No início da caminhada que leva à indigência espiritual e moral dos tempos presentes, estão os esforços nefastos de não poucos para destronar Cristo, o desapego da lei da verdade, que ele anunciou, da lei do amor, que é o sopro vital do seu reino
(CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII    SUMMI PONTIFICATUS    SOBRE O OFÍCIO DO PONTIFICADO)

...
"15. No início da caminhada que leva à indigência espiritual e moral dos tempos presentes, estão os esforços nefastos de não poucos para destronar Cristo, o desapego da lei da verdade, que ele anunciou, da lei do amor, que é o sopro vital do seu reino. O reconhecimento dos direitos reais de Cristo e a volta de cada um e da sociedade à lei da sua verdade e de seu amor são o único caminho de salvação."
...
"59. Não, veneráveis irmãos, a salvação dos povos não pode vir dos meios externos; a espada que é capaz de impor condições de paz, não pode criar a paz. As energias que devem renovar a face da terra devem partir do interior, do espírito. A nova organização do mundo, da vida nacional e internacional, quando cessarem as amarguras e as cruéis lutas hodiernas, não deverá repousar mais na areia movediça das normas mutáveis e efêmeras, deixadas ao arbítrio do egoísmo coletivo e individual. Devem elas antes erguer-se sobre sólida base, sobre a rocha inabalável do direito natural e da revelação divina. Dali deverá o legislador humano atingir aquele espírito de equilíbrio, aquele apurado senso de responsabilidade moral, sem o que é fácil desconhecer os limites entre o legítimo uso e o abuso do poder. Tão-somente assim as suas decisões poderão ter consistência interna, nobre dignidade e sanção religiosa, e não ficarão à mercê do egoísmo e da paixão. Porquanto, se é verdade que os males sofridos hoje pela humanidade, procedem, em parte do desequilíbrio econômico e da luta dos interesses, no intuito de alcançar uma distribuição mais équa dos bens que Deus concedeu ao homem como meios do seu sustento e progresso, verdade é também que eles têm a sua raiz muito mais profunda a tocar nas crenças religiosas e nas convicções morais, pervertidas pelo progressivo afastamento dos povos da unidade de doutrina e de fé, de costumes e de moral, promovida um dia pela obra indefessa e benéfica da Igreja. A reeducação da humanidade, para ter qualquer resultado positivo, deverá ser sobretudo espiritual e religiosa; deverá, portanto, partir de Cristo, sua base indispensável, deverá ser atuada pela justiça e coroada pela caridade.

A tarefa materna da Igreja

60. Realizar esta obra de regeneração, adaptando os seus meios às modificadas condições dos tempos e às novas necessidades do gênero humano, eis a tarefa essencial e materna da Igreja. Agregação do Evangelho, imposta pelo seu divino fundador, em que se inculca aos homens a verdade, a justiça e a caridade, e o esforço para arraigar nas almas e nas consciências os seus preceitos, eis também o trabalho mais nobre e frutuoso em favor da paz. A grandiosidade de tal missão quase que esmorece os corações daqueles que fazem parte da Igreja militante. Mas o empenhar-se para que seja difundido o reino de Deus, coisa que cada século procurou realizar de vários modos, com diversos meios e não poucas e duras lutas, é um dever imposto a todo aquele que a graça divina arrancou das garras de Satanás e que com o batismo elegeu cidadão daquele reino. E se o pertencer a esse reino, o viver segundo o seu espírito, o trabalhar pelo seu incremento e o tornar acessíveis os seus bens também àquela porção da humanidade que ainda dele não faz parte, equivale em nossos dias a dever afrontar oposições vastas e tenazes e minuciosamente organizadas, isso a ninguém dispensa da franca e corajosa procissão de fé, mas antes deve incitar a ser firme na luta, também a custo dos maiores sacrifícios. Quem vive do espírito de Cristo não se deixa abater pelas dificuldades que lhe vêm ao encontro, mas sente-se como que impelido a empregar todas as suas forças com plena confiança em Deus; não se esquiva às estreitezas e necessidades da hora, mas afronta as suas asperezas, pronto sempre a socorrer com aquele amor que não poupa sacrifícios; é mais forte que a própria morte e não se deixa levar pelas impetuosas águas da tribulação.

