No
início da caminhada que leva à indigência espiritual e moral dos tempos presentes,
estão os esforços nefastos de não poucos para destronar Cristo, o desapego
da lei da verdade, que ele anunciou, da lei do amor, que é o sopro vital
do seu reino
(CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII SUMMI PONTIFICATUS SOBRE O OFÍCIO DO PONTIFICADO)
...
"15. No início da caminhada que leva à indigência espiritual e moral dos
tempos presentes, estão os esforços nefastos de não poucos para destronar
Cristo, o desapego da lei da verdade, que ele anunciou, da lei do amor, que
é o sopro vital do seu reino. O reconhecimento dos direitos reais de Cristo
e a volta de cada um e da sociedade à lei da sua verdade e de seu amor são
o único caminho de salvação."
...
"59. Não, veneráveis irmãos, a salvação dos povos não pode vir dos meios
externos; a espada que é capaz de impor condições de paz, não pode criar
a paz. As energias que devem renovar a face da terra devem partir do interior,
do espírito. A nova organização do mundo, da vida nacional e internacional,
quando cessarem as amarguras e as cruéis lutas hodiernas, não deverá repousar
mais na areia movediça das normas mutáveis e efêmeras, deixadas ao arbítrio
do egoísmo coletivo e individual. Devem elas antes erguer-se sobre sólida
base, sobre a rocha inabalável do direito natural e da revelação divina.
Dali deverá o legislador humano atingir aquele espírito de equilíbrio, aquele
apurado senso de responsabilidade moral, sem o que é fácil desconhecer os
limites entre o legítimo uso e o abuso do poder. Tão-somente assim as suas
decisões poderão ter consistência interna, nobre dignidade e sanção religiosa,
e não ficarão à mercê do egoísmo e da paixão. Porquanto, se é verdade que
os males sofridos hoje pela humanidade, procedem, em parte do desequilíbrio
econômico e da luta dos interesses, no intuito de alcançar uma distribuição
mais équa dos bens que Deus concedeu ao homem como meios do seu sustento
e progresso, verdade é também que eles têm a sua raiz muito mais profunda
a tocar nas crenças religiosas e nas convicções morais, pervertidas pelo
progressivo afastamento dos povos da unidade de doutrina e de fé, de costumes
e de moral, promovida um dia pela obra indefessa e benéfica da Igreja. A
reeducação da humanidade, para ter qualquer resultado positivo, deverá ser
sobretudo espiritual e religiosa; deverá, portanto, partir de Cristo, sua
base indispensável, deverá ser atuada pela justiça e coroada pela caridade.
A tarefa materna da Igreja
60. Realizar esta obra de regeneração, adaptando os seus meios às modificadas
condições dos tempos e às novas necessidades do gênero humano, eis a tarefa
essencial e materna da Igreja. Agregação do Evangelho, imposta pelo seu divino
fundador, em que se inculca aos homens a verdade, a justiça e a caridade,
e o esforço para arraigar nas almas e nas consciências os seus preceitos,
eis também o trabalho mais nobre e frutuoso em favor da paz. A grandiosidade
de tal missão quase que esmorece os corações daqueles que fazem parte da
Igreja militante. Mas o empenhar-se para que seja difundido o reino de Deus,
coisa que cada século procurou realizar de vários modos, com diversos meios
e não poucas e duras lutas, é um dever imposto a todo aquele que a graça
divina arrancou das garras de Satanás e que com o batismo elegeu cidadão
daquele reino. E se o pertencer a esse reino, o viver segundo o seu espírito,
o trabalhar pelo seu incremento e o tornar acessíveis os seus bens também
àquela porção da humanidade que ainda dele não faz parte, equivale em nossos
dias a dever afrontar oposições vastas e tenazes e minuciosamente organizadas,
isso a ninguém dispensa da franca e corajosa procissão de fé, mas antes deve
incitar a ser firme na luta, também a custo dos maiores sacrifícios. Quem
vive do espírito de Cristo não se deixa abater pelas dificuldades que lhe
vêm ao encontro, mas sente-se como que impelido a empregar todas as suas
forças com plena confiança em Deus; não se esquiva às estreitezas e necessidades
da hora, mas afronta as suas asperezas, pronto sempre a socorrer com aquele
amor que não poupa sacrifícios; é mais forte que a própria morte e não se
deixa levar pelas impetuosas águas da tribulação.
