O amante das amazonas: o ciclo sob o olhar de um analista-autor



2ªedição, Editora Itatiaia.

Rogel Samuel, autor de O amante das amazonas, agrega duas características relevantes para nosso estudo sobre as obras literárias do “ciclo da borracha”. A primeira delas é a experiência que, em seu caso, não é direta, vem de reminiscências legadas pela memória de antepassados, como o avô, um alsaciano enriquecido pelos lucros da borracha amazônica, no início do século XX. A segunda característica motivadora do estudo desse romance surge do fato de o autor ser analista literário, atividade resultante de sua carreira no magistério. (108)
Entendemos ser a atividade de analista empreendida por Rogel Samuel a promotora da diversificação de abordagem do romance O amante das amazonas. Não o nomeamos, contudo, um escritor-crítico, conforme concebe Leyla Perrone-Moisés(109)  por entendermos que o autor exerce a atividade de analista paralelamente a de escritor e por considerarmos que tanto a sua produção teórica quanto a sua produção ficcional não alcançaram a extensão e o nível de sistematização necessários à qualificação de escritor-crítico, como o estabelece o estudo de Perrone-Moisés. Uma vez que Samuel não pratica a análise do texto ficcional como corolário de sua atividade de escritor, podemos considerar o oposto: que sua atividade de professor e analista possibilitou a expressão de ficcionista, expressão essa que marcará a renovação da terceira fase ficcional do ciclo. 
O amante das Amazonas realiza a brevidade que, segundo lembra o narrador de um romance de Ítalo Calvino, é necessária aos romances modernos: “[...] Hoje em dia, escrever romances longos é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual sua própria trajetória e logo desaparecem [...].” (110) Dessa forma, o romance se divide em 23 capítulos curtos: Viagem, Palácio, Numas, Paxiúba, Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei Lothar, Perdida, Ribamar, Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua das Flores, Encontro, Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos que, por sua vez, não estabelecem uma continuidade linear do enredo, alguns deles basicamente introduzem personagens, o que reforça a característica fragmentária da narrativa.
Fragmentado é ainda o narrador do romance. Divide-se entre primeira e terceira pessoas. Em primeira pessoa, narra Ribamar, retirante do povoado de Patos, em Pernambuco, vindo para a Amazônia em 1897. Já a voz que narra alternando a primeira e terceira pessoas tece comentários, dialoga com o leitor, insere digressões e se assume como ser ficcional: “[...]sei, e de antemão o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense, e espere o leitor e a leitora o surpreender-se como, apesar disso, o fio do destino do que vai descobrir é correto. Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação [...].” (111)
As narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira pessoa se personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em primeira pessoa da personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez, ser atribuída ao narrador em terceira pessoa, que destaca: O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.”(112)
Depreendemos que a impessoalidade da terceira pessoa transforma-se em diversos momentos da narrativa em uma voz paralela à do narrador-personagem Ribamar. Essa outra voz que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu, o narrador) e se assume como narrador, concomitantemente cria uma noção de veracidade extratextual, entretanto, há aí também um artifício ficcional: “[...] do que pude conseguir de jornais da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha Batelão nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção e poderia citar, em notas de pé de página, as fontes de onde obtive tal informação [...]”(113)
A abertura do segundo capítulo do romance apresenta-se como um dos momentos em que narrador-personagem e narrador analista se fundem. Essa passagem norteia a própria leitura que devemos fazer do romance, pois a ficção se auto-define: 

[...] esta narrativa-paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão - vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Souza, aquele adolescente que eu era aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão, que sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando. (114)

O entendimento do caráter parodístico atribuído pelo narrador ao romance requer algumas considerações sobre a especificidade desse tipo de discurso. Em seu estudo acerca da tipologia do discurso na prosa, Bakhtin(115)  argumenta que o procedimento parodístico do discurso se caracteriza não somente por uma remissão ao objeto referencial da fala, como também a um segundo contexto, um ato de fala de outro emissor, sendo por isso um discurso duplamente orientado ou de duas vozes. Bakhtin estabelece também a diferença entre a paródia e a imitação, fazendo notar que enquanto aquela cria um antagonismo em relação à voz na qual se aloja, essa torna própria a palavra do outro, fundindo-se a ela. Outra peculiaridade que deve ser considerada, segundo o autor, é que a fala parodiada é apenas subentendida. Bakhtin destaca que o campo de possibilidades do discurso parodístico é bastante amplo, pode lançar mão de um estilo enquanto estilo, de modos típicos de pensar social ou individualmente. A construção parodística pode se limitar a níveis da superfície verbal ou atingir níveis mais profundos. O uso parodístico da palavra do outro, lembra o autor, não se dá apenas no campo literário, ele ocorre sempre que há intenção de pôr um acento irônico nas palavras de um outro emissor, criando uma ambivalência em relação a essas palavras: [...] Em nossa fala cotidiana, é extremamente comum este uso das palavras do outro, especialmente no diálogo em que, freqüentemente um interlocutor repete de modo textual a afirmação de outro interlocutor, investindo-a de outra intenção e enunciando-a a seu próprio modo: com uma expressão de dúvida, de indignação, de ironia, de zombaria, de troça ou algo semelhante.” (116)
Sendo O amante das amazonas definido por seu narrador como uma paródia de romance histórico, é necessário chamar a atenção para o fato de que a maioria da produção ficcional sobre o ciclo pode ser considerada de enfoque histórico, haja vista essa ficção ter abordado aspectos em consonância com os dados históricos sobre o evento. Desse modo, os principais fatores que envolvem a história econômica do ciclo são retomados pelos ficcionistas. A ficção geralmente faz recortes desses fatores através de cenas que são comuns a muitas obras. O processo de transumância do nordestino, compreendendo os fatos antecedentes, como o sofrimento causado pela seca, a falta de perspectiva na terra natal até a decisão da partida, enfrentando a longa jornada do Nordeste ao Norte, atinge o cerne na ficção através da descrição da viagem. Nessa descrição, geralmente são enfocados o estado de submissão dos recrutados ao seringal, as condições do transporte onde são tratados como passageiros de terceira categoria, sem direito a dignas condições de higiene e à privacidade. 
Em O amante das amazonas, as descrições do barco e da viagem recebem um novo tratamento por meio de uma construção parodística que acrescenta um tom irônico ao tradicional tom de denúncia de outras obras: 

