A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA


“ciclo da borracha” é um evento na história econômica da Amazônia que enseja farta matéria de estudo. Da atividade extrativa da borracha decorrem também outros fatos históricos como a conquista do Acre(1)  e a construção da ferrovia Madeira-Mamoré(2) . Em virtude desses fatos, as fronteiras amazônicas foram alargadas, surgindo novos estados: Acre e Rondônia. A seca nas zonas agrestes do sertão do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e outros estados nordestinos também está estreitamente ligada ao ciclo(3)  à medida que os milhares de nordestinos(4)  banidos por esse flagelo formaram o grande contingente de trabalhadores nos seringais do Pará, Amazonas e Acre.
A espécie que possibilitou a exploração extrativa e o decorrente fastígio econômico na Amazônia já era conhecida pelos povos americanos com os quais os colonizadores europeus tiveram contato. Reis(5)  informa que Cristóvão Colombo, na segunda viagem que fez à América, viu a goma sendo utilizada pelos índios do Haiti. Por outro lado, de acordo com Rodrigues, a goma já era conhecida por antigos povos do México – os Mayás e os Nauhás. Além do emprego para necessidade própria, eles estabeleciam o comércio da goma elástica com outros povos, chegando a promover exportação em grande quantidade. Segundo o autor:

[...] As cidades do Golpho do Mexico, pagavam aos Astecas, annualmente, entre outros, um tributo de 16.000 cargas de gommaelastica, segundo os melhores historiadores. Entre outros empregos, que lhes davam, figuravam as bolas para o seu jogo da péla, que se estendeu, entre algumas das nossas tribusindigenas, até ao sul do Brazil(6) .

Ainda segundo Rodrigues(7) , entre os povos que se espalharam pela América do Sul, uma das subdivisões da tribo dos Nauhás que desceu para o rio Amazonas difundiu o uso da goma elástica. Essa subdivisão tornou-se conhecida como a tribo dos Omáguas. A forma como os Omáguas extraíam e preparavam a goma elástica era desconhecida até o século XVI. Quando as missões portuguesas, em fins do século XVII, começaram a ter contato com as tribos amazônicas, obtiveram com essas tribos os produtos que foram enviados para a Europa. Entre esses produtos estavam os objetos feitos de goma.
As denominações seringueira e borracha surgiram por um acaso lingüístico. A primeira deveu-se a uma relação metonímica, uma vez que a seringa sempre aparecia entre os utensílios fabricados com o látex, levando os portugueses a denominarem a árvore que produzia esse leite de seringueira. Quanto à segunda denominação, surgiu da associação que os portugueses fizeram em relação aos vasos feitos de goma elástica pelos índios, os quais lhes pareceram semelhantes aos objetos de couro que utilizavam e denominavam de borracha. Por extensão de significado, borracha passou a denominar a substância de que eram feitos os objetos de látex pelos índios.
Os índios trocavam, com os missionários portugueses, bolas, seringas ou borrachas por bugigangas. Os missionários haviam descoberto que a goma era útil para proteger seus pés da umidade excessiva e cobriam os sapatos com ela. Posteriormente, passaram a confeccionar os próprios sapatos da goma. Já em 1755, os calçados de borracha eram utilizados no Pará e em Lisboa. Aproveitou-se também a capacidade impermeável da borracha para confeccionar mochilas para os soldados portugueses. Após Charles Marie de La Condamine enviar para a França a primeira amostra da goma elástica, em 1735, iniciou-se o emprego industrial da goma na Europa. As exportações de sapatos e seringas pelo Pará datam de 1850. Além de objetos manufaturados, exportava-se também a borracha bruta.
Para que a goma pudesse oferecer o máximo de rentabilidade à indústria, foi necessário descobrir uma forma de torná-la resistente ao calor e ao frio e manter sua elasticidade inalterada. Através do processo de vulcanização, desenvolvido simultaneamente pelo inglês Thomas Hancook e pelo americano Charles Goodyear em 1844(8) , isso se tornou possível. A partir daí, a borracha deixa de representar um pequeno comércio de manufatura, existente desde os tempos da colônia, e passa a ser uma matéria-prima requisitada pelo comércio mundial:

A procura intensiva que os mercados consumidores da Europa e da América  passaram a fazer da borracha silvestre, ante a utilização cada vez maior por que ela se apresentava aos industriais, animando as solicitações pela alta dos preços que pagavam , deu um alento fora do comum à atividade coletora. Onde existia árvore produtora de látex, registrou-se a aventura. Nas Américas e na África. Ora, de todas as áreas onde se operava a exploração da floresta com aquele objetivo, a Amazônia era a que oferecia mais seguras e amplas possibilidades pela quantidade de seringueiras que parecia fabulosa pela riqueza que as árvores apresentavam em látex.  A busca às seringueiras pareceu, em conseqüência, sem fim e negócio de possibilidades ilimitadas [...](9) .

Os preços em alta da borracha no mercado internacional atraíram uma corrida à extração do “ouro negro”. As terras agrárias foram sendo abandonadas(10) em função da extração do leite das seringueiras nas regiões do Marajó, Xingu, JaryGuamá, Acará, Moju, Madeira, Solimões, Purus. A extração do látex também se deu em terras da Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela.
A falta de estabilidade na terra, o espírito aventureiro e arrivista que caracterizaram as relações econômicas no “ciclo da borracha” são, muitas vezes, apontados como falhas que levaram esse sistema extrativista da prosperidade econômica à derrocada. As bases que fundamentavam a lógica desse sistema, entretanto, não se apoiavam numa economia fixa e sim de transplante. A própria estrutura física dos seringais demonstrava que o negócio da borracha exigia apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao patrão ou seringalista dirigir o processo de extração do látex baseado numa contabilidade que atava o seringueiro ao trabalho. As condições de moradia do seringalista e do seringueiro eram improvisadas de modo que cumprissem seu papel no sistema extrativista. O tapiri do seringueiro não era exatamente uma moradia, mas o local de trabalho onde ele transformava, num processo rudimentar, o látex extraído das seringueiras em pélas de borracha. O fato de que o sistema não promoveu uma fixação à terra está na razão de seu funcionamento(11) , pois se tivesse promovido essa fixação não teria se realizado da forma que se realizou e os próprios elementos que o integravam não teriam tido na pirâmide do sistema extrativo a posição que tiveram. Passaremos a explicitar essas posições a seguir.