61. Diariamente elevamos a Deus o nosso humilde e profundo agradecimento,
veneráveis irmãos, pelo íntimo conforto e celeste alegria que nos proporciona
observar em todas as partes do mundo católico sinais evidentes de um espírito
que afronta corajosamente os gigantescos encargos da época presente e que,
generosa e decididamente, tende a reunir em fecunda harmonia o primeiro e
essencial dever da própria santificação e a atividade apostólica para a difusão
sempre maior do reino de Cristo. Do movimento dos congressos eucarísticos
promovidos com amorosa solicitude pelos nossos predecessores, da colaboração
dos leigos formados na Ação católica e da profunda consciência da sua nobre
missão, derivam fontes de graças e reservas de forças, que dificilmente se
poderiam estimar como merecem, tanto delas necessitamos nos tempos atuais
em que aumentam as ameaças, enquanto arde a luta entre o cristianismo e o
anticristianismo.
IV. O TRABALHO APOSTÓLICO DOS LEIGOS
62. Quando contemplamos com tristeza a desproporção entre o número dos sacerdotes
e os encargos que lhes tocam, quando vemos verificar-se ainda hoje a palavra
do Salvador: "a messe é imensa e os operários são poucos" (Mt 9,37; Lc 10,2),
a colaboração dos leigos no apostolado hierárquico, numerosa e animada de
ardente zelo e de generosa dedicação, depara-se-nos um precioso auxílio à
obra dos sacerdotes e mostra possibilidades de desenvolvimento que legitimem
as mais belas esperanças. A prece da Igreja ao Senhor da messe, para que
mande operários à sua vinha, foi atendida como o requerem as necessidades
da hora presente e, felizmente, supre e completa as energias, por vezes impedidas
e insuficientes, do apostolado sacerdotal. Uma ardente falange de homens
e de mulheres e de jovens de ambos os sexos, obedecendo à voz do sumo pastor
às diretrizes dos próprios bispos, consagra-se com todo o ardor de sua alma
às obras do apostolado para reconduzir a Cristo as massas populares que dele
se haviam separado. A todos chegue, neste momento tão importante para a Igreja
e a humanidade, a nossa saudação paterna, o nosso comovido agradecimento
e a nossa confiante esperança. Puseram eles, verdadeiramente, a sua vida
e as suas obras sob o vexilo de Cristo-Rei e podem repetir com o Salmista:
"Ao rei exponho as minhas obras" (Sl 44,1). O "venha a nós o vosso reino"
é não só o voto ardente de suas preces, mas também a diretriz de suas obras.
Em todas as classes, em todas as categorias, em todos os grupos esta colaboração
do laicado com o sacerdócio revela preciosas energias às quais está confiada
uma missão que mais elevada e consoladora não poderiam desejar corações nobres
e fiéis. Esse trabalho apostólico, realizado segundo o espírito da Igreja,
consagra o leigo quase "ministro de Cristo" no sentido assim explicado por
santo Agostinho: "Ó irmãos, quando ouvis o Senhor dizer: 'Onde estou eu aí
estará também o meu ministro', não deveis pensar somente nos bons bispos
e nos bons clérigos. Também vós, a vosso modo, deveis ser ministros de Cristo,
vivendo bem, fazendo esmolas, pregando o seu nome e a sua doutrina a quem
puderdes, de modo que cada qual, mesmo se pai de família, reconheça dever,
também por esse título, um afeto paterno à sua família. Por Cristo e pela
vida eterna, ninguém deixe de exortar os seus, e os instrua, exorte, repreenda,
demonstrando-lhes sempre benevolência e mantendo-os na ordem; exercerá assim
em casa o ofício de clérigo e, de certo modo, o de bispo, servindo Cristo,
para com ele permanecer eternamente".(5)
No lar doméstico
63. Ao promover esta colaboração de leigos ao apostolado, tão importante
nos nossos tempos, toca uma especial missão à família, porque o espírito
da família influi essencialmente sobre o espírito das gerações juvenis. Enquanto
resplandecer, no lar doméstico, a chama sagrada da fé em Cristo e os pais
formarem e plasmarem a vida dos filhos segundo esta fé, a juventude prontificar-se-á
sempre a reconhecer o Redentor em suas prerrogativas reais, e opor-se-á a
quem o tente banir da sociedade ou sacrilegamente lhe viole os direitos.
