Uma liturgia para o homem inteiro e para o cosmos inteiro
11. Na experiência litúrgica, Cristo Senhor é a luz que ilumina o caminho e desvenda a transparência do cosmos, precisamente como na Escritura. Os acontecientos do passado encontram em Cristo significado e plenitude, e a criação revela-se por aquilo que é: um conjunto de traços que somente na liturgia encontram a sua perfeição, a sua plena finalidade. Eis o motivo pelo qual a liturgia é o Céu sobre a Terra, e nela o Verbo que assumiu a carne envolve a matéria de uma potencialidade salvífica que se manifesta plenamente nos sacramentos: aqui a criação comunica a cada um o poder que lhe foi conferido por Cristo. Assim o Senhor, imerso no Jordão, transmite às águas um poder que as habilita a serem banho de regeneração baptismal 29.
Neste quadro, a oração litúrgica no Oriente mostra uma grande capacidade de envolver a pessoa humana na sua totalidade: o Mistério é cantado na sublimidade dos seus conteúdos, mas também no calor dos sentimentos que suscita no coração da humanidade que foi salva. Na acção sagrada, também a corporeidade é convidada ao louvor, e a beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada (30), mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes. O tempo prolongado das celebrações, a repetida invocação, tudo exprime um progressivo compenetrar-se da pessoa inteira no mistério celebrado. E a oração da Igreja torna-se, assim, já participação da liturgia celeste, antecipação da bem-aventurança final.
Esta valorização integral da pessoa nos seus componentes racionais e emotivos, no «êxtase» e na imanência, é de grande actualidade, constituindo uma escola admirável para a compreensão do significado das realidades criadas: estas nem são um absoluto, nem um ninho de pecado e de iniquidade. Na liturgia, as coisas manifestam a sua própria natureza de dom, oferecido pelo Criador à humanidade: «Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa» (Gn 1, 31). Se tudo isto está marcado pelo drama do pecado, que torna pesada a matéria e dificulta a sua transparência, ela é redimida na Encarnação e feita plenamente teofórica, isto é, capaz de colocar-nos em relação com o Pai: esta propriedade é sumamente manifestada nos Santos Mistérios, os Sacramentos da Igreja.
O Cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra a sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se ao Senhor Jesus, feito também Ele corpo para a salvação do mundo. Isto não significa uma exaltação absoluta de tudo aquilo que é físico, porque sabemos bem a desordem que o pecado introduziu na harmonia do ser humano. A liturgia revela que o corpo, atravessando o mistério da Cruz, está a caminho da transfiguração, da pneumatização: no monte Tabor, Cristo mostra-o resplandecente, como é desejo do Pai que volte a ser.
E também a realidade cósmica é chamada a dar acção de graças, porque o cosmos inteiro é chamado à recapitulação em Cristo Senhor. Manifesta-se nesta concepção um ensinamento equilibrado e admirável sobre a dignidade, o respeito e a finalidade da criação e do corpo humano em particular. Este, tendo rejeitado igualmente todo o tipo de dualismo e todo o tipo de culto do prazer como fim em si próprio, torna-se lugar luminoso da graça e, portanto, plenamente humano.
A quem procura uma relação de autêntico significado consigo próprio e com o cosmos, tantas vezes ainda desfigurado pelo egoísmo e pela cobiça, a liturgia revela o caminho para o equilíbrio do homem novo e convida ao respeito pela potencialidade eucarística do mundo criado: ele está destinado a ser assumido na Eucaristia do Senhor, na sua Páscoa presente no sacrifício do altar.
Um olhar límpido à descoberta de si próprio
12. Para Cristo, o Homem-Deus, volta-se o olhar do monge: no seu rosto desfigurado, homem da dor, ele já divisa o anúncio profético do rosto transfigurado do Ressuscitado. Ao olhar contemplativo, Cristo revela-Se como às mulheres de Jerusalém, que subiram a contemplar o espectáculo misterioso do Calvário. E assim, formado naquela escola, o olhar do monge habitua-se a contemplar Cristo também nas pregas escondidas da criação e na história dos homens, também ela inserida na sua conformação progressiva ao Cristo total.
O olhar, progressivamente cristificado, aprende desta maneira a separar-se da exterioridade, do turbilhão dos sentidos, isto é, de tudo aquilo que impede ao homem aquela suave disponibilidade a deixar-se agarrar pelo Espírito. Percorrendo este caminho, ele deixa-se reconciliar com Cristo num processo incessante de conversão: na consciência do próprio pecado e do afastamento do Senhor, que se torna contrição do coração, símbolo do próprio baptismo na água salutar das lágrimas; no silêncio e na quietude interior procurada e doada, onde se aprende a fazer bater o coração de harmonia com o ritmo do Espírito, eliminando toda a duplicidade ou ambiguidade. Este tornar-se cada vez mais sóbrio e essencial, mais transparente a si próprio, pode fazê-lo cair no orgulho e na intransigência, se chegar a considerar que isso é fruto do seu esforço ascético. O discernimento espiritual, na purificação contínua, torna-o então humilde e manso, capaz de perceber apenas alguns traços daquela verdade que o sacia, porque é dom do Esposo, somente Ele plenitude de felicidade.
