PRIMEIRA
PARTE
Conforme
demonstramos, as obras que abordaram o “ciclo
da borracha” retomaram, em sua maioria, os
aspectos em torno do comportamento truculento dos seringalistas e as conseqüências
da ausência da mulher no seringal. Sobre a constância do primeiro
aspecto, Mário Ypiranga Monteiro
destacou a insistência dos autores em transformar o nordestino no
que denomina “arquétipo
do patrão seringalista mau e ganancioso, analfabeto e bronco.”(1)
É
preciso distinguir, todavia, o papel tirânico do seringalista reiterado
na ficção e a presença do explorador como elemento
verossímil no contexto em que se desenvolveu o ciclo econômico
de exploração do látex. Tornamos a lembrar que a existência
do seringalista como explorador origina-se em virtude da estrutura implantada
nos seringais, na qual ele constitui o elemento detentor dos meios de produção
que efetivamente explora a riqueza natural através do trabalho do
extrator.
De
modo geral, a ficção sobre o ciclo hipertrofiou a presença
do explorador, forjando um tipo com características que muitas vezes
excediam as que a realidade oferecia. A abordagem sobre o ciclo limitou-se
a forjar esse decalque do explorador, apresentando pouca variação.
A
diversificação que a partir desse capítulo apontaremos
na abordagem das obras ficcionais tem como base o aprofundamento e a renovação
da temática e da estrutura narrativa. Antes, porém, de nos
determos nas três obras sobre as quais empreenderemos a análise –
A selva, Beiradão
e O amante das amazonas –
é necessário mencionar obras que compõem o ciclo de
ficções da borracha cujo conteúdo e cuja estrutura
narrativa apresentam alguma diversificação na abordagem do
tema.
O
perfil quase unânime do seringalista cruel sofre uma alteração
em Dos ditos passados nos acercados do Cassianã,
romance de Paulo Jacob, publicado em 1969. Anastácio Trajano, a
personagem do seringalista, foge em mais de um ponto ao tipo inescrupuloso,
determinado em outras obras, pois cumpre as obrigações patronais,
inclusive o pagamento do saldo aos seringueiros, não os submete
aos castigos físicos usuais e não se nega a ajudá-los
quando necessitam de seus favores. O romancista não deixa, todavia,
de expor o caráter do seringalista perverso em outra personagem
do romance, Macário Gomes, antítese de Anastácio Trajano.
Macário , através de sua índole sórdida, é
que, na verdade, domina a ação da narrativa da metade até
o final. O romance não promove uma oposição duradoura
entre as personagens que representam o bom e o mau seringalista. Saindo
Anastácio Trajano de cena, o vil Macário Gomes predomina,
à semelhança dos tipos característicos de outras obras.
Em virtude disso, a presença no romance do seringalista que foge
ao tipo corriqueiro não leva a uma completa diversificação,
apaga-se como se tivesse apenas o objetivo de apresentar um exemplo de
bom seringalista. Explicita-se que o romancista não tencionava levar
a cabo uma luta do bem contra o mal, o desaparecimento da personagem Anastácio
Trajano não possibilita que essa luta seja o desfecho do romance.
O fim do seringalista mau é selado
por seus próprios capangas, que se cansam de seus atos perversos
e o assassinam.
É
também numa outra obra de Paulo Jacob, O gaiola tirante rumo ao
rio da borracha que a abordagem do ciclo se afasta do usual binômio
margem/centro para se localizar inteiramente a bordo de um barco, o gaiola “Rio
Curuçá”.
Aí se movem os tipos peculiares ao tema, sendo que a personagem
do comandante do barco, secundária em outras obras, aparece com
maior destaque. Não constituindo necessariamente uma obra que apresente
aprofundamento do tema, é uma demonstração de criatividade
do romancista que cria uma imagem do gaiola
representando o próprio ciclo e faz coincidir a ruína e o
desmantelamento do barco com o declínio da exploração
da borracha amazônica.