Ainda que se fechem as Igrejas, que se proscreva da escola a imagem do Crucificado,
a família continua a ser um refúgio providencial e, de certo qual modo, inatacável
da vida cristã. E damos infinitas graças a Deus por vermos que muitíssimas
famílias cumprem essa sua missão com uma fidelidade que afronta todos os
ataques e sacrifícios. Uma possante falange juvenil, mesmo naquelas regiões
em que a fé em Cristo significa sofrimento e perseguição, permanece firme
junto do trono do Redentor, com aquela decisão e tranqüilidade que fazem
lembrar os tempos mais gloriosos das lutas da Igreja. Que de torrentes de
bens inundariam o mundo, de quanta luz, ordem e paz gozaria a vida social,
e quantas energias preciosas e insubstituíveis promoveriam o bem da humanidade
se em toda a parte se concedesse à Igreja, mestra de justiça e de amor, aquela
liberdade de ação a que tem direito sagrado e incontestável, por mandato
divino. Quantos males poderiam ser evitados, quanta felicidade e tranqüilidade
se poderia criar, se os esforços sociais e internacionais para se restabelecer
a paz se deixassem permeabilizar pelos profundos impulsos do evangelho do
amor, na luta contra o egoísmo individual e coletivo!
Trabalho pacificador
64. Entre as leis que regulam a vida dos fiéis cristãos e os postulados duma
genuína humanidade não existe nenhum contraste mas sim comunhão de ideais
e apoio mútuo. Para vantagem da humanidade que, profundamente abalada, sofre
material e moralmente, formulamos um nosso ardente desejo: e é que as angústias
presentes abram os olhos de muitos, a fim de que, iluminados pela verdadeira
luz, possam refletir sobre nosso Senhor Jesus Cristo e a missão da sua Igreja
nesta terra, e para que os que exercem o poder se resolvam a dar à Igreja
campo livre na formação das gerações, segundo os princípios da justiça e
da paz. Este trabalho pacificador supõe naturalmente que não se interponham
embaraços ao exercício da missão que Deus confiou à sua Igreja, que não se
restrinja o campo da sua atividade, que não se subtraia ao seu benéfico influxo
as massas e principalmente a juventude. Por isso nós, como representante
daquele que o profeta denominou "Príncipe da paz"(Is 9,6), apelamos para
os governantes e para todos os que de qualquer modo exerçam influência nos
negócios públicos, a fim de que a Igreja goze sempre de plena liberdade no
cumprimento da sua obra educativa que é anunciar a verdade, inculcar a justiça
e inflamar os corações de caridade divina.
65. Se, por uma parte, a Igreja não pode renunciar ao exercício desta sua
missão que tem por fim último atuar neste mundo o divino desígnio de restaurar
tudo em Cristo, por outra, esta sua obra de restauração revela-se, hoje mais
do que nunca, necessária; visto a triste experiência vir demonstrando que
os meios externos, as providências humanas e os expedientes políticos, por
si sós, são incapazes de dar um alívio eficaz à humanidade atribulada por
tantos males.
66. Convencidos da dolorosa falência dos expedientes humanos, e para esconjurar
as tempestades que ameaçam arrastar a civilização para tenebrosa voragem,
muitos são os que voltam seus olhares esperançosos para a Igreja, para a
cátedra de Pedro, rocha de verdade e de amor, certos de que tão-somente dali
pode partir aquela unidade de doutrina religiosa e moral que, em tempos idos,
tanta consistência deu às relações pacíficas entre os povos. Unidade para
a qual dirigem também seus olhares nostálgicos tantos homens responsáveis
pelos destinos das nações, os quais estão vendo hoje quão incapazes sejam
os meios em que um dia depositaram tanta confiança; unidade desejada por
muitíssimos dos nossos filhos que invocam cotidianamente o Deus de paz e
de amor; unidade aguardada por tantos espíritos nobres, se bem afastados
de nós, os quais, em sua fome e sede de justiça e de paz, volvem seus olhares
para a Sé Apostólica, dela esperando diretriz e conselho.
