O
amante das amazonas: o ciclo sob o olhar de um analista-autor
2ªedição,
Editora Itatiaia.
Rogel Samuel,
autor de O amante das amazonas, agrega duas características relevantes
para nosso estudo sobre as obras literárias do “ciclo
da borracha”. A primeira delas
é a experiência que, em seu caso, não é direta,
vem de reminiscências legadas pela memória de antepassados,
como o avô, um alsaciano enriquecido pelos lucros da borracha amazônica,
no início do século XX. A segunda característica motivadora
do estudo desse romance surge do fato de o autor ser analista literário,
atividade resultante de sua carreira no magistério. (108)
Entendemos
ser a atividade de analista empreendida por Rogel Samuel a promotora da
diversificação de abordagem do romance O amante das amazonas.
Não o nomeamos, contudo, um escritor-crítico, conforme concebe
Leyla Perrone-Moisés(109) por entendermos que o autor exerce
a atividade de analista paralelamente a de escritor e por considerarmos
que tanto a sua produção teórica quanto a sua produção
ficcional não alcançaram a extensão e o nível
de sistematização necessários à qualificação
de escritor-crítico, como o estabelece o estudo de Perrone-Moisés.
Uma vez que Samuel não pratica a análise do texto ficcional
como corolário de sua atividade de escritor, podemos considerar
o oposto: que sua atividade de professor e analista possibilitou a expressão
de ficcionista, expressão essa que marcará a renovação
da terceira fase ficcional do ciclo.
O amante das
Amazonas realiza a brevidade que, segundo lembra o narrador de um romance
de Ítalo Calvino, é necessária aos romances modernos: “[...]
Hoje em dia, escrever romances
longos é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada,
não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo
que se afastam, seguindo cada qual sua própria trajetória
e logo desaparecem [...].”
(110) Dessa forma, o romance se divide em 23
capítulos curtos: Viagem, Palácio, Numas, Paxiúba,
Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei Lothar, Perdida, Ribamar,
Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua das Flores, Encontro,
Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos
que, por sua vez, não estabelecem uma continuidade linear do enredo,
alguns deles basicamente introduzem personagens, o que reforça a
característica fragmentária da narrativa.
Fragmentado
é ainda o narrador do romance. Divide-se entre primeira e terceira
pessoas. Em primeira pessoa, narra Ribamar, retirante do povoado de Patos,
em Pernambuco, vindo para a Amazônia em 1897. Já a voz que
narra alternando a primeira e terceira pessoas tece comentários,
dialoga com o leitor, insere digressões e se assume como ser ficcional: “[...]sei,
e de antemão
o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto
mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense,
e espere o leitor e a leitora o surpreender-se como, apesar disso, o fio
do destino do que vai descobrir é correto. Todos os fatos, aqui
expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para
a minha imaginação [...].”
(111)
As narrações
em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como
instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira
pessoa se personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com
a narração em primeira pessoa da personagem Ribamar para,
posteriormente, no capítulo dez, ser atribuída ao narrador
em terceira pessoa, que destaca: “O
Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que
o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois da morte
do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar
(d’Aguirre)
de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o
primeiro capítulo desta minha narrativa.”(112)
Depreendemos
que a impessoalidade da terceira pessoa transforma-se em diversos momentos
da narrativa em uma voz paralela à do narrador-personagem Ribamar.
Essa outra voz que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu,
o narrador) e se assume como narrador, concomitantemente cria uma noção
de veracidade extratextual, entretanto, há aí também
um artifício ficcional: “[...]
do que pude conseguir de jornais
da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha
Batelão nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro
de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção e poderia
citar, em notas de pé de página, as fontes de onde obtive
tal informação [...]”(113)
A abertura
do segundo capítulo do romance apresenta-se como um dos momentos
em que narrador-personagem e narrador analista se fundem. Essa passagem
norteia a própria leitura que devemos fazer do romance, pois a ficção
se auto-define:
[...] esta
narrativa-paródia de romance histórico que define com boa
precisão esta minha tardia confissão - vai-lhe revelar a
vida tão surpreendente de Ribamar de Souza, aquele adolescente que
eu era aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro
da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de
improvisação de uma partitura imaginária, ecológica,
de acordes politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no
alpendre do tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé
do Inferno, que sai no Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão,
que sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente do
Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando. (114)
O entendimento
do caráter parodístico atribuído pelo narrador ao
romance requer algumas considerações sobre a especificidade
desse tipo de discurso. Em seu estudo acerca da tipologia do discurso na
prosa, Bakhtin(115) argumenta que o procedimento parodístico
do discurso se caracteriza não somente por uma remissão ao
objeto referencial da fala, como também a um segundo contexto, um
ato de fala de outro emissor, sendo por isso um discurso duplamente orientado
ou de duas vozes. Bakhtin estabelece também a diferença entre
a paródia e a imitação, fazendo notar que enquanto
aquela cria um antagonismo em relação à voz na qual
se aloja, essa torna própria a palavra do outro, fundindo-se a ela.
Outra peculiaridade que deve ser considerada, segundo o autor, é
que a fala parodiada é apenas subentendida. Bakhtin destaca que
o campo de possibilidades do discurso parodístico é bastante
amplo, pode lançar mão de um estilo enquanto estilo, de modos
típicos de pensar social ou individualmente. A construção
parodística pode se limitar a níveis da superfície
verbal ou atingir níveis mais profundos. O uso parodístico
da palavra do outro, lembra o autor, não se dá apenas no
campo literário, ele ocorre sempre que há intenção
de pôr um acento irônico nas palavras de um outro emissor,
criando uma ambivalência em relação a essas palavras: “[...]
Em nossa fala cotidiana, é extremamente comum este uso das palavras
do outro, especialmente no diálogo em que, freqüentemente um
interlocutor repete de modo textual a afirmação de outro
interlocutor, investindo-a de outra intenção e enunciando-a
a seu próprio modo: com uma expressão de dúvida, de
indignação, de ironia, de zombaria, de troça ou algo
semelhante.”
