1893, a cidade passa a ter seu Código Municipal
para restringir os comportamentos indesejados e estimular os comportamentos
apropriados a uma cidade moderna. Como ocorrera com Belém, “Manaus
modernizada atendia particularmente aos interesses da burguesia e da elite ‘tradicional’,
vinculada às atividades administrativas e burocráticas [...].”
(45)
É preciso não perder
de vista que o “crescimento” das duas
capitais amazônicas significou o transplante de uma idéia
de progresso, fomentada com o ciclo, e que
não alterou a face colonial da economia amazônica, dependente
das contingências do mercado internacional. Urbanidade, civilização,
progresso, tudo isso parece não se coadunar com trabalho semi-escravo,
condição de vida indigna e animalizada nas estradas dos seringais
e castigos físicos e morais para os que se recusassem a aceitar
as regras do trabalho, como lembra Souza:
[...] A face oficial do látex
era a paisagem urbana, a capital coruscante de luz elétrica, a fortuna
de Manaus, e Belém, onde imensas somas de dinheiro corriam livremente.
O outro lado, o lado terrível, as estradas secretas, estavam bem
protegidas, escondidas no infinito emaranhado de rios, longe das capitais.
O lado festivo, urbano, civilizado, que procurou soterrar as grandes monstruosidades
cometidas nos domínios perdidos, poucas vezes foi perturbado durante
a sua vigência no poder [...]. (46)
A decadência do ciclo econômico
da borracha está inevitavelmente associada ao crescimento da produção
da borracha na Ásia (Malásia, Ceilão, Índia
e Indonésia), resultante da introdução das mudas de
seringueiras levadas para aquele continente pelos ingleses, desenvolvendo
ali um sistema de plantação racional e não mais apenas
natural como ocorria na Amazônia. A produção de borracha
amazônica, que era a maior até então, passou a sofrer
a concorrência da produção asiática, não
resistindo e entrando em colapso. Apesar do otimismo por parte de alguns
exploradores e investidores em relação à produção
da borracha amazônica, ela era, na verdade, insuficiente para atender
a demanda do mercado mundial, o que ocasionava seu alto preço. A
experiência da plantação na Ásia levou mais
de vinte e cinco anos para se desenvolver satisfatoriamente, mas quando,
enfim, a produção se iniciou em 1898 com 1 tonelada e manteve
um nível de produção crescente até atingir
47.618 toneladas em 1913, superando a produção amazônica,
esses resultados compensaram o investimento nas técnicas de melhoramento
do plantio e ofereceram ao mercado mundial abundância do produto
a um baixo custo.
O quadro oferecido pela produção
asiática desmantelou o sistema de exploração
montado na Amazônia. Os investidores abandonaram a região,
levando o capital que movimentava a economia gomífera,
capital que mesmo no período da alta cotação da borracha
amazônica já era drenado para fora da região. A esse
respeito, Antõnio Loureiro informa
que três grupos se beneficiaram com a comercialização
da borracha, sem precisarem se responsabilizar pelos custos da sua produção:
o aparelho estatal que arrecadou 25% de impostos; os exportadores que compravam
a borracha dos aviadores para revendê-la no mercado exterior e os
intermediários, especuladores das bolsas de Nova Iorque e Londres.(47)
Esses lucros reverteram em benefício de outras regiões brasileiras,
ampararam a produção cafeeira do sudeste, serviram para desenvolver
as empresas de plantação asiática.
A decadência do “ciclo
da borracha” e a conseqüente crise em que entraram os estados que
concorreram para aumentar os saldos de divisas do país (48) são
vistas por alguns estudiosos da história econômica da Amazônia
como uma incapacidade dos governantes locais de gerirem competentemente
os recursos da região, revertendo-os para o seu desenvolvimento.