67. Reconhecem eles na Igreja católica a bimilenária estabilidade das normas
de fé e de vida, a inabalável solidez da hierarquia eclesiástica que, unida
ao sucessor de Pedro, se prodigaliza em iluminar as mentes com a doutrina
do evangelho, em guiar e santificar os homens; e se é de grande condescendência
para com todos, é também firme, ainda que a custo de tormentos e de martírio,
quando deve dizer: "Não é permitido".
Infundadas suspeitas
68. Entretanto, veneráveis irmãos, tanto a doutrina de Cristo, única que
pode dar aos homens uma base de fé que lhes alargue a vista e lhes dilate
divinamente o coração; única que pode remediar eficazmente às hodiernas e
gravíssimas dificuldades, como a operosidade da Igreja em desenvolver e difundir
tal doutrina são, às vezes, alvos de infundadas suspeitas como se visassem
abalar as bases da autoridade civil ou usurpar-lhes os direitos.
69. Para desfazer tais suspeitas, declaramos com apostólica sinceridade -
confirmando todavia tudo o que o nosso predecessor Pio XI, de veneranda memória,
ensinou em sua encíclica Quas primas, de 11 de dezembro de 1925, acerca da
potestade de Cristo-Rei e da sua Igreja - que a Igreja jamais visou nem visa
a tais fins, e se alarga os braços para este mundo não é para dominar mas
para servir. Não pretende ela intrometer-se no campo próprio das demais autoridades
legítimas, mas oferece-lhes o seu auxílio, a exemplo e com o espírito do
seu divino Fundador que "passou fazendo o bem" (At 10,38).
70. A Igreja prega e inculca obediência e respeito às autoridades terrenas
que em Deus tem sua nobre origem, atendo-se ao ensinamento de Cristo que
disse: "Dai a César o que é de César" (Mt 22,21); não tem miras usurpadoras
e canta na sua liturgia: "não arrebata os reinos terrestres, Aquele que dá
os reinos celestes".(6) Não deprime as energias humanas, mas antes as orienta
para o que é magnânimo e generoso, e forma caracteres que não transigem com
a consciência. Ela, que civilizou os povos, nunca se opôs ao progresso da
humanidade, do qual se compraz e goza com maternal ufania. O fim da sua autoridade
declaram-no admiravelmente os anjos que adejavam sobre o berço do Verbo encarnado,
quando cantavam glória a Deus e anunciavam paz aos homens de boa vontade.
Esta paz que o mundo não pode dar, deixou-a, por herança aos seus discípulos
o divino Redentor: "Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz" (Jo 14,27); e assim,
seguindo a doutrina sublime de Cristo, por ele mesmo compendiada no duplo
preceito do amor a Deus e ao próximo, milhões de almas conseguiram essa paz,
conseguem-na ainda hoje e hão de consegui-la sempre. A história, por um célebre
orador romano sabiamente denominada "mestra da vida",(7) há quase dois mil
anos vem demonstrando a veracidade da palavra da Escritura que afirma: "não
terá paz quem resiste a Deus" (cf. Jó 9,4). Porque somente Cristo é a "pedra
angular" (Ef 2,20), sobre a qual o homem e a sociedade podem encontrar estabilidade
e salvação.
71. Sobre esta pedra angular foi educada a Igreja, e por isso contra ela
nunca poderão prevalecer as potências adversas: "as portas do inferno não
prevalecerão" (Mt 16,18), nem poderão nunca enfraquecê-la, porquanto as lutas,
tanto internas como externas, só poderão dar-lhe mais força e aumentar o
número de coroas das suas gloriosas vitórias. Ao contrário, qualquer outro
edifício que não tenha suas bases na doutrina de Cristo, apóia-se sobre areia
movediça e estará fadado a ruir miseramente (cf. Mt 7,26-27).
V. A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE
72. Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos esta nossa primeira
encíclica, bem pode ser qualificado, sob vários aspectos, de uma verdadeira
"hora das trevas" (Lc 22,53), na qual o espírito da violência e da discórdia
verte sobre a humanidade a sangüinolenta ânfora de dores inomináveis. Será
porventura necessário assegurar-vos que o nosso coração, repassado de compassivo
amor, está nesta hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente
dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa
trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por assim dizer, no "princípio
das dores" (Mt 24,8), mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação,
pranto e miséria. Do sangue de inúmeros seres humanos, mesmo de não combatentes,
desprende-se lancinante brado, especialmente nessa dileta nação como a Polônia
que, pela sua fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa da
civilização cristã, gravados em caracteres indeléveis nos fatos da história,
tem direito à simpatia humana e fraterna do mundo, e aguarda, confiante na
poderosa intercessão de Maria, "Socorro dos cristãos", a hora de uma ressurreição
que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira paz.