61. Diariamente elevamos a Deus o nosso humilde e profundo agradecimento, veneráveis irmãos, pelo íntimo conforto e celeste alegria que nos proporciona observar em todas as partes do mundo católico sinais evidentes de um espírito que afronta corajosamente os gigantescos encargos da época presente e que, generosa e decididamente, tende a reunir em fecunda harmonia o primeiro e essencial dever da própria santificação e a atividade apostólica para a difusão sempre maior do reino de Cristo. Do movimento dos congressos eucarísticos promovidos com amorosa solicitude pelos nossos predecessores, da colaboração dos leigos formados na Ação católica e da profunda consciência da sua nobre missão, derivam fontes de graças e reservas de forças, que dificilmente se poderiam estimar como merecem, tanto delas necessitamos nos tempos atuais em que aumentam as ameaças, enquanto arde a luta entre o cristianismo e o anticristianismo.

 IV.  O TRABALHO APOSTÓLICO DOS LEIGOS

62. Quando contemplamos com tristeza a desproporção entre o número dos sacerdotes e os encargos que lhes tocam, quando vemos verificar-se ainda hoje a palavra do Salvador: "a messe é imensa e os operários são poucos" (Mt 9,37; Lc 10,2), a colaboração dos leigos no apostolado hierárquico, numerosa e animada de ardente zelo e de generosa dedicação, depara-se-nos um precioso auxílio à obra dos sacerdotes e mostra possibilidades de desenvolvimento que legitimem as mais belas esperanças. A prece da Igreja ao Senhor da messe, para que mande operários à sua vinha, foi atendida como o requerem as necessidades da hora presente e, felizmente, supre e completa as energias, por vezes impedidas e insuficientes, do apostolado sacerdotal. Uma ardente falange de homens e de mulheres e de jovens de ambos os sexos, obedecendo à voz do sumo pastor às diretrizes dos próprios bispos, consagra-se com todo o ardor de sua alma às obras do apostolado para reconduzir a Cristo as massas populares que dele se haviam separado. A todos chegue, neste momento tão importante para a Igreja e a humanidade, a nossa saudação paterna, o nosso comovido agradecimento e a nossa confiante esperança. Puseram eles, verdadeiramente, a sua vida e as suas obras sob o vexilo de Cristo-Rei e podem repetir com o Salmista: "Ao rei exponho as minhas obras" (Sl 44,1). O "venha a nós o vosso reino" é não só o voto ardente de suas preces, mas também a diretriz de suas obras. Em todas as classes, em todas as categorias, em todos os grupos esta colaboração do laicado com o sacerdócio revela preciosas energias às quais está confiada uma missão que mais elevada e consoladora não poderiam desejar corações nobres e fiéis. Esse trabalho apostólico, realizado segundo o espírito da Igreja, consagra o leigo quase "ministro de Cristo" no sentido assim explicado por santo Agostinho: "Ó irmãos, quando ouvis o Senhor dizer: 'Onde estou eu aí estará também o meu ministro', não deveis pensar somente nos bons bispos e nos bons clérigos. Também vós, a vosso modo, deveis ser ministros de Cristo, vivendo bem, fazendo esmolas, pregando o seu nome e a sua doutrina a quem puderdes, de modo que cada qual, mesmo se pai de família, reconheça dever, também por esse título, um afeto paterno à sua família. Por Cristo e pela vida eterna, ninguém deixe de exortar os seus, e os instrua, exorte, repreenda, demonstrando-lhes sempre benevolência e mantendo-os na ordem; exercerá assim em casa o ofício de clérigo e, de certo modo, o de bispo, servindo Cristo, para com ele permanecer eternamente".(5)