Antes
das obras de Paulo Jacob, o romance Terra
de ninguém, publicado em 1934 por Francisco Galvão, trouxe
algumas inovações, apesar de não se contarem até
então um número muito expressivo de obras em que se possa
identificar uma constância de abordagem. Já haviam, porém,
sido publicados O paroara (1899), Inferno
verde (1908), Deserdados (1921) e A selva (1930).
Primeiramente,
cabe destacar a contenção narrativa do romance que, divergindo
das obras que o antecederam, não se derrama em descrições,
nem se excede no preciosismo dos vocábulos ou no rebuscamento dos
períodos. Essa contenção revela que o autor buscava
inovar em sua narrativa, atestando sua filiação ao ideário
modernista. (2) Márcio Souza, no comentário sucinto que fez
sobre a obra, tratou-a como uma “verdadeira
floração
estranha no interior de uma ficção comportada”
(3)
e apontou a sua inconsistência pela inverossimilhança ideológica.
Djalma Batista, no ensaio “Letras
da Amazônia”,
(4) publicado em 1938, já
apontara o livro como inverossímil sem maiores comentários.
Para Souza, a falta de verossimilhança consiste em personagens membros
de uma classe abastada defenderem ideais contrários a essa classe.
Nessa observação, o autor talvez não leve em conta
que não é totalmente improvável um membro de uma classe
abastada se indignar com as injustiças sociais promovidas por essa
classe. Acreditamos que a inverossimilhança em Terra de ninguém
resida mais justamente em outro ponto. O de o autor tentar produzir um
romance de tese sem o devido adensamento. Buscando veicular idéias
feministas e socialistas através de suas personagens, o romance
soçobra por carência de desenvolvimento da matéria
romanesca e de consistência das personagens. Nadesca,
uma das protagonistas, é incoerente não por ser membro de
uma classe abastada e ter ideais de justiça social, mas porque se
mantém usufruindo das benesses que o pai lhe oferece praticamente
sem conflito até o final do romance, quando enfim assume uma atitude
de revolta. Até então, ela que propala idéias socialistas,
se comporta como uma turista passeando pelo mundo do seringal, notando
seus problemas sem se envolver. Manifesta
querer conhecer a forma simples de vida dos seringueiros, suas dificuldades,
mantendo-se na posição de abastança. Não há,
no romance, verdadeiro conflito de Nadesca
que a revele como uma personagem complexa. Feitas essas considerações,
não se pode negar ao romance de Galvão a tentativa inusitada
de trazer a mulher para a cena central da narrativa do seringal na qual
ela sempre figura como um objeto de disputa parcamente delineado. Terra
de ninguém, sendo um romance publicado entre as décadas de
1930 e 1940, traz a marca do idealismo revolucionário de um período
da história brasileira. (5) O subtítulo do romance –
romance social do
Amazonas –
e o seu conteúdo
que inclui o desfecho com uma revolta dos seringueiros, levaram
à consideração de que ele seria pioneiro na criação
de uma prosa amazonense de cunho social. Consideração que
não é de fato justa, se se
levar em conta que em Inferno verde, obra de Alberto Rangel publicada em
1908, a temática social já é tratada no conto “Obstinação”
que enfoca a revolta interiorizada de uma personagem
caboclo o qual pratica o suicídio enterrando-se vivo na terra
que lhe é tomada por um latifundiário, descrito como um apuiseiro
social. (6)
A
utopia de fundar uma sociedade mais justa alimentada nas décadas
de 1930 e 1940 sob o influxo das idéias socialistas aparece delineada
em Terra de ninguém e em outras obras do período. Amazônia
que ninguém sabe, romance (7) de Abguar
Bastos publicado em 1932 e depois rebatizado na segunda edição,
em 1934, de Terra de Icamiaba projeta na
personagem Bepe um herói socialista
amazônico. Bepe sintetiza a busca
de um líder nacional autêntico. A criação de
uma nova arte nacional através do repúdio à velha
arte da cópia do modelo europeu que Francisco Galvão propõe,
no “Manifesto
da beleza”,
é igualmente encampada por Bastos em passagem que a narrativa de
Terra de Icamiaba dá lugar ao manifesto(8)
. Apesar das afinidades nas concepções estéticas entre Abguar
Bastos e Francisco Galvão e de suas obras terem sido escritas em
períodos próximos, assemelhando-se até no paralelismo
dos títulos, o primeiro escreve uma obra diversa da temática
usual da borracha. Ainda que o narrador profira críticas diretas
às falhas do sistema extrativista da borracha: “O
leite da seringueira,
brilhante e pastoso, foi apenas um relâmpago de grandeza. Ceilão
fez concorrência e matou a fortuna dos seringais”
(9) não
se detém na pintura do seringal, de seus tipos e de seus conflitos.