73. O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo, passara diante
de nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada
deixamos de fazer do que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios
que tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse às armas
e para conservar aberto o caminho que levaria a um entendimento honroso para
ambas as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria
a outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério
apostólico e do amor cristão, fazer tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade
toda e à cristandade os horrores de uma guerra mundial, ainda que as nossas
intenções e as nossas vistas corressem risco de serem mal interpretadas.
Os nossos conselhos, se bem ouvidos com respeito, nem por isso foram seguidos.
E enquanto o nosso coração de pastor, cheio de amargura e preocupação, observa
o que se passa, como que aparece aos nossos olhos a figura do bom pastor,
que é como se devêssemos, em seu nome, repetir ao mundo a queixa: "ah! se
conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos"
(Lc 19,42).
74. No meio deste mundo, hoje em estridente contraste com a paz de Cristo
no reino de Cristo, a Igreja e os seus fiéis acham-se em tempos e anos de
provações, raramente conhecidos na sua história de lutas e de sofrimentos.
Mas em semelhantes ocasiões, quem se conserva firme na fé e tem coração robusto,
sabe também que Cristo-Rei nunca lhe está tão próximo como na hora da provação,
que é a hora da fidelidade. Com o coração dilacerado pelos sofrimentos de
tantos dos seus filhos, mas ao mesmo tempo com aquela coragem e firmeza que
lhe vem das promessas do Senhor, a esposa de Cristo vai ao encontro dessas
ondas procelosas. Sabe que a verdade que anuncia, e a caridade que ensina
e pratica, serão os conselheiros e cooperadores indispensáveis dos homens
de boa vontade que desejem reconstruir um mundo novo, fundado na justiça
e no amor, apenas a humanidade se canse de percorrer o caminho do erro e
de provar os amargos frutos do ódio e da violência.
Uma base fundamental
75. Entretanto, veneráveis irmãos, o mundo e todos os que são hoje vítimas
da calamidade bélica devem saber que o dever do amor cristão, base fundamental
do reino de Cristo, não é uma palavra vã, mas uma viva realidade. Vastíssimo
campo se abre à caridade cristã em todas as suas formas. Temos plena confiança
de que todos os nossos filhos, e especialmente aqueles não coenvoltos no
flagelo da guerra, recordar-se-ão, a exemplo do divino Samaritano, de socorrer
aqueles que, vítimas da guerra, têm direito à compaixão e socorro.
76. A Igreja católica, cidade de Deus, "que tem por rei a verdade, por lei
a caridade e por medida a eternidade", (8) anunciando sem erros nem falhas
a verdade de Cristo, trabalhando com arrojo materno e segundo o amor de Cristo,
aparecerá certamente como visão beatífica de paz sobre essa voragem de erros
e paixões, aguardando o momento em que a mão onipotente de Cristo-Rei venha
acalmar a tempestade e banir os espíritos da discórdia que a desencadearam.
Continuaremos, entretanto; a fazer tudo o que pudermos para acelerar o dia
em que a pomba da paz possa pousar seus pés sobre esta terra, ora imersa
no dilúvio da discórdia. Continuaremos a fazê-lo, confiando naqueles eminentes
homens de Estado que antes de rebentar a guerra envidaram nobres esforços
para afastar dos povos tão grande flagelo; confiando também nos milhões de
almas de todos os países e esferas sociais que invocam não somente justiça
mas caridade e misericórdia; mas, sobretudo, confiando em Deus onipotente
a quem dirigimos diariamente a oração: "à sombra das vossas asas me acolho,
até que passe a calamidade" (Sl 56,2).
Deus tudo pode
77. Deus tudo pode: juntamente com a felicidade e os destinos dos povos tem
também em suas mãos os conselhos humanos e quando lhe pareça bem poderá fazê-los
inclinar suavemente para o lado que ele quer; para a sua onipotência os obstáculos
não passam de meios com que plasma as coisas e os acontecimentos e dirige
as mentes e as vontades livres aos seus altíssimos fins.