As firmas importadoras-exportadoras e as casas aviadoras

As bases do sistema extrativista da borracha compunham uma pirâmide em que no topo estavam as firmas importadoras-exportadoras, representantes do capital estrangeiro, mais especificamente dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Essas firmas  movimentavam o capital de giro do ciclo, não permitindo nenhuma base sólida à economia local, como ressalta Antônio Loureiro: 

As firmas exportadoras eram, na realidade, as detentoras do capital movimentador do ciclo, que poderia ser retirado de circulação, em tempo relativamente rápido, como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a compra da matéria-prima e a sua venda em mercado certo, sempre em alta. A qualquer sinal de crise, o que podia ser previsto com antecedência, por não terem capital imobilizado, sairiam da região com relativa rapidez. Os lucros eram investidos no exterior, ou em companhias de melhoramentos urbanos, garantidos pelo País(12). 

As casas aviadoras eram estabelecimentos comerciais que despachavam mercadorias aos seringais mediante pagamento em pélas de borracha(13) .  Eram financiadas pelas firmas exportadoras. Funcionavam, a princípio, exclusivamente, em Belém e depois passaram a se estabelecer em Manaus, quando o governo do Amazonas decretou o beneficiamento do látex nessa cidade. Benchimol denomina o período em que os donos de casas aviadoras estavam estabelecidos e prósperos em Manaus de “era dos Jotas” numa alusão ao fato de que a maioria desses aviadores chamavam-seJosésJoaquinsJoões. O autor relata que era comum os aviadores receberem o título honorífico de comendador como forma de o governo português conferir prestígio àqueles conterrâneos que haviam conseguido enriquecer fora de sua terra. O título era concedido pelo governo português e também pelo Vaticano. 
Em alguns casos, a comenda que não havia sido concedida oficialmente tornava-se corruptela para o comerciante português rico(14).  De todo modo, o status dos aviadores tinha como base real os seus recursos financeiros que se mediam pelos bens que conseguiam amealhar, entre eles barcos para transportar as mercadorias para os seringais, indústrias de alimentos, fazendas de criação. A importância dos aviadores estava na dependência que os seringais lhes tinham. Sem os aviamentos, esses seringais não funcionavam. A relação entre os aviadores e os seringalistas era, em grande parte, de troca de produtos – produtos industrializados pelo produto da natureza – apesar de os seringalistas também receberem em dinheiro o saldo da transação. A relação de troca repetia-se entre os seringalistas e os seringueiros. Reproduzia-se, entre o aviador e o seringalista e entre o seringalista e o seringueiro, a majoração excessiva do valor dos produtos. Além da majoração dos preços em geral, o aviador também fornecia aos seringalistas produtos vindos dos mercados europeus, os quais, mais que encarecer os aviamentos, destoavam dos hábitos alimentares locais. Leandro Tocantins refere alguns dos alimentos em conserva que constituíam a alimentação nos seringais e que contribuíam para o enfraquecimento do organismo por falta de vitaminas e sais minerais:

[...] Ao esmiuçar-se as notas de fornecimento para os seringais, há uma revelação surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva: carne de bife, carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho, chouriço, atum, ervilhas, doces enlatados, leite condensado, camarões em conserva, queijos da Holanda, manteiga francesa, bacalhau português[...] (15).

O historiador Arthur Reis cita uma extensa lista de produtos que eram despachados nos aviamentos, dos mais necessários ao trabalho de extração e para sobrevivência no meio da floresta, como as tijelinhas onde se aparava o látex e as armas para defesa, aos requisitados para outras necessidades, entre elas, o entretenimento, como é o caso do gramofone. Reis chama a atenção de que os custos dos aviamentos dependiam da importância dos seringais. Os que possuíam mais estradas e que, em virtude disso, produziam maior quantidade de látex, recebiam tratamento prioritário em relação aos seringais menores. Ressalta também que o custo dos aviamentos tornava-se mais caro para aqueles seringais que se localizavam em áreas de difícil acesso, como as dos altos rios ou dos rios encachoeirados. Reis também destaca que “[...] vezes e mais vezes o seringalista era devedor e não credor [...].”(16)  Isso se dava porque o comércio da borracha era de risco e daí aviadores e seringalistas estarem sempre preocupados com a oscilação do preço do produto, especialmente com a queda excessiva do preço que poderia significar a ruína financeira, o que de fato ocorreu. 

Seringalistas ou coronéis da borracha

Os seringalistas constituem precisamente o elo intermediário na pirâmide do ciclo extrativo da borracha. Ligam-se ao aviador, comprador do produto internamente, e ao produtor ou extrator, o seringueiro. A imagem clássica do seringalista é a do homem poderoso, de origem quase sempre nordestina, trajando terno de linho branco “HJ”, chapéu-chile, utilizando bengala e relógio de algibeira. Tornou-se também comum a imagem dos seringalistas como homens rudes e incultos, prestigiados apenas por seu poder  econômico. O historiador Arthur Reis destaca que havia seringalistas que fugiam a esse padrão, possuindo escolarização e boas maneiras, adquirindo comportamento requintado através das viagens que faziam, o qual se ostentava nos ricos palacetes que mandavam construir na cidade. (17).  Pesa também sobre os seringalistas a fama de esbanjadores. Assim, tem-se a imagem de seringalistas que acendiam charutos cubanos com notas de quinhentos mil réis. (18) Os seringalistas tornavam-se senhores em seus domínios em função  do sistema de exploração a que estavam manietados.(19)  O débito dos seringueiros lhes dava amplos poderes sobre eles, inclusive de caçá-los em fuga e recebê-los de volta com auxílio do poder público. Como forma de reforçar seu status, os seringalistas obtinham, por meio de relações políticas, a compra de patentes da Guarda Nacional. Desse modo, surgiram os “coronéis de barranco”. Semelhantemente ao que ocorria com os aviadores, em relação à comenda, a patente dos coronéis era atribuída por força do hábito de se considerá-los homens importantes, mesmo que não a tivessem recebido oficialmente. Atuando como potentados, os seringalistas exerciam força moral, política e mesmo policial em seus domínios, estabelecendo vínculos de compadres e afilhados, fazendo conchavos e acordos para apoiar candidatos às eleições municipais e estaduais, resolvendo brigas, combatendo as invasões de seringais vizinhos, justiçando criminosos e exercendo poder para prender e punir seringueiros que fugissem de seu seringal. 
O perfil social do seringalista, que imprimia obediência no seringueiro e o mantinha subalterno, estava sustentado em uma fraqueza econômica: o capital fictício. Os seringalistas não possuíam verdadeiramente capital, dependiam do financiamento de mercadorias das casas aviadoras. Sem essas mercadorias, não possuíam uma forma de manter o vínculo empregatício com o seringueiro, arruinando o seu empreendimento. Para obter lucro num negócio tão instável, lançavam mão da sobretaxa de preços nas mercadorias que repassavam aos seringueiros. O lucro que obtinham dessa sobretaxa era investido na compra de residências nas capitais Belém ou Manaus, em tratamentos de saúde, em viagens e em gastos supérfluos
Mesmo não existindo um vínculo empregatício legal entre o seringalista e o seringueiro, o primeiro impunha ao segundo um regulamento, determinando os seus direitos e deveres. Deve-se ressaltar que a obediência ao regulamento também se estendia aos gerentes de depósitos, guarda-livros, encarregados de escrita, empregados de balcão, comboieiros, fiscais, empregados de campo, diaristas. Um regulamento de 1934, dos seringais de Octávio Reis, transcrito por Samuel Benchimol em seu livro Romanceiro da batalha da borracha, esclarece, na abertura, a necessidade de sua existência.