Ao homem que procura o significado da vida, o Oriente oferece esta escola para se conhecer e ser livre, amado por aquele Jesus que disse: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e aliviar-
-vos-ei» (Mt 11, 28). A quem procura o restabelecimento interior, ele convida a continuar a procurar: se a intenção é recta e o rumo honesto, no fim o rosto do Pai far-se-á reconhecer, pois está impresso nas profundidades do coração humano.
Um pai no Espírito
13. O percurso do monge, em geral, não é traçado unicamente pelo esforço pessoal, mas apoia-se num pai espiritual, a quem se abandona com confiança filial, na certeza de que nele se manifesta a terna e exigente paternidade de Deus. Esta figura dá ao monaquismo oriental uma extraordinária maleabilidade: graças à obra do pai espiritual, o caminho de cada monge é, de facto, fortemente personalizado nos tempos, nos ritmos, na maneira de procurar a Deus. Precisamente porque o pai espiritual é o ponto de ligação e de harmonização, isto permite ao monaquismo a maior variedade de expressões, cenobíticas e eremíticas. Desta maneira, o monaquismo no Oriente pôde ser a realização das expectativas de cada Igreja nos diferentes períodos da sua história 31.
Nesta procura, o Oriente ensina de maneira particular que existem irmãos e irmãs a quem o Espírito dispensou o dom de guia espiritual: eles são pontos de referência preciosos, porque vêem com o olhar de amor que Deus mantém sobre nós. Não se trata de renunciar à própria liberdade, para se deixar governar por outros: trata-se de tirar proveito do conhecimento do coração, que é um verdadeiro carisma, para ser ajudado, com doçura e firmeza, a encontrar o caminho da verdade. O nosso mundo tem uma necessidade extrema de pais espirituais. Muitas vezes recusou-os, porque lhe pareciam pouco credíveis, ou o seu modelo aparecia como já superado e pouco atraente para a sensibilidade comum. Contudo tem dificuldade em encontrar outros novos, e então sofre no medo e na incerteza, sem modelos nem pontos de referência. Aquele que é pai no Espírito, se o é verdadeiramente — e o povo de Deus mostrou sempre que sabe reconhecê-lo —, não fará os outros iguais a si próprio, mas ajudá-los-á a encontrar o caminho para o Reino.
Certamente, também ao Ocidente é concedido o dom admirável de uma vida monástica, masculina e feminina, que guarda o dom do guia no Espírito e espera ser valorizado. Nesse âmbito, e onde quer que a graça suscite tais instrumentos preciosos de amadurecimento interior, possam os responsáveis cultivar e valorizar tal dom e todos possam servir-se dele: experimentarão assim a consolação e apoio que é a paternidade no Espírito para o seu caminho de fé 32.
Comunhão e serviço
14. Precisamente na separação progressiva daquilo que no mundo lhe dificulta a comunhão com o seu Senhor, o monge reencontra o mundo como lugar onde se reflecte a beleza do Criador e o amor do Redentor. Na sua oração, o monge pronuncia uma epiclese do Espírito sobre o mundo e tem a certeza de que será ouvido, porque ela participa da mesma oração de Cristo. Deste modo, ele sente nascer em si um amor profundo pela humanidade, aquele amor que a oração, no Oriente, tantas vezes celebra como atributo de Deus, o Amigo dos homens, que não hesitou em oferecer o seu Filho para a salvação do mundo. Nesta atitude, é então concedido ao monge contemplar aquele mundo já transfigurado pela acção deificante de Cristo, morto e ressuscitado.
Seja qual for a modalidade que o Espírito lhe reserva, o monge é sempre e essencialmente o homem da comunhão. Com este nome se indicou também desde a antiguidade o estilo monástico da vida cenobítica. O monaquismo mostra-nos como não existe vocação autêntica que não tenha nascido da Igreja e para a Igreja. Disso é testemunha a experiência de tantos monges que, fechados nas suas celas, mostram nas suas orações uma paixão exraordinária, não só pela pessoa humana, mas por todas as criaturas, na invocação incessante para que tudo se converta à corrente salvadora do amor de Cristo. Este caminho de libertação interior na abertura ao Outro torna o monge o homem da caridade. Na escola do apóstolo Paulo, que indica a plenitude da lei na caridade (cf. Rm 13, 10), a comunhão monástica oriental esteve sempre atenta a garantir a superioridade da caridade em relação a qualquer lei.
Ela manifesta-se, antes de mais, no serviço aos irmãos na vida monástica, mas também à comunidade eclesial, segundo formas que variam nos tempos e nos lugares e que vão das obras sociais à pregação itinerante. As Igrejas do Oriente viveram com grande generosidade este empenho, a começar pela evangelização, que é o serviço mais elevado que o cristão pode oferecer ao irmão, para prosseguir em muitas outras formas de serviço espiritual e material. Mais, pode-se dizer que o monaquismo foi na antiguidade — e, com interrupções, também em tempos posteriores — o instrumento privilegiado para a evangelização dos povos.