No lar doméstico

63. Ao promover esta colaboração de leigos ao apostolado, tão importante nos nossos tempos, toca uma especial missão à família, porque o espírito da família influi essencialmente sobre o espírito das gerações juvenis. Enquanto resplandecer, no lar doméstico, a chama sagrada da fé em Cristo e os pais formarem e plasmarem a vida dos filhos segundo esta fé, a juventude prontificar-se-á sempre a reconhecer o Redentor em suas prerrogativas reais, e opor-se-á a quem o tente banir da sociedade ou sacrilegamente lhe viole os direitos. Ainda que se fechem as Igrejas, que se proscreva da escola a imagem do Crucificado, a família continua a ser um refúgio providencial e, de certo qual modo, inatacável da vida cristã. E damos infinitas graças a Deus por vermos que muitíssimas famílias cumprem essa sua missão com uma fidelidade que afronta todos os ataques e sacrifícios. Uma possante falange juvenil, mesmo naquelas regiões em que a fé em Cristo significa sofrimento e perseguição, permanece firme junto do trono do Redentor, com aquela decisão e tranqüilidade que fazem lembrar os tempos mais gloriosos das lutas da Igreja. Que de torrentes de bens inundariam o mundo, de quanta luz, ordem e paz gozaria a vida social, e quantas energias preciosas e insubstituíveis promoveriam o bem da humanidade se em toda a parte se concedesse à Igreja, mestra de justiça e de amor, aquela liberdade de ação a que tem direito sagrado e incontestável, por mandato divino. Quantos males poderiam ser evitados, quanta felicidade e tranqüilidade se poderia criar, se os esforços sociais e internacionais para se restabelecer a paz se deixassem permeabilizar pelos profundos impulsos do evangelho do amor, na luta contra o egoísmo individual e coletivo!

Trabalho pacificador

64. Entre as leis que regulam a vida dos fiéis cristãos e os postulados duma genuína humanidade não existe nenhum contraste mas sim comunhão de ideais e apoio mútuo. Para vantagem da humanidade que, profundamente abalada, sofre material e moralmente, formulamos um nosso ardente desejo: e é que as angústias presentes abram os olhos de muitos, a fim de que, iluminados pela verdadeira luz, possam refletir sobre nosso Senhor Jesus Cristo e a missão da sua Igreja nesta terra, e para que os que exercem o poder se resolvam a dar à Igreja campo livre na formação das gerações, segundo os princípios da justiça e da paz. Este trabalho pacificador supõe naturalmente que não se interponham embaraços ao exercício da missão que Deus confiou à sua Igreja, que não se restrinja o campo da sua atividade, que não se subtraia ao seu benéfico influxo as massas e principalmente a juventude. Por isso nós, como representante daquele que o profeta denominou "Príncipe da paz"(Is 9,6), apelamos para os governantes e para todos os que de qualquer modo exerçam influência nos negócios públicos, a fim de que a Igreja goze sempre de plena liberdade no cumprimento da sua obra educativa que é anunciar a verdade, inculcar a justiça e inflamar os corações de caridade divina.

65. Se, por uma parte, a Igreja não pode renunciar ao exercício desta sua missão que tem por fim último atuar neste mundo o divino desígnio de restaurar tudo em Cristo, por outra, esta sua obra de restauração revela-se, hoje mais do que nunca, necessária; visto a triste experiência vir demonstrando que os meios externos, as providências humanas e os expedientes políticos, por si sós, são incapazes de dar um alívio eficaz à humanidade atribulada por tantos males.

66. Convencidos da dolorosa falência dos expedientes humanos, e para esconjurar as tempestades que ameaçam arrastar a civilização para tenebrosa voragem, muitos são os que voltam seus olhares esperançosos para a Igreja, para a cátedra de Pedro, rocha de verdade e de amor, certos de que tão-somente dali pode partir aquela unidade de doutrina religiosa e moral que, em tempos idos, tanta consistência deu às relações pacíficas entre os povos. Unidade para a qual dirigem também seus olhares nostálgicos tantos homens responsáveis pelos destinos das nações, os quais estão vendo hoje quão incapazes sejam os meios em que um dia depositaram tanta confiança; unidade desejada por muitíssimos dos nossos filhos que invocam cotidianamente o Deus de paz e de amor; unidade aguardada por tantos espíritos nobres, se bem afastados de nós, os quais, em sua fome e sede de justiça e de paz, volvem seus olhares para a Sé Apostólica, dela esperando diretriz e conselho.

