A
selva: a visão de um imigrante português sobre o ciclo da
borracha
FERREIRA DE CASTRO
Ao escolher
a Amazônia como espaço de representação de seu
romance, Ferreira de Castro não o fez como um absentista(12) , baseou-se
na própria vivência de quatro anos num seringal localizado
no rio Madeira que, coincidentemente com o topônimo dado ao local
na ficção, também se chamava Paraíso. No Pórtico
de abertura do romance, o autor declara: “Eu
devia este livro
a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva
amazônica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da
minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida
[...]”(13)
. A edição
comemorativa dos vinte e cinco anos de publicação da obra,
em 1955, traz em “Pequena
história
de A selva”
uma configuração
maior do tom confessional que o romancista dá à criação
do romance. Nesse texto, que é uma contribuição ao
estudo da formação de um escritor, Ferreira de Castro expõe
o quanto o contato e a experiência com a natureza amazônica
impressionaram o seu espírito, impelindo-o a transformar em matéria
ficcional todas as sensações de um mundo que não conseguia
esquecer. Ao mesmo tempo, revela também um temor de registrar essas
sensações e assim revivê-las:
[...] durante
muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir,
com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos
machados, no mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras.
Um medo frio, que ainda hoje sinto, quando amigos e até desconhecidos
me incitam a escrever memórias, uma larga confissão, uma
existência exposta ao sol, que eu próprio julgo seria útil
às juventudes que se encontrassem em situações idênticas
às que vivi. (14)
Não obstante
a recriação literária do ambiente amazônico
significasse para o romancista rememorar uma experiência traumática
do seu segundo decênio de vida, ele tinha convicção
de que essa recriação só poderia se realizar a partir
de um compromisso de fidelidade:
As selvas,
fechassem elas o seu mistério nas vastidões sul-americanas
ou verdejassem, mais permeáveis à luz solar, na Ásia,
na África, na Oceania, representavam desde há muito, um assunto
maculado literariamente. Maculado por milhentos romances de aventuras,
onde a imaginação dos seus autores, para lisonjear os leitores
fáceis, se permitira todas as inverossimilhanças, todas as
incongruências.
Eu pretendera
fugir à regra. Pretendera realizar um livro de argumento muito simples,
tão possível, tão natural que não se sentisse
mesmo o argumento. Um livro monótono porventura, se não pudesse
dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o próprio
cenário em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos induzisse
ao exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse uma personagem de
primeiro plano, viva e contraditória ao mesmo tempo admirável
e temível, como são as de carne, sangue e osso. A selva,
os homens que nela viviam, o seu drama interdependente, uma plena autenticidade
e nenhum efeito fácil –
era essa
minha ambição. (15).
A verossimilhança
que procurou manter em relação a um mundo que fez parte de
sua experiência de vida deu a Ferreira de Castro a possibilidade
de ser defendido quando foi acusado de detratar a realidade amazônica.(16).
O cosmopolitismo
de Ferreira de Castro, as viagens que empreendeu a começar pela
saída de Portugal ainda menino, a chegada a Belém do Pará
e depois a partida para o rio Madeira, a viagem de volta ao mundo na idade
adulta deram-lhe a possibilidade de conhecer diferentes países.
Daí a sua obra apresentar expressões culturais tão
diversas: do Brasil, e nele é preciso abrir um parêntese para
a Amazônia, da Espanha, da França e de Portugal, sua terra
de nascimento. Podemos deduzir que a experiência de viajante foi
fundamental na construção da obra do romancista. Jaime Brasil,
biógrafo do romancista, enfatiza que “[...]
sem a ida ao Brasil, na idade e nas circunstâncias
em que o fez, Ferreira de Castro, embora viesse a ser um grande escritor,
não teria escrito A selva [...].”(17)
Para Magalhães Júnior, A selva é um romance brasileiro
pelo seu tema.(18) Ferreira de Castro é um autor que desafia
as fronteiras literárias e enseja a discussão que envolve
nacionalidade e tema na literatura.(19)
A nomeação
do romance como amazônico parte do fato de que o ambiente em que
se passa e a sua temática estão voltados para essa região,
mas um outro fato que também deve ser levado em consideração
é que esse romance tem um criador e um protagonista de nacionalidade
portuguesa. Nesse ponto, a experiência de vida e a criação
estão ligadas. Se, por um lado, não há impossibilidade
de um romancista escrever um livro sobre um mundo que não conheceu
pessoalmente, por outro, há também uma necessidade que o
compele a escrever sobre um mundo que faz parte de sua experiência.
Em A selva, a particularidade da experiência se confirma não
somente pelas próprias palavras do autor como também porque,
diferentemente do que ocorre em outro romance de sua autoria, A curva da
estrada, em que a ação se passa na Espanha e é protagonizada
por personagem espanhol, Ferreira de Castro criou para o romance que se
passa em ambiente amazônico um protagonista português. A intenção
do autor, portanto, era enfocar o ambiente amazônico pelo prisma
de um imigrante. Convém destacar que o romance é documental
no sentido de que o autor registrou aquilo que de fato observou , dando
azo à criação do romance, não é, porém,
um romance autobiográfico, pois contém mais distanciamento
do que aproximação entre autor e protagonista. Um comentário
do autor é esclarecedor a esse respeito: “Se
é verdade que nesse romance a intriga tantas vezes se afasta da
minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção
se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor[...]”(20)
. Como Alberto,
o protagonista, Ferreira de Castro foi enviado para o seringal. As condições
que motivaram as viagens de ambos coincidem em alguns pontos, mas também
se diferenciam. Foram enviados ao seringal porque tornaram-se dispendiosos,
Alberto para o tio, Ferreira de Castro para o seu protetor. Alberto era
um homem com convicções formadas, participara em Portugal
da revolta monarquista. Ferreira de Castro, um menino pobre com intenção
de escrever textos literários. Quando se trata da personalidade,
nota-se uma franca oposição. Ferreira de Castro foi um humanista
que não se filiou a facções políticas. (21)
Na ficção, Alberto é um monarquista que como tal defende
os privilégios dessa classe, despreza os humildes. Na terceira
classe do barco onde vem a se encontrar pelas contingências da sorte
a caminho do seringal, não quer se misturar aos nordestinos porque
considera a natureza destes inferior. Despreza a democracia e a igualdade
humana. Após um longo caminho de humilhações, sofrimento
e resignação é que Alberto passa a ver a vida e os
seres humanos de modo diferente, abandonando, no final da narrativa, os
princípios monarquistas. A evolução por que passa
o protagonista foi preferida pelo romancista que declara ter abandonado
os planos de criar uma personagem estática: “[...]
A personagem
assim apresentada tinha idéias já formadas sobre a injusta
organização do mundo em que vivia e, naturalmente, veria
o mundo em que ia viver com uma atitude moral preconcebida, com um espírito
apenas de confirmação, o que diminuiria, para quem não
aceitasse as cores do seu horizonte, o sentimento de verdade naquilo mesmo
que era verdadeiro. Preferi, portanto, uma figura evolutiva [...](22) .
O enredo de
A selva começa focalizando o imigrante português Alberto,
desempregado, vivendo às custas do tio em Belém. A situação
que envolve o desconforto do protagonista por saber-se dispendioso e incômodo
não demora a se alterar, pois o tio logo lhe expõe a oportunidade
que se apresenta de ele partir para o seringal em busca de trabalho. Sem
condições de recusar a quase imposição, Alberto
se resigna, sabendo de antemão que se punha numa situação
de risco, destacando-se para uma região desconhecida e perigosa.
O tio, cujo único objetivo é convencê-lo, alardeia
uma chance promissora de fortuna:
- Para o
Madeira, disse o tio?
- É
o seringal chama-se o Paraíso.
- Rio Madeira...