‘Toda a nação tem as suas leis para por ellas reger-se, e se, estas leis não são obedecidas por seus habitantes será uma nação em completa desorganização, onde não poderá haver garantias para os que nella vivem, nem para quem com ella mantiver negócios.
Sucede o mesmo com toda a sociedade que tem os seus estatutos para por elles regerem-se os seus sócios, e se não se obedece  a elles será uma sociedade desbaratada e sem duração. Até nas casas de famílias, para serem bem organizadas, teem que obedecer a uma ordem, sem a qual virá logo a desorganização, e dahi os resultantes desgostos de família, que infelizmente é o que mais acontece.
Como, pelo que vemos, tudo precisa de organização e ordem. Um Seringal, por exemplo, onde habitam centenas e centenas de almas, com diversos costumes, sexos diversos, e até nacionalidades diversas, não póde deixar de ter o seu regulamento, pelo qual todos os seus habitantes possam orientar-se de seus deveres de acordo com as posições e trabalho de cada um’. (20)

O caráter mercantil do seringal é substituído em determinada passagem do regulamento pelo conceito de família. “[...] Precisamos notar que no seringal somos uma só família no cumprimento de nossos deveres, sem excepção de raça, crença religiosa, nacionalidade e posição [...].”(21)  Nos deveres dos gerentes encarregados dos depósitos, o regulamento prescreve na linha “h” a exata importância do freguês ou seringueiro nas relações “familiares” do seringal: “[...] o freguez só é amigo e cumpridor dos seus deveres quando tem saldo.”(22)  A lógica mercantil do lucro é ressaltada na linha “c”, componente dos deveres dos empregados de balcão:

[...] o productor perde dois ou treis dias para vir do centro reclamar uma caixa de fósforo que lhe saia por engano a mais na sua conta, deixando de produzir muitas vezes por este pequeno engano, borracha que lhe daria para comprar uma lata, ficando por este facto mal visto tanto o empregado do balcão como o guarda-livros que forneceu a nota, e por muitos são ainda considerados de ladrões. Portanto é preciso a maximaattenção para não se enganar nem a favor nem contra a 
casa. (23)

Nos deveres do extrator, é explicitada a sua exclusiva condição de trabalho: “[...] Deve ter em consideração que quando vem para os seringaes e se colloca como extractor, é para produzir borracha [...]”(24)  e de negociação do produto de seu trabalho: “(e) fazer as suas transacções somente com o deposito onde trabalha para engrandecimento deste, e não o fazer com outro deposito, mesmo que seja da mesma firma, muito menos com pessoas extranhasà casa [...] .(25)
Na visão do seringalista, a seringueira, fonte da riqueza, “hévea-ouro”, requer o carinho e o respeito do seringueiro pois, diferentemente do que parece explicitar o regulamento, ela o transforma em homem livre, apesar de sua ignorância o prender unicamente ao trabalho de extração:

[...] Portanto, devemos ter carinho para com a seringueira que nos proporciona tantos dias felizes e não sejaes ingratos, senhores extractores, para com a árvore bendita que vos proporciona um trabalho remunerador, que vos livra do chichote do capataz, que faz do extractor senhor de si proprio, dono de sua casa, sabendo a que horas que come e que dorme, vivendo em contacto diario com a sua familia, tendo o conceito de todos, merecendo a estima do patrão que trata o bom productor como um de seus melhores amigos. Pensem e reflictam que não há outro mister que favoreça ao homem inculto tantas vantagens, - digo inculto  porque para cortar serringa não precisa ser formado em cousa alguma, basta somente ter caracter e vergonha para ser um bom seringueiro. (26)

Num regulamento como esse, que Benchimol ajuíza não ter sido determinado por um seringalista desumano, apesar de admitir que os tiranos existiam, é possível perceber que os seringueiros tinham mais deveres do que direitos. As situações que prenderam o seringueiro ao seringalista na condição de semi-escravo deram margem à expressão vilanesca da figura do seringalista na prosa de ficção, como adiante se verá.
 