67. Reconhecem eles na Igreja católica a bimilenária estabilidade das normas de fé e de vida, a inabalável solidez da hierarquia eclesiástica que, unida ao sucessor de Pedro, se prodigaliza em iluminar as mentes com a doutrina do evangelho, em guiar e santificar os homens; e se é de grande condescendência para com todos, é também firme, ainda que a custo de tormentos e de martírio, quando deve dizer: "Não é permitido".

Infundadas suspeitas

68. Entretanto, veneráveis irmãos, tanto a doutrina de Cristo, única que pode dar aos homens uma base de fé que lhes alargue a vista e lhes dilate divinamente o coração; única que pode remediar eficazmente às hodiernas e gravíssimas dificuldades, como a operosidade da Igreja em desenvolver e difundir tal doutrina são, às vezes, alvos de infundadas suspeitas como se visassem abalar as bases da autoridade civil ou usurpar-lhes os direitos.

69. Para desfazer tais suspeitas, declaramos com apostólica sinceridade - confirmando todavia tudo o que o nosso predecessor Pio XI, de veneranda memória, ensinou em sua encíclica Quas primas, de 11 de dezembro de 1925, acerca da potestade de Cristo-Rei e da sua Igreja - que a Igreja jamais visou nem visa a tais fins, e se alarga os braços para este mundo não é para dominar mas para servir. Não pretende ela intrometer-se no campo próprio das demais autoridades legítimas, mas oferece-lhes o seu auxílio, a exemplo e com o espírito do seu divino Fundador que "passou fazendo o bem" (At 10,38).

70. A Igreja prega e inculca obediência e respeito às autoridades terrenas que em Deus tem sua nobre origem, atendo-se ao ensinamento de Cristo que disse: "Dai a César o que é de César" (Mt 22,21); não tem miras usurpadoras e canta na sua liturgia: "não arrebata os reinos terrestres, Aquele que dá os reinos celestes".(6) Não deprime as energias humanas, mas antes as orienta para o que é magnânimo e generoso, e forma caracteres que não transigem com a consciência. Ela, que civilizou os povos, nunca se opôs ao progresso da humanidade, do qual se compraz e goza com maternal ufania. O fim da sua autoridade declaram-no admiravelmente os anjos que adejavam sobre o berço do Verbo encarnado, quando cantavam glória a Deus e anunciavam paz aos homens de boa vontade. Esta paz que o mundo não pode dar, deixou-a, por herança aos seus discípulos o divino Redentor: "Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz" (Jo 14,27); e assim, seguindo a doutrina sublime de Cristo, por ele mesmo compendiada no duplo preceito do amor a Deus e ao próximo, milhões de almas conseguiram essa paz, conseguem-na ainda hoje e hão de consegui-la sempre. A história, por um célebre orador romano sabiamente denominada "mestra da vida",(7) há quase dois mil anos vem demonstrando a veracidade da palavra da Escritura que afirma: "não terá paz quem resiste a Deus" (cf. Jó 9,4). Porque somente Cristo é a "pedra angular" (Ef 2,20), sobre a qual o homem e a sociedade podem encontrar estabilidade e salvação.

71. Sobre esta pedra angular foi educada a Igreja, e por isso contra ela nunca poderão prevalecer as potências adversas: "as portas do inferno não prevalecerão" (Mt 16,18), nem poderão nunca enfraquecê-la, porquanto as lutas, tanto internas como externas, só poderão dar-lhe mais força e aumentar o número de coroas das suas gloriosas vitórias. Ao contrário, qualquer outro edifício que não tenha suas bases na doutrina de Cristo, apóia-se sobre areia movediça e estará fadado a ruir miseramente (cf. Mt 7,26-27).

V. A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE

72. Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos esta nossa primeira encíclica, bem pode ser qualificado, sob vários aspectos, de uma verdadeira "hora das trevas" (Lc 22,53), na qual o espírito da violência e da discórdia verte sobre a humanidade a sangüinolenta ânfora de dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o nosso coração, repassado de compassivo amor, está nesta hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por assim dizer, no "princípio das dores" (Mt 24,8), mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação, pranto e miséria. Do sangue de inúmeros seres humanos, mesmo de não combatentes, desprende-se lancinante brado, especialmente nessa dileta nação como a Polônia que, pela sua fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa da civilização cristã, gravados em caracteres indeléveis nos fatos da história, tem direito à simpatia humana e fraterna do mundo, e aguarda, confiante na poderosa intercessão de Maria, "Socorro dos cristãos", a hora de uma ressurreição que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira paz.