[...] Navio dentro do qual não cabia mais único engradado de porcos, alojando aquela horda que fedia podre, de suor, esterco de gado e urina – redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte – um pai esfolou um macho surpreendido com sua filha num vão de esterco; outro, bêbado, mijava ali no chão enquanto escorria até onde dormiam muitos, no chão; sobre um garajau de galinhas um homem sacou de si e se aliviou sob a luz de um candeeiro amarelo cheio de moscas. Era um soldado. 
Passamos do Farol de Acaraú ainda dentro daquele porão e paramos em Amarração para largar um cadáver, o preso e dois passageiros cobertos de varíola. Mas não tocamos em Tutóia, aportando em São Luís onde o Alfredo foi dentro dágua cercado por botes, catraias e se transformou em  gigantesca fera [sic] flutuante, lá subindo todos para bordo os vendedores de camarão frito, doces e frutas. Pois não foi uma viagem maravilhosa? [...](117) 

A linguagem em que a descrição é posta formula-se através de uma sintaxe não convencional que inclui cortes de conectivos, gerando um caráter sintético peculiar à linguagem coloquial (aquela horda que fedia podre). A sintaxe do texto também apresenta uma disposição de orações que possibilita a interposição de informações e torna significativa a desordem espacial no barco e as relações conturbadas entre os passageiros (redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte). A escolha de verbos e substantivo característicos da linguagem chula (esfolar, mijar, macho) demonstra a aplicação dos níveis de linguagem, o que permite que a condição dos passageiros se expresse com mais rudeza. Com a frase interrogativa no final do trecho, o sentido irônico se estabelece.
Um dos pontos mais marcantes nos estudos históricos e na ficção do ciclo, o elemento que se caracteriza como o explorador, é retomado em O amante das amazonas sob um olhar distinto daquele que se convencionou na maioria das obras ficcionais. O que se torna central no romance não é a abordagem maniqueísta em torno desse elemento, mas sua relação com um processo econômico mais abrangente do que a monocultura local. No romance, a personagem Pierrre Bataillon, proprietário do seringal Manixi, em nada se assemelha às tradicionais personagens de seringalistas. Divergindo dessas personagens, Pierre representa uma linhagem “[...] nobre, neto de Duque de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma, inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas [...]”,(118)  vivendo como um “[...]fidalgo engastado na floresta, cercado de todo o luxo e de muitos livros [...]”.(119)  Pierre não significa apenas o oposto do arrivista bronco enriquecido, seus hábitos e o palácio que constrói no meio da selva sintetizam o aspecto voraz do capital internacional e da cultura estrangeira, impondo sua hegemonia sobre a cultura local através de uma ostentação delirante e esquizofrênica: 

[...] O palácio era imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, com um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Begonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon [...] no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapé  e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte – cariátides, capitéis, folhagens da selva ...[...](120) 

O palácio, edifício [...] encapsulado de civilização da humanidade européia [...]”,(121)  localizado no meio da selva, opõe-se à moradia convencional do seringalista na ficção, o barracão tosco, que se harmoniza com o caráter rude de seu proprietário. Nas ficções do ciclo, a selva e a civilização sempre estiveram separadas. Os coronéis seringalistas comandavam o seringal em sua moradia improvisada na selva e construíam palacetes na cidade como forma de usufruírem do luxo e ostentação proporcionados pelos lucros da borracha. O espaço da cidade era adequado à fruição dos prazeres copiados à cultura européia, representativos da Belle-époque: palacetes art-nouveau, móveis franceses e toda uma gama de objetos de usos variados, importados dos mercados europeus. 
As duas faces do ciclo, civilização e mundo selvagem, não se apresentam dicotomizadas em O amante das amazonas. Civilização e selva se chocam, se confrontam e se mesclam. A obra faz a ligação entre os opostos. Aquilo que a civilização significou em termos de progresso e vida moderna se defronta com a força rústica da natureza. Num caminho de duas mãos, a ostentação invade a floresta e a floresta invade a ostentação. O tratamento parodístico dado ao romance se evidencia também por essa confrontação de dois mundos antagônicos: 