Rio Madeira... Não é lá que há muitas febres?
- No Madeira...
- É;
em todos os seringais há muitas febres... - interrompeu-o, finalmente,
Alberto.
[..]
- Que é
que eu iria fazer lá?
- O que
iria fazer?... Não sei. Cortar seringa, talvez não, porque
é duro. Mas os seringais têm sempre um escritório,
um armazém... Vamos a ver. Vamos a ver o que se arranja. E não
te aborreças, pois aquilo, para quem tem saúde e juízo,
são terras onde se enriquece em pouco tempo [...]. (23)
As considerações
do narrador sobre o futuro que se afigura temerário para Alberto
expõem o círculo que se constitui em torno da extração
do látex: empregados de comércio, retirantes, oportunistas,
buscando uma chance de fazer fortuna. Uma passagem do romance ilustra como
se dá a riqueza de alguns e a miséria de outros:
Fora assim
que o tio enriquecera e tinha já duas quintas em Portugal; fora
assim que pobretões sem eira nem beira se transformaram, dum instante
para o outro, em donos de ‘casas
aviadoras’
tão
poderosas que sustentavam no dédalo fluvial grande frota de ‘gaiolas’.
Aos que desbastavam a saúde
e a vida no centro da floresta, vendiam por cinqüenta aquilo que custava
dez e compravam-lhes por dez o que valia cinqüenta. E quando o ingênuo
conseguia triunfar de toda essa espoliação e descia, sorridente
e perturbado pelo contacto com o mundo urbano, a caminho da terra nativa,
nos confins do maranhão ou do Ceará, lá estava Macedo
com os colegas e as suas hospedarias, que o haviam explorado na subida
e agora o exploravam muito mais ainda, com uma intérmina série
de ardis, que ia da ‘vermelinha’
onde se começava
por ganhar muito e se acabava por perder tudo, até, o latrocínio,
executado sob a proteção do álcool. (24)
Alberto embarca
rumo ao seringal e, ao se encontrar na terceira classe do “Justo
Chermont”, depara-se com uma
realidade que custa a aceitar. O convés úmido e escorregadio
exala mal cheiro; os seres humanos que ali se encontram aglomeram-se numa
promiscuidade de animais. Ele se põe intranqüilo com a situação
mas tem esperanças de receber tratamento distinto. Sabe-se posto
ao nível dos outros pelas contingências mas embasado em seus
princípios monarquistas, acredita-se moralmente superior:
Magoava-o
a facilidade com que outros recrutados dormiam tranqüilamente um sono
que era, para o egoísmo dele, quase uma afronta.
E sorria,
depreciativamente, ao pensar no apostolado da democracia, nos defensores
da igualdade humana que ele combatera e o haviam atirado para o exílio. ‘Retóricos,
retóricos perniciosos! Queria vê-los ali, ao seu lado, para
lhes perguntar se era com aquela humanidade primária que pretendiam
restaurar o Mundo [...] Ele e os seus, declarados inimigos da igualdade,
defensores de elites, eram bem mais amigos dessa pobre gente que os outros,
os que a ludibriavam com a idéia duma fraternidade e dum bem-estar
que não lhe davam nem lhe podiam dar. Só as seleções
e as castas, com direitos hereditários, tesouros das famílias
privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um
mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade
inquebrantável –
um rei e os seus ministros a mandarem e todos os
demais a obedecer [...] (25)
As esperanças
de Alberto se desvanecem, não lhe é dado tratamento especial
a bordo do vapor, sua última ação de recusa a aceitar
o estado de subserviência igual ao dos outros recrutados é
contrariar as ordens de Balbino, o agenciador, desembarcando em Manaus
e recorrendo a uma tentativa de escapar ao seringal. Assim, resolve fazer
um pedido de emprego a um rico comerciante, mas o emprego é-lhe
negado e a sua humilhação se acentua com a constatação
de que o distinto comendador a quem recorre, um conterrâneo no qual
supunha encontrar solidariedade, haja vista também ter passado por
dificuldade antes de enriquecer, trata-o como um pedinte, dando-lhe uma
esmola a fim de se livrar de sua presença incômoda.
O aprendizado
de Alberto rumo à mudança de suas convicções
políticas terá prosseguimento no seringal, onde, como brabo,
primeiramente será submetido ao trabalho árduo de extração
do látex, trabalho que não suportaria não fosse a
ajuda de um seringueiro experiente, Firmino, que torna menos penosa a sua
lida diária nas estradas. Firmino passa a ser mais que um seringueiro
manso, guia de um seringueiro brabo, demonstra afeição de
amigo por Alberto, poupando-o ou defendendo-o dos ataques de Balbino e
Caetano, os fiscais do trabalho de extração que não
acreditam na capacidade de Alberto, por ser estrangeiro, e procuram desmoralizá-lo
numa competição que travam entre si para ganhar a confiança
e a preferência do patrão.
Isolado na
monotonia da selva, oprimido pelo mundo verde, resta a Alberto apenas a
certeza de ser impotente para mudar sua situação. A perspectiva
da sucessão dos anos apresenta-se, então, como uma sentença
que ele terá de cumprir tal qual os outros seringueiros. Um lance
de sorte, porém, altera o que lhe parecia irremediável. O
empregado do barracão que faz o despacho das mercadorias é
remanejado para o trabalho de fiscalização das estradas e
Alberto é chamado para substituí-lo. Com isso, o duro aprendizado
interrompe-se. A ida para o barracão parece conferir-lhe uma distinção
que lhe era atribuída inclusive pelo amigo Firmino: “
– Eu tenho
pena de seu Alberto. O seringal não é para um homem de sua
pele [...]”(26)
.
A experiência
na estrada do seringal, a impressão assombrosa que lhe causa a selva,
o perigo dos ataques dos índios, que o punha sempre em estado de
pavor, o trabalho para o qual não possuía habilidade, a humilhação
que lhe haviam feito passar os empregados do seringal e também o
patrão seringalista ao apontá-lo como inepto deram a Alberto
uma nova dimensão da vida e também dos sofrimentos alheios.
Ao se despedir de Firmino, a caminho de seu novo trabalho no barracão,
ele já não demonstra a indiferença e o desprezo pela
condição do outro que antes considerava de humanidade inferior.
O sofrimento do outro compunge-o:
Alberto estremeceu.
Sim, era verdade, dali em diante Firmino seria a única existência
humana na clareira de Todos-os-Santos noites e dias a sós consigo,
sepultado na solidão, sem ninguém que o distraísse,
sem ninguém partilhando a mesma vida, os mesmos perigos, sozinho
e remoendo sempre os mesmos pensamentos, em condena e persistência
de doido varrido. Teria de falar alto para ele somente se quisesse certificar-se
de que não perdera a voz; e, por companheira, possuiria apenas a
selva inquietante, que se debruçava quase sobre a barraca, a atestar
o seu domínio. A selva e a possibilidade de os índios o surpreenderem
isolado. (27)
Ainda restará,
mesmo após a dura experiência na estrada de corte, parte do
orgulho monarquista refletido no desejo de receber tratamento especial,
de ser reconhecido como alguém que possui estudo e não como
um bronco. Por isso, Alberto se sente satisfeito em aprender o trabalho
contábil, mostrando-se lépido e diligente ao exercer uma
atividade que não lhe parece humilhante, mas se indispõe
intimamente com o trabalho de lavar e encher as garrafas de bebidas para
o patrão, sob as ordens de Binda, a quem substitui. Ao ser chamado
pelo cozinheiro para almoçar na cozinha e perceber que não
lhe cabe lugar na mesa principal, onde comem o patrão seringalista,
o guarda-livros e a sua esposa, reacende-lhe o sentimento de revolta por
sentir-se desconsiderado tal como na terceira classe do barco que o levara
para ali. Tivera que se contentar com o mesmo tratamento dado aos retirantes
porque a primeira classe lhe era interdita. Agora, corroía-se e
perdia a fome ao pensar no privilégio que também lhe era
negado: “A
mesa, que adivinhava lá
dentro, com toalha branca, cristais e vinhos, enquanto ele comia na cozinha,
ainda de mãos engelhadas pela água onde lavava as garrafas,
provocava-lhe nova humilhação. (28)
A situação
de se ver como inferior leva-o a pensar na criada de sua família,
em Portugal, fazendo-o refletir no tratamento que a família lhe
dispensava como um “ser
à parte”.