 

Os seringueiros

Os nordestinos chegaram em grandes levas à Amazônia, banidos por períodos de seca inclemente ocorridos no final da década de 1870.(27)  A vinda dos imigrantes nordestinos constituía uma dupla solução para os governos do Norte e Nordeste: aumentava a oferta de mão-de-obra nos seringais amazônicos e diminuía o excedente populacional no Nordeste, que aumentara com o desenvolvimento da economia algodoeira no início do século XIX. O interesse dos governos amazônicos nessa mão-de-obra, com o fito de aumentar a extração do látex, levou-os a organizarem um serviço de propaganda e a promoverem a concessão de subsídios para gastos de transporte. Desde 1852, a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, criada pelo Barão de Mauá, iniciara uma linha regular de transportes que favoreceria o transporte de mercadorias e também dos milhares de nordestinos arrebanhados para o trabalho de coleta do látex.
O deslocamento de pessoas para o trabalho nos seringais já ocorria antes da imigração nordestina. Segundo nos informa Rodrigues, os seringalistas pioneiros que descobriam uma área rica em seringueiras passavam a explorá-la e convidavam famílias tapuias a trabalharem nesses incipientes seringais, oferecendo-lhes “avultados lucros”. Tal como ocorreria mais tarde com os nordestinos, essas famílias recebiam um adiantamento em mercadorias, roupas e munições para ser pago com seringa. Os que aceitavam a oferta abandonavam suas criações e lavouras e acompanhavam o patrão. Ressalta o autor que desse modo “seguiamfamilias e extinguiram-se povoações inteiras”. (28) Apesar desse quadro, foi o deslocamento dos nordestinos que transformou radicalmente o contingente de mão-de-obra nos seringais e alterou a formação populacional da Amazônia no século XIX. (29)
Há quase uma unanimidade no motivo que levou o nordestino a abandonar sua terra e rumar para a Amazônia para trabalhar nos seringais. A seca e, em decorrência dela, a falta de condições de sobrevivência, justifica a maioria dos casos. Há, porém algumas situações em que o êxodo foi motivado pelo gosto da aventura e/ou pelo desejo de fazer fortuna, sendo que o último motivo, na maioria das vezes, está consorciado com a condição de flagelado do imigrante, conforme se nota nesse depoimento de um agricultor, colhido no livro Romanceiro da batalha da borracha, de Samuel Benchimol:

‘Vimmode conhecer isso aqui. Todos me diziam que o Amazonas era uma terra de bondade. Se ajuntava dinheiro com ciscador. Era só apanhar dinheiro com as mãos e voltar. Então, eu disse comigo, que eu ainda hei de conhecer essa terra. Gosto do inverno, sem comparação. Eu estava em União. A moda lá é vir pro Amazonas. É só o que se fala por lá. A animação no Ceará é grande. Só se fala no Amazonas, nas suas riquezas, nas suas facilidades. As coisas por lá andam mesmo ruim. A terra anda virando pó. Está tão seca que nem língua de papagaio. Não há ninguém que podendo vir não vem. 
Sempre tive vontade de conhecer isto aqui. Todo mundo me falava nela. Eu vim antes que fosse tarde demais. Dois anos que faz seca. Estamos entrando no terceiro. Lá é assim: um ano só verão, no outro não há inverno. Não há quem possa viver. (30)

Esse depoimento foi obtido, de acordo com o que informa o autor, no período de 1942 a 1944, quando o ciclo já atravessara a crise que levara a queda vertiginosa do preço da borracha. Ainda assim, permanecem significativos no relato os mesmos motivos que levaram à imigração a partir da segunda metade do século XIX.
No auge da imigração, compreendido no triênio 1898/1900, a realidade com que o transumante se deparava, a começar pela viagem que o levaria aos seringais, era desanimadora dos sonhos de riqueza e das promessas de facilidade na região amazônica. Viajavam nos porões dos barcos conhecidos como gaiolas ou vaticanos e chatas.(31)  A passagem, segundo o que lhes informavam quando eram recrutados, seria paga pelo governo. Ao chegarem aos seringais, os brabos,(32)  aspirantes a seringueiros, descobriam que a passagem assim como as despesas de viagem, as ferramentas necessárias à extração do látex e os mantimentos para sobrevivência eram o primeiro débito que contraíam para o trabalho nos seringais. A saga, muitas vezes inglória, do nordestino na Amazônia, seduzido por um eldorado que existia na sua fantasia e não na realidade, é sintetizada por Miranda Neto:

O nordestino na Amazônia começava sempre a trabalhar endividado, pois via de regra obrigavam-no a reembolsar os gastos com a totalidade ou parte da viagem, com os instrumentos de trabalho e outras despesas de instalação. Para alimentar-se dependia do suprimento que, em regime de estrito monopólio, realizava o mesmo empresário com o qual estava endividado e que lhe comprava o produto. As grandes distâncias e a precariedade de sua situação financeira reduziam-no a um regime de servidão. Entre as longas caminhadas na floresta e a solidão das cabanas rudimentares onde habitava, esgotava-se sua vida, num isolamento que talvez nenhum outro sistema econômico haja imposto ao homem. Demais, os perigos da floresta e a insalubridade do meio encurtavam sua vida de trabalho. (33)

Convém ressaltar que as doenças que vitimaram milhares de nordestinos, entre elas o beribéri, advieram da própria qualidade de sua alimentação – geralmente produtos enlatados e pobres em proteínas. A dependência dessa alimentação que fazia parte dos produtos aviados pelos seringalistas não era uma decisão voluntária do seringueiro, constituía, na verdade, peça-chave no funcionamento do sistema de extração implantado nos seringais, uma vez que se os seringueiros passassem a se dedicar à agricultura de subsistência, à caça ou à pesca reduziriam o trabalho de coleta e beneficiamento primário do látex que deveriam cumprir rigorosamente na rotina de um dia de trabalho, ocasionando, portanto, menor produção de borracha. 
O historiador Arthur Reis acredita que as condições a que estava sujeito o seringueiro se justificam por um processo natural e não como fruto de uma exploração econômica inescrupulosa:

Tais relações [...] devem ser explicadas pela barbaria do meio-natureza e do meio-sociedade em formação. Porque, se o aviador e o seringalista exploram o seringueiro, este não se comporta melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe e de acordo com o primarismo de sua inteligência, das coisas e dos homens. Assim é que negocia às escondidas a produção de sua safra, lesando o seringalista, entrega-se à madraçaria, diminuindo a produção ou extraindo  látex por processo proibido para aumentar a purgação e dispor de safra maior que lhe garantirá saldo-credor. (34)

As relações que procedem de um processo de espoliação econômica transformam-se, nessa percepção, num jogo de vingança. A suspeição sobre a honestidade do seringalista ao lançar a dívida do seringueiro nos livros mercantis foi, por outro lado, levantada pelo historiador, ao ressaltar que havia a possibilidade de os seringalistas usarem de expedientes desonestos para manterem os seringueiros sempre devendo e, em virtude disso, trabalhando para eles.
O seringueiro, mais do que expropriado do justo valor do seu trabalho, sofre, na maioria dos casos, a expropriação do direito de constituir família. Para muitos seringalistas, mulheres e filhos, tal como a agricultura de subsistência, significavam redução de produção nos seringais. Daí o ser feminino tornar-se escasso no momento de alta exploração dos seringais, em oposição às famílias caboclas que caracterizavam os primeiros tempos de exploração. A imagem de solidão do seringueiro e as histórias de seus desregramentos sexuais têm como fonte de inspiração a ausência ou escassez da mulher no meio onde se constituíam os seringais.
 