[...] No meio da noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro da casa do fim do mundo. As noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio em demônios que saem da escuridão. Pierre, indiferente, anda e seus passos se fazem ouvir ao longo a galeria das portas e janelas. Ele contempla os quadros, segue a fileira das janelas de folhas duplas fechadas até o chão, pesadas, almofadadas, bandeiras guarnecidas de cortinados franzidos de filó. No galpão, o viveiro dos patos com que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões. A lâmina dágua tenta impedir a invasão das formigas. Mas sempre se encontra uma aranha peluda em cima da cama, ou se surpreende um escorpião atravessando por debaixo da mesa de jantar, ou se depara com uma cobra, coleando no vão do corredor. Ao cair da noite se fecham portas e janelas. Em turíbulos espalhados pela casa, se começa a queimar uma mistura de bosta de vaca e óleo de anta, para repelir insetos, cheiro que impregna e caracteriza o paço. Mesmo assim o prédio é assediado à noite por nuvens de insetos voadores, que querem entrar, atraídos pelas luzes [...] (122)

No processo de instalação de seu “império”, Pierre Bataillon se depara com dois povos indígenas: os Caxinauás e os Numas. O contato dos exploradores com os índios sempre foi apresentado como conflituoso na ficção da borracha e em O amante das amazonas não deixa de o ser, mas o romance acentua um posicionamento duplo dos índios em relação ao invasor do espaço por eles habitado. Logo que chega ao Igarapé do Inferno, Pierre encontra apenas os Caxinauás e como estes não ostentam resistência a sua invasão, mostram-se pacíficos, ele os domina com facilidade e implanta ali sua soberania. Impõe, como homem branco civilizado, a paz e a ordem entre os Caxinauás, desconsiderando que eles pudessem ter qualquer organização social. Em nome do progresso, Pierre promove a castração da cultura Caxinauá. Tendo a identidade negada, os Caxinauás se submetem “quase alegres”, ironiza o narrador, e são transformados em objetos do seringal Manixi, reduzindo-se, após enfrentarem doenças como tifo, malária, sarampo, sífilis e uma epidemia de gripe, [...] a 84 viventes agricultores, servos da gleba do Coronel.” (123)
Enquanto os Caxinauás se submetem à dominação, os Numas demonstram comportamento oposto. Nômades, arredios, impõem-se como resistência, insistem em ser, em não se negar. Diferentemente do que ocorrera com os Caxinauás, que tiveram seu espaço restringido, os Numas, seres que se deslocam na rapidez de um sopro, que se movimentam com facilidade na noite, que quase não são vistos, cercam o seringal e impedem sua expansão. Usando de estratégias para conquistá-los, Pierre deixa, nos limites do seringal, presentes nos quais eles não tocam, impossibilitando um canal de comunicação. Diante do comportamento dos Numas, a voz parodística do narrador interroga, instalando uma problemática: Onde há resistência, há poder?”(124)
As obras do ciclo, em geral, apresentam o índio como elemento hostil e cruel. Poucas vezes, é acentuado que o seu comportamento violento resulta de uma reação a uma violência, a invasão. Divergindo do tratamento omisso ou pelo menos parcial, haja vista que em algumas obras destaca-se a figura sanguinária do indígena e de vítima do invasor, no romance O amante das amazonas há uma declaração enfática sobre o extermínio indígena. Essa declaração, posta através de uma imagem alegórica, permite ouvir, por intermédio do narrador, a voz sufocada de Maria Caxinauá, que é também uma voz coletiva: 

OS ásperos, compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte. As pupilas eram dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma louca num hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a inimiga. Pois a Caxinauá é vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados, desculturados, reduzidos a ruínas se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria Caxinauá. São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias – vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá. (125)

Nesta passagem, está implícita a paródia ao conto “A decana dos Muras”, de Alberto Rangel. O tom inicial da descrição de Maria Caxinauá segue paralelo à caracterização assombrosa e torpe da decana para apresentar ao leitor o texto parodiado, mas, num segundo momento, surge o distanciamento ou a oposição parodística a partir da negação de senilidade à índia Caxinauá  aquela mulher não era uma velha! – e ao invés de impor comiseração pelo estado de rebotalhamento da índia, alça-a à condição de um ser terrível, forte e ameaçador. Em “A decana dos Muras”, ao contrário, o narrador, após apresentar o aspecto assombroso da velha índia, tenta suavizar-lhe o aspecto, atribuindo-lhe uma docilidade na juventude perdida. O texto parodístico traz, por fim, a denúncia do massacre da cultura indígena que o texto parodiado não acentua. Destacamos que o texto parodístico atinge um nível profundo em relação ao texto parodiado. A determinação ideológica que preside o discurso do autor Alberto Rangel, assentada na visão ambivalente sobre o extermínio autóctone, à medida em que comunga do coro depreciativo do colonizador, não podendo ocultar sua repugnância e rejeição pelo ser que representa o outro, é desocultada. 
O império do látex, emblemado em Pierre Bataillon e seu palácio excêntrico e anacrônico no meio da selva, ressurge no final do romance numa alegoria fantasmagórica. Nas ruínas do palácio saqueado, resta apenas o piano de cauda Pleyel, objeto sufocado em seu aspecto nobre e fáustico como se silenciado após o encerramento de um concerto. O palácio, congelado no tempo, é povoado por fantasmas da História, abriga os espectros da ostentação que passam “[...] arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas [...]”,(126)  esquálidos, saídos do “sepulcro do luxo” para expiar suas “culpas mortas”. Pierre também ali se encontra transformado numa negação do que fora outrora: 

E à noite a figura do antigo e descarnado dono poderia ser vista, através das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura de si – e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo antigo era uma torturação sinistramente mergulhada na destruição de um império ali por fim silenciado.(127) 