Para Ferreira Filho, essa constatação não deve ser
desviada para outras justificativas de menor importância, como, por
exemplo, o episódio da transplantação das sementes
da heveabrasiliensis
pelo inglês Henry Wickham: (49)
[...] Não creio que tenha
havido escritor, jornalista de profissão ou simples comentarista
ocasional que, ao relembrar o episódio do deslocamento da produção
de borracha para terras asiáticas, não se demore em sovar
e malsinar o tal senhor Henry Wickmam,
acusando-o de imperdoável crime de haver furtado as sementes da ‘heveabrasiliensis’
para servir aos interesses de sua majestade britânica. Essas carpideiras
ainda não compreenderam que, tendo a borracha se convertido em matéria-prima
essencial ao bem-estar da humanidade, não poderia o mundo ficar
escravizado à limitada e imperfeita produção dos seringais
nativos da Amazônia. E que, por meios pacíficos ou violentos,
mais tarde ou mais cedo, as nações industrializadas que a
utilizavam teriam de apoderar-se de suas matrizes. O que deve ser pranteado
é a nossa incúria e falta de iniciativa, deixando de formar
grandes plantações de seringueiras para neutralizar a tremenda
competição que, cinqüenta anos mais tarde, viria arrasar
a economia extrativa da Amazônia [...]. (50)
Benchimol
também questiona se o fato da transplantação da hévea
é realmente essencial para justificar a derrocada do ciclo. O autor
argumenta que apesar de o amazônida
cultivar ressentimento desse fato, a borracha não foi o único
produto natural transplantado do mundo tropical amazônico para outros
países e particularmente para o sudeste asiático. Cita uma
extensa lista de outros produtos, como cacau, milho, batata, tabaco, abacaxi,
caju, goiaba, maracujá, mandioca, macaxeira, açaí,
guaraná e pupunha, além de plantas medicinais, como quinino, chinchona,
ipeca, jaborandi e o capim-santo. Por outro
lado, lembra que a Amazônia brasileira e países da América
tropical também receberam uma grande variedade de produtos da Ásia
e da África, tais como manga, jaca, café, arroz, cana-de-açúcar,
banana, entre outros. Assim, segundo o autor,
[...] os produtos da flora e da
fauna tropical sofreram intenso processo de transplante e migração
entre continentes e países, a partir dos séculos
XV e XVI, durante e após o ciclo dos grandes descobrimentos.
Os colonizadores portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, belgas
e holandeses tiveram papel importante na difusão e propagação
dos produtos tropicais entre os povos e países da Ásia, Oceania,
África e América. Troca e intercâmbio, que muito contribuíram
para ajudar os países tropicais a enriquecer e buscar alternativas
de desenvolvimento, graças ao seu diversificado patrimônio
biológico e genético e pela aclimatação de
novas espécies e cultivares de híbridos mais resistentes
às pragas. (51)
Benchimol
conclui que Henry Wickham não pode
ser condenado por ter levado as sementes de seringueiras sem que se condene
também Francisco de Melo Palheta que, à semelhança
do que fez o inglês, também teve de esconder as plantinhas
de rubiáceas (café), trazendo-as de Caiena para as plantações
do Pará e Amazonas, sendo que o café posteriormente seria
transplantado para São Paulo e outros estados.
Os dois autores – Ferreira Filho
e Benchimol – vêem naturalidade no
episódio da transplantação da hévea
pelos ingleses. O primeiro considera legítima a ação
imperialista inglesa de apoderar-se das sementes da hévea
para auferir monopólio sobre ela. Não parece considerar,
ao referir-se à escravidão do mundo à borracha amazônica,
que os ingleses se beneficiavam com essa escravidão tanto na comercialização
da borracha quanto na venda de seus produtos aos consumidores amazônicos.
Portanto, não se tratava simplesmente de acabar com a escravidão
da humanidade à produção de borracha amazônica,
mas sim de obter um meio de exploração ainda mais lucrativo.