Diferentemente de outras obras, esta não realiza a estrutura
convencional do romance realista, sua construção aproxima-se
do discurso poético. Sem um desenvolvimento preciso de enredo, atrai
mais pelas imagens do que por uma trama. (10)
Neste
trabalho, optamos por uma análise detalhada das obras A selva, Beiradão
e O amante das amazonas por serem essas três obras as mais
representativas do aprofundamento e diversificação do tema
do “ciclo
da borracha”
dentro de uma extensa trajetória ficcional. Para efeito de estudo,
dividimos essa trajetória em três fases. A primeira compreendendo
as publicações de O paroara,
em 1899, até A selva, em 1930; a segunda, a partir da publicação
de Terra de Icamiaba, em 1934, até
Coronel de barranco, em 1970; e a terceira, a partir da publicação
de O amante das amazonas, em 1992. Nosso critério de divisão
dessas fases orienta-se não apenas por uma periodicidade temporal.
Consideramos o conteúdo das obras e a sua forma de abordagem. Na
primeira fase, o tema é abordado dentro de uma seqüência epigônica
desencadeada por Euclides da Cunha com À
margem da história, obra em que denuncia a espoliação
sofrida pelo seringueiro. Apesar de ter sido publicada em 1909, sendo,
portanto, posterior a Inferno verde (1908), de Alberto Rangel, é
possível perceber a identificação de estilo e de idéias
entre os autores e considerar Rangel seguidor de Cunha.(11).
Cunha
e Rangel inspiraram, por sua vez, Carlos de Vasconcelos, em Deserdados
(1921) que copia-lhes a opulência da
linguagem. Desta tendência epigônica,
fica à margem Ferreira de Castro, autor português que abordou
o tema motivado por documentar sua própria experiência no
seringal.
As
obras da segunda fase, ao contrário das da primeira, não
se delineiam pela continuidade de um estilo. Mesmo algumas delas possuindo
uma dose de pensamento social reformador, como Terra de Icamiaba,
Terra de ninguém, Um punhado de vidas, apresentam autores com estilos
diversos. Nessa fase, portanto, as obras representam mais uma experiência
de cada autor do que a continuidade da tradição de um estilo.
A exceção ocorre em No circo sem teto da Amazônia (1955)
que ainda traz o descritivismo e a linguagem
carregada à semelhança dos estilos de Euclides da Cunha e
de Alberto Rangel.
Incluímos
na terceira fase apenas a obra O amante das amazonas, omitindo as abordagens
episódicas do tema em parte dos romances
Terra firme e Regime das águas e nos contos incluídos
em O tocador de charamela por entendermos
que o romance Coronel de barranco é um marco que baliza a segunda
fase e que a abordagem do tema nessas obras posteriores é menos
uma continuidade do ciclo ficcional do que recorrência isolada. Apontamos
a terceira fase em O amante das amazonas por essa obra atestar um novo
estágio de abordagem do tema do ciclo em que tanto o tema se renova
quanto a estrutura narrativa sofre uma acentuada reorganização.