A narrativa de O amante das amazonas focaliza, além da personagem Pierre Bataillon, evocadora de um passado que o narrador insere fragmentariamente na história, as personagens Juca das Neves e Ribamar de Souza que se ligam às fases de decadência e de mudança de perspectiva econômica. A fase de decadência, em que muitos aviadores se arruinaram, concentra-se em Juca das Neves, dono do falido “Armazém das Novidades”, ainda mantido aberto quando a abastança já não mais existe e Manaus é uma cidade-fantasma”. A indicação de que o “ciclo da borracha” está encerrado e de que as estruturas social e econômica apresentam ares de mudança, estampa-se no mobiliário discreto, na decoração que já evoca o modern style descritos na casa do comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, personagem histórica recriada na ficção. Ribamar de Souza transforma-se no herdeiro do falido império do látex, compra o armazém de Juca das Neves e o moderniza, tornando-se um novo-rico: “Ribamar, com auxílio de Juca das Neves, modernizou o Armazém das Novidades, passando a representar vários produtos norte-americanos, como as máquinas de costura Singer  de enorme popularidade. Ribamar expandiu os negócios e começou a ameaçar o império comercial da poderosa família Gonçalves da Cunha [...]”. (128)
O amante das amazonas promove um olhar abrangente e profundo sobre o ciclo econômico da borracha que se seria no texto como um todo e também condensa-se em trechos do romance. A capacidade de condensação, segundo Perrone-Moisés,(129)  é um dos valores apontados pelos escritores-críticos no texto moderno, na medida em que permite “dizer muito em poucas palavras”. A autora destaca que a condensação, mais do que uma síntese, importa numa saturação de sentidos. Um trecho de O amante das amazonas realiza uma condensação que retoma toda a História do ciclo, englobando o processo que deslanchou a alta cotação da borracha no mercado internacional e os efeitos locais desse processo, estampados na circulação de riqueza na capital amazonense e na adoção de todo um modus vivendi à reboque da cultura européia. O narrador acrescenta aos fatos e aspectos históricos, enumerados em frases curtas, comentários irônicos e críticos, caracterizando o tratamento parodístico: 

[...] A cotação da borracha amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a produção dos pneumáticos. O Amazonas, único produtor de látex do mundo. Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz – depois Palácio Rio Negro, sede do governo. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã, envasadura, aleta, estípite. O enxalso, o frontão de cartela. Galilé. Pequena Manaus, grande Paris!.[...] Um prédio importado, peça por peça, da Inglaterra: a Alfândega, montada aqui. Outro, projeto do próprio Gustavo Eiffel, de ferro: o Mercado Municipal. Um Serviço Telefônico serve a cidade. A eletricidade ilumina as ruas de Manaus no início do Século, talvez das primeiras cidades brasileiras a ter este serviço [...] Óperas, óperas, óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria Miranda Correia. A Praça da Saudade. O Roadway, o Trapiche. Sífilis. Malária [...] 126 navios trafegam no interior do Amazonas. Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se, às custas de 3,3 milhões de dólares, o Teatro Amazonas, em 1896 – a mais cara e inútil obra faraônica da História do Brasil, milionária e importada, com painéis, centenas de lustres de cristal venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze assinadas por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões de porcelana da altura de um homem, tapetes persas – tudo o que, aliás, em 1912 desapareceu, esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num depósito de borracha de uma firma americana. Ali o erário público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil casas luxuosas. O dólar a 3 mil réis. Por 900 contos de réis se constrói o Palácio da Justiça. E por 1 mil e seiscentos contos de réis se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído. O Teatro custou 10 mil vidas. Sim: Em 1919 no Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, em Manaus, com cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia, Odontologia, Farmácia. Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época 12 milhões de francos franceses sumiram, roubados no Governo de Constantino Nery. Encampa-se, fraudulenta e inutilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de réis – o preço do Teatro Amazonas. A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas. (130)

