Tertio Millennio Adveniente - Parte 2




II
O JUBILEU DO ANO 2000
9. Falando do nascimento do Filho de Deus, S. Paulo situa-o na « plenitude do tempo » (cf. Gal 4, 4). Na verdade, o tempo cumpriu-se pelo próprio facto de Deus Se ter entranhado na história do homem, com a Encarnação. A eternidade entrou no tempo: poderia haver « cumprimento » maior que este? Que outro « cumprimento » seria possível? Alguém pensou em determinadosciclos cósmicos arcanos, nos quais a história do universo, e particularmente a do homem, se repetiria constantemente. O homem levanta-se da terra e à terra retorna (cf. Gn 3, 19): eis o dado de evidência imediata. Mas no homem há uma irreprimível aspiração de viver para sempre. Como pensar numa sua sobrevivência para além da morte? Alguns imaginaram várias formas de reencarnação: consoante o modo como tivesse vivido durante a existência anterior, assim se acharia a experimentar uma nova existência mais nobre ou mais humilde, até atingir a plena purificação. Muito radicada nalgumas religiões orientais, esta crença indica, entre outras coisas, que o homem não entende resignar-se à irrevocabilidade da morte. Está convencido da própria natureza essencialmente espiritual e imortal. A revelação cristã exclui a reencarnação e fala de um cumprimento que o homem é chamado a realizar no curso de uma única existência sobre a terra. Este cumprimento do seu próprio destino, o homem alcança-o no dom sincero de si, um dom que só se torna possível no encontro com Deus. É em Deus, pois, que o homem encontra a plena realização de si: esta é a verdade revelada por Cristo. O homem cumpre-se a si mesmo em Deus, que veio ao seu encontro mediante o eterno Filho. Graças à vinda de Deus à terra, o tempo humano, iniciado na criação, atingiu a sua plenitude. « A plenitude do tempo », de facto, é simplesmente a eternidade — melhor, Aquele que é eterno, isto é, Deus. Entrar na « plenitude do tempo » significa, pois, atingir o termo do tempo e sair dos seus confins para encontrar o seu cumprimento na eternidade de Deus.
10. No cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental. Dentro da sua dimensão, foi criado o mundo, no seu âmbito se desenrola a história da salvação, que tem o seu ponto culminante na « plenitude do tempo » da Encarnação e a sua meta no regresso glorioso do Filho de Deus no fim dos tempos. Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o tempo torna-se uma dimensão de Deus, que em Si mesmo é eterno. Com a vinda de Cristo, principiam os « últimos tempos » (cf. Heb 1, 2), a « última hora » (cf. 1 Jo 2, 18), inicia o tempo da Igreja que durará até à Parusia. Desta relação de Deus com o tempo, nasce o dever de o santificar. Tal se verifica, por exemplo, quando se dedicam a Deus tempos específicos, dias ou semanas, como já sucedia na religião da Antiga Aliança, e acontece ainda, embora de modo novo, no cristianismo. Na liturgia da Vigília Pascal, o celebrante, quando abençoa o círio que simboliza Cristo ressuscitado, proclama: « Cristo, ontem e hoje, Princípio e Fim, Alfa e Ómega. A Ele pertence o tempo e a eternidade. A Ele a glória e o poder para sempre ». Pronuncia estas palavras, enquanto grava no círio os algarismos do ano em curso. O significado do rito é claro: põe em evidência que Cristo é o Senhor do tempo; é o seu princípio e o seu cumprimento; cada ano, cada dia e cada momento ficam abraçados pela sua Encarnação e Ressurreição, reencontrando-se assim na « plenitude do tempo ». Por isso, também a Igreja vive e celebra a liturgia no espaço do ano. O ano solar fica assim permeado pelo ano litúrgico, que, em certo sentido, reproduz todo o mistério da Encarnação e da Redenção, começando do primeiro domingo do Advento para terminar na solenidade de Cristo Rei, Senhor do universo e da história. Cada domingo recorda o dia da ressurreição do Senhor.