(116)
Sendo O amante
das amazonas definido por seu narrador como uma paródia de romance
histórico, é necessário chamar a atenção
para o fato de que a maioria da produção ficcional sobre
o ciclo pode ser considerada de enfoque histórico, haja vista essa
ficção ter abordado aspectos em consonância com os
dados históricos sobre o evento. Desse modo, os principais fatores
que envolvem a história econômica do ciclo são retomados
pelos ficcionistas. A ficção geralmente faz recortes desses
fatores através de cenas que são comuns a muitas obras. O
processo de transumância do nordestino, compreendendo os fatos antecedentes,
como o sofrimento causado pela seca, a falta de perspectiva na terra natal
até a decisão da partida, enfrentando a longa jornada do
Nordeste ao Norte, atinge o cerne na ficção através
da descrição da viagem. Nessa descrição, geralmente
são enfocados o estado de submissão dos recrutados ao seringal,
as condições do transporte onde são tratados como
passageiros de terceira categoria, sem direito a dignas condições
de higiene e à privacidade.
Em O amante
das amazonas, as descrições do barco e da viagem recebem
um novo tratamento por meio de uma construção parodística
que acrescenta um tom irônico ao tradicional tom de denúncia
de outras obras:
[...] Navio
dentro do qual não cabia mais único engradado de porcos,
alojando aquela horda que fedia podre, de suor, esterco de gado e urina –
redes se entrecruzando
e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte –
um pai esfolou
um macho surpreendido com sua filha num vão de esterco; outro, bêbado,
mijava ali no chão enquanto escorria até onde dormiam muitos,
no chão; sobre um garajau de galinhas um homem sacou de si e se
aliviou sob a luz de um candeeiro amarelo cheio de moscas. Era um soldado.
Passamos
do Farol de Acaraú ainda dentro daquele porão e paramos em
Amarração para largar um cadáver, o preso e dois passageiros
cobertos de varíola. Mas não tocamos em Tutóia, aportando
em São Luís onde o Alfredo foi dentro d’água
cercado por botes, catraias e se transformou em gigantesca fera [sic]
flutuante, lá subindo todos para bordo os vendedores de camarão
frito, doces e frutas. Pois não foi uma viagem maravilhosa? [...](117)
A linguagem
em que a descrição é posta formula-se através
de uma sintaxe não convencional que inclui cortes de conectivos,
gerando um caráter sintético peculiar à linguagem
coloquial (aquela horda que fedia podre). A sintaxe do texto também
apresenta uma disposição de orações que possibilita
a interposição de informações e torna significativa
a desordem espacial no barco e as relações conturbadas entre
os passageiros (redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro,
briga, facada e morte). A escolha de verbos e substantivo característicos
da linguagem chula (esfolar, mijar, macho) demonstra a aplicação
dos níveis de linguagem, o que permite que a condição
dos passageiros se expresse com mais rudeza. Com a frase interrogativa
no final do trecho, o sentido irônico se estabelece.
Um dos pontos
mais marcantes nos estudos históricos e na ficção
do ciclo, o elemento que se caracteriza como o explorador, é retomado
em O amante das amazonas sob um olhar distinto daquele que se convencionou
na maioria das obras ficcionais. O que se torna central no romance não
é a abordagem maniqueísta em torno desse elemento, mas sua
relação com um processo econômico mais abrangente do
que a monocultura local. No romance, a personagem Pierrre Bataillon, proprietário
do seringal Manixi, em nada se assemelha às tradicionais personagens
de seringalistas. Divergindo dessas personagens, Pierre representa uma
linhagem “[...]
nobre, neto
de Duque de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que
vinha da antiga Roma, inteligente, culto, falando fluentemente várias
línguas [...]”,(118)
vivendo como um “[...]fidalgo
engastado na
floresta, cercado de todo o luxo e de muitos livros [...]”.(119)
Pierre não significa apenas o oposto do arrivista bronco enriquecido,
seus hábitos e o palácio que constrói no meio da selva
sintetizam o aspecto voraz do capital internacional e da cultura estrangeira,
impondo sua hegemonia sobre a cultura local através de uma ostentação
delirante e esquizofrênica:
[...] O palácio
era imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala
de música onde se ouvia principalmente Beethoven, com um piano Pleyel,
a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de
violinos (o Guarnerius, o Begonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando
Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara
mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A biblioteca,
em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas
e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos
se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores
restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon
[...] no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica,
na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante
elíptica do canapé –
e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes,
incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis
franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza:
estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas,
urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia
e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir,
de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando
na loucura, na miséria e na morte –
cariátides,
capitéis, folhagens da selva ...[...](120)
O palácio,
edifício “[...]
encapsulado de civilização da humanidade européia
[...]”,(121)
localizado no meio da selva, opõe-se à moradia convencional
do seringalista na ficção, o barracão tosco, que se
harmoniza com o caráter rude de seu proprietário. Nas ficções
do ciclo, a selva e a civilização sempre estiveram separadas.
Os coronéis seringalistas comandavam o seringal em sua moradia improvisada
na selva e construíam palacetes na cidade como forma de usufruírem
do luxo e ostentação proporcionados pelos lucros da borracha.
O espaço da cidade era adequado à fruição dos
prazeres copiados à cultura européia, representativos da
Belle-époque: palacetes art-nouveau, móveis franceses e toda
uma gama de objetos de usos variados, importados dos mercados europeus.