A diversificação apresentada no romance O amante das amazonas em relação às demais obras ficcionais do “ciclo da borracha” refere-se tanto a um tratamento mais aprofundado e crítico sobre o tema quanto a uma renovação do código lingüístico-literário. Através do procedimento parodístico, aspectos muitas vezes tratados superficialmente ganham uma nova interpretação como já demonstramos no que diz respeito à versão do relacionamento do autóctone com o explorador e à colocação do seringalista em um contexto mais amplo do ciclo. 
Ao mesmo tempo, imagens desgastadas são acrescidas de novos conteúdos como, por exemplo, a do estado de solidão dos seringueiros, isolados na selva. Geralmente postos em um nível animal, que também o romance destaca (“tinham virados bichos”), recebem, por outro lado, o perfil de seres mecânicos, [...] movidos por um interno aparelho de corda [...] ,(131) que significa pôr em evidência a negação de sua existência como seres vivos e demonstrar a condição de objetos em foram tomados. 
A espoliação dos seringueiros é destacada, mesmo sem a enumeração das atividades diárias do seringal. A discussão sobre o sistema de exploração seria-se em frases curtas que podem ser tomadas como fragmentos de discursos que põem em antagonismo duas visões de mundo: a do explorador, calcada no lucro, e a do nativo, baseada na subsistência. Assim também se acentua a paródia que toma o discurso do outro sob forma de pergunta para problematizá-lo: “[...] O leite se tornava negro, ao meu contato. A agricultura não casa com a seringa? Produz o que consome? [...]”. (132)
Em categorias da narrativa, como o foco narrativo, o tempo, o enredo e as personagens, está concentrada a renovação do plano de expressão de O amante das amazonas. Sobre o foco narrativo (narrador) já fizemos considerações. O tempo e o enredo, por sua vez, são categorias interdependentes, a mudança numa, acarreta conseqüentemente mudança na outra. Comprovando uma orientação que norteia todo o romance, a auto-explicação, o enredo pode ser melhor entendido se tomarmos um trecho em que a personagem Frei Lothar rememora os saraus promovidos por Pierre Bataillon, nos quais o Frei tocava violino, atrasando o movimento, e Pierre, piano: [...] Aquela sonata tem um módulo que se repete, e sobre esse par de notas Beethoven vai construindo a intriga, uma trama de perguntas e respostas, indagações, uma seriação de questões amorosas, apaixonadamente transcendentes que o violino pega e alonga, desenvolvendo, em diálogo com o piano, em rápidas e fortes frases... O segundo movimento conta uma história curta e simples, conseqüência da anterior, que o violino repete, reconta, reforça, concorda, apoia e retoma. O violino entra com alma...”(133)  Esse trecho detalha a construção do enredo do romance. O primeiro movimento da sonata refere-se à primeira parte da história em que o narrador evoca o fastigioso império de Pierre Bataillon e as personagens que estão a sua volta; o segundo movimento, conseqüentemente, refere-se à segunda parte da história em que ruído o império do látex, a narrativa passa a enfocar Manaus em seu estado de decadência física e humana. São sintomas dessa decadência o arruinado aviador Juca das Neves e sua mulher, D. Constança. Como o andamento do piano de Pierre e do violino de Frei Lothar que não se desenvolvem no mesmo compasso, essas duas partes da história, apesar de interligadas pelos aspectos apogeu e decadência do ciclo, seguem uma estruturação diferente. O universo mítico evocado em capítulos como “Numas” e “Ratos”, na primeira parte da história, não encontra lugar na cidade, o espaço da vida pretendida racional. É de se notar que na segunda parte os acontecimentos da narrativa se apresentam de forma menos desordenada e fragmentária do que na primeira parte, marcada não somente pela quebra da relação causal entre os capítulos como também pela descontinuidade das ações das personagens ou da seqüência de acontecimentos. Em relação ao enredo, portanto, o romance não tece seqüencialmente as ações como ocorre no romance tradicional. A atração que esse enredo exerce não é, por conseguinte, pelos encadeamentos de episódios que caminham para a solução de um ou mais conflitos, mas justamente pelo estranhamento da  disposição estrutural da narrativa. (134)
A categoria tempo implicada na disposição do enredo é igualmente tratada sob uma perspectiva inusitada no romance. Primeiramente, devemos ressaltar que o tempo do romance tem um caráter psicológico porque é tempo da memória, da lembrança, e daí a fragmentação do enredo em virtude do que o narrador pode e quer lembrar. Quando o narrador enuncia, na abertura do primeiro capítulo: “Nós nos despedimos na Cancela sob a primeira luz da madrugada do Natal de 1897 – eu e minha mãe, nunca mais a vi - na presença de todos que ali estavam e de quem me não quero lembrar no povoado de Patos em Pernambuco, de onde parti com duas mudas de roupa na mala [...]”,(135) temos preliminarmente a noção de que os fatos a serem narrados pertencem ao passado pela indicação dos verbos no tempo pretérito e pela referência à condição de lembrança.
O tempo pretérito, contudo, como indicador de uma ação decorrida, deve ser tomado com cautela no plano ficcional. Nunes alerta, baseado em argumentos de Kate Hamburger e Harald Weinrich, que “[...] na ficção criamos personagens, Eus fictícios originais, que se movem num plano de existência estética, relativamente ao qual as enunciações perdem o alcance factual de registros da experiência [...].(136)  Desse modo, a ficção não se guia pela mesma lógica da gramática, que é a lógica do mundo real. O uso do tempo pretérito não indicaria uma ação passada, mas uma ação contada: “[...] O pretérito assinala que há narrativa e não o fato de que esta se realiza para trás no tempo que passou.”(137)  Como exemplo de que não se narra necessariamente aquilo que já ocorreu estão as obras de ficção científica que também empregam o tempo pretérito e, por outro lado, situações ficcionais em que, mesmo utilizando o pretérito, indica-se que uma ação está se processando.
O narrador narra um tempo passado, atualizando-o no ato da enunciação. Não fala de um passado de forma distanciada, mas se põe em seu momento mesmo. A segunda pessoa do plural inclui narrador e leitor: “[...] Nós retornávamos à elaboração do nosso faustoso passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem sentido e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade todos os detalhes de um aspecto de deslumbrante luz [...].” (138) Trata-se de uma situação mais complexa do que o recurso da retrospecção por meio da analepse em que o recuo narrativo “[...] é feito numa exposição separada, interrompendo a ação principal, que volta ao seu curso quando aquela termina [...]”.(139)  O narrador aproveita-se do tempo lingüístico em que dialoga com o leitor a partir de um agora para dar ao passado um caráter de ubiqüidade; fazê-lo acontecer como presente ficcional. 
A personagem é uma categoria narrativa que tem particular importância em O amante das amazonas e por isso não podemos deixar de considerar a concepção que Rogel Samuel expressa sobre ela em seu texto teórico Crítica da escrita: “[...] o próprio da natureza narrativa não é a ação (há romances sem ‘ação’, ou de ação reduzida [...] o próprio da natureza narrativa não é a ação, mas o personagem como nome (o pai’, a ‘Capitu’, o ‘Peri’, a ‘Ceci’) como material sêmico desta moldura catalogável de rótulos, deste fichário do dito sobre o personagem”. (140) Na própria seleção dos capítulos do romance, estampa-se a proeminência que têm as personagens, uma vez que dos 23 capítulos que compõem o romance, 6 levam como título nomes de personagens (Paxiúba, Ferreira, Júlia, Frei Lothar, Ribamar, Benito). Ademais, os capítulos O leque” e “Rua das Flores” podem ser considerados como enunciadores de personagens, pois detêm-se quase que exclusivamente nelas e não numa ação. 
A menção feita por Samuel à personagem como material sêmico remete a terminologia proposta por A. J. Greimas em seu livro Semantique Structurale (1965),(141)  que está  calcada na concepção semiológica, significativa de um rompimento com a noção de personagem como imitação do ser humano, concebendo-a como signo.(142)  Samuel destaca que o texto ficcional é constituído de logros e que o seu logro fundamental é ocultar sua própria condição fictícia. Jogando com uma forma de exposição da personagem oposta a dessa ocultação, o narrador de O amante das amazonas revela o seu caráter ilusório: “Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, veja-o que ele é de papel, literário [...].”(143)
As personagens, em O amante das amazonas, são emblemáticas tanto em relação ao ciclo quanto ao processo de colonização da Amazônia como um todo. O narrador anuncia essa condição através da personagem Paxiúba, quando a refere como “[...] emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida e nociva [...].(144)  Paxiúba carrega a marca de um ser híbrido, filho de um negro barbadiano e de uma índia Caxinauá. Nele se personaliza um duplo: Com os seres que estão no seu mesmo plano, libera taras sexuais: Zilda, mulher do seringueiro Laurie Costa é estuprada e a investida se repete com Maria Caxinauá. Com Zequinha Bataillon, seu senhor, transforma-se num animal domado, dormindo a seus pés:

[...] Paxiúba era da confiança de Zequinha, dormia na sua cama, criado desde criança junto dele, adorando-o, como um cão [...] (145)
............................................................................................................................... 
[...] ele era personalidade do Palácio, chefe do aparelho policial do Seringal, guarda de Zequinha Bataillon, diziam amigo que dormia com o menino, importância capital de bicho. Sendo que Paxiúba armado assassino, com águia e serpente, eliminava quem devia de ser, na sua função de coagir e de matar [...] (146)

Pierre Bataillon é outra personagem emblemática e indicial (147) pela significação que acumula de uma cultura hegemônica, assim como também o é Maria Caxinauá pelo que representa de oposição a essa cultura. Engloba a submissão dos Caxinauás, mas também é uma imagem da reação.
Se o romance apresenta a imponência em Pierre Bataillon, não deixa de vasculhar o fundo de mediocridade e mesquinhez que a ostentação oculta através da personalidade neurótica de D. Constança: 

D. CONSTANÇA tinha sido educada para ser uma boneca inútil. Exagerara e ficou louca [...] D. Constança se abanava com o leque, como se a queimasse um fogo interior. E tinha péssimo caráter, bastava a pessoa dar as costas para que ela começasse a retaliação. Voz fina, língua viperina. Olhar de fuzilante ódio. Os seres das classes inferiores eram ‘gentinha’, não existiam [...] 
[...] Nunca teve uma amiga. Começava a falar de todas logo que fechava a porta da rua. Falava para Juca das Neves, falava muito rapidamente, a voz nervosa, fina, angustiada. Passava horas e horas em fofocas, maledicências, escondendo-se atrás de portas para ouvir, entreabrindo janelas para espiar. Vestia as pessoas com tudo o que pensava a respeito, a todos nutrindo um ódio que a corrompia por dentro [...] 
[...] à medida que foi envelhecendo foi ficando pior. Começou a falar e abanar-se sozinha, sentada na cadeira de balanço onde se abanava e falava até tarde da noite. E sozinha falando, falando, e abanando-se, abanando-se, os olhos se fixaram numa característica sua, que era o “rabo do olho”, como ela dizia, já não olhando de frente para ninguém, não encarando ninguém, o olhar fixo nos lados e cantos das órbitas como se sempre procurasse ver e ouvir algo que se passava pelos lados e atrás, um olhar congelado numa expressão de ódio, e até hoje me lembro dela assim sentada, olhando para os lados e para trás, como cercada de inimigos, abanando-se frenética e falando aflita, falando mal de seres imaginários, de pessoas que já tinham morrido há muito e muito tempo, e sozinha, esquecida... (148)