73. O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo, passara diante de nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada deixamos de fazer do que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios que tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse às armas e para conservar aberto o caminho que levaria a um entendimento honroso para ambas as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria a outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério apostólico e do amor cristão, fazer tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade toda e à cristandade os horrores de uma guerra mundial, ainda que as nossas intenções e as nossas vistas corressem risco de serem mal interpretadas. Os nossos conselhos, se bem ouvidos com respeito, nem por isso foram seguidos. E enquanto o nosso coração de pastor, cheio de amargura e preocupação, observa o que se passa, como que aparece aos nossos olhos a figura do bom pastor, que é como se devêssemos, em seu nome, repetir ao mundo a queixa: "ah! se conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos" (Lc 19,42).

74. No meio deste mundo, hoje em estridente contraste com a paz de Cristo no reino de Cristo, a Igreja e os seus fiéis acham-se em tempos e anos de provações, raramente conhecidos na sua história de lutas e de sofrimentos. Mas em semelhantes ocasiões, quem se conserva firme na fé e tem coração robusto, sabe também que Cristo-Rei nunca lhe está tão próximo como na hora da provação, que é a hora da fidelidade. Com o coração dilacerado pelos sofrimentos de tantos dos seus filhos, mas ao mesmo tempo com aquela coragem e firmeza que lhe vem das promessas do Senhor, a esposa de Cristo vai ao encontro dessas ondas procelosas. Sabe que a verdade que anuncia, e a caridade que ensina e pratica, serão os conselheiros e cooperadores indispensáveis dos homens de boa vontade que desejem reconstruir um mundo novo, fundado na justiça e no amor, apenas a humanidade se canse de percorrer o caminho do erro e de provar os amargos frutos do ódio e da violência.

Uma base fundamental

75. Entretanto, veneráveis irmãos, o mundo e todos os que são hoje vítimas da calamidade bélica devem saber que o dever do amor cristão, base fundamental do reino de Cristo, não é uma palavra vã, mas uma viva realidade. Vastíssimo campo se abre à caridade cristã em todas as suas formas. Temos plena confiança de que todos os nossos filhos, e especialmente aqueles não coenvoltos no flagelo da guerra, recordar-se-ão, a exemplo do divino Samaritano, de socorrer aqueles que, vítimas da guerra, têm direito à compaixão e socorro.

76. A Igreja católica, cidade de Deus, "que tem por rei a verdade, por lei a caridade e por medida a eternidade", (8) anunciando sem erros nem falhas a verdade de Cristo, trabalhando com arrojo materno e segundo o amor de Cristo, aparecerá certamente como visão beatífica de paz sobre essa voragem de erros e paixões, aguardando o momento em que a mão onipotente de Cristo-Rei venha acalmar a tempestade e banir os espíritos da discórdia que a desencadearam. Continuaremos, entretanto; a fazer tudo o que pudermos para acelerar o dia em que a pomba da paz possa pousar seus pés sobre esta terra, ora imersa no dilúvio da discórdia. Continuaremos a fazê-lo, confiando naqueles eminentes homens de Estado que antes de rebentar a guerra envidaram nobres esforços para afastar dos povos tão grande flagelo; confiando também nos milhões de almas de todos os países e esferas sociais que invocam não somente justiça mas caridade e misericórdia; mas, sobretudo, confiando em Deus onipotente a quem dirigimos diariamente a oração: "à sombra das vossas asas me acolho, até que passe a calamidade" (Sl 56,2).

Deus tudo pode

77. Deus tudo pode: juntamente com a felicidade e os destinos dos povos tem também em suas mãos os conselhos humanos e quando lhe pareça bem poderá fazê-los inclinar suavemente para o lado que ele quer; para a sua onipotência os obstáculos não passam de meios com que plasma as coisas e os acontecimentos e dirige as mentes e as vontades livres aos seus altíssimos fins.