O segundo, por sua vez, encara a transplantação da hévea
pelo prisma da inevitabilidade da transmigração de espécies
vegetais e animais entre os continentes. Na generalidade, pode-se dizer
que o processo ocorrido com a hévea
é o mesmo, mas quando ocorre a sua transplantação,
ela já é um produto natural largamente explorado e de importância
crescente para o mercado mundial. Mais que transplante, levar a semente
da hévea significou assenhorear-se
completamente do monopólio de extração, uma vez que
o capital inglês já era um dos principais financiadores do
negócio da borracha, mas ainda não tinha o completo domínio
de sua fonte de produção ou de extração na
natureza.
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NOTAS
1)
Leandro Tocantins é enfático sobre a criação
do estado do Acre e sua relação com o ciclo da borracha:
“[...] Acre e borracha confundem-se no mesmo processo histórico.
Sem borracha o Acre não seria brasileiro, a menos que surgisse outro
produto-rei capaz de emprestar à terra a mesma fascinação
econômica [...]” (Formação histórica do Acre,
v.1, p. 31).
2)
O tratado de Petrópolis, de 1903, assinado pelo Brasil e a Bolívia,
estabelecia o direito brasileiro sobre os 190.000km2 que compreendiam o
Estado do Acre e também continha uma cláusula prevendo a
construção da ferrovia Madeira-Mamoré. A ferrovia
seguiria às margens do rio Madeira e possibilitaria uma ligação
com a região onde foi fundada a povoação de Porto
Velho, solucionando o problema de transpor o trecho por via marítima,
uma vez que uma seqüência de vinte cachoeiras impossibilitava
a navegabilidade desse trecho. Através da ferrovia, a Bolívia
pretendia atingir um trecho navegável, alcançando o Oceano
Atlântico. A construção da ferrovia seria um negócio
rentável para o americano Percival Farquhar
que conseguiu do governo brasileiro a concessão da estrada por sessenta
anos e a autorização para explorar os seringais localizados
próximos ao eixo da ferrovia. (Cf. Violeta R. LOUREIRO, Estudos
e problemas amazônicos, p. 33-4).
3)
A ficção do ciclo das secas estabelece relações
com a ficção do “ciclo da
borracha”. Num trecho do romance O quinze, de Rachel de Queiroz, a personagem
Chico Bento revela o anseio de uma vida melhor que caracterizou a vinda
de muitos nordestinos para a Amazônia: “A voz lenta e cansada vibrava,
erguia-se, parecia outra, abarcando projetos e ambições.
E a imaginação esperançosa aplanava as estradas difíceis,
esquecia saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do
Amazonas, vencia a natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia
dele rico e vencedor” (s.d., p. 30).
4)
Samuel Benchimol informa que a Amazônia
recebeu, no período de 1877 a 1920, 300.000 imigrantes nordestinos
(Amazônia: formação social e cultural, 1999, p. 136).
Antônio Loureiro, entretanto, observa que esse número poderá
ser ultrapassado através de novos estudos (Antônio J. S. LOUREIRO,
Amazônia: 10.000 anos, p. 167).
5)
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 80.
6)
João B. RODRIGUES, As heveas ou seringueiras:
informações, p. 7-8.
7)
Ibid., p. 7-8.
8)
CF. Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p.
98.
9)
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 104-5.
10)
Sobre esse aspecto, Arthur Reis comenta: “[...] Todas as energias se deslocaram
das tarefas agropecuárias para a extração do látex
das héveas, num regresso vertiginoso
à etapa por que se iniciara o processo econômico da região
[...]” (Ibid., p. 41). Samuel Benchimol
ressalta que, em virtude da febre do enriquecimento fácil, o ciclo
da borracha não poderia promover estabilidade na terra: “[...] Homens
à procura de fortuna, não à procura de terra. Daí
a instabilidade, nervosismo, palpitação. É a borracha
na sua função atrativa, fazendo ‘foco
de apelos’ ou antes, dando ‘apetite de seringa’,
na gíria do imigrante [...] (Romanceiro da batalha da borracha,
p. 38).