Por outro lado, o romance ilustra na personagem Benito Botelho o elemento que se recusa a aderir à cultura da ostentação e, por isso, torna-se marginalizado. Na contramão dos hábitos sofisticados, ele anda mal vestido, tem os dentes estragados e esboça uma palidez doentia. A sua ironia [...] contra os poderosos e contra o tacanho e conservador meio em que vivia [...]”(149)  não lhe rendia mais do que o insignificante cargo de revisor do Jornal Amazonas Comercial. No entanto, a sua cultura não era postiça, como poeta e poliglota “[...] lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de sólidos conhecimentos de grego e de latim. Autodidata, construíra o seu saber: “[...] Conhecedor dos dois mundos, seu domínio ia da Filosofia à literatura, da História à Filologia [...]”.(150)  Apesar disso, e talvez por isso mesmo, todos o desprezavam. Contrastando com a simplicidade e o verdadeiro interesse pelo conhecimento de Benito, que não se importava nem com as condições precárias em que morava, com as águas da enchente batendo à soleira da porta do tapiri chamado de casa, onde empilhava livros, estavam os “[...] beletristas da Academia, os homens de letras, juristas de óculos no nariz e paletó impecável, doutores, jurisconsultos, magistrados, desembargadores [...].” (151) A Benito, porém, como opositor nato a tudo o que significavam, era negado o emprego na biblioteca municipal. O narrador destaca o isolamento de Benito na razão direta de sua rebeldia: 

[...] Ele era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira, laudatória, servil, risonha e patriarcal [...] Ele era o inimigo da elite de quem Eudócia fora aliada e escrava  ela, porém, grata à patroa, que considerava uma espécie de benção, não compreendia o ódio do sobrinho, ódio de que, por isso, também era vítima. (152)

Frei Lothar que, a exemplo de Benito Botelho, dá nome ao capítulo, constitui personagem que recebe especial atenção no romance. Como missionário, acumula um diálogo com as demais obras do ciclo que quase unanimemente se voltam à representação dessa personagem e está rigorosamente ligado ao processo de colonização da Amazônia.
Essa personagem se choca com o papel histórico que Arthur Cezar Ferreira REIS atribui aos missionários na Amazônia:

Empresa de titãs, a conquista espiritual da Amazônia empreendida pelos franciscanos de Santo Antônio, Salezianos, beneditinos, padres do Espírito Santo, agostinianos, dominicanos, padres servos de Maria, capuchinos, barnabitas, padres do Preciosíssimo Sangue, está constituindo um capítulo dos mais memoráveis e dignificadores da espécie humana na história da civilização contemporânea.(153) 

A disposição de um titã seria o aspecto mais improvável a se atribuir à personagem Frei Lothar. No capítulo dedicado a ela, o primeiro destaque é a sua triste figura. Sem denodo algum, o frei encontra-se vencido pelo cansaço de uma tarefa inglória: “[...] Oh, meu Amazonas! Deus é grande mas a Floresta é maior, e eu já não sou o mesmo.”(154)  A conquista espiritual que teria o Frei de empreender, por sua vez, acha-se ameaçada pelo abalo das convicções religiosas e pela enumeração de fatos contingenciais que perturbam a sua missão: “[...] O Frei perdera a fé, falava grosso, cuspia no chão, andava armado, tinha mau humor e mau cheiro [...].”(155)
Frei Lothar e Benito Botelho se aproximam enquanto seres inadaptados num espaço. Tal como Benito, Frei Lothar é repudiado, execrado porque abomina a sociedade onde vive, os seus modos requintados, mas sem autenticidade. É o oposto desse requinte, tem maus modos, escarra no chão, fala palavrões e age com rebeldia, odiando a classe dominante, a religião, a fé porque não as vê produzirem nada verdadeiramente útil para a vida. Como religioso, o que viu toda a vida “[...] não foi Deus: Foi a dor, a dor e a morte, a miséria e a desolação [...].”(156)  Frei Lothar só encontra prazer na música, como Benito só pode encontrá-lo nos livros: 

[...] Frei Lothar se levantou com esforço, saiu dali e foi ao camarote de onde veio com o violino. Sentou-se. Ia estudar até o sono chegar. Era a Segunda Partitura de Bach, que sabia de cor, mas nunca conseguia superar certas dificuldades. Tocava sem a partitura. Estudava sem a partitura, no escuro, dentro do vento veloz. Sozinho. Sem partitura e sem luz, sem ninguém. Oh! No Amazonas era assim. O Amazonas não tinha partitura, não tinha luz, nem ninguém. O Amazonas era uma imensa planície de miséria [...](157) 

Frei Lothar e Benito são duas personagens que remetem à degradação. Não em virtude da derrocada econômica do ciclo, mas por uma inadequação a um modo de vida baseado num simulacro: um desenvolvimento econômico ilusório, um projeto fictício de civilização.
O relevo que têm as personagens em O amante das amazonas aparece destacado no final do romance, que ao invés de remeter para um desfecho do enredo, faz um encadeamento de personagens no tom dos antigos narradores: 

[...] não se esqueça dessa história tão bonita do amante das amazonas. A Amazônia é um certo lugar fantástico que também está no fim, mas quando sonhar sonhe com o Igarapé do Inferno se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, do bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênica Vellarde. Não se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da Conchita Del Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. Mas de Frei Lothar e de Ribamar de Souza, que assim se vai nesse vosso Narrador que desaparece, neste ponto.(158) 