78. Orai, pois, veneráveis irmãos, orai sem cessar, orai sobretudo quando oferecerdes o sacrifício divino do amor. Orai também vós, cuja profissão corajosa da fé vem impor-vos hoje duros, penosos e, não raro, heróicos sacrifícios; orai vós membros padecentes da Igreja, que Jesus há de consolar-vos e aliviará os vossos sofrimentos. E não vos esqueçais de, com verdadeiro espírito de mortificação, tornar as vossas penitências e orações mais aceitas aos olhos daquele que "ampara os que caem e endireita todos os curvados" (Sl 144,14) a fim de que a sua misericórdia abrevie os dias de provação e se realizem assim as palavras do Salmo: "Invocaram o Senhor nas suas tribulações e ele livrou-os das suas angústias" (Sl 106,13).

79. E vós, cândidas legiões de crianças, que sois os benjamins e prediletos de Jesus, ao receberdes o Pão da vida, dirigi a ele vossas ingênuas e inocentes orações unindo-as às de toda a Igreja. O coração de Jesus, que vos ama, não poderá resistir à inocência que suplica. Orai todos e orai sem cessar.

80. Poreis assim em prática o sublime preceito do divino Mestre, o testamento sagrado do seu coração, "que todos sejam uma só coisa" (Jo 17,21): isto é, que todos vivam naquela unidade de fé e de amor, na qual reconheça o mundo o poder e a eficácia da missão de Cristo e da obra da sua Igreja.

81. A Igreja dos primeiros tempos compreendeu e praticou este divino preceito exprimindo-o também em magnífica oração; uni-vos, pois, todos com os mesmos sentimentos que tanto correspondem às necessidades dos tempos atuais: "Lembrai-vos, Senhor, da vossa Igreja, para livrá-la de todo o mal e aperfeiçoá-la na vossa caridade e, santificada, reuni-a de todas as partes do mundo no vosso reino que para ela preparastes, porque vossa será a virtude e glória por todos os séculos".(9)

82. Confiando que Deus, autor e amante da paz, se digne atender às súplicas da Igreja, como penhor da abundância das graças divinas e da plenitude de nosso ânimo paterno, vos concedemos a bênção apostólica.

Dado em Castelgandolfo, junto de Roma, no dia 20 de outubro do ano de 1939, I do Nosso Ponti ficado."
 

PIO PP. XII
--------------------------------------------------------------------------------
Notas

(*)  Programa do pontificado. Constatações dolorosas: afastamento da fé, convite à renovação e à volta ao Coração de Cristo. Único desejo: ser o bom pastor para todos. Dar testemunho à verdade. O terrível desastre da guerra no horizonte. Frutos amargos de erros e movimentos anticristãos. Erros derivantes do agnosticismo religioso e moral: esquecimento da solidariedade, da origem comum, da fraternidade universal com danos graves para a convivência dos povos; negação da dependência do direito humano do divino. O Estado não possui autoridade ilimitada; deve fazer tudo convergir para o bem comum; homem e família são anteriores ao Estado. Defesa firme dos direitos da família. Respeito ao direito internacional e aos direitos das gentes como pressuposto da convivência pacífica. A nova ordem internacional não pode ser estabelecida com as armas, deve fundar-se sobre o direito natural e revelado, sobre a justiça e a caridade. Colaboração dos leigos com os sacerdotes no apostolado. A Igreja reivindica para si liberdade de ação no anúncio do evangelho. A doutrina da Igreja fundamento seguro para o homem e a sociedade. A hora das trevas, o início de eventos trágicos, a guerra na Polônia. Oração para obter o fim das tribulações e uma era nova.

(1) Acta Leonis XIII, vol. XIX, p. 71.

(2) Cf. Enc. Quas primas, pp. 593-610.

(3) Breviário romano.

(4) Acta Leonis XIII, vol. V, p. 118

(5) Sobre o Ev. de são João, t. 51, n.13.

(6) Hino da festa da Epifania.

(7) Cícero, Oração 1, II, 9

(8) S. Agostinho, Carta 86 a Marcelino, c. 3, n.17.

(9) Doutrina dos Apóstolos, c.10.