Dá-se
conta de que ele próprio assim a considerava e sente-se incomodado.
Recobra, porém, o orgulho quando percebe que seu sofrimento e resignação
lhe renderam uma “humildade
postiça”
que diante da dignidade recuperada não
tem razão de ser: “[...]
À medida que crescia no lugar ia regressando a si mesmo, de novo
sentindo-se merecedor de tudo quanto de agradável lhe faziam: da
deferência do senhor Guerreiro, da recente bonomia de Caetano e de
Balbino –
e de muito mais ainda.” (29)
É também
na mudança para o barracão que Alberto constata a sua fraqueza
moral perante os desejos carnais. Se no centro havia reprovado as alternativas
dos companheiros Agostinho e Firmino para satisfazer o desejo sexual, considerando-as
ignominiosas, no barracão, à margem, onde parecia estar menos
afastado da civilização tanto pelas condições
de vida, quanto pela possibilidade de um dia tomar um barco para deixar
definitivamente o seringal, sente, para roubar a tranqüilidade daquele
pequeno conforto que conquistara, o clamor sexual assomar incontrolavelmente,
tomando conta da mente e do corpo. A esposa do guarda-livros, dona Yayá,
é a principal causadora de seus delírios lúbricos.
A obsessão de possuí-la leva-o a cogitar a morte do marido,
mas uma estima que passa a ter por este, reconhecendo o tratamento digno
que lhe dá, livra-o de cometer o ato criminoso quando tem a oportunidade
de executá-lo durante uma caçada da qual ambos participam.
Não
podendo ter dona Yayá, Alberto volta-se para a prática que
mais considerara aviltante quando dela tomara conhecimento ainda no centro:
Sentindo-se
ele próprio, com modos de autômato, dirigiu-se ao alpendre
onde se guardavam os laços. Palpou as cordas na obscuridade, com
os dedos escolheu uma, e cá fora ensaiou-a, abrindo-a e atirando-a
várias vezes para um quadrúpede imaginário. E de novo
se fundiu na noite morna e cúmplice.
Quando voltou,
já se havia desvanecido no seu espírito a ígnea imagem
de dona Yayá. Mas ele cravava as unhas nas palmas das mãos,
salivava constantemente e falava sozinho como nunca lhe acontecera:
- Bolas!
Bolas! Não está certo!
Despiu-se
logo que chegou ao quarto, pôs a toalha no ombro e, atravessando
o pequeno quintal, colocou-se ao lado dos barris. Esgotou toda a água
no banho longo e persistente mas não conseguiu lavar-se da imensa
repugnância que tinha por si mesmo. (30)
O arrependimento
não impede que ele seja tomado novamente pelo impulso de satisfação,
investindo contra nhá Vitória, uma das raras mulheres no
seringal, que presta o serviço de lavar sua roupa. A mulher ressente-se
de seu ato desrespeitoso, que não lhe considera sequer a idade avançada,
e denuncia-o ao guarda-livros Guerreiro. Esse vexame cai-lhe como um balde
de água fria e dá-lhe força para suportar a abstenção
que, devido à carta da mãe, dando notícia da anistia
aos monarquistas revoltosos, promete ser temporária. A possibilidade
de deixar o seringal torna-se viável por fim com a ajuda em dinheiro
que a mãe lhe remete e com o saldo que o patrão considera
quitado pelo salário de balconista, abreviando em alguns meses a
sua espera. O romance caminha, então, para o seu desfecho, a trajetória
de Alberto, constituída por um processo de evolução
de sua personalidade e transformação de seus princípios
chega ao fim.
A transformação
da consciência e a luta contra o instinto são os principais
motivos que perpassam a estadia de Alberto no centro. O processo da transformação
da consciência vai se dando de forma sutil, ora sua percepção
avança, ora recua:
Melhor elucidado,
via agora a situação dos ex-companheiros com maior amplitude
crítica do que quando moirejava no mesmo plano deles; uma situação
que lhe ocorria diariamente no próprio escritório onde seu
âmago se encontrava. E nas horas de solidão, em que a austeridade
e a fantasia tanto gostam de alternar, distribuía mentalmente justiça
a todos eles, muitas vezes ofendendo durante esse devaneio, as suas idéias
autocráticas, sem da agressão que lhes fazia se dar conta.
Se as incoerências se denunciavam, quedava-se perplexo, todo confuso
perante a nova inclinação que sentia e lhe provocava amargo
conflito em lugar de uma consciência apaziguada. E então,
buscando o equilíbrio que se lhe negava, discorria que naquela natureza
o homem pertencia menos a si próprio do que em qualquer outra parte.
(31)
Esse estado
de oscilação é freqüente na consciência
de Alberto. Beneficiado pela inesperada generosidade do patrão,
ele se questiona sobre sua contradição interior e a contradição
como parte da própria relação entre os seres humanos,
decorrida de seus interesses e das posições que eles ocupam
na sociedade:
[...] ‘Seria
ele quem mereceria
mais a legítima restituição? E os outros? Os outros?
Os que haviam esgotado, no cativeiro da selva, muitos mais anos do que
ele, toda a mocidade, toda a vida, as ambições e as quimeras?
E se ele não fosse branco, se não tivesse a simpatia do senhor
Guerreiro, se não se encontrasse apto para desempenhar o cargo de
Binda, que as circunstâncias lhe abriram subitamene? Se em vez de
estar ali, em contato com Juca, se em vez de jogar o solo com ele, de comer
ultimamente a mesma mesa, estivesse em Todos-os-Santos, simples seringueiro
como Firmino, como todos os outros que mantinham o seringal, que davam
a vida por uma riqueza que não aproveitavam, a dívida ser-lhe-ia
também perdoada? Não, com certeza não! Era certo que
os homens são bons ou maus conforme a posição em que
se encontram perante nós e nós perante eles; e falso o indivíduo-bloco,
o indivíduo sem nenhuma contradição, sempre, sempre
igual no seu procedimento’.
(32)
A rendição
ao instinto e o reconhecimento da humanidade daqueles que não compartilhavam
dos privilégios monárquicos ou os defendiam são interdependentes
à medida que Alberto só reconhece essa humanidade após
passar pela mesma degradação por que passaram os outros.
Como os outros seringueiros, ele é dominado pelo instinto, sua natureza
superior sucumbe da mesma forma que a natureza dos outros por ele considerada
inferior: “
‘Sou um miserável
e um porcalhão como os outros’(33)”
Cabe notar
que a personagem atribui a vitória do instinto ao meio. Ante o meio
bárbaro, de nada adianta ao homem lutar, sua rendição
é inevitável:
[...] Afirmava
a si mesmo que a responsabilidade não era dele, era do meio, era
essencialmente da Natureza, [...] Um instante, às suas faces, agora
freqüentemente barbeadas pelo filho de nhá Vitória,
sobrepuseram-se as faces sujas de barba que ele e os outros seringueiros
traziam, desmoralizadamente, em Todos-os-Santos, durante a semana inteira,
por vezes durante semanas a fio. ‘E
para quê
o contrário, se todos eles eram vítimas, se não havia
ali presenças femininas a estimularem a presunção
dos homens, se não havia exemplos a seguir, para quê se lentamente
a selva impunha o regresso à negligência, o retrocesso dos
civilizados, como se estivesse empenhada em reincorporá-los na selvageria
de onde se tinham evadido?’