11)“As
condições de acumulação e crescimento do capital
na economia da borracha não foram potencializadas de modo a permitir
um avanço da divisão social e técnica da produção. Esta,
limitada pela concentração de interesses na monoprodução
e pelo sistema de aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e
incapaz de transformar qualitativamente o padrão econômico
[...]” (Eloína M. dos SANTOS, A rebelião
de 1924 em Manaus, p. 31)
12) Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia:
10.000 anos, p. 172-3.
13)
Segundo Manoel J. de Miranda Neto, “[...]
dá-se o aviamento quando ‘A’ (aviador) fornece a ‘B’ (aviado) certa
quantidade de mercadorias (bens de consumo e alguns instrumentos de trabalho)
ficando ‘B’ de resgatar a dívida com produtos agrícolas ou
extrativos da próxima safra, em espécie; havendo saldo credor,
‘B’ recebe dinheiro; se o saldo é devedor, ‘B’ fica debitado até
a safra seguinte. Mas ‘B’, uma vez aviado, pode
tornar-se aviador de ‘C’, e assim por diante; o único aviado que
não pode ser aviador é o produtor, isto é, o lavrador
ou o extrator que trabalha na terra ou colhe os produtos da floresta e
que é obrigado a vendê-los a um só comprador (monopsônio).”
(O dilema da Amazônia, p. 54).
14) Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação
social e cultural, p. 73-74.
15)
Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 110.
16)
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 174.
17)
Ibid., p. 224.
18)
Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural,
p. 142.
19)
Enlaçados por um sistema em que se tornavam dependentes dos aviadores
e esses, por sua vez, dos importadores-exportadores,
cabia aos seringalistas relacionarem-se diretamente com o extrator do látex.
Os seringalistas mantinham o seringueiro sob sua rígida dependência.
Para alcançar sua posição, este precisaria passar
por uma longa experiência nos seringais, em muitos casos atravessando
gradativamente as posições de seringueiro, mateiro, comboieiro,
pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de balcão,
arrendatário de estradas e colocações.
20)
Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 97.
21)
Ibid., p. 97.
22)
Ibid., p. 98.
23)
Ibid., p. 99.
24)
Samuel BENCHIMOL, p. 102.
25)
Ibid., p. 102.
26)
Ibid., p. 103-4
27) Antônio J. S. Loureiro
registra que os primeiros imigrantes cearenses e maranhenses chegaram ao
baixo Purus e a Codajás na segunda
metade do século XIX. O município de Lábrea
foi atingido em 1871 pelos imigrantes nordestinos, seguido de Canutama
em 1874, Boca do Acre e Antimari em 1878.
Em 1882, os nordestinos já estavam no Acre boliviano onde fundaram
o seringal Empresa que daria origem a Rio Branco, configurando a ocupação
do território por brasileiros. A penetração no rio
Juruá atingiu Carauari e Eirunepé
em 1890; Cruzeiro do Sul em 1904; Feijó em 1906 e Tarauacá
em 1907 (Amazônia: 10.000 anos, p. 167).
28)
João B. RODRIGUES, As heveas
ou seringueiras: informações, p. 34.
29)
Antônio J. S. Loureiro destaca que com o advento da imigração
nordestina “a cultura amazônica colonial
transformou-se na cultura amazônico-nordestina, resultante do equilíbrio
entre o elemento nativo e o migrante nordestino, que se adaptava e se incorporava
à região, a ponto de serem raros os habitantes do Amazonas,
que não possuam sangue ‘cearense’
em suas veias” (Amazônia: 10.000 anos, p. 156).
30)
Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 141.