O auge e a decadência do ciclo econômico da borracha

Em 1901, a produção de borracha na Amazônia atingia 29.971 toneladas, quase o dobro do número atingido em 1891, que fora de 17.790 toneladas. A partir daí, ocorreu uma produção crescente até 1911, quando se registrou o ponto mais alto – 44.296 toneladas.(35)  A quantidade de borracha produzida não oculta os sinais de queda nos preços ocorrida de forma mais intensa principalmente de 1913 em diante, mas é indicadora de que o mercado amazônico era, até então, o maior mercado produtor de borracha natural fina. 
A fase áurea do ciclo foi caracterizada pela presença do capital internacional, notadamente inglês, nas capitais amazônicas. A comprovação de que os ingleses faziam a linha de frente na comercialização da borracha ostentava-se na instalação de uma agência do LondonBankofSouth America em Manaus.
Alguns acontecimentos ocorridos a partir de 1850, como a criação da Província do Amazonas (1850), a introdução da navegação a vapor (1852) e o decreto imperial que abriu a navegação do rio Amazonas ao comércio estrangeiro (1871) já prenunciavam os anos de riqueza promovidos pela exploração da borracha. Segundo Daou, “[...] entre 1898 e 1900, a borracha foi responsável por 25,7% dos valores das exportações brasileiras, sendo superada apenas pelo café (52,7%) ” (36)
O ciclo ocasionou um processo de transformação urbana durante a segunda metade do século XIX nas capitais dos estados do Pará e do Amazonas. Esse processo configurou-se a partir do modelo de modernidade européia. No tocante à capital paraense, Sarges comenta:

Guardadas as devidas diferenças em relação às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a cidade de Belém do Pará, apresentaria, assim, a partir da segunda metade do século XIX, tentativas de adaptação aos modernos costumes europeus, num profundo contraste com a realidade amazônica, além das tensões sociais geradas por uma nova ordem social capitalista emergente. (37)

Sarges pondera que a iniciativa de modernização ocorrida na cidade de Belém decorria de uma exigência dos grupos que enriqueciam em função do comércio da borracha representados por seringalistas, comerciantes e financistas.(38)  As obras realizadas durante o período dos grandes lucros com a borracha: imponentes edifícios,(39) transformação da parte subterrânea da cidade através da construção de redes de esgotos, de distribuição de água e gás representavam“expressão de poder” das classes em ascensão. O capital que proporcionava altos rendimentos ao erário público e que patrocinava as mudanças estruturais na cidade, incluindo uma luxuosa e dispendiosa rede de entretenimento em que se contavam numerosas casas como o Café Chic, Café da Paz, MolinRouge, Chat Noir, Café Madri e Café Riche e as companhias artísticas vindas da França, Rio de Janeiro, São Paulo, que proporcionavam grande número de espetáculos no Teatro da Paz para a sociedade paraense, vinha da “formação de um excedente econômico na região, resultante da extorsão do seringueiro, dos lucros obtidos pelos ‘aviadores’ e seringalistas [...]” e da “inversão de capitais (giro e fixo) por pessoas não residentes na região [...].” (40)
Além de atender às necessidades de conforto e bem-estar dos grupos enriquecidos com o comércio da borracha, as transformações urbanísticas da cidade de Belém faziam-se necessárias em razão do fluxo de imigrantes nordestinos que não se deslocavam para os seringais e contribuíam para o aumento populacional na cidade e no estado como um todo. No período de 1872 a 1920, a população do estado passou de 257.237 habitantes para 983.507. O fluxo e a permanência de estrangeiros na capital também exigiram mudanças estruturais e urbanísticas, entre elas, a criação de cemitérios, consulados.
O processo intensivo de urbanização da cidade de Belém deu-se em grande parte durante a intendência de Antônio Lemos. Em sua administração, a cidade ganhou pavimentação de ruas, construção de praças e jardins, usina de incineração de lixo, limpeza urbana e um código de posturas que prescrevia a correta utilização e manutenção do espaço urbano reestruturado. (41)
O padrão de urbanidade que caracterizava as reformas promovidas por Lemos refletia os gastos dos novos ricos da borracha que se pretendiam habitantes de uma cidade com ares europeus, preferencialmente franceses. Em sua obra Galvez, imperador do Acre, Márcio Souza satiriza os hábitos desses novos ricos, contrastantes com suas origens locais:

Já se disse que Dona Irene era uma espécie de folclore familiar de Belém. Vinha de uma família humilde e tomara o coração do prefeito com suas ancas largas, muita vivacidade e mais de cem quilos de paixão. Ela procurava se prevenir contra as falhas de sua infância pobre, mas quase sempre isso não era possível. Mas era uma criatura necessária à sociedade paraense que assim podia medir por ela o padrão de suas boas maneiras. Mulher simples e filha do rio Madeira, tinha se casado com o prefeito quando este ainda era um jovem estudante de Direito. Casaram escondido e a família, para evitar um escândalo, embarcou os dois enamorados para o Rio de Janeiro, onde mantiveram Dona Irene prisioneira por três anos, aos cuidados de um preceptor francês e uma governanta alemã. Saiu essa força da natureza que cheirava a patchuli e pensava que o cometa de Halley era um número de circo. Mas colecionava queijos raros que era a paixão de sua governanta de Potsdam (42).
 