11. Neste contexto, torna-se compreensível o costume dos jubileus, que tem início no Antigo Testamento e reencontra a sua continuação na história da Igreja. Um dia Jesus de Nazaré, tendo ido à sinagoga da sua Cidade, levantou-Se para ler (cf. Lc 4, 16-30). Foi-Lhe entregue o livro do profeta Isaías, onde leu o seguinte trecho: « O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor » (61, 1-2). O Profeta falava do Messias. « Cumpriu-se hoje — acrescentou Jesus — esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir » (Lc 4, 21), fazendo compreender que Ele próprio era o Messias anunciado pelo Profeta, e que n'Ele tinha início o « tempo » tão esperado: tinha chegado o dia da salvação, a « plenitude do tempo ». Todos os jubileus se referem a este « tempo » e dizem respeito à missão messiânica de Cristo, que veio como « consagrado com a unção do Espírito Santo », como « enviado pelo Pai ». É Ele que anuncia a Boa Nova aos pobres. É Ele que leva a liberdade àqueles que dela estão privados, que liberta os oprimidos, que restitui a vista aos cegos (cf. Mt 11, 4-5; Lc 7, 22). Deste modo, Ele realiza « um ano de graça do Senhor », que anuncia não só com a palavra, mas sobretudo com as suas obras. Jubileu, ou seja, « um ano de graça do Senhor » é a característica da actividade de Jesus, e não apenas a definição cronológica de uma certa ocorrência.
12. As palavras e as obras de Jesus constituem assim o cumprimento de toda a tradição dos jubileus do Antigo Testamento. É sabido que o jubileu era um tempo dedicado de modo particular a Deus. Tinha lugar de sete em sete anos, segundo a Lei de Moisés: o sétimo era o « ano sabático », durante o qual se deixava repousar a terra e eram libertados os escravos. A obrigação da libertação dos escravos era regulada por detalhadas prescrições, contidas nos livros do Êxodo (23, 10-11), do Levítico (25, 1-28), e do Deuteronómio (15, 1-6), isto é, praticamente em toda a legislação bíblica, que adquire assim essa peculiar dimensão. No ano sabático, além da libertação dos escravos, a Lei previa o perdão de todas as dívidas, segundo precisas prescrições. E tudo isto devia ser feito em honra de Deus. Tudo quanto dizia respeito ao ano sabático, valia também para o « jubilar », que ocorria no quinquagésimo ano. No ano jubilar, porém, os usos do ano sabático eram ampliados e celebrados ainda mais solenemente. Lê-se no Levítico: « Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando no país a liberdade de todos os que o habitam. Este ano será para vós jubileu, cada um de vós recobrará a sua propriedade e voltará para a sua família » (25, 10). Uma das consequências mais significativas do ano jubilar era a geral « emancipação » de todos os habitantes carecidos de libertação. Nessa ocasião, todo o israelita voltava à posse da terra de seus pais, se eventualmente a tivesse vendido ou perdido, caindo na escravidão. Não se podia ser privado da terra de modo definitivo, porque esta pertencia a Deus, nem os israelitas podiam ficar para sempre numa situação de escravatura, já que Deus os tinha « resgatado » para Si como propriedade exclusiva, libertando-os da escravidão do Egipto.