As duas faces
do ciclo, civilização e mundo selvagem, não se apresentam
dicotomizadas em O amante das amazonas. Civilização e selva
se chocam, se confrontam e se mesclam. A obra faz a ligação
entre os opostos. Aquilo que a civilização significou em
termos de progresso e vida moderna se defronta com a força rústica
da natureza. Num caminho de duas mãos, a ostentação
invade a floresta e a floresta invade a ostentação. O tratamento
parodístico dado ao romance se evidencia também por essa
confrontação de dois mundos antagônicos:
[...] No
meio da noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro da casa do fim
do mundo. As noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio
em demônios que saem da escuridão. Pierre, indiferente, anda
e seus passos se fazem ouvir ao longo a galeria das portas e janelas. Ele
contempla os quadros, segue a fileira das janelas de folhas duplas fechadas
até o chão, pesadas, almofadadas, bandeiras guarnecidas de
cortinados franzidos de filó. No galpão, o viveiro dos patos
com que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões.
A lâmina d’água
tenta impedir a invasão das formigas. Mas sempre se encontra uma
aranha peluda em cima da cama, ou se surpreende um escorpião atravessando
por debaixo da mesa de jantar, ou se depara com uma cobra, coleando no
vão do corredor. Ao cair da noite se fecham portas e janelas. Em
turíbulos espalhados pela casa, se começa a queimar uma mistura
de bosta de vaca e óleo de anta, para repelir insetos, cheiro que
impregna e caracteriza o paço. Mesmo assim o prédio é
assediado à noite por nuvens de insetos voadores, que querem entrar,
atraídos pelas luzes [...] (122)
No processo
de instalação de seu “império”,
Pierre Bataillon se depara com dois povos indígenas:
os Caxinauás e os Numas. O contato dos exploradores com os índios
sempre foi apresentado como conflituoso na ficção da borracha
e em O amante das amazonas não deixa de o ser, mas o romance acentua
um posicionamento duplo dos índios em relação ao invasor
do espaço por eles habitado. Logo que chega ao Igarapé do
Inferno, Pierre encontra apenas os Caxinauás e como estes não
ostentam resistência a sua invasão, mostram-se pacíficos,
ele os domina com facilidade e implanta ali sua soberania. Impõe,
como homem branco civilizado, a paz e a ordem entre os Caxinauás,
desconsiderando que eles pudessem ter qualquer organização
social. Em nome do progresso, Pierre promove a castração
da cultura Caxinauá. Tendo a identidade negada, os Caxinauás
se submetem “quase
alegres”, ironiza o narrador, e são
transformados em objetos do seringal Manixi, reduzindo-se, após
enfrentarem doenças como tifo, malária, sarampo, sífilis
e uma epidemia de gripe, “[...]
a 84 viventes agricultores, servos da gleba do Coronel.”
(123)
Enquanto os
Caxinauás se submetem à dominação, os Numas
demonstram comportamento oposto. Nômades, arredios, impõem-se
como resistência, insistem em ser, em não se negar. Diferentemente
do que ocorrera com os Caxinauás, que tiveram seu espaço
restringido, os Numas, seres que se deslocam na rapidez de um sopro, que
se movimentam com facilidade na noite, que quase não são
vistos, cercam o seringal e impedem sua expansão. Usando de estratégias
para conquistá-los, Pierre deixa, nos limites do seringal, presentes
nos quais eles não tocam, impossibilitando um canal de comunicação.
Diante do comportamento dos Numas, a voz parodística do narrador
interroga, instalando uma problemática: “Onde
há resistência, há poder?”(124)
As obras do
ciclo, em geral, apresentam o índio como elemento hostil e cruel.
Poucas vezes, é acentuado que o seu comportamento violento resulta
de uma reação a uma violência, a invasão. Divergindo
do tratamento omisso ou pelo menos parcial, haja vista que em algumas obras
destaca-se a figura sanguinária do indígena e de vítima
do invasor, no romance O amante das amazonas há uma declaração
enfática sobre o extermínio indígena. Essa declaração,
posta através de uma imagem alegórica, permite ouvir, por
intermédio do narrador, a voz sufocada de Maria Caxinauá,
que é também uma voz coletiva:
OS ásperos,
compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte. As pupilas
eram dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror.
Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como
papel. Sujo, longo vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se
no chão como uma louca num hospício. Observada à distância,
era a concentração do Ódio. De perto, era o Medo,
o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam
que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher
não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância,
desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando
o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e
animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente.
Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a inimiga. Pois a Caxinauá
é vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão
inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele
corpo. Todos os torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade
européia, os saqueados, desculturados, reduzidos a ruínas
se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria Caxinauá.
São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas
de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos,
sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças,
escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu
o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de
subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas
proletárias –
vinte milhões
de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto
cego de Maria Caxinauá. (125)
Nesta passagem,
está implícita a paródia ao conto “A
decana dos Muras”, de Alberto Rangel.
O tom inicial da descrição de Maria Caxinauá segue
paralelo à caracterização assombrosa e torpe da decana
para apresentar ao leitor o texto parodiado, mas, num segundo momento,
surge o distanciamento ou a oposição parodística a
partir da negação de senilidade à índia Caxinauá –
aquela mulher não era uma velha! –
e ao invés
de impor comiseração pelo estado de rebotalhamento da índia,
alça-a à condição de um ser terrível,
forte e ameaçador. Em “A
decana dos Muras”, ao contrário,
o narrador, após apresentar o aspecto assombroso da velha índia,
tenta suavizar-lhe o aspecto, atribuindo-lhe uma docilidade na juventude
perdida. O texto parodístico traz, por fim, a denúncia do
massacre da cultura indígena que o texto parodiado não acentua.
Destacamos que o texto parodístico atinge um nível profundo
em relação ao texto parodiado. A determinação
ideológica que preside o discurso do autor Alberto Rangel, assentada
na visão ambivalente sobre o extermínio autóctone,
à medida em que comunga do coro depreciativo do colonizador, não
podendo ocultar sua repugnância e rejeição pelo ser
que representa o outro, é desocultada.
O império
do látex, emblemado em Pierre Bataillon e seu palácio excêntrico
e anacrônico no meio da selva, ressurge no final do romance numa
alegoria fantasmagórica. Nas ruínas do palácio saqueado,
resta apenas o piano de cauda Pleyel, objeto sufocado em seu aspecto nobre
e fáustico como se silenciado após o encerramento de um concerto.