Assim como Belém, Manaus, capital do Amazonas, também passou por um processo de reestruturação durante o período áureo da economia da borracha, mudou radicalmente seu traçado. Sobre o aspecto da cidade até 1880, antes de sofrer essa reestruturação, Daou comenta:

Era marcante a precariedade das ruas estreitas entrecortadas por igarapés, a simplicidade do casario e a exclusividade do pequeno comércio. A morfologia social era marcada pelo caráter disperso da população que permanecia boa parte do ano pelas matas, dedicada às atividades de coleta, caça e pesca [...].” (43)

Foi durante o governo de Eduardo Ribeiro, (44) a exemplo do que ocorreu em Belém com Antônio Lemos, que Manaus ganhou ares de cidade moderna, passando a ser considerada a ‘capital da borracha’. A cidade sofreu uma planificação, igarapés foram aterrados,  as ruas foram modificadas para facilitar o trânsito. A água foi canalizada e um reservatório de água construído. Houve também a conclusão de obras monumentais como o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, além da construção de escolas, pontes. Em 1893, a cidade passa a ter seu Código Municipal para restringir os comportamentos indesejados e estimular os comportamentos apropriados a uma cidade moderna.  Como ocorrera com Belém, “Manaus modernizada atendia particularmente aos interesses da burguesia e da elite ‘tradicional’, vinculada às atividades administrativas e burocráticas [...].” (45)
É preciso não perder de vista que o “crescimento” das duas capitais amazônicas significou o transplante de uma idéia de progresso, fomentada com o ciclo, e que não alterou a face colonial da economia amazônica, dependente das contingências do mercado internacional. Urbanidade, civilização, progresso, tudo isso parece não se coadunar com trabalho semi-escravo, condição de vida indigna e animalizada nas estradas dos seringais e castigos físicos e morais para os que se recusassem a aceitar as regras do trabalho, como lembra Souza:

[...] A face oficial do látex era a paisagem urbana, a capital coruscante de luz elétrica, a fortuna de Manaus, e Belém, onde imensas somas de dinheiro corriam livremente. O outro lado, o lado terrível, as estradas secretas, estavam bem protegidas, escondidas no infinito emaranhado de rios, longe das capitais. O lado festivo, urbano, civilizado, que procurou soterrar as grandes monstruosidades cometidas nos domínios perdidos, poucas vezes foi perturbado durante a sua vigência no poder [...]. (46)

A decadência do ciclo econômico da borracha está inevitavelmente associada ao crescimento da produção da borracha na Ásia (Malásia, Ceilão, Índia e Indonésia), resultante da introdução das mudas de seringueiras levadas para aquele continente pelos ingleses, desenvolvendo ali um sistema de plantação racional e não mais apenas natural como ocorria na Amazônia. A produção de borracha amazônica, que era a maior até então, passou a sofrer a concorrência da produção asiática, não resistindo e entrando em colapso. Apesar do otimismo por parte de alguns exploradores e investidores em relação à produção da borracha amazônica, ela era, na verdade, insuficiente para atender a demanda do mercado mundial, o que ocasionava seu alto preço. A experiência da plantação na Ásia levou mais de vinte e cinco anos para se desenvolver satisfatoriamente, mas quando, enfim, a produção se iniciou em 1898 com 1 tonelada e manteve um nível de produção crescente até atingir  47.618 toneladas em 1913, superando a produção amazônica, esses resultados compensaram o investimento nas técnicas de melhoramento do plantio e ofereceram ao mercado mundial abundância do produto a um baixo custo.
O quadro oferecido pela produção asiática desmantelou o sistema de exploração  montado na Amazônia. Os investidores abandonaram a região, levando o capital que movimentava a economia gomífera, capital que mesmo no período da alta cotação da borracha amazônica já era drenado para fora da região. A esse respeito, Antõnio Loureiro informa que três grupos se beneficiaram com a comercialização da borracha, sem precisarem se responsabilizar pelos custos da sua produção: o aparelho estatal que arrecadou 25% de impostos; os exportadores que compravam a borracha dos aviadores para revendê-la no mercado exterior e os intermediários, especuladores das bolsas de Nova Iorque e Londres.(47)  Esses lucros reverteram em benefício de outras regiões brasileiras, ampararam a produção cafeeira do sudeste, serviram para desenvolver as empresas de plantação asiática.
A decadência do “ciclo da borracha” e a conseqüente crise em que entraram os estados que concorreram para aumentar os saldos de divisas do país (48) são vistas por alguns estudiosos da história econômica da Amazônia como uma incapacidade dos governantes locais de gerirem competentemente os recursos da região, revertendo-os para o seu desenvolvimento. Para Ferreira Filho, essa constatação não deve ser desviada para outras justificativas de menor importância, como, por exemplo, o episódio da transplantação das sementes da heveabrasiliensis pelo inglês Henry Wickham: (49)

[...] Não creio que tenha havido escritor, jornalista de profissão ou simples comentarista ocasional que, ao relembrar o episódio do deslocamento da produção de borracha para terras asiáticas, não se demore em sovar e malsinar o tal senhor Henry Wickmam, acusando-o de imperdoável crime de haver furtado as sementes da ‘heveabrasiliensis’ para servir aos interesses de sua majestade britânica. Essas carpideiras ainda não compreenderam que, tendo a borracha se convertido em matéria-prima essencial ao bem-estar da humanidade, não poderia o mundo ficar escravizado à limitada e imperfeita produção dos seringais nativos da Amazônia. E que, por meios pacíficos ou violentos, mais tarde ou mais cedo, as nações industrializadas que a utilizavam teriam de apoderar-se de suas matrizes. O que deve ser pranteado é a nossa incúria e falta de iniciativa, deixando de formar grandes plantações de seringueiras para neutralizar a tremenda competição que, cinqüenta anos mais tarde, viria arrasar a economia extrativa da Amazônia [...]. (50)

Benchimol também questiona se o fato da transplantação da hévea é realmente essencial para justificar a derrocada do ciclo. O autor argumenta que apesar de o amazônida cultivar ressentimento desse fato, a borracha não foi o único produto natural transplantado do mundo tropical amazônico para outros países e particularmente para o sudeste asiático. Cita uma extensa lista de outros produtos, como cacau, milho, batata, tabaco, abacaxi, caju, goiaba, maracujá, mandioca, macaxeira, açaí, guaraná e pupunha, além de plantas medicinais, como quinino, chinchona, ipeca, jaborandi e o capim-santo. Por outro lado, lembra que a Amazônia brasileira e países da América tropical também receberam uma grande variedade de produtos da Ásia e da África, tais como manga, jaca, café, arroz, cana-de-açúcar, banana, entre outros. Assim, segundo o autor,