A
selva, Beiradão e O amante das amazonas,
abrangendo as três fases, expressam diferenciais de abordagem em
cada uma delas. As três obras são representativas de três
percepções sobre o ciclo, a do escritor estrangeiro, do escritor
político e do escritor estudioso da literatura. Nessas três
percepções, um ponto em comum: a experiência, direta
e indireta, do seringal. Direta, em Ferreira de Castro e Álvaro
Maia, que o conheceram pessoalmente. Indireta, em Rogel
Samuel que o reconstitui pelo caminho da memória do avô, um
rico comerciante da borracha. Passamos a analisar as três percepções
e os consecutivos delineamentos que deram às obras.
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NOTAS
1)
Criticando a pecha do mau seringalista reiterada pelos ficcionistas, o
autor impreca contra essa limitação, observando que ela “cria
uma sensação
de vaguidade, de sensaboria, de ciclo vicioso,
de lugar-comum na sociologia dos seringais [...]”
(Fatos da literatura amazonense, p. 79).
2)
Francisco Galvão levantou no seu “Manifesto
da beleza”, publicado na revista Belém
Nova, em 1923, a bandeira de uma arte nova, sem compromisso com o passadismo,
livre da imitação das tendências européias,
uma arte renovada. No entanto, era ele próprio um ano antes dessa
publicação um praticante dessa arte que passou a repudiar
e atribuir aos “bufarinheiros
do ofício.”
3)
Márcio SOUZA, A expressão amazonense: do colonialismo ao
neo-colonialismo, p. 224.
4)
Djalma BATISTA, Letras da Amazônia In: Amazônia: Cultura e
sociedade, p. 32
5)
Lúcia Lippi Oliveira assim comenta
sobre a contribuição desse período: “Os
anos 30 são, sobremaneira, fecundos. Abrem amplas possibilidades
para o debate de idéias e propostas, assim como permitem a implementação
de experiências políticas inéditas na vida brasileira
[...]”
(O romance e o pensamento político
nos anos 30 In: PORTELLA etalii.,
O romance de 30 no Nordeste, p. 144).
6)
Alberto RANGEL, “Obstinação”
In: Inferno verde, p. 181-207.
7)
Nuno Vieira, que escreveu em 1932 um posfácio
para a primeira edição da obra, considera-a não um
romance, mas uma alegoria.
8)
Destacamos, a propósito, alguns trechos: “Brasil
dos copistas, Brasil rococó,
claudicante, impudico e meloso. Brasil do avesso, que a tristeza do luso
estragou. Brasil sentimental, que gastou nos sambas da prosa, todo o dinheiro
da família. Brasil incapaz de pagar o inglês e de fazer ditadura.
Este não presta. O outro, sim. É que é o bom e o indivisível.
O moderno. O que é ingênuo para simplificar-se. O que transforma
a riqueza, o amor e a saúde, em reservas, para socorrer-se e administrar-se,
por si e para si.”
(Abguar BASTOS, Terra de Icamiaba,
p. 125).
9)Abguar
BASTOS, Terra de Icamiaba p. 53
10)
As descrições primam por criar um sentido poético: “As
árvores estão com febre e deixam cair suas flores faiscantes
sobre o chão recamado de sombras”(Ibid.,
p. 99). “As
flores amarelas do pau d’arco jogamconféti
no poente.”
(Ibid., p. 38).
11)
Hélio Viana, em conferência realizada em 1971 no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro por ocasião do centenário
de nascimento de Alberto Rangel, defende a originalidade de estilo deste
autor, alegando principalmente que seus estudos amazônicos foram
anteriores aos de Euclides da Cunha, uma vez que este foi à Amazônia,
comissionado pelo Ministério da Relações Exteriores,
em missão de demarcação de limites, em 1905, quando
Rangel já ali se encontrava. Na verdade, a aproximação
que existe entre as obras desses autores não se limita à
discussão de quem teve precedência na chegada à região
amazônica, nem na data de publicação das obras. Sobre
este último fato, basta destacar que À margem da história
foi publicada postumamente. As obras de Cunha e de Rangel aproximam-se
porque professam em sintonia o discurso positivista sobre o meio amazônico.
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