O palácio, congelado no tempo, é povoado por fantasmas da
História, abriga os espectros da ostentação que passam “[...]
arrastando
longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas
[...]”,(126)
esquálidos, saídos do “sepulcro
do luxo” para
expiar suas “culpas
mortas”. Pierre também
ali se encontra transformado numa negação do que fora outrora:
E à
noite a figura do antigo e descarnado dono poderia ser vista, através
das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível
e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo,
à procura do tempo, à procura de si –
e passando sem que ninguém
o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo
antigo era uma torturação sinistramente mergulhada na destruição
de um império ali por fim silenciado.(127)
A narrativa
de O amante das amazonas focaliza, além da personagem Pierre Bataillon,
evocadora de um passado que o narrador insere fragmentariamente na história,
as personagens Juca das Neves e Ribamar de Souza que se ligam às
fases de decadência e de mudança de perspectiva econômica.
A fase de decadência, em que muitos aviadores se arruinaram, concentra-se
em Juca das Neves, dono do falido “Armazém
das Novidades”,
ainda mantido aberto quando
a abastança já não mais existe e Manaus é uma “cidade-fantasma”.
A indicação
de que o “ciclo
da borracha”
está encerrado e de que as estruturas social e econômica apresentam
ares de mudança, estampa-se no mobiliário discreto, na decoração
que já evoca o modern style descritos na casa do comendador Gabriel
Gonçalves da Cunha, personagem histórica recriada na ficção.
Ribamar de Souza transforma-se no herdeiro do falido império do
látex, compra o armazém de Juca das Neves e o moderniza,
tornando-se um novo-rico: “Ribamar,
com auxílio
de Juca das Neves, modernizou o Armazém das Novidades, passando
a representar vários produtos norte-americanos, como as máquinas
de costura Singer –
de enorme popularidade. Ribamar expandiu os negócios e começou
a ameaçar o império comercial da poderosa família
Gonçalves da Cunha [...]”.
(128)
O amante das
amazonas promove um olhar abrangente e profundo sobre o ciclo econômico
da borracha que se seria no texto como um todo e também condensa-se
em trechos do romance. A capacidade de condensação, segundo
Perrone-Moisés,(129) é um dos valores apontados pelos
escritores-críticos no texto moderno, na medida em que permite “dizer
muito em poucas palavras”. A autora
destaca que a condensação, mais do que uma síntese,
importa numa saturação de sentidos. Um trecho de O amante
das amazonas realiza uma condensação que retoma toda a História
do ciclo, englobando o processo que deslanchou a alta cotação
da borracha no mercado internacional e os efeitos locais desse processo,
estampados na circulação de riqueza na capital amazonense
e na adoção de todo um modus vivendi à reboque da
cultura européia. O narrador acrescenta aos fatos e aspectos históricos,
enumerados em frases curtas, comentários irônicos e críticos,
caracterizando o tratamento parodístico:
[...] A cotação
da borracha amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a produção
dos pneumáticos. O Amazonas, único produtor de látex
do mundo. Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o
Teatro Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam
cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no
Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de
Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura
art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz –
depois Palácio
Rio Negro, sede do governo. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio.
O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete
de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã,
envasadura, aleta, estípite. O enxalso, o frontão de cartela.
Galilé. Pequena Manaus, grande Paris!.[...] Um prédio importado,
peça por peça, da Inglaterra: a Alfândega, montada
aqui. Outro, projeto do próprio Gustavo Eiffel, de ferro: o Mercado
Municipal. Um Serviço Telefônico serve a cidade. A eletricidade
ilumina as ruas de Manaus no início do Século, talvez das
primeiras cidades brasileiras a ter este serviço [...] Óperas,
óperas, óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria
Miranda Correia. A Praça da Saudade. O Roadway, o Trapiche. Sífilis.
Malária [...] 126 navios trafegam no interior do Amazonas. Vaticanos,
gaiolas e chatas. Inaugura-se, às custas de 3,3 milhões de
dólares, o Teatro Amazonas, em 1896 –
a mais cara e inútil
obra faraônica da História do Brasil, milionária e
importada, com painéis, centenas de lustres de cristal venezianos,
colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze
assinadas por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões
de porcelana da altura de um homem, tapetes persas –
tudo o que, aliás,
em 1912 desapareceu, esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num
depósito de borracha de uma firma americana. Ali o erário
público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o Teatro
Amazonas custou o preço de 5 mil casas luxuosas. O dólar
a 3 mil réis. Por 900 contos de réis se constrói o
Palácio da Justiça. E por 1 mil e seiscentos contos de réis
se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído.
O Teatro custou 10 mil vidas. Sim: Em 1919 no Amazonas já tinham
chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante
quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis
em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época.
Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, em Manaus,
com cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia,
Odontologia, Farmácia. Agronomia, Ciências e Letras. Nessa
época 12 milhões de francos franceses sumiram, roubados no
Governo de Constantino Nery. Encampa-se, fraudulenta e inutilmente, a Manaos
Improvements, por 10.500 contos de réis –
o preço
do Teatro Amazonas. A história do Amazonas é um acúmulo
de loucuras corruptas. (130)
A diversificação
apresentada no romance O amante das amazonas em relação às
demais obras ficcionais do “ciclo
da borracha” refere-se tanto a um tratamento
mais aprofundado e crítico sobre o tema quanto a uma renovação
do código lingüístico-literário. Através
do procedimento parodístico, aspectos muitas vezes tratados superficialmente
ganham uma nova interpretação como já demonstramos
no que diz respeito à versão do relacionamento do autóctone
com o explorador e à colocação do seringalista em
um contexto mais amplo do ciclo.