[...] os produtos da flora e da fauna tropical sofreram intenso processo de transplante e migração entre continentes e países, a partir dos séculos XV e XVI, durante e após o ciclo dos grandes descobrimentos. Os colonizadores portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, belgas e holandeses tiveram papel importante na difusão e propagação dos produtos tropicais entre os povos e países da Ásia, Oceania, África e América. Troca e intercâmbio, que muito contribuíram para ajudar os países tropicais a enriquecer e  buscar alternativas de desenvolvimento, graças ao seu diversificado patrimônio biológico e genético e pela aclimatação de novas espécies e cultivares de híbridos mais resistentes às pragas. (51)

Benchimol conclui que Henry Wickham não pode ser condenado por ter levado as sementes de seringueiras sem que se condene também Francisco de Melo Palheta que, à semelhança do que fez o inglês, também teve de esconder as plantinhas de rubiáceas (café), trazendo-as de Caiena para as plantações do Pará e Amazonas, sendo que o café posteriormente seria transplantado para São Paulo e outros estados.
Os dois autores – Ferreira Filho e Benchimol – vêem naturalidade no episódio da transplantação da hévea pelos ingleses. O primeiro considera legítima a ação imperialista inglesa de apoderar-se das sementes da hévea para auferir monopólio sobre ela. Não parece considerar, ao referir-se à escravidão do mundo à borracha amazônica, que os ingleses se beneficiavam com essa escravidão tanto na comercialização da borracha quanto na venda de seus produtos aos consumidores amazônicos. Portanto, não se tratava simplesmente de acabar com a escravidão da humanidade à produção de borracha amazônica, mas sim de obter um meio de exploração ainda mais lucrativo. O segundo, por sua vez, encara a transplantação da hévea pelo prisma da inevitabilidade da transmigração de espécies vegetais e animais entre os continentes. Na generalidade, pode-se dizer que o processo ocorrido com a hévea é o mesmo, mas quando ocorre a sua transplantação, ela já é um produto natural largamente explorado e de importância crescente para o mercado mundial. Mais que transplante, levar a semente da hévea significou assenhorear-se completamente do monopólio de extração, uma vez que o capital inglês já era um dos principais financiadores do negócio da borracha, mas ainda não tinha o completo domínio de sua fonte de produção ou de extração na natureza. 