Uma pessoa em relação
15. A vida do monge justifica a unidade que existe entre espiritualidade e teologia no Oriente.
O cristão, e o monge em particular, mais do que procurar verdades abstractas, sabe que somente o seu Senhor é Verdade e Vida, mas sabe também que ele é o Caminho (cf. Jo 14, 6) para atingir a ambas: conhecimento e participação são, portanto, uma única realidade: da pessoa ao Deus em três Pessoas, através da Encarnação do Verbo de Deus.
O Oriente ajuda-nos a delinear com grande riqueza de elementos o significado cristão da pessoa humana. Ele está centrado na Encarnação, da qual recebe luz a própria criação. Em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, manifesta-se a plenitude da vocação humana: para que o homem se tornasse Deus, o Verbo assumiu a humanidade. O homem que conhece continuamente o gosto amargo do seu limite e do seu pecado, não se perde na recriminação ou na angústia, porque sabe que dentro de si actua o poder da divindade. A humanidade foi assumida por Cristo sem separação da natureza divina nem confusão 33, e o homem não é deixado sozinho a tentar, de mil maneiras e muitas vezes frustradas, uma subida impossível ao Céu; existe um tabernáculo de glória, que é a Pessoa santíssima de Jesus, o Senhor, onde o divino e o humano se encontram num abraço que nunca poderá ser desfeito: o Verbo fez-Se carne, em tudo semelhante a nós, excepto no pecado. Ele derrama a divindade no coração doente da humanidade e, infundindo-lhe o Espírito do Pai, torna-a capaz de tornar-se Deus pela graça.
Mas, se isto nos foi revelado pelo Filho, então a nós é concedido abeirar-nos do mistério do Pai, princípio de comunhão no amor. A Trindade Santíssima aparece-nos então como comunidade de amor: conhecer um tal Deus significa sentir a urgência de que Ele fale ao mundo, que comunique; e a história da salvação não é senão a história do amor de Deus pela criatura, que Ele amou e escolheu, querendo-a «como o ícone do Ícone» — assim se exprime a intuição dos Padres orientais 34 —, isto é, plasmada à imagem da Imagem, que é o Filho, conduzida à comunhão perfeita pelo santificador, o Espírito de amor. E mesmo quando o homem peca, este Deus procura-o e ama-o, para que a relação não seja rompida e o amor continue a fluir. E ama-o no mistério do Filho, que Se deixa matar na cruz por um mundo que não O reconheceu, mas é ressuscitado pelo Pai, como garantia perene de que ninguém pode matar o amor, porque todo aquele que dele participa é atingido pela glória de Deus: é este homem transformado pelo amor, que os discípulos contemplaram no Tabor, o homem que todos nós somos chamados a ser.
Um silêncio que adora
16. Contudo, este mistério esconde-se continuamente, cobre-se de silêncio 35, para evitar que, em vez de Deus, seja construído um ídolo. Somente numa purificação progressiva do conhecimento de comunhão, o homem e Deus se encontrarão e reconhecerão, no abraço eterno, a sua nunca extinta conaturalidade de amor.
Nasce assim aquele que é chamado o apofatismo do Oriente cristão: quanto mais o homem cresce no conhecimento de Deus, mais O percebe como mistério inacessível, insondável na sua essência. Isto não se deve confundir com um misticismo obscuro, onde o homem se perde em enigmáticas realidades impessoais. Antes, os cristãos do Oriente dirigem-se a Deus como Pai, Filho, Espírito Santo, Pessoas vivas, carinhosamente presentes, às quais exprimem uma doxologia litúrgica solene e humilde, majestosa e simples. Eles, porém, percebem que nos aproximamos desta presença sobretudo deixando-nos educar para um silêncio de adoração, porque, no ápice do conhecimento e da experiência de Deus, está a sua transcendência absoluta. Mais do que através de uma meditação sistemática, chega-se a um tal silêncio mediante a assimilação orante da Escritura e da Liturgia.
Nesta humilde aceitação do limite da criatura perante a transcendência infinita de um Deus que não cessa de revelar-Se como o Deus-Amor, Pai do Senhor nosso Jesus Cristo, no júbilo do Espírito Santo, vejo expressa a atitude da oração e o método teológico que o Oriente prefere e continua a oferecer a todos os crentes em Cristo.
Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora: a teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante que seremos obrigados a cobri-lo com um véu (cf. Êx 34, 33) e para que as nossas assembleias saibam dar espaço à presença de Deus, evitando a celebração de si próprias; a pregação, para que não se iluda julgando suficiente multiplicar palavras para atrair a experiência de Deus; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão. Dele precisa o homem de hoje, que muitas vezes não sabe calar-se com medo de ter de enfrentar-se consigo mesmo, de revelar-se, de sentir o vazio que se torna ânsia de significado; o homem que se atordoa no barulho. Todos, crentes e não-crentes, precisam de aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra.
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