13. Mesmo se os preceitos do ano jubilar permaneceram, em grande parte, uma meta ideal — mais uma esperança que uma realização concreta, tornando-se ainda uma prophetia futuri enquanto prenúncio da verdadeira libertação a ser operada pelo Messias que havia de vir — todavia, com base na normativa jurídica neles contida, foi- -se delineando uma certa doutrina social, que se desenvolveu mais claramente depois a partir do Novo Testamento. O ano jubilar devia restabelecer a igualdade entre todos os filhos de Israel, abrindo novas possibilidades às famílias que tinham perdido as suas propriedades, ou até mesmo a liberdade pessoal. Aos ricos, pelo contrário, o ano jubilar recordava que chegaria o tempo em que os escravos israelitas, tornando-se novamente iguais a eles, haveriam de poder reivindicar os seus direitos. Devia-se proclamar, no tempo previsto pela Lei, um ano jubilar, vindo em socorro de cada necessitado. Isto exigia um governo justo. A justiça, segundo a Lei de Israel, consistia sobretudo na protecção dos fracos, e nisto se devia distinguir um rei, como afirma o Salmista: « Ele liberta o pobre que o invoca, e o indigente sem ajuda. Tem compaixão do humilde e do pobre, e salva a vida dos necessitados » (Sal 7172, 12-13). As premissas de semelhante tradição eram estritamente teológicas, ligadas, antes de mais, à teologia da criação e da divina Providência. Na verdade, era convicção comum que só a Deus como Criador competia o « dominium altum », isto é, a soberania sobre todo o criado, e de modo particular sobre a terra (cf. Lv 25, 23). Se Deus, em sua providência, tinha entregue a terra aos homens, isso queria significar que a tinha dado a todos. Por isso, as riquezas da criação haviam de ser consideradas como um bem comum da humanidade inteira. Quem possuia estes bens como sua propriedade, era na verdade apenas seu administrador, isto é, um ministro obrigado a operar em nome de Deus, o único proprietário em sentido pleno, sendo vontade de Deus que os bens criados servissem equitativamente a todos. O ano jubilar devia servir precisamente também para o restabelecimento desta justiça social. Deste modo, na tradição do ano jubilar, encontra uma das suas raízes a doutrina social da Igreja, que sempre teve seu lugar no ensinamento eclesial e se desenvolveu particularmente no último século, sobretudo a partir da EncíclicaRerum novarum.
14. Convém, todavia, sublinhar aquilo que Isaías exprime com as palavras: « pregar um ano de graça do Senhor ». Para a Igreja, o jubileu é exactamente este « ano de graça », ano de remissão dos pecados e das penas pelos pecados, ano de reconciliação entre os desavindos, ano de múltiplas conversões e de penitência sacramental e extra-sacramental. A tradição dos anos jubilares está ligada à concessão de indulgências, de modo mais amplo que nos outros períodos. A par dos jubileus que recordam o mistério da Encarnação, ao completarem-se cem, cinquenta e vinte cinco anos do mesmo, há depois aqueles que comemoram o evento da Redenção: a cruz de Cristo, a sua morte no Gólgota e a sua ressurreição. A Igreja, nestas circunstâncias, proclama « um ano de graça do Senhor », esforçando-se por que todos os fiéis possam usufruir mais amplamente de tal graça. Eis por que os jubileus são celebrados não apenas « in Urbe », mas também « extra Urbem »: tradicionalmente isto verificava-se no ano sucessivo ao da celebração « in Urbe ».
15. Na vida de cada pessoa, os jubileus habitualmente estão ligados à data de nascimento, mas celebram-se também os aniversários do Baptismo, da Confirmação, da Primeira Comunhão, da Ordenação Sacerdotal ou Episcopal, do sacramento do Matrimónio. Alguns destes aniversários encontram eco também no âmbito civil, mas os cristãos sempre lhes atribuem um carácter religioso. De facto, na perspectiva cristã, cada jubileu — seja o 25o aniversário de sacerdócio ou de matrimónio designado « de prata », seja o 50o dito « de ouro », seja ainda o 60o chamado « de diamante » — constitui um particular ano de graça para o indivíduo que recebeu um dos sacramentos elencados. Aquilo que dissemos dos jubileus pessoais pode ser também aplicado às comunidades ou instituições. É assim que se celebra o centenário ou o milénio da fundação de uma cidade ou de um município. No âmbito eclesial, festejam-se os jubileus das paróquias e das dioceses. Todos estes jubileus pessoais ou comunitários revestem na vida dos indivíduos e das comunidades um papel importante e significativo. Neste contexto, os dois mil anos do nascimento de Cristo (prescindindo da exactidão do cômputo cronológico) representam um Jubileu extraordinariamente grande não somente para os cristãos, mas indirectamente para a humanidade inteira, dado o papel de primeiro plano que o cristianismo exerceu nestes dois milénios. Significativamente a contagem da sucessão dos anos é feita, quase em todo o lado, a partir da vinda de Cristo ao mundo, a qual se torna assim o centro do calendário hoje mais utilizado. Não será este, porventura, também um sinal do incomparável contributo prestado à história universal pelo nascimento de Jesus de Nazaré?