(34)
É a selva
também a responsável pela truculência humana, o patrão
se alia a ela para executar sua obra de escravidão. Nesse ponto,
a reflexão de Alberto nega que a injustiça decorra da relação
entre os seres humanos e a atribui ao papel implacável do meio que
degenera o humano, fazendo com que não se pertença nem se
domine.
O processo
de aprendizagem de Alberto, compreendendo a sua tomada de consciência
sobre o sistema de injustiça em que está calcado o funcionamento
do seringal, a reavaliação de suas convicções
políticas, mostra-se concretizado quando o principal motivo que
o infelicita cessa. Podendo deixar o seringal e a selva, ele se permite
uma nova mentalidade. Não mais acredita que a evolução
da humanidade dependa das velhas castas e de seus direitos adquiridos,
visualiza que a vida humana só transporá o simples rastejar,
se os “velhos
processos” forem abandonados e novas
experiências tentadas: “[...]‘Não
era, decerto, no que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem
viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio’(35)
”.
No diálogo
que mantém com Juca Tristão, sente-se à vontade para
admitir que não se considera mais nem monárquico nem republicano
e que almeja “justiça
para todos”.
Faz um prognóstico
que o patrão não entende, comunicando que sonha com a evolução
do ser humano mas que acredita ser a evolução lenta e a sede
de justiça mais profícua.
A transformação
de Alberto, compreendendo uma reflexão e uma prática não
é completa, seu individualismo se sobrepõe ao seu senso de
justiça social. A decisão de ajudar Firmino a fugir do seringal,
fornecendo a lima para cortar as correntes da canoa na qual ele pretende
fugir revela-se um ato temerário, uma vez que ajuda o amigo e considera
justo que ele deseje a liberdade, mas teme se comprometer, arriscando seu
futuro. Quando Firmino e os demais seringueiros fugitivos são capturados,
vem-lhe o receio de que se descubra que ele teve participação
na fuga. Ao tomar conhecimento do castigo imposto aos fugitivos, ele se
horroriza, mas se cala. Não defende os seringueiros, apesar de estar
convicto de que eles nada devem, não ousa questionar o patrão.
Sabe que reagir significará perder a chance de partir, de recomeçar
sua vida em Portugal e terminar seus estudos.
Seu comportamento
em defesa da monarquia fora diferente. Pelos princípios monárquicos,
arriscara-se, exilara-se, afastara-se da mãe, da pátria.
Como o pai, que não traíra esses princípios nem mesmo
para ter uma vida mais cômoda, aceitando cargos oferecidos pelos
republicanos em troca de adesão, ele defendeu a monarquia veementemente.
A mudança
de mentalidade ocorrida no seringal não leva de fato a uma ação
em favor da justiça social, da “justiça
para todos”,
aspiração
que ele revela ter ao patrão. Existem motivos que justificam a omissão
de Alberto. Não há condições objetivas para
que ele possa reagir contra as injustiças que presencia no seringal.
Está totalmente isolado, não tem apoio de ninguém.
Na revolta de Monsanto, ele contava com o apoio de outros que pensavam
como ele, jovens dispostos a se insurgir contra o regime republicano. O
enredo do romance demonstra que Alberto não encontra apoio nem no
guarda-livros nem no seu substituto de balcão. O primeiro parece-lhe
também insatisfeito com a tortura dos seringueiros, mas como ele,
teme se envolver; o segundo age como um capacho do patrão.
Ao final do
romance, a justiça será feita pela personagem menos provável
de praticá-la: o negro Tiago, submisso a Juca Tristão a ponto
de oferecer a cabeça como suporte para o objeto com o qual ele pratica
o tiro ao alvo, mas não capaz de tolerar no seringal as práticas
de tortura empregadas durante a escravidão negra. O fogo ateado
por Tiago tem como principal objetivo atingir Juca Tristão,
pois tranca as portas do barracão, impedindo que o seringalista
possa sair. Desse modo, a destruição se faz pela via mítica
do fogo e atinge a fonte da injustiça. (36)
O percurso
do enredo de A selva informa o assunto e a conseqüente organização
do romance. De acordo com o que expusemos, A selva faz a abordagem dos
principais tópicos de um romance do “ciclo
da borracha”. Grosso modo, temos conhecimento da
saga de uma personagem recrutada para o seringal e o detalhamento das condições
de viagem, comum a muitas obras, a passagem pelo centro e depois pela margem.
No centro, são abordados assuntos como o trabalho do seringueiro,
sua vida e suas privações, principalmente a privação
sexual, as ameaças do meio assombroso e dos seus habitantes selvagens;
na margem, focalizam-se os motivos que geram o sofrimento e a escravidão
dos seringueiros, trabalhadores que não progridem: a extorsão
através do aviamento, o poder do seringalista que controla com mão
de ferro o dia-a-dia no seringal, o seu enriquecimento, em contraste com
a pauperização dos seringueiros.
Numa consideração
inicial, em termos de conteúdo, A selva não apresenta uma
abordagem diferenciada quanto às obras da primeira fase do ciclo
nem quanto às análises empreendidas por alguns autores em
obras não ficcionais. O escorchante sistema extrativo já
havia sido analisado por Euclides da Cunha em À margem da história;
os problemas da escassez da mulher e da sua conseqüente negociação
foram expostos por Alberto Rangel e Carlos de Vasconcelos. Através
da escritura desses autores, das passagens literárias às
mais informacionais, tinham sido expostos os principais aspectos que iriam
caracterizar a abordagem sobre o ciclo. Salientamos que, apesar disso,
A selva atinge uma maior compreensão e aprofundamento do caráter
documental e histórico do ciclo. Dentro da temática histórica,
é a obra que melhor contempla todos os aspectos. Da viagem do recrutado
à revolta representada individualmente pela personagem Tiago, A
selva fornece um amplo painel para entendimento do processo econômico
do ciclo através do discurso romanesco. A obra apresenta os principais
atores envolvidos nesse processo. Os tipos, como o tio Macedo, que se comunicam
com o migrante ainda antes de ser seringueiro e que também o extorquem
quando ele consegue ganhar algum dinheiro e volta à cidade; o aviador,
representado pela personagem do Comendador Aragão, aventureiro português
que faz fortuna; o seringueiro nordestino (Firmino, Agostinho); o seringalista
(Juca Tristão); seus auxiliares (Balbino, Caetano, Binda); o filho
do seringalista (Juquinha); o agregado (Tiago), que não participa
do processo de extração, mas tem importância na vida
do seringal ; o caboclo (Lourenço), que no romance é o contraponto
para os arrivistas, pois não é movido pelo desejo de ganhar
dinheiro; o guarda-livros (Guerreiro), uma personagem bem delineada, e
o estrangeiro, protagonista (Alberto) e personagem secundária (Elias),
aparecida já no fim do romance.
A preocupação
de Ferreira de Castro de dar ao romance um plano verossímil e bem
arquitetado aproxima-o do documentário. Nas palavras de Márcio
Souza, o romance atinge a mesma precisão de um “relatório
crítico”
e consegue resumir “os
trinta anos de loucuras nos seringais”.(38)
Em relação
ao epigonismo característico da primeira fase, ao qual já
nos referimos na introdução desse capítulo, A selva
dele se afasta, haja vista o autor Ferreira de Castro não estar
inserido num mesmo contexto de produção, tal como Cunha,
Rangel e Vasconcelos. Desse modo, a criação romanesca de
Ferreira de Castro se origina fundamentalmente do fato de necessitar pôr
em cena o mundo do seringal, fruto de sua vivência, como ele próprio
informa. Para que Ferreira de Castro desse continuidade a um discurso literário,
seria necessário que representasse o trabalho continuado de vários
romancistas num mesmo contexto de produção, fosse esse trabalho
de caráter semelhante ou antagônico.(39) O que não
significa, por outro lado, que a obra A selva não possua expressão
amazônica. Contexto de produção deve ser entendido
como as condições e as motivações que levam
o autor a criar, que se distinguem de ambiente que ele efetivamente enfoca.