Ao mesmo tempo,
imagens desgastadas são acrescidas de novos conteúdos como,
por exemplo, a do estado de solidão dos seringueiros, isolados na
selva. Geralmente postos em um nível animal, que também o
romance destaca (“tinham
virados bichos”),
recebem, por outro lado, o perfil de seres mecânicos, “[...]
movidos por um interno aparelho de corda [...] ,(131) que significa pôr
em evidência a negação de sua existência como
seres vivos e demonstrar a condição de objetos em foram tomados.
A espoliação
dos seringueiros é destacada, mesmo sem a enumeração
das atividades diárias do seringal. A discussão sobre o sistema
de exploração seria-se em frases curtas que podem ser tomadas
como fragmentos de discursos que põem em antagonismo duas visões
de mundo: a do explorador, calcada no lucro, e a do nativo, baseada na
subsistência. Assim também se acentua a paródia que
toma o discurso do outro sob forma de pergunta para problematizá-lo: “[...]
O leite se tornava negro, ao meu contato.
A agricultura não casa com a seringa? Produz o que consome? [...]”.
(132)
Em categorias
da narrativa, como o foco narrativo, o tempo, o enredo e as personagens,
está concentrada a renovação do plano de expressão
de O amante das amazonas. Sobre o foco narrativo (narrador) já fizemos
considerações. O tempo e o enredo, por sua vez, são
categorias interdependentes, a mudança numa, acarreta conseqüentemente
mudança na outra. Comprovando uma orientação que norteia
todo o romance, a auto-explicação, o enredo pode ser melhor
entendido se tomarmos um trecho em que a personagem Frei Lothar rememora
os saraus promovidos por Pierre Bataillon, nos quais o Frei tocava violino,
atrasando o movimento, e Pierre, piano: “[...]
Aquela sonata tem um módulo que se repete, e sobre esse par de notas
Beethoven vai construindo a intriga, uma trama de perguntas e respostas,
indagações, uma seriação de questões
amorosas, apaixonadamente transcendentes que o violino pega e alonga, desenvolvendo,
em diálogo com o piano, em rápidas e fortes frases... O segundo
movimento conta uma história curta e simples, conseqüência
da anterior, que o violino repete, reconta, reforça, concorda, apoia
e retoma. O violino entra com alma...”(133)
Esse trecho detalha a construção do enredo do romance. O
primeiro movimento da sonata refere-se à primeira parte da história
em que o narrador evoca o fastigioso império de Pierre Bataillon
e as personagens que estão a sua volta; o segundo movimento, conseqüentemente,
refere-se à segunda parte da história em que ruído
o império do látex, a narrativa passa a enfocar Manaus em
seu estado de decadência física e humana. São sintomas
dessa decadência o arruinado aviador Juca das Neves e sua mulher,
D. Constança. Como o andamento do piano de Pierre e do violino de
Frei Lothar que não se desenvolvem no mesmo compasso, essas duas
partes da história, apesar de interligadas pelos aspectos apogeu
e decadência do ciclo, seguem uma estruturação diferente.
O universo mítico evocado em capítulos como “Numas”
e “Ratos”,
na primeira parte da história, não encontra lugar na cidade,
o espaço da vida pretendida racional. É de se notar que na
segunda parte os acontecimentos da narrativa se apresentam de forma menos
desordenada e fragmentária do que na primeira parte, marcada não
somente pela quebra da relação causal entre os capítulos
como também pela descontinuidade das ações das personagens
ou da seqüência de acontecimentos. Em relação
ao enredo, portanto, o romance não tece seqüencialmente as
ações como ocorre no romance tradicional. A atração
que esse enredo exerce não é, por conseguinte, pelos encadeamentos
de episódios que caminham para a solução de um ou
mais conflitos, mas justamente pelo estranhamento da disposição
estrutural da narrativa. (134)
A categoria
tempo implicada na disposição do enredo é igualmente
tratada sob uma perspectiva inusitada no romance. Primeiramente, devemos
ressaltar que o tempo do romance tem um caráter psicológico
porque é tempo da memória, da lembrança, e daí
a fragmentação do enredo em virtude do que o narrador pode
e quer lembrar. Quando o narrador enuncia, na abertura do primeiro capítulo: “Nós
nos despedimos na Cancela sob a primeira luz da madrugada do Natal de 1897 –
eu e minha mãe,
nunca mais a vi - na presença de todos que ali estavam e de quem
me não quero lembrar no povoado de Patos em Pernambuco, de onde
parti com duas mudas de roupa na mala [...]”,(135)
temos preliminarmente
a noção de que os fatos a serem narrados pertencem ao passado
pela indicação dos verbos no tempo pretérito e pela
referência à condição de lembrança.
O tempo pretérito,
contudo, como indicador de uma ação decorrida, deve ser tomado
com cautela no plano ficcional. Nunes alerta, baseado em argumentos de
Kate Hamburger e Harald Weinrich, que “[...]
na ficção
criamos personagens, Eus fictícios originais, que se movem num plano
de existência estética, relativamente ao qual as enunciações
perdem o alcance factual de registros da experiência [...].(136)
Desse modo, a ficção não se guia pela mesma lógica
da gramática, que é a lógica do mundo real. O uso
do tempo pretérito não indicaria uma ação passada,
mas uma ação contada: “[...]
O pretérito
assinala que há narrativa e não o fato de que esta se realiza
para trás no tempo que passou.”(137)
Como exemplo de que não se narra necessariamente aquilo que já
ocorreu estão as obras de ficção científica
que também empregam o tempo pretérito e, por outro lado,
situações ficcionais em que, mesmo utilizando o pretérito,
indica-se que uma ação está se processando.
O narrador
narra um tempo passado, atualizando-o no ato da enunciação.
Não fala de um passado de forma distanciada, mas se põe em
seu momento mesmo. A segunda pessoa do plural inclui narrador e leitor: “[...]
Nós
retornávamos à elaboração do nosso faustoso
passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem
sentido e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade
todos os detalhes de um aspecto de deslumbrante luz [...].”