O comentário do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis sobre a conquista espiritual da Amazônia apresenta-se menos contundente para entendermos a participação do missionário na Amazônia do que o ser de papel que é Frei Lothar. Vemos que a missão de Frei Lothar não depende apenas de um arrojado pioneirismo, ele luta com os empecilhos naturais, a lama, o calor, os mosquitos e com a própria inviabilidade de justificação da conquista porque não crê nela. Por intermédio do discurso ficcional, portanto, promove-se uma percepção mais autêntica do real, para a qual chama atenção Samuel, baseado na tese de Jean-Paul Sartre em A imaginação: “A literatura fala do mundo, através de uma imagem que é outro mundo. Só aprendemos o real se sairmos do real, pela imaginação [...]”(159)  Por outro lado, a visão do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis é ideologicamente convincente, transmite um discurso oficializado pelos conquistadores na Amazônia, que a literatura tem a capacidade de desmontar.
Samuel explicita que sair do real pela imaginação não significa se pôr além do real dado no mundo, ao destacar que o discurso não se separa do mundo, “[...] o discurso só pode falar de uma única coisa: Do mundo [...].”(160)
A postulação que Samuel apresenta em Crítica da escrita é coerentemente realizada em O amante das amazonas à medida que se verifica a apresentação do discurso literário como arte imaginativa, revelada, metalingüisticamente, através do narrador que se anuncia como fingido; do caráter irreal (ficcional) das personagens apresentado no próprio texto e do nível simbólico do texto que apresenta relações solicitadoras da busca do sentido do que não está explicitamente dito. Por esses caminhos o romance atinge um nível de criticidade na abordagem do evento histórico do “ciclo da borracha”.
----------------
NOTAS
108)  Graduado em Ciência da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rogel Samuel exerce nessa universidade a função de professor doutor adjunto à época da publicação de O amante das amazonas (1992). Como analista literário, publicou Crítica da escrita (1979), organizou e colaborou na publicação de Literatura básica (1985) e Como curtir o livro: o que é teolit? (1986). No campo ficcional, o autor produziu prosa e poesia. Publicou, em 1991, 120 poemas.
109)  De acordo com a autora, os escritores-críticos caracterizam-se essencialmente como escritores (ficcionistas) que tomaram a si o papel de escrever crítica em razão de um descontentamento com a atuação da crítica profissional: “[...] Os ataques e as chacotas dos escritores contra os críticos literários constituem um vasto repertório, capaz de preencher vários volumes. Na ausência de uma instância superior que regulasse o dissenso, e no descontentamento com as instâncias ‘inferiores’ que se arrogavam o direito de os julgar, os criadores puseram-se a praticar uma espécie de contra-crítica, estimada por eles como mais competente, ou pelo menos mais eficiente, por estar ligada à própria experiência criadora.”(Leyla PERRONE-MOISÉS. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 143).
110)  Ítalo CALVINO, Se um viajante numa noite de inverno,  p. 16.
111)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 51.
112)  Ibid., p. 59.
113)  Rogel Samuel, O amante das amazonas, p. 51.
114)  Ibid.,  p. 9.
115)  Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa. In: Luiz COSTA LIMA (org.), Teoria da literatura em suas fontes, p. 489-509.
116)  Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa In: Luiz COSTA LIMA (Org.) Teoria da literatura em suas fontes,  p. 500.
117)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 5-6.
118)  Ibid.,  p. 16.
119)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 16.
120  Ibid., p. 10-11.
121)  Ibid., p. 32. 
122)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 43. 
123)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 14.
124)  Ibid., p. 14.
125)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 38-39.
126)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 89.
127)  Ibid., p. 89.
128)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 82.
129)  Leyla PERRONE-MOISÉS, Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos,  p. 156.
130)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 33-5.
131)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 8.
132)  Ibid., p. 8. 
133)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 84. 
134)  Leyla Perrone-Moisés comenta que a novidade também é um valor prezado pelos escritores-críticos: [...] A novidade valorizada pelos escritores críticos modernos é principalmente uma novidade de expressão que rompe com os velhos hábitos e surpreende o leitor [...]” (Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 171).
135)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 5. 
136)  Benedito NUNES, O tempo na narrativa, p. 38.
137)  Ibid., p. 40.
138)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 9
139)  Benedito NUNES, o tempo na narrativa,  p. 32.
140)  Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p. 47. (O “pai” constitui uma personagem do conto “A terceira margem do rio”, analisado pelo autor na primeira parte desse livro).
141)  É preciso não perder de vista, todavia, que Samuel explicita a concepção de Roland Barthes desse conotador: “Os semas [...] são considerados por Barthes, como a voz da pessoa, dos lugares e dos objetos: o sema é o conotador, por um entusiasmo do texto da configuração de caráter destes elementos, define uma interpretação ideológica [..]”(Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p. 47).
142)  A esse respeito, é oportuna a complementação de Beth Brait: “Ao encarar a personagem como ser fictício, com forma própria de existir, os autores situam a personagem dentro da especificidade do texto, considerando a sua complexidade e alcance dos métodos utilizados para apreendê-la. (A personagem, p. 51).
143)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 21. 
144)  Ibid., p. 22. 
145)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 77
146)  Ibid., p. 23.
147)  Sobre o índice, Donald Schüler informa: “[...] Os índices remetem ao caráter das personagens, à atmosfera, dizem respeito ao significado, em contraste com as funções que se restringem ao desenrolar dos acontecimentos” (Teoria do romance, p. 54).
148)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 67-68.
149)  Ibid., p. 69.
150)  Ibid., p. 70.
151)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 70.
152)  Ibid., p. 72. 
153)  Arthur Cezar Ferreira REIS, A conquista espiritual da Amazônia, p. 113. 
154)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,  p. 54.
155)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,  p. 54.
156)  Ibid., p. 57.
157)  Ibid., p. 57.
158)  Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 95.
159)  Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p. 65.
160)  Ibid., p. 80.

voltar