Um dos diferenciais
que apontamos na obra de Ferreira de Castro quanto à produção
desses outros autores é a linguagem. A selva é escrita num
estilo límpido, preciso e objetivo. Algumas passagens descritivas
do romance ostentam a preocupação com o detalhe, mas não
transmitem informações através de torneios sintáticos
característicos a Cunha e Rangel. A clareza de linguagem apresentada
por Ferreira de Castro distingue-se mesmo em comparação aos
outros autores portugueses. Para Brasil, a sua escrita despoja-se da herança
de escritores como Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça
de Queiroz, Fialho de Almeida, pois opta por não explorar a opulência
verbal ou o vernaculismo, preferindo um estilo “rico
da seiva da vida,
sem artificialismo.”
(40)
Num plano,
porém, a expressão lingüística de Ferreira de
Castro e de Euclides da Cunha e seus epígonos confluem: na criação
de um discurso voltado para as excentricidades do meio amazônico.(41)
Embora sem a grandiloqüência destes, Ferreira de Castro expressa
os mesmos espasmos diante da natureza assombrosa, de sua fantasmagoria
de luzes e sombras, seus silêncios inquietantes e seus ruídos
assustadores, suas árvores portentosas e seu entrançado de
cipós traiçoeiros, tudo concorrendo para a tese apresentada
no romance de que o ambiente amazônico animaliza o ser humano: “[...]
o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar
o seu destino aquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império
vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso
se lhe tornava vestir pele de fera [...]”.
(42)
A selva distingue-se
das obras da primeira fase como distinguir-se-á também de
obras da fase posterior por apresentar um plano narrativo que não
se detém no decalque de um aspecto do ciclo, abordando-o superficialmente.
O patrão seringalista articula-se num grupo econômico, possibilitando
a compreensão do significado de seu papel nesse grupo. Apresenta-se
para além do estereótipo de um homem mau; é a representação
de um homem enriquecido pela super exploração do trabalho
de outros; é o patrão que defende a sua riqueza acumulada
e não pode prescindir de sua fonte geradora, tal qual depreende-se
deste trecho do romance em que encolerizado com a fuga dos seringueiros,
Juca Tristão toma conhecimento das suas “dívidas”
acumuladas:
Inclinado
sobre o ‘contas-correntes’,
Alberto elucidou:
- O Manduca
devia um conto e setecentos e vinte e três... O Firmino um conto
e duzentos... Quem eram os outros?
- O Romualdo
e o Aniceto –
comunicou
Balbino.
Alberto
folheou de novo:
- O Romualdo,
dois contos e seiscentos e quarenta...
Juca voltou
a exaltar-se:
- Dois contos
e seiscentos! Cachorro! Cachorro! E eu a ter pena dele! Sou tolo mesmo!
Vinha chorar para o pé de mim e, só em pílulas para
a febre, lhe vendi uma fortuna! Que morresse, que fosse para o inferno!
Mas eu fui tolo e ele agora me paga assim!
Ao pequeno
silêncio sucedeu a voz de Alberto:
- O Aniceto
devia oitocentos e noventa...
- Oitocentos
e noventa... –
Um conto!
Com dois e seiscentos do outro, quase quatro. Quanto devia o Manduca?
- Um conto
e setecentos...
- Cinco
contos e tal! E o Firmino?
- Um conto
e duzentos...
- Seis contos!
Quase sete contos por água a baixo! Eu aqui a sacrificar-me longe
da minha mulher e do meu filho, para que esses cachorros me roubem assim!
Porque é um roubo! É um roubo! E eu que podia estar mesmo
descansado na minha fazenda do Marajó! Se os apanho!... (43)
Apontado por
Djalma Batista como romance social, A selva atinge essa perspectiva ao
apresentar as contradições do mundo do seringal. A passagem
do romance em que os seringueiros fugitivos são capturados por outros
seringueiros demonstra uma dessas contradições, que é
refletida pelo protagonista nos seguintes termos: “[...]
‘Como podia
ser, como podia ser que as vítimas saboreassem também o papel
de algoz? De que sórdida matéria era formada a alma de alguns
homens, que gozavam em castigar a desgraça alheia, mesmo quando
era igual à deles?’(44)
”
Por outro lado,
a contradição também constitui o plano ideológico
do romance que propaga a tese do meio como responsável pelos desajustes
humanos. De acordo com Lucas, o romance de tese costuma aplicar o método
dedutivo para exame dos problemas sociais, significando que o conceito
antecede a realidade.(45) Analisando o determinismo do meio esboçado
em A selva, é essa precisamente a noção –
ante um meio estabelecido como
bárbaro, todos os indivíduos se barbarizam.
O ficcionista
e ensaísta Jorge Tufic, ao fazer um levantamento da produção
ficcional sobre o “ciclo
da borracha”, declara que A selva e La voragine, obra do romancista
José Eustásio Rivera, encerrariam essa produção
e destaca que as obras do ciclo não atingiram “um
vago contorno
geral da realidade em causa”.
(46) Há,
na avaliação do autor primeiramente, uma falha ao não
considerar um veio de produção que continuou aberto para
a temática do ciclo e, em segundo lugar, um juízo precoce
sobre o grau de aprofundamento das obras.
Ao destacarmos
A selva como um romance que, seguindo a linha da abordagem histórica
do ciclo, propicia uma compreensão abrangente do tema, não
desconsideramos que em outros romances, como, por exemplo, Coronel de barranco,
ocorra também uma construção ficcional contundente.
O tratamento dado à obra em relação ao ciclo recebe
o mesmo detalhamento didático de A selva. A selva e Coronel
de barranco são, por isso, dois romances em que a realidade em causa –
“o ciclo da borracha” –
é tratada com aprofundamento. Entretanto, a obra de Ferreira de
Castro apresenta um diferencial em relação à de Araújo
Lima que nos levou a elegê-la como recorte para esse estudo. Seu
protagonista é partícipe e analista no mundo do seringal,
enquanto Matias, de Coronel de barranco, é basicamente analista.
O fato de ser Alberto um protagonista que vive as próprias situações
que analisa confere densidade à narrativa através do embate
que se cria entre sua consciência e o sistema com o qual se depara.
Tufic também
observa que o romance La voragine diverge de A selva por possuir um caráter
de libelo ou revolta enquanto o último somente relataria os dramas
vividos no seringal. Embora não possa se assemelhar a um libelo,
a abordagem do romance A selva denuncia a extorsão e a escravidão
num seringal amazônico e seu desfecho propõe uma destruição
desse sistema injusto, determinando também um sentido de revolta.
Revolta que não é arquitetada nem praticada por seringueiros
indignados. O fato de essa revolta ser praticada por uma personagem negra
demonstra que a visão de mundo do autor, expressa pelas suas palavras
de que em seu espírito sobrepõe-se “[...]‘uma
causa mais
forte, uma razão maior: a da humanidade’
”(47) , não
tem como objetivo pôr em evidência apenas uma forma de injustiça.
O negro Tiago, despojo de outro processo de espoliação é,
por isso, o escolhido para pôr fim ao local que representa a injustiça
(o barracão) e o elemento humano que a executa (o seringalista).
Suas palavras de justificativa do ato que pratica surtem o efeito de uma
sentença: “O
homem é
livre.”