16. O termo « jubileu » indica júbilo, alegria; não apenas júbilo interior, mas alegria que se manifesta exteriormente, já que a vinda de Deus é um acontecimento também exterior, visível, audível, palpável, como recorda S. João (cf. 1 Jo 1, 1). É justo, por conseguinte, que toda a demonstração de alegria por essa vinda tenha a sua manifestação exterior. Esta serve para indicar que a Igreja rejubila pela salvação. Convida todos à alegria, esforçando-se por criar as condições necessárias a fim de que a força salvadora possa ser comunicada a cada um. O ano 2000 marcará, por isso, a data do Grande Jubileu. Quanto ao conteúdo, este Grande Jubileu será, em determinado sentido, igual a qualquer outro. Mas será, ao mesmo tempo, diverso e maior do que outro qualquer. Realmente a Igreja respeita as medidas do tempo: horas, dias, anos, séculos. Sob este aspecto, ela caminha a par e passo com cada homem, tornando-o consciente de quanto cada uma dessas medidas esteja permeada da presença de Deus e da sua acção salvífica. Neste espírito, a Igreja rejubila, dá graças, pede perdão, elevando súplicas ao Senhor da história e das consciências humanas. Entre as súplicas mais ardentes desta hora excepcional que é o aproximar-se do novo Milénio, a Igreja implora do Senhor que cresça a unidade entre todos os cristãos das diversas Confissões até à obtenção da plena comunhão. Faço votos de que o Jubileu seja a ocasião propícia para uma frutuosa colaboração visando colocar em comum as muitas coisas que nos unem, e que são seguramente mais do que aquelas que nos dividem. Muito ajudaria nesta perspectiva se, no respeito dos programas das diversas Igrejas e Comunidades, se alcançassem acordos ecuménicos na preparação e celebração do Jubileu: este ganharia assim mais força ainda, testemunhando ao mundo a decidida vontade de todos os discípulos de Cristo de conseguirem o mais rapidamente possível a plena unidade, na certeza de que « a Deus nada é impossível ».
III
A PREPARAÇÃO DO GRANDE JUBILEU
17. Cada jubileu é preparado na história da Igreja pela divina Providência. Isto vale também para o Grande Jubileu do ano 2000. Convictos disso, olhamos hoje, com sentido de gratidão e de não menor responsabilidade, para tudo quanto sucedeu na história da humanidade desde o nascimento de Cristo, e sobretudo para os acontecimentos verificados do ano 1000 ao 2000. Mas, de modo muito particular, debruçamo-nos com um olhar de fé sobre este nosso século, procurando nele o que possa servir de testemunho não só da história do homem, mas também da intervenção divina nas vicissitudes humanas.
18. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o Concílio Vaticano II constitui um acontecimento providencial, através do qual a Igreja iniciou a preparação próxima para o Jubileu do segundo milénio. Trata-se, realmente, de um Concílio semelhante aos anteriores, e todavia tão diverso; um Concílio concentrado sobre o mistério de Cristo e da sua Igreja e simultaneamente aberto ao mundo. Esta abertura constituiu a resposta evangélica à recente evolução do mundo com as tumultuosas experiências do século XX, atribulado pela primeira e segunda guerra mundial, pela experiência dos campos de concentração e por massacres horrendos. O sucedido mostra que o mundo tem, mais que nunca, necessidade de purificação; precisa de conversão. Pensa-se frequentemente que o Concílio Vaticano II marque uma época nova na vida da Igreja. Isto é verdade, mas ao mesmo tempo é difícil não notar como a Assembleia conciliar muito auferiu das experiências e das reflexões do período precedente, especialmente do património do pensamento de Pio XII. Na história da Igreja, « o velho » e « o novo » aparecem sempre entrelaçados entre si. O « novo » cresce do « velho », o « velho » encontra no « novo » uma explicitação mais plena. Assim aconteceu com o Concílio Vaticano II e com a actividade dos Pontífices ligados à Assembleia conciliar, a começar de João XXIII, prosseguindo com Paulo VI e João Paulo I, até ao Papa actual. Aquilo que, durante e depois do Concílio, foi realizado por eles — tanto o magistério como a acção de cada um — prestou, por certo, um contributo significativo à preparação daquela nova primavera de vida cristã que deverá ser revelada pelo Grande Jubileu, se os cristãos forem dóceis à acção do Espírito Santo.
19. Apesar do Concílio não ter assumido os tons severos de João Baptista, quando nas margens do Jordão exortava à penitência e à conversão (cf. Lc 3, 1-17), contudo algo do antigo Profeta nele se manifestou, ao apontar, com novo vigor, aos homens de hoje, Cristo, « o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo » (cf. Jo 1, 29), o Redentor do homem, o Senhor da história. Na Assembleia conciliar, a Igreja, para ser plenamente fiel ao seu Mestre, interrogou-se sobre a própria identidade, redescobrindo a profundidade do seu mistério de Corpo e Esposa de Cristo. Pondo-se docilmente à escuta da Palavra de Deus, reafirmou a vocação universal à santidade; proveu à reforma da liturgia, « fonte e cume » da sua vida; deu impulso ao renovamento de tantos aspectos da sua existência quer a nível universal quer nas Igrejas locais; comprometeu-se na promoção das várias vocações cristãs, desde a dos leigos à dos religiosos, desde o ministério dos diáconos ao dos sacerdotes e dos Bispos; redescobriu, em particular, a colegialidade episcopal, expressão privilegiada do serviço pastoral desempenhado pelos Bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro. Na base desta profunda renovação, o Concílio abriu-se aos cristãos de outras Confissões, aos crentes de outras religiões, a todos os homens do nosso tempo. Em nenhum outro Concílio, se falou tão claramente da unidade dos cristãos, do diálogo com as religiões não cristãs, do significado específico da Antiga Aliança e de Israel, da dignidade da consciência pessoal, do princípio da liberdade religiosa, das diversas tradições culturais no seio das quais a Igreja realiza o próprio mandato missionário, dos meios de comunicação social.
20. Uma enorme riqueza de conteúdos e um novo tom — antes desconhecido — na apresentação conciliar dos mesmos, constituem como que um anúncio de tempos novos. Os Padres conciliares falaram com a linguagem do Evangelho, com a linguagem do Discurso da Montanha e das Bem-aventuranças. Na mensagem conciliar, Deus é apresentado na sua soberania absoluta sobre todas as coisas, mas também como garante da autêntica autonomia das realidades temporais. Por conseguinte, a melhor preparação para a passagem bimilenária não poderá exprimir-se senão pelo renovado empenho na aplicação, fiel quanto possível, do ensinamento do Vaticano II à vida de cada um e da Igreja inteira. Com o Concílio, como que se inaugurou a preparação imediata para o Grande Jubileu do 2000, no sentido mais amplo da palavra. Se procurássemos qualquer coisa de análogo na liturgia, poder-se-ia dizer que a anualliturgia do Advento é o tempo mais próximo do espírito do Concílio. O Advento prepara-nos, de facto, para o encontro com Aquele que era, que é, e que continuamente vem (cf. Ap 4, 8).