78. Orai, pois, veneráveis irmãos, orai sem cessar, orai sobretudo quando
oferecerdes o sacrifício divino do amor. Orai também vós, cuja profissão
corajosa da fé vem impor-vos hoje duros, penosos e, não raro, heróicos sacrifícios;
orai vós membros padecentes da Igreja, que Jesus há de consolar-vos e aliviará
os vossos sofrimentos. E não vos esqueçais de, com verdadeiro espírito de
mortificação, tornar as vossas penitências e orações mais aceitas aos olhos
daquele que "ampara os que caem e endireita todos os curvados" (Sl 144,14)
a fim de que a sua misericórdia abrevie os dias de provação e se realizem
assim as palavras do Salmo: "Invocaram o Senhor nas suas tribulações e ele
livrou-os das suas angústias" (Sl 106,13).
79. E vós, cândidas legiões de crianças, que sois os benjamins e prediletos
de Jesus, ao receberdes o Pão da vida, dirigi a ele vossas ingênuas e inocentes
orações unindo-as às de toda a Igreja. O coração de Jesus, que vos ama, não
poderá resistir à inocência que suplica. Orai todos e orai sem cessar.
80. Poreis assim em prática o sublime preceito do divino Mestre, o testamento
sagrado do seu coração, "que todos sejam uma só coisa" (Jo 17,21): isto é,
que todos vivam naquela unidade de fé e de amor, na qual reconheça o mundo
o poder e a eficácia da missão de Cristo e da obra da sua Igreja.
81. A Igreja dos primeiros tempos compreendeu e praticou este divino preceito
exprimindo-o também em magnífica oração; uni-vos, pois, todos com os mesmos
sentimentos que tanto correspondem às necessidades dos tempos atuais: "Lembrai-vos,
Senhor, da vossa Igreja, para livrá-la de todo o mal e aperfeiçoá-la na vossa
caridade e, santificada, reuni-a de todas as partes do mundo no vosso reino
que para ela preparastes, porque vossa será a virtude e glória por todos
os séculos".(9)
82. Confiando que Deus, autor e amante da paz, se digne atender às súplicas
da Igreja, como penhor da abundância das graças divinas e da plenitude de
nosso ânimo paterno, vos concedemos a bênção apostólica.
Dado em Castelgandolfo, junto de Roma, no dia 20 de outubro do ano de 1939, I do Nosso Ponti ficado."
PIO PP. XII
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Notas
(*) Programa do pontificado. Constatações dolorosas: afastamento da fé,
convite à renovação e à volta ao Coração de Cristo. Único desejo: ser o bom
pastor para todos. Dar testemunho à verdade. O terrível desastre da guerra
no horizonte. Frutos amargos de erros e movimentos anticristãos. Erros derivantes
do agnosticismo religioso e moral: esquecimento da solidariedade, da origem
comum, da fraternidade universal com danos graves para a convivência dos
povos; negação da dependência do direito humano do divino. O Estado não possui
autoridade ilimitada; deve fazer tudo convergir para o bem comum; homem e
família são anteriores ao Estado. Defesa firme dos direitos da família. Respeito
ao direito internacional e aos direitos das gentes como pressuposto da convivência
pacífica. A nova ordem internacional não pode ser estabelecida com as armas,
deve fundar-se sobre o direito natural e revelado, sobre a justiça e a caridade.
Colaboração dos leigos com os sacerdotes no apostolado. A Igreja reivindica
para si liberdade de ação no anúncio do evangelho. A doutrina da Igreja fundamento
seguro para o homem e a sociedade. A hora das trevas, o início de eventos
trágicos, a guerra na Polônia. Oração para obter o fim das tribulações e
uma era nova.
(1) Acta Leonis XIII, vol. XIX, p. 71.
(2) Cf. Enc. Quas primas, pp. 593-610.
(3) Breviário romano.
(4) Acta Leonis XIII, vol. V, p. 118
(5) Sobre o Ev. de são João, t. 51, n.13.
(6) Hino da festa da Epifania.
(7) Cícero, Oração 1, II, 9
(8) S. Agostinho, Carta 86 a Marcelino, c. 3, n.17.
(9) Doutrina dos Apóstolos, c.10.