(138) Trata-se de uma situação
mais complexa do que o recurso da retrospecção por meio da
analepse em que o recuo narrativo “[...]
é feito numa exposição separada, interrompendo a ação
principal, que volta ao seu curso quando aquela termina [...]”.(139)
O narrador aproveita-se do tempo lingüístico em que dialoga
com o leitor a partir de um agora para dar ao passado um caráter
de ubiqüidade; fazê-lo acontecer como presente ficcional.
A personagem
é uma categoria narrativa que tem particular importância em
O amante das amazonas e por isso não podemos deixar de considerar
a concepção que Rogel Samuel expressa sobre ela em seu texto
teórico Crítica da escrita: “[...]
o próprio
da natureza narrativa não é a ação (há
romances sem ‘ação’,
ou de ação
reduzida [...] o próprio da natureza narrativa não é
a ação, mas o personagem como nome (o ‘pai’,
a ‘Capitu’, o ‘Peri’, a ‘Ceci’) como material sêmico
desta moldura catalogável de rótulos, deste fichário
do dito sobre o personagem”.
(140) Na própria
seleção dos capítulos do romance, estampa-se a proeminência
que têm as personagens, uma vez que dos 23 capítulos que compõem
o romance, 6 levam como título nomes de personagens (Paxiúba,
Ferreira, Júlia, Frei Lothar, Ribamar, Benito). Ademais, os capítulos “O
leque”
e “Rua das Flores” podem ser considerados como enunciadores
de personagens, pois detêm-se quase que exclusivamente nelas e não
numa ação.
A menção
feita por Samuel à personagem como material sêmico remete
a terminologia proposta por A. J. Greimas em seu livro Semantique Structurale
(1965),(141) que está calcada na concepção
semiológica, significativa de um rompimento com a noção
de personagem como imitação do ser humano, concebendo-a como
signo.(142) Samuel destaca que o texto ficcional é constituído
de logros e que o seu logro fundamental é ocultar sua própria
condição fictícia. Jogando com uma forma de exposição
da personagem oposta a dessa ocultação, o narrador de O amante
das amazonas revela o seu caráter ilusório: “Paxiúba
na montaria, espetáculo bom de ver, veja-o que ele é de papel,
literário [...].”(143)
As personagens,
em O amante das amazonas, são emblemáticas tanto em relação
ao ciclo quanto ao processo de colonização da Amazônia
como um todo. O narrador anuncia essa condição através
da personagem Paxiúba, quando a refere como “[...]
emblema da
Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida e nociva [...].(144)
Paxiúba carrega a marca de um ser híbrido, filho de um negro
barbadiano e de uma índia Caxinauá. Nele se personaliza um
duplo: Com os seres que estão no seu mesmo plano, libera taras sexuais:
Zilda, mulher do seringueiro Laurie Costa é estuprada e a investida
se repete com Maria Caxinauá. Com Zequinha Bataillon, seu senhor,
transforma-se num animal domado, dormindo a seus pés:
[...] Paxiúba
era da confiança de Zequinha, dormia na sua cama, criado desde criança
junto dele, adorando-o, como um cão [...] (145)
...............................................................................................................................
[...] ele
era personalidade do Palácio, chefe do aparelho policial do Seringal,
guarda de Zequinha Bataillon, diziam amigo que dormia com o menino, importância
capital de bicho. Sendo que Paxiúba armado assassino, com águia
e serpente, eliminava quem devia de ser, na sua função de
coagir e de matar [...] (146)
Pierre Bataillon
é outra personagem emblemática e indicial (147) pela significação
que acumula de uma cultura hegemônica, assim como também o
é Maria Caxinauá pelo que representa de oposição
a essa cultura. Engloba a submissão dos Caxinauás, mas também
é uma imagem da reação.
Se o romance
apresenta a imponência em Pierre Bataillon, não deixa de vasculhar
o fundo de mediocridade e mesquinhez que a ostentação oculta
através da personalidade neurótica de D. Constança:
D. CONSTANÇA
tinha sido educada para ser uma boneca inútil. Exagerara e ficou
louca [...] D. Constança se abanava com o leque, como se a queimasse
um fogo interior. E tinha péssimo caráter, bastava a pessoa
dar as costas para que ela começasse a retaliação.
Voz fina, língua viperina. Olhar de fuzilante ódio. Os seres
das classes inferiores eram ‘gentinha’,
não existiam [...]
[...] Nunca
teve uma amiga. Começava a falar de todas logo que fechava a porta
da rua. Falava para Juca das Neves, falava muito rapidamente, a voz nervosa,
fina, angustiada. Passava horas e horas em fofocas, maledicências,
escondendo-se atrás de portas para ouvir, entreabrindo janelas para
espiar. Vestia as pessoas com tudo o que pensava a respeito, a todos nutrindo
um ódio que a corrompia por dentro [...]
[...] à
medida que foi envelhecendo foi ficando pior. Começou a falar e
abanar-se sozinha, sentada na cadeira de balanço onde se abanava
e falava até tarde da noite. E sozinha falando, falando, e abanando-se,
abanando-se, os olhos se fixaram numa característica sua, que era
o “rabo
do olho”, como
ela dizia, já não olhando de frente para ninguém,
não encarando ninguém, o olhar fixo nos lados e cantos das
órbitas como se sempre procurasse ver e ouvir algo que se passava
pelos lados e atrás, um olhar congelado numa expressão de
ódio, e até hoje me lembro dela assim sentada, olhando para
os lados e para trás, como cercada de inimigos, abanando-se frenética
e falando aflita, falando mal de seres imaginários, de pessoas que
já tinham morrido há muito e muito tempo, e sozinha, esquecida...