(48) A destruição
não é eficiente, uma vez que o seringalista é apenas
um elo, e inclusive o não mais poderoso, da grande cadeia de espoliação
montada em vista da extração do látex, mas é
a destruição que o romancista elege como possível
no contexto em que se desenvolve o romance.
Apesar de possuir
características em consonância com o romance neo-realista
português o qual recebe influência da ficção
sócio-realista brasileira dos anos 30 ,(49) A selva apresenta os
pontos básicos do que Alfredo Bosi considera um romance de tensão
crítica em oposição a um romance de tensão
mínima, mais em acorde com a prosa neo-realista. Segundo o autor,
o romance de tensão crítica alcança “uma
verdade histórica
muito mais profunda”,
não
se restringindo apenas a enfocar a cor local ou datar os fatos. (50)
É, pois,
A selva um romance que não se limita à perspectiva de enfocar
fatos isolados característicos do ciclo e que procura concentrá-los
e organizá-los sistematizando-os. Abrangendo tanto o centro quanto
a margem, a narrativa demonstra o nexo causal entre eles. Não aleatoriamente,
Alberto vive antes a experiência do centro e depois a da margem.
Quando vem a se instalar na margem, já não é mais
possível considerá-la sem a outra experiência. A manipulação
do contas-correntes do seringal o põe a par de uma verdade que suspeitara
ao receber a nota de seu aviamento e compará-la com a dos outros
seringueiros no tempo em que ainda era um brabo como eles. As faturas lançadas
evidenciam que os débitos dos seringueiros e o conseqüente
crédito para Juca Tristão resultam de uma cobrança
extorsiva do preço da mercadoria aviada e de um pagamento ínfimo
pela produção da borracha, depois vendida a um alto preço.
Paralelamente, toma conhecimento de que o trabalho não pago dos
seringueiros proporciona as altas despesas do seringalista:
Estavam ali
as faturas, vendendo a Juca Tristão por cinco o que ele entregava
ao seringueiro por quinze e muitas vezes até por vinte. Estavam
as notas da borracha, que se comprava ali por dois e se vendia por cinco
e seis na praça de Manaus.
Alberto
sentia uma curiosidade dolorosa ao ler toda essa papelada, confrontando
algarismos e inventariando o tempo que cada um trabalhava a mais em proveito
do amo. Depois, chamado pelas disparidades das situações,
quedava-se absorto sobre as cifras da mesada que Juca enviava à
mulher –
três
contos de réis que significavam o preço dos muitos anos que
um seringueiro necessitava para o seu resgate. Alberto juntava aquilo às
viagens do patrão a Belém, sempre marcadas por grandes quantias
recebidas da ‘casa
aviadora’,
as maiores que se viam em todos os lançamentos
verificados –
e ficava mais pensativo ainda. Doíam-lhe essas descobertas, esses
números e contrastes. Poder absoluto, por herança ou outro
conceito estabelecido, em prol dum só todos os demais se sacrificavam.
Confirmava-se, assim, tudo quanto se dizia sobre a vida dos seringais,
desde o Pará à Bolívia e do Ceará distante
às fronteiras do Peru, onde a sorte dos párias não
seria melhor. (51)
Além
do sistema de aviamento, base de sustentação econômica
do ciclo, o romance expõe as conseqüências que a saga
da extração traz para a população humana, transformando
o encontro do migrante nordestino e do nativo amazônico num desfecho
traumático através do assassinato do caboclo Lourenço
pelo seringueiro Agostinho. O motivo causador do assassinato não
é a riqueza da terra, mas o segundo motivo de cobiça no seringal,
a mulher. Agostinho pratica a vingança sangrenta contra Lourenço
porque este não lhe concede em casamento a filha ainda criança.
No romance, Lourenço é o símbolo do homem nativo.
Indiferente à sede de enriquecimento, sua existência se orienta
apenas pela posse de “uma
barraca, uma mulher e uma canoa.” Os homens nordestinos
que vêm desbravar a selva, atraídos pela promessa de enriquecer,
despertam-lhe piedade, pois ele os vê sucumbirem vencidos pelo meio
que lhes é adverso. A vida na selva só é fácil
para ele que “letargicamente”
aceita viver sem ambições.
O processo de exploração da riqueza natural, trazendo com
ele o ádvena e conseqüentemente a cobiça, as necessidades
incontidas, aniquila o ritmo de vida dos habitantes cordatos e hospitaleiros
como Lourenço.
A repercussão
mundial que alcançou o romance A selva, tendo sido traduzido na
Alemanha, Bélgica, Bulgária, Tchecoslováquia, França,
Holanda, Inglaterra, Espanha, Iugoslávia, Itália, Noruega,
Romênia, Suécia, Suíça, Canadá, Estados
Unidos, ampliou conseqüentemente o seu leque de estudos.
Uma parte da
crítica estrangeira enfatiza a grande capacidade da obra de evocar
o exotismo da natureza amazônica. Em prefácio escrito em 1932
para a tradução alemã , o tradutor Richard Bermann
refere-se à selva como o inferno verde e à capacidade de
Ferreira de Castro de descrever a sua “trágica
beleza”(52).
Para o crítico
italiano Alberto Viviani, a novidade na obra de Ferreira de Castro acha-se
no ambiente ou, mais precisamente, no poder que a obra demonstra estar
concentrado na natureza, soberana em relação ao ser humano.
Põe, por isso, a natureza no papel de protagonista do romance: “[...]
tudo o mais não
passa de complemento necessário [...] tudo está subordinado
à vastidão primitiva da selva que hostiliza e aniquila”.
(53)
A crítica
estrangeira, que não nos cabe detalhar nesse trabalho, é
por nós enfocada à medida em que sua percepção
do meio amazônico ressaltada pela leitura do romance se articula
com a percepção da crítica brasileira.
A Amazônia,
definida por Euclides da Cunha como a “última
página ainda a escrever-se do Gênesis”(54)
é um referencial geográfico e literário difundido
amplamente no Brasil. Exótica para os próprios brasileiros,
é caracterizada da seguinte maneira por Peregrino Júnior:
O homem que
penetra a Amazônia –
o mistério, o terror, ou se se quiser, o deslumbramento da Amazônia –
escuta desde logo uma voz melancólica: a voz da terra. Abandonado
na vastidão potâmica das águas fundas, dos igarapés
e igapós paludiais, das ásperas florestas compactas, perdido
naquele estranho mundo de assombração, acossado pelo desconforto
do calor sem pausa e pela agressão da mata insidiosa, com seus bichos,
suas febres, suas sombras, seus duendes, êle logo de entrada recebe
um golpe terrível, e desde então trava a luta mais trágica
da vida, que é a da adaptação ao meio cósmico.
As fôrças que o esmagam –
fôrças
telúricas de aparência indomável –
são
um convite permanente à retirada e ao regresso. Paraíso dos
aventureiros, dos charlatães, dos mercadores e dos flibusteiros,
a Amazônia em geral não retém ninguém, expulsa
os seus desbravadores, que dela, no entanto, se recordam sempre com temor
e nostalgia ao mesmo tempo. Daí o destino nômade dos seus
habitantes, que dificilmente ali se fixam e permanecem. O homem é,
na selva, o intruso descrito por Euclides, sempre insatisfeito e instável,
esperando a hora de enriquecer para voltar, para fugir, para se libertar
em suma... Afinal de contas só o caboclo –
fatalista, taciturno e triste, - na inércia
do seu conformismo congênito, ali fica, e não quer sair. O
homem daquele mundo é assim um ‘ser
destinado ao terror e
à humilhação diante da natureza’.
Todos, de resto, nativos e adventícios,
vivem lá num estado permanente de perplexidade, que explica a atitude
literária de quantos viram de perto a Amazônia [...]. (55).