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NOTAS
1)
Leandro Tocantins é enfático sobre a criação do estado do Acre e sua relação com o ciclo da borracha: “[...] Acre e borracha confundem-se no mesmo processo histórico. Sem borracha o Acre não seria brasileiro, a menos que surgisse outro produto-rei capaz de emprestar à terra a mesma fascinação econômica [...]” (Formação histórica do Acre,  v.1, p. 31). 
2)
  O tratado de Petrópolis, de 1903, assinado pelo Brasil e a Bolívia, estabelecia o direito brasileiro sobre os 190.000km2 que compreendiam o Estado do Acre e também continha uma cláusula prevendo a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. A ferrovia seguiria às margens do rio Madeira e possibilitaria uma ligação com a região onde foi fundada a povoação de Porto Velho, solucionando o problema de transpor o trecho por via marítima, uma vez que uma seqüência de vinte cachoeiras impossibilitava a navegabilidade desse trecho. Através da ferrovia, a Bolívia pretendia atingir um trecho navegável, alcançando o Oceano Atlântico. A construção da ferrovia seria um negócio rentável para o americano Percival Farquhar que conseguiu do governo brasileiro a concessão da estrada por sessenta anos e a autorização para explorar os seringais localizados próximos ao eixo da ferrovia. (Cf. Violeta R. LOUREIRO, Estudos e problemas amazônicos, p. 33-4).
3)  A ficção do ciclo das secas estabelece relações com a ficção do “ciclo da borracha”. Num trecho do romance O quinze, de Rachel de Queiroz, a personagem Chico Bento revela o anseio de uma vida melhor que caracterizou a vinda de muitos nordestinos para a Amazônia: “A voz lenta e cansada vibrava, erguia-se, parecia outra, abarcando projetos e ambições. E a imaginação esperançosa aplanava as estradas difíceis, esquecia saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do Amazonas, vencia a natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia dele rico e vencedor” (s.d., p. 30).
4)  Samuel Benchimol informa que a Amazônia recebeu, no período de 1877 a 1920, 300.000 imigrantes nordestinos (Amazônia: formação social e cultural, 1999, p. 136). Antônio Loureiro, entretanto, observa que esse número poderá ser ultrapassado através de novos estudos (Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos, p. 167). 
5)
Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro,  p. 80.
6)  João B. RODRIGUES, As heveas ou seringueiras: informações, p. 7-8.
7)  Ibid., p. 7-8.
8)  CF. Leandro TOCANTINS,  Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 98.
9) Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro,  p. 104-5.
10)  Sobre esse aspecto, Arthur Reis comenta: “[...] Todas as energias se deslocaram das tarefas agropecuárias para a extração do látex das héveas, num regresso vertiginoso à etapa por que se iniciara o processo econômico da região [...]” (Ibid., p. 41). Samuel Benchimol ressalta que, em virtude da febre do enriquecimento fácil, o ciclo da borracha não poderia promover estabilidade na terra: “[...] Homens à procura de fortuna, não à procura de terra. Daí a instabilidade, nervosismo, palpitação. É a borracha na sua função atrativa, fazendo ‘foco de apelos’ ou antes, dando ‘apetite de seringa’,  na gíria do imigrante [...] (Romanceiro da batalha da borracha,  p. 38).
11)“As condições de acumulação e crescimento do capital na economia da borracha não foram potencializadas de modo a permitir um avanço da divisão social e técnica da produção. Esta, limitada pela concentração de interesses na monoprodução e pelo sistema de aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e incapaz de transformar qualitativamente o padrão econômico [...]” (Eloína M. dos SANTOS, A rebelião de 1924 em Manaus, p. 31)
12)  Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos,  p. 172-3.
13)  Segundo Manoel J. de Miranda Neto, “[...] dá-se o aviamento quando ‘A’ (aviador) fornece a ‘B’ (aviado) certa quantidade de mercadorias (bens de consumo e alguns instrumentos de trabalho) ficando ‘B’ de resgatar a dívida com produtos agrícolas ou extrativos da próxima safra, em espécie; havendo saldo credor, ‘B’ recebe dinheiro; se o saldo é devedor, ‘B’ fica debitado até a safra seguinte. Mas ‘B’, uma vez aviado, pode tornar-se aviador de ‘C’, e assim por diante; o único aviado que não pode ser aviador é o produtor, isto é, o lavrador ou o extrator que trabalha na terra ou colhe os produtos da floresta e que é obrigado a vendê-los a um só comprador (monopsônio).” (O dilema da Amazônia,  p. 54). 
14)  Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 73-74.
15)  Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 110.
16)  Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 174.
17)  Ibid., p. 224.
18)  Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 142.
19)  Enlaçados por um sistema em que se tornavam dependentes dos aviadores e esses, por sua vez, dos importadores-exportadores, cabia aos seringalistas relacionarem-se diretamente com o extrator do látex. Os seringalistas mantinham o seringueiro sob sua rígida dependência. Para alcançar sua posição, este precisaria passar por uma longa experiência nos seringais, em muitos casos atravessando gradativamente as posições de seringueiro, mateiro, comboieiro, pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de balcão, arrendatário de estradas e colocações.
20)  Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 97.
21)  Ibid.,  p. 97.
22)  Ibid., p. 98.
23)  Ibid., p. 99.
24)  Samuel BENCHIMOL, p. 102.
25)  Ibid., p. 102.
26)  Ibid., p. 103-4
27)  Antônio J. S. Loureiro registra que os primeiros imigrantes cearenses e maranhenses chegaram ao baixo Purus e a Codajás na segunda metade do século XIX. O município de Lábrea foi atingido em 1871 pelos imigrantes nordestinos, seguido de Canutama em 1874, Boca do Acre e Antimari em 1878. Em 1882, os nordestinos já estavam no Acre boliviano onde fundaram o seringal Empresa que daria origem a Rio Branco, configurando a ocupação do território por brasileiros. A penetração no rio Juruá atingiu Carauari e Eirunepé em 1890; Cruzeiro do Sul em 1904; Feijó em 1906 e Tarauacá em 1907 (Amazônia: 10.000 anos, p. 167).
28)  João B. RODRIGUES,  As heveas ou seringueiras: informações,  p. 34.
29)  Antônio J. S. Loureiro destaca que com o advento da imigração nordestina “a cultura amazônica colonial transformou-se na cultura amazônico-nordestina, resultante do equilíbrio entre o elemento nativo e o migrante nordestino, que se adaptava e se incorporava à região, a ponto de serem raros os habitantes do Amazonas, que não possuam sangue ‘cearense’ em suas veias” (Amazônia: 10.000 anos, p. 156).
30)  Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha,  p. 141.
31)  Segundo Arthur C. F. Reis, os gaiolas eram navios a vapor construídos na Inglaterra, Holanda, Dinamarca e Estados Unidos. Apropriados para a navegação na região amazônica, possuíam as laterais abertas para possibilitar o arejamento. O nome desses barcos viera do hábito de os passageiros amarrarem redes uma por cima das outras semelhando uma gaiola. Os vaticanos eram gaiolas de maior porte que lembravam aos seringueiros, pelo porte, a residência papal e daí receberem essa denominação. Ao gaiola que possuía fundo chato, dava-se o nome de “chata” ou “chatinha” quando possuía menor porte. O autor observa que os porões, onde viajavam os passageiros de terceira classe, cheiravam mal e ostentavam “uma promiscuidade aterradora [...]” (O seringal e o seringueiro,  p. 198-99).
32)“Brabo” era a alcunha que recebia o nordestino inexperiente na operação de coleta do látex e desconhecedor das particularidades do meio em que era recém-chegado. Quando, enfim, dominava as técnicas do trabalho e adquiria independência para se movimentar no meio, reconhecendo-lhe os perigos e os segredos, o nordestino passava a receber a alcunha de “manso” e já podia ser considerado seringueiro.
33)  Manoel José de MIRANDA NETO, O dilema da Amazônia,  p. 45-6.
34)  Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 178.
35)  Os números estão divulgados em Arhtur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 111.
36)  Ana Maria DAOU, A belleépoque amazônica,  p. 23.
37)  Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1912), p. 21.
38)  Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1912),  p. 21.
39)  Entre essas obras, estão o Teatro da Paz, o Mercado Municipal do Ver-o Peso, o Palacete Bolonha, o Palacete Pinho.
40)  Maria de Nazaré SARGES, Belém: riquezas produzindo a belle-époque (1870-1912),  p. 83.
41)  Apesar de essas mudanças indicarem que a cidade passava a ter melhores condições de higiene e a desfrutar de mais opções de lazer, Maria de N. Sarges destaca que “a expressão modernizadora de Belém subordina-se mais às necessidades econômicas do que aos objetivos práticos, ou seja, ao atendimento das necessidades básicas da população” (Ibid., p. 138). Acentuando que as medidas saneadoras e remodeladoras do espaço urbano visavam atender principalmente aos grupos enriquecidos pelos lucros da borracha, a autora ressalta: “[...] Entretanto, todo esse ‘progresso’ era localizado e dirigido à área central da cidade, onde habitava a elite local e parte da classe média nascente” (Ibid., p. 142).
42)  Márcio SOUZA, Galvez, imperador do Acre,  p. 32-3.
43)  Ana Maria DAOU, A belleépoque amazônica,  p. 34.
44)  Eduardo Ribeiro assumiu o governo provisório em 1890, quando Augusto Ximenes de Villeroy  teve de se afastar por motivo de doença de sua esposa. Já em 1891, Eduardo Ribeiro é exonerado do cargo. Em 1892, volta ao governo para um período de administração que irá até 1896. É nesse período que Ribeiro realiza as obras que iriam transformar a vila em cidade (Cf. Agnelo BITTENCOURT, Dicionário amazonense de biografias: vultos do passado,  p. 194-196).
45)  Ana Maria DAOU, A belleépoque amazônica, p. 36.
46)  Márcio SOUZA, Breve história da Amazônia,  p. 139-140.
47)  Antônio J. S. LOUREIRO, A grande crise (1908-1916), p. 15.
48)  É digno de destaque o fato de que em 1910 cada habitante da Amazônia produzia 14 vezes mais divisas do que os demais brasileiros (Cf. Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos,  p. 177).
49)  Optamos pela grafia Wickham por ser a mais freqüente nos textos pesquisados. Dentre esses textos, a grafia Wickmam é empregada  por Arthur Cezar Ferreira Reis, Cosme Ferreira Filho e Samuel Benchimol.
50)  Cosme FERREIRA FILHO, Amazônia em novas dimensões, p. 155.
51)  Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 218-219.
 
 

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