(148)
Por outro lado,
o romance ilustra na personagem Benito Botelho o elemento que se recusa
a aderir à cultura da ostentação e, por isso, torna-se
marginalizado. Na contramão dos hábitos sofisticados, ele
anda mal vestido, tem os dentes estragados e esboça uma palidez
doentia. A sua ironia “[...]
contra os poderosos e contra o tacanho e conservador meio em que vivia
[...]”(149)
não lhe rendia mais do que o insignificante cargo de revisor do
Jornal Amazonas Comercial. No entanto, a sua cultura não era postiça,
como poeta e poliglota “[...]
lia e falava
francês, inglês, alemão e italiano, além de sólidos
conhecimentos de grego e de latim. Autodidata, construíra o seu
saber: “[...]
Conhecedor dos dois mundos, seu
domínio ia da Filosofia à literatura, da História
à Filologia [...]”.(150)
Apesar disso, e talvez por isso mesmo, todos o desprezavam. Contrastando
com a simplicidade e o verdadeiro interesse pelo conhecimento de Benito,
que não se importava nem com as condições precárias
em que morava, com as águas da enchente batendo à soleira
da porta do tapiri chamado de casa, onde empilhava livros, estavam os “[...]
beletristas da Academia, os homens de letras, juristas de óculos
no nariz e paletó impecável, doutores, jurisconsultos, magistrados,
desembargadores [...].”
(151) A Benito, porém,
como opositor nato a tudo o que significavam, era negado o emprego na biblioteca
municipal. O narrador destaca o isolamento de Benito na razão direta
de sua rebeldia:
[...] Ele
era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira,
laudatória, servil, risonha e patriarcal [...] Ele era o inimigo
da elite de quem Eudócia fora aliada e escrava –
ela, porém, grata à patroa, que considerava uma espécie
de benção, não compreendia o ódio do sobrinho,
ódio de que, por isso, também era vítima. (152)
Frei Lothar
que, a exemplo de Benito Botelho, dá nome ao capítulo, constitui
personagem que recebe especial atenção no romance. Como missionário,
acumula um diálogo com as demais obras do ciclo que quase unanimemente
se voltam à representação dessa personagem e está
rigorosamente ligado ao processo de colonização da Amazônia.
Essa personagem
se choca com o papel histórico que Arthur Cezar Ferreira REIS atribui
aos missionários na Amazônia:
Empresa de
titãs, a conquista espiritual da Amazônia empreendida pelos
franciscanos de Santo Antônio, Salezianos, beneditinos, padres do
Espírito Santo, agostinianos, dominicanos, padres servos de Maria,
capuchinos, barnabitas, padres do Preciosíssimo Sangue, está
constituindo um capítulo dos mais memoráveis e dignificadores
da espécie humana na história da civilização
contemporânea.(153)
A disposição
de um titã seria o aspecto mais improvável a se atribuir
à personagem Frei Lothar. No capítulo dedicado a ela, o primeiro
destaque é a sua triste figura. Sem denodo algum, o frei encontra-se
vencido pelo cansaço de uma tarefa inglória: “[...]
Oh, meu Amazonas!
Deus é grande mas a Floresta é maior, e eu já não
sou o mesmo.”(154)
A conquista espiritual que teria o Frei de empreender, por sua vez, acha-se
ameaçada pelo abalo das convicções religiosas e pela
enumeração de fatos contingenciais que perturbam a sua missão: “[...]
O Frei perdera a fé,
falava grosso, cuspia no chão, andava armado, tinha mau humor e
mau cheiro [...].”(155)
Frei Lothar
e Benito Botelho se aproximam enquanto seres inadaptados num espaço.
Tal como Benito, Frei Lothar é repudiado, execrado porque abomina
a sociedade onde vive, os seus modos requintados, mas sem autenticidade.
É o oposto desse requinte, tem maus modos, escarra no chão,
fala palavrões e age com rebeldia, odiando a classe dominante, a
religião, a fé porque não as vê produzirem nada
verdadeiramente útil para a vida. Como religioso, o que viu toda
a vida “[...]
não
foi Deus: Foi a dor, a dor e a morte, a miséria e a desolação
[...].”(156)
Frei Lothar só encontra prazer na música, como Benito só
pode encontrá-lo nos livros:
[...] Frei
Lothar se levantou com esforço, saiu dali e foi ao camarote de onde
veio com o violino. Sentou-se. Ia estudar até o sono chegar. Era
a Segunda Partitura de Bach, que sabia de cor, mas nunca conseguia superar
certas dificuldades. Tocava sem a partitura. Estudava sem a partitura,
no escuro, dentro do vento veloz. Sozinho. Sem partitura e sem luz, sem
ninguém. Oh! No Amazonas era assim. O Amazonas não tinha
partitura, não tinha luz, nem ninguém. O Amazonas era uma
imensa planície de miséria [...](157)
Frei Lothar
e Benito são duas personagens que remetem à degradação.
Não em virtude da derrocada econômica do ciclo, mas por uma
inadequação a um modo de vida baseado num simulacro: um desenvolvimento
econômico ilusório, um projeto fictício de civilização.
O relevo que
têm as personagens em O amante das amazonas aparece destacado no
final do romance, que ao invés de remeter para um desfecho do enredo,
faz um encadeamento de personagens no tom dos antigos narradores:
[...] não
se esqueça dessa história tão bonita do amante das
amazonas. A Amazônia é um certo lugar fantástico que
também está no fim, mas quando sonhar sonhe com o Igarapé
do Inferno se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio
Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se
de Maria Caxinauá, do bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de
Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênica Vellarde. Não
se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da Conchita
Del Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do Comendador
Gabriel Gonçalves da Cunha. Mas de Frei Lothar e de Ribamar de Souza,
que assim se vai nesse vosso Narrador que desaparece, neste ponto.(158)
O comentário
do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis sobre a conquista espiritual
da Amazônia apresenta-se menos contundente para entendermos a participação
do missionário na Amazônia do que o ser de papel que é
Frei Lothar. Vemos que a missão de Frei Lothar não depende
apenas de um arrojado pioneirismo, ele luta com os empecilhos naturais,
a lama, o calor, os mosquitos e com a própria inviabilidade de justificação
da conquista porque não crê nela. Por intermédio do
discurso ficcional, portanto, promove-se uma percepção mais
autêntica do real, para a qual chama atenção Samuel,
baseado na tese de Jean-Paul Sartre em A imaginação: “A
literatura
fala do mundo, através de uma imagem que é outro mundo. Só
aprendemos o real se sairmos do real, pela imaginação [...]”(159)
Por outro lado, a visão do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis
é ideologicamente convincente, transmite um discurso oficializado
pelos conquistadores na Amazônia, que a literatura tem a capacidade
de desmontar.