Peregrino Júnior
veicula essa concepção em 1955, demonstrando ainda o mesmo
referencial exposto por Euclides da Cunha, em 1908, no prefácio
de Inferno verde ou em 1909, em À margem da história. De
forma significativa, na expressão crítica brasileira, o tema
do ambiente aparece como subsidiário ao tema do ciclo na análise
de A selva. Um dos textos que mais se destaca como estudo do romance foi
escrito por Humberto de Campos sob o título “Um
romance amazônico”.
Neste texto,
Campos toma a defesa do romancista português em virtude da acusação
que lhe foi feita por setores da crítica brasileira de ter o escritor
enunciado inverdades sobre a realidade amazônica.
Campos ressalta
que o verdadeiro conhecimento sobre a Amazônia foi revelado a partir
da escrita de Ferreira de Castro, respaldada pela experiência, esta,
segundo ele, imprescindível para conhecer a fundo o seringal. A
verdadeira dimensão do assunto teria sido ignorada ou não
compreendida pelos outros autores que tentaram expressá-lo porque
o perceberam externamente, apenas como visitantes. Neste assunto, Campos
faz do homem o foco central: “[...]o
que interessa, na Amazônia, à literatura, é o homem,
e, particularmente, o seringueiro e a sua tragédia”.
(56)
Conquanto ponha
na linha de frente da expressão amazônica a aventura do homem
como desbravador, a natureza não deixa de figurar com um poder grandioso,
a ponto de a luta que o homem contra ela travou se assemelhar para o autor
como o “combate
de Siegfredo contra o dragão”.
A seu ver, essa heróica
luta em que a natureza saíra vencedora, fazendo milhares de vítimas
não tinha encontrado a justa expressão antes de A selva.
Campos também se deixou fascinar pela espécie de “retórica
do assombro”,
expressa tanto pelos críticos
quanto pelos ficcionistas. Uma passagem de um conto de sua autoria, intitulado “O
furto: um conto
amazônico”
, exemplifica-o:
Na quietude
daquela hora de assombros, afugentando ou convocando os demônios
da terra, coaxavam os sapos, martelando, monótonos na bigorna do
silêncio nas moitas húmidas de onde partiam, confundindo-se,
tantas vozes anônimas, os pirilampos eram como a centelha dessa oficina
monstruosa, onde os batráquios batiam, talvez, a couraça
de ouro do sol. (57)
O enfoque no
exotismo já não se faz presente na análise empreendida
por Márcio Souza em seu ensaio A expressão amazonense. Numa
severa avaliação da produção literária
amazonense, o autor aponta a sua inconsistência por não criar
uma representação autêntica da realidade amazônica,
isolando-se na ostentação e proporcionando apenas desfrute
para alguns pares de literatos que não almejavam atingir um público
abrangente e sim uma pequena elite interessada na literatura como um ornamento.
Para Souza, durante o “ciclo
da borracha”,
essa tendência
atingiu o ápice:
Não
há nenhum escritor do “ciclo
da borracha”, com exceção
de Ferreira de Castro, marcado com a tarefa de escrever como um escritor.
Eram todos bacharéis que escreviam e a literatura algo de não
desmesuradamente perigoso. O bacharel que escrevia tinha um público
especializado, da mesma forma que as diversas qualidades da borracha possuíam
seus compradores determinados. Raramente publicavam um livro, eles
tinham os jornais. O livro já pressupunha uma universalidade, um
alcance que não interessava. O jornal satisfazia pela postulação
do indefinido, do punhado de leitores fiéis e selecionados que iriam
escolher os poemas entre o noticiário e o reclamo.(58)
Souza aponta
em A selva o desmascaramento da ostentação. A face que a
prosperidade do ciclo oculta por intermédio da cidade com sua parte
economicamente prestigiada da população é revelada
pelo discurso literário de Ferreira de Castro: “[...]
Mostrando o reverso da ostentação,
ele sentiu a vertigem dessa natureza submetida e a sorte dos miseráveis
errantes. A selva possui o discurso exato, diariamente sofrido, onde a
realidade não era uma aparência incômoda, obrigando
a literatura a se tornar uma boêmia perdida.”(59).
Ferreira de
Castro realizou a expressão lúcida do “ciclo
da borracha”, distinguida por Souza, como um autor
à margem do processo de produção literária
amazonense. A visão do ciclo que logrou romper o marasmo de uma
literatura provinciana, sendo o romance, nas palavras de Souza, o primeiro
a marcar encontro público com os leitores do mundo, possui o acento
do escritor estrangeiro que mantém uma concepção de
mundo eurocêntrica. Em algumas passagens do romance, isto pode ser
observado através de uma negatividade na descrição
da natureza amazônica em relação a uma positividade
da natureza européia:
[...] A árvore
solitária que borda melancolicamente campos e regatos na Europa,
perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo
em brenha inquietante, impunha-se como inimigo. Dir-se-ia que a selva
tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam
de todos os lados. Nada a assemelhava às últimas florestas
do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura
[...]. (60)
Ferreira de
Castro retoma o discurso de viajantes, cronistas e cientistas sobre a Amazônia
à medida que os motivos que compõem a trajetória do
protagonista Alberto no seringal são os da confrontação
com o meio bárbaro. O enredo do romance termina com a destruição
da fonte de injustiça mas também com a possibilidade de Alberto
deixar o meio que poderia levá-lo à condição
de fera.
Toda a constituição
do enredo se volta para a aprendizagem subordinada à libertação
do meio. Alberto perde a soberba ao passar pela experiência do seringal,
constatar o sistema de espoliação do trabalho humano ali
implantado, mas o mesmo meio que o faz descobrir a solidariedade para com
os homens humildes que consomem a vida num trabalho de que não tiram
proveito se torna o algoz de todos esses homens e dele próprio.
Dando este contorno à obra, o ficcionista segue uma tendência
do romance naturalista, destacada por Brayner:
Reduzindo
todos os homens a uma mesma fórmula –
criaturas dominadas pelo meio, raça
e momento –
o romancista naturalista parte sempre do princípio mestre que todos
os homens são fundamentalmente iguais. Não importa a classe
social a que pertençam e nem mesmo o grau de cultura a que se liguem;
submetidos ao ambiente e às paixões instintivas, agem todos
de forma idêntica [...]. (61)
A selva significa
essa redução da personagem protagonista que chega ao meio
desconhecido como um ser distinto perante os outros. É estudante
de direito enquanto os demais recrutados não possuem instrução;
leva para a barraca livros entre seus pertences ao passo que os demais
muitas vezes além das roupas do corpo levam apenas as ferramentas
básicas aviadas pelo seringalista; é moço fino, não
adaptado para o trabalho grosseiro de penetração na mata
e corte das seringueiras e os outros, seres rudes dos quais se espera adaptação
ao meio. Entretanto, o meio irá igualar o protagonista no decorrer
da narrativa aos outros. O cerne desse momento se estampa na passagem do
romance em que o protagonista, ao se olhar no espelho, não vê
sua fisionomia atual, mas o mesmo rosto embrutecido, animalizado dos homens
com os quais labutou outrora nas estradas de corte. A única chance
que se apresenta à não capitulação ao meio
é deixá-lo, fugir de sua barbaria em busca da civilização.
Essa é a ambigüidade da realização social do
romance: documentar as relações econômicas que promovem
o ciclo e, ao mesmo tempo, apresentar uma justificativa determinista, fatalista,
para essas relações.