31)
Segundo Arthur C. F. Reis, os gaiolas eram navios a vapor construídos
na Inglaterra, Holanda, Dinamarca e Estados Unidos. Apropriados para a
navegação na região amazônica, possuíam
as laterais abertas para possibilitar o arejamento. O nome desses barcos
viera do hábito de os passageiros amarrarem redes uma por cima das
outras semelhando uma gaiola. Os vaticanos eram gaiolas de maior porte
que lembravam aos seringueiros, pelo porte, a residência papal e
daí receberem essa denominação. Ao
gaiola que possuía fundo chato, dava-se o nome de “chata”
ou “chatinha” quando possuía menor
porte. O autor observa que os porões, onde viajavam os passageiros
de terceira classe, cheiravam mal e ostentavam “uma
promiscuidade aterradora [...]” (O seringal e o seringueiro, p. 198-99).
32)“Brabo”
era a alcunha que recebia o nordestino inexperiente na operação
de coleta do látex e desconhecedor das particularidades do meio
em que era recém-chegado. Quando, enfim, dominava as técnicas
do trabalho e adquiria independência para se movimentar no meio,
reconhecendo-lhe os perigos e os segredos, o nordestino passava a receber
a alcunha de “manso” e já podia ser
considerado seringueiro.
33)
Manoel José de MIRANDA NETO, O dilema da Amazônia, p.
45-6.
34)
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 178.
35)
Os números estão divulgados em Arhtur
C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 111.
36)
Ana Maria DAOU, A belleépoque
amazônica, p. 23.
37)
Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzindo a belle-époque
(1870-1912), p. 21.
38)
Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzindo a belle-époque
(1870-1912), p. 21.
39)
Entre essas obras, estão o Teatro da Paz, o Mercado Municipal do Ver-o
Peso, o Palacete Bolonha, o Palacete Pinho.
40)
Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzindo a belle-époque
(1870-1912), p. 83.
41)
Apesar de essas mudanças indicarem que a cidade passava a ter melhores
condições de higiene e a desfrutar de mais opções
de lazer, Maria de N. Sarges destaca que “a
expressão modernizadora de Belém subordina-se mais às
necessidades econômicas do que aos objetivos práticos, ou
seja, ao atendimento das necessidades básicas da população”
(Ibid., p. 138). Acentuando que as medidas saneadoras e remodeladoras do
espaço urbano visavam atender principalmente aos grupos enriquecidos
pelos lucros da borracha, a autora ressalta: “[...] Entretanto, todo esse ‘progresso’
era localizado e dirigido à área central da cidade, onde
habitava a elite local e parte da classe média nascente” (Ibid.,
p. 142).
42)
Márcio SOUZA, Galvez, imperador do
Acre, p. 32-3.
43)
Ana Maria DAOU, A belleépoque
amazônica, p. 34.
44)
Eduardo Ribeiro assumiu o governo provisório em 1890, quando Augusto
Ximenes de Villeroy teve de se afastar
por motivo de doença de sua esposa. Já em 1891, Eduardo Ribeiro
é exonerado do cargo. Em 1892, volta ao governo para um período
de administração que irá até 1896. É
nesse período que Ribeiro realiza as obras que iriam transformar
a vila em cidade (Cf. Agnelo BITTENCOURT,
Dicionário amazonense de biografias: vultos do passado, p.
194-196).
45)
Ana Maria DAOU, A belleépoque
amazônica, p. 36.
46)
Márcio SOUZA, Breve história da Amazônia, p.
139-140.
47)
Antônio J. S. LOUREIRO, A grande crise (1908-1916), p. 15.
48)
É digno de destaque o fato de que em 1910 cada habitante da Amazônia
produzia 14 vezes mais divisas do que os demais brasileiros (Cf. Antônio
J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos, p. 177).
49)
Optamos pela grafia Wickham por ser a mais
freqüente nos textos pesquisados. Dentre esses textos, a grafia Wickmam
é empregada por Arthur Cezar Ferreira Reis, Cosme Ferreira
Filho e Samuel Benchimol.
50)
Cosme FERREIRA FILHO, Amazônia em novas dimensões, p. 155.
51)
Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural,
p. 218-219.
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