Samuel explicita
que sair do real pela imaginação não significa se
pôr além do real dado no mundo, ao destacar que o discurso
não se separa do mundo, “[...]
o discurso só
pode falar de uma única coisa: Do mundo [...].”(160)
A postulação
que Samuel apresenta em Crítica da escrita é coerentemente
realizada em O amante das amazonas à medida que se verifica a apresentação
do discurso literário como arte imaginativa, revelada, metalingüisticamente,
através do narrador que se anuncia como fingido; do caráter
irreal (ficcional) das personagens apresentado no próprio texto
e do nível simbólico do texto que apresenta relações
solicitadoras da busca do sentido do que não está explicitamente
dito. Por esses caminhos o romance atinge um nível de criticidade
na abordagem do evento histórico do “ciclo
da borracha”.
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NOTAS
108)
Graduado em Ciência da literatura pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rogel Samuel exerce nessa universidade a função
de professor doutor adjunto à época da publicação
de O amante das amazonas (1992). Como analista literário, publicou
Crítica da escrita (1979), organizou e colaborou na publicação
de Literatura básica (1985) e Como curtir o livro: o que é
teolit? (1986). No campo ficcional, o autor produziu prosa e poesia. Publicou,
em 1991, 120 poemas.
109)
De acordo com a autora, os escritores-críticos caracterizam-se essencialmente
como escritores (ficcionistas) que tomaram a si o papel de escrever crítica
em razão de um descontentamento com a atuação da crítica
profissional: “[...]
Os ataques
e as chacotas dos escritores contra os críticos literários
constituem um vasto repertório, capaz de preencher vários
volumes. Na ausência de uma instância superior que regulasse
o dissenso, e no descontentamento com as instâncias ‘inferiores’
que se arrogavam o direito de os julgar, os criadores puseram-se a praticar
uma espécie de contra-crítica, estimada por eles como mais
competente, ou pelo menos mais eficiente, por estar ligada à própria
experiência criadora.”(Leyla
PERRONE-MOISÉS.
Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores
modernos, p. 143).
110)
Ítalo CALVINO, Se um viajante numa noite de inverno, p. 16.
111)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 51.
112)
Ibid., p. 59.
113)
Rogel Samuel, O amante das amazonas, p. 51.
114)
Ibid., p. 9.
115)
Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa. In: Luiz COSTA LIMA
(org.), Teoria da literatura em suas fontes, p. 489-509.
116)
Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa In: Luiz COSTA LIMA (Org.)
Teoria da literatura em suas fontes, p. 500.
117)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 5-6.
118)
Ibid., p. 16.
119)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 16.
120 Ibid.,
p. 10-11.
121)
Ibid., p. 32.
122)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 43.
123)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 14.
124)
Ibid., p. 14.
125)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 38-39.
126)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 89.
127)
Ibid., p. 89.
128)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 82.
129)
Leyla PERRONE-MOISÉS, Altas literaturas: escolha e valor na obra
crítica de escritores modernos, p. 156.
130)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 33-5.
131)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 8.
132)
Ibid., p. 8.
133)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 84.
134)
Leyla Perrone-Moisés comenta que a novidade também é
um valor prezado pelos escritores-críticos: “[...]
A novidade valorizada pelos escritores críticos modernos é
principalmente uma novidade de expressão que rompe com os velhos
hábitos e surpreende o leitor [...]”
(Altas literaturas:
escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 171).
135)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 5.
136)
Benedito NUNES, O tempo na narrativa, p. 38.
137)
Ibid., p. 40.
138)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 9
139)
Benedito NUNES, o tempo na narrativa, p. 32.
140)
Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p. 47. (O “pai”
constitui uma
personagem do conto “A
terceira
margem do rio”,
analisado pelo autor na primeira parte desse livro).
141)
É preciso não perder de vista, todavia, que Samuel explicita
a concepção de Roland Barthes desse conotador: “Os
semas [...] são
considerados por Barthes, como a voz da pessoa, dos lugares e dos objetos:
o sema é o conotador, por um entusiasmo do texto da configuração
de caráter destes elementos, define uma interpretação
ideológica [..]”(Rogel
SAMUEL, Crítica
da escrita, p. 47).
142)
A esse respeito, é oportuna a complementação de Beth
Brait: “Ao
encarar a personagem
como ser fictício, com forma própria de existir, os autores
situam a personagem dentro da especificidade do texto, considerando a sua
complexidade e alcance dos métodos utilizados para apreendê-la.
(A personagem, p. 51).
143)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 21.
144)
Ibid., p. 22.
145)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 77
146)
Ibid., p. 23.
147)
Sobre o índice, Donald Schüler informa: “[...]
Os índices
remetem ao caráter das personagens, à atmosfera, dizem respeito
ao significado, em contraste com as funções que se restringem
ao desenrolar dos acontecimentos”
(Teoria do romance, p. 54).
148)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 67-68.
149)
Ibid., p. 69.
150)
Ibid., p. 70.
151)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 70.
152)
Ibid., p. 72.
153)
Arthur Cezar Ferreira REIS, A conquista espiritual da Amazônia, p.
113.
154)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 54.
155)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 54.
156)
Ibid., p. 57.
157)
Ibid., p. 57.
158)
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 95.
159)
Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p. 65.
160)
Ibid., p. 80.
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