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NOTAS
12) Na
definição de Mário Ypriranga Monteiro, o absentismo
se caracteriza pela falta de vivência que tem o autor do meio que
enfoca em sua obra. Dessa forma, ele cria através do talento ou
da imaginação ou baseado em conhecimentos que não
os da experiência direta. O autor absentista pode ser total ou parcial,
sendo o último aquele que, apesar de ter estado no meio que retrata,
conheceu-o superficialmente. Monteiro chama a atenção de
que o autor absentista também pode criar uma falsa percepção
da realidade. Não condena o trabalho de criação do
absentista total, mas faz notar “que
todo aquele que escreve, mesmo tratando-se de ficção, arca
com a responsabilidade de transmitir informações, de ilustrar,
ou de recriar estados sociais, de manter-se numa posição
de respeito à fidelidade de um compromisso não escrito mas
aberto às sanções de fato (e até de direito,
não raro), compromisso esse que se espera contenha apreciável
volume de interesse honesto em permutar com o leitor, usuário que
espera por sua vez encontrar na obra-de-arte um motivo estético
ou algo mais que isso, componente satisfatória , uma terapêutica
[...]”
(Fatos da literatura amazonense, p. 65).
13)
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 21.
14) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 26.
15) Ibid.,
p. 29-30.
16) Em “Um
romance amazônico”,
Humberto de Campos aponta a originalidade de A selva justamente pelo fato
de o romance ter sido escrito por um autor que viveu no seringal. Para
Campos, somente a vivência neste poderia resultar na sua justa expressão.
Comprova a legitimidade da escrita de Ferreira de Castro e absolve-o das
críticas de ter sido autor de inverdades, recorrendo a exemplos
presenciados por ele próprio como gerente de seringal, demonstrando
que Ferreira de Castro não expressou exageros em sua obra (1962,
p. 427-467).
17) Jaime
BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 21.
18) MAGALHÃES
JÚNIOR Apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem,
p. 95.
19) Abordando
os problemas que envolvem a nacionalidade na literatura brasileira, Lúcia
Miguel Pereira questiona a sua existência, notando que as realidades
brasileiras não podem apresentar uma feição homogênea: “[...]
a brasilidade totalitária é um mito, uma lenda, um tabu a
que se apega a nossa vaidade. Não existe, nem poderia existir, ao
menos no sentido em que o queremos tomar, de feitio moral especificamente
brasileiro, igualando os homens do Rio Grande do Sul, e os diferenciando
dos outros povos [...]”
(Regionalismo e espírito Nacional In: A leitora e seus personagens:
seleta de textos publicados em periódicos (1931-1943) e em livros,
p. 39). Quanto a Ferreira de Castro ser um escritor estrangeiro cujo
romance trata da realidade amazônica, a autora faz a seguinte apreciação: “[...]
É mesmo de notar que um dos grandes romances sobre o Brasil (ou
sobre a Amazônia?) seja de um estrangeiro. Ao fato acidental de ter
nascido em Portugal o Sr. Ferreira de Castro devemos não se ter
o ‘espírito
brasileiro’
encarnado num seringueiro.” (Ibid,
p. 39).
20) José
Maria FERREIRA DE CASTRO. Pequena história de A selva. In: José
Maria FERREIRA DE CASTRO. A selva, 1972, p. 27
21) Jaime
Brasil faz notar que o romancista, enquanto homem independente, “detesta
a política
e as suas baixas manobras, mas ama a liberdade com fervor religioso.”
(Ferreira de
Castro: a obra e o homem, p. 52). A feição humanista da personalidade
de Ferreira de Castro é ressaltada na mensagem que lhe é
entregue em Portugal por vários intelectuais em 20 de junho de 1953,
subscrita por milhares de cidadãos portugueses: “[...]
Todos aqueles que conhecem Ferreira de Castro sabem que a piedade humana,
que vibra em cada uma das suas páginas, não é um simples
processo literário e muito menos um artifício do seu talento
de escritor; esse mesmo amor e compreensão vivem no romancista,
são a sua força, a sua riqueza e tormento, o traço
mais fundo na sua personalidade, são ele mesmo debruçado
sobre a dor do mundo. Dificilmente se encontrará outro escritor
cuja obra seja, tão fielmente, a expressão da sua própria
alma. (Apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p.
76).
22) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 30.
23) Ibid.,
p. 39-40.
24)
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 41-2.
25) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 54-55
26) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 125.
27) Ibid.,
p. 193.
28) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 204.
29) Ibid.,
p. 247.
30) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 236-7.
31) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 217-8.
32) Ibid.,
p. 277.
33) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 232.
34) Ibid.,
p. 249.
35) Ibid.,
p. 244.
36) Em
seu livro Amazônia, mito e literatura, Marcos Frederico Krüger
salienta: “o
fogo como elemento
de destruição é, tal como o dos duplos, motivo mitológico
bastante utilizado na produção literária [...]”
( p. 177).
37) O
agregado é personagem recorrente na ficção do ciclo.
No romance Terra de ninguém, é Epifânio, negro que
atua como feiticeiro no seringal; em Dos ditos passados nos acercados do
Cassianã, é o índio Pacatuba, afilhado do seringalista;
em Coronel de barranco, Inácio, caboclo que vem parar no seringal
após lutar junto a Plácido de Castro. Geralmente aparecem
como rebotalhos devotados e fiéis, mas em romances como A selva
e Dos ditos passados nos acercados do Cassianã revoltam-se e atentam
contra a vida do patrão.
38) Márcio
SOUZA, A expressão amazonense: do colonialismo ao neo-colonialismo,
p. 137.
39) Essa
premissa para criação de uma novelística é
exposta por Alejo Carpentier em Literatura e consciência política
na América Latina ( p. 10).
40) Jaime
BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p. 47.
41) Sobre
as fontes da engendração desse discurso, ver: Neide GONDIM,
A invenção da Amazônia, 1994.
42) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 114.
43) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 281.
44) Ibid.,
p. 291.
45) Fábio
LUCAS, O caráter social da ficção do Brasil,,
p. 17.
46) Jorge
TUFIC, Existe uma literatura amazonense?, p. 21.
47) José
Maria FERREIRA DE CASTRO Apud Humberto de CAMPOS, Um romance amazônico.
In:.Crítica, p. 432.
48) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 306.
49) FERREIRA
DE CASTRO estudava a produção dos autores brasileiros da
geração de 30, conforme se evidencia por artigo que publica
em 1934, intitulado “Literatura
social brasileira”.
O autor é
considerado um precursor do neo-realismo português, embora o termo
tenha sido efetivamente empregado por Joaquim Namorado, no artigo “Do
neo-realismo, Amando Fontes”,
em 1938. Um dos principais postulados do neo-realismo constitui a denúncia
social, especialmente da injustiça praticada contra os humildes.
(Cf. Massaud MOISÉS, Neo-Realismo In: Dicionário de literatura
portuguesa, p. 244).
50) Alfredo
BOSI, História concisa da literatura brasileira, p. 443.
51) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 212-13.
52) Richard
BERMANN apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro : a obra e o homem,
p. 198.
53) Alberto
VIVIANI apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: A obra e o homem,
p. 112.
54) A
frase encontra-se no prefácio escrito por Euclides da Cunha para
a obra Inferno verde, de Alberto Rangel (Euclides da CUNHA In: Alberto
RANGEL, p. 10). As considerações de Euclides da Cunha sobre
o caráter desconhecido e fabuloso da região amazônica
são tecidas ao longo desse prefácio e de outras obras suas,
como, por exemplo, À margem da história.
55) João
da Rocha Fagundes PEREGRINO JÚNIOR, Grupo nortista. In: Afrânio
COUTINHO (Dir.). A literatura no Brasil, p. 153.
56) Humberto
de CAMPOS, Um romance amazônico. In: Humberto de CAMPOS, Crítica,
p. 429.
57) Humberto
de CAMPOS, O furto. In: Humberto de CAMPOS, O monstro e outros contos,
p. 89.
58) Márcio
SOUZA, A expressão amazonense: do colonialismo ao neo-colonialismo,
p. 125.
59) Ibid.,
p. 140.
60) José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 114-115.
61) Sônia
BRAYNER, Labirinto do espaço romanesco, p. 29.
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