21. No caminho de preparação para a ocorrência do 2000, entra a série de Sínodos, iniciada depois do Concílio Vaticano II: Sínodos gerais e Sínodos continentais, regionais, nacionais e diocesanos. O tema de fundo é o da evangelização, ou melhor, da nova evangelização, cujas bases foram colocadas pela Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI, publicada em 1975, depois da terceira Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos. Os Sínodos constituem, já de per si, parte da nova evangelização: nascem da visão do Concílio Vaticano II sobre a Igreja; abrem um amplo espaço à participação dos leigos, de quem definem a específica responsabilidade na Igreja; são expressão da força que Cristo deu a todo o Povo de Deus, fazendo-o participante da sua própria missão messiânica — missão profética, sacerdotal e real. Muito eloquentes são a este respeito, as afirmações do segundo capítulo da Constituição dogmática Lumen gentium. A preparação para o Jubileu do ano 2000 concretiza-se assim, a nível universal e local, em toda a Igreja, animada por uma consciência nova da missão salvadora recebida de Cristo. Esta consciência manifesta-se com significativa evidência nas Exortações pós-sinodais dedicadas à missão dos leigos, à formação dos sacerdotes, à catequese, à família, ao valor da penitência e da reconciliação na vida da Igreja e da humanidade e, proximamente, à vida consagrada.
22. Específicas tarefas e responsabilidades com vista ao Grande Jubileu do ano 2000, competem ao ministério do Bispo de Roma. E nessa perspectiva, de algum modo actuaram todos os Pontífices do século que está para terminar. Com o seu lema « recapitular tudo em Cristo », S. Pio X procurou prevenir as trágicas consequências que a situação internacional do início do século ia maturando. A Igreja estava ciente de dever actuar com decisão para favorecer e defender bens tão fundamentais como os da paz e da justiça, perante a contraposição de tendências no mundo contemporâneo. Em tal sentido e com grande empenho, se moveram os Pontífices do período pre-conciliar, cada qual do seu prisma particular: Bento XV encontrou-se perante a tragédia da primeira guerra mundial, Pio XI teve de medir-se com as ameaças dos sistemas totalitários ou desrespeitadores da liberdade humana na Alemanha, na Rússia, em Itália, em Espanha e, antes ainda, no México. Pio XII interveio no âmbito da gravíssima injustiça representada pelo desprezo total da dignidade humana, que se verificou durante a segunda guerra mundial. Deu luminosas orientações também para o nascimento de uma nova ordem mundial após a queda dos sistemas políticos anteriores. Além disso, no decorrer do século e seguindo as pegadas de Leão XIII, os Papas retomaram sistematicamente os temas da doutrina social católica, tratando das características de um sistema justo no campo das relações entre trabalho e capital. Basta pensar na Encíclica Quadragesimo anno de Pio XI, nas numerosas intervenções de Pio XII, na Mater et Magistra e na Pacem in terris de João XXIII, na Populorum progressio e na Carta apostólica Octogesima adveniens de Paulo VI. Sobre o argumento, voltei repetidas vezes eu próprio, dedicando a Encíclica Laborem exercens de modo específico à importância do trabalho humano, enquanto na Centesimus annus quis reafirmar, passados cem anos, a validade da doutrina da Rerum novarum. Já antes, com a Encíclica Sollicitudo rei socialis, tinha apresentado de modo sistemático e global a doutrina social da Igreja, tendo como pano de fundo o confronto entre os dois blocos — Leste-Oeste — e o perigo de uma guerra nuclear. Os dois elementos da doutrina social da Igreja — a tutela da dignidade e dos direitos da pessoa no âmbito de uma justa relação entre trabalho e capital, e a promoção da paz — encontraram-se neste Documento, fundindo-se um no outro. À causa da paz, querem ainda servir as Mensagens pontifícias anuais do 1o de Janeiro, publicadas a partir de 1968, sob o pontificado de Paulo VI.
23. Desde o seu primeiro documento que o actual pontificado fala explicitamente do Grande Jubileu, convidando a viver o período de espera como « um novo advento ».9 Ao mesmo tema se voltou outras vezes depois, detendo-se nele amplamente a Encíclica Dominum et vivificantem.10 De facto, a preparação do ano 2000 torna-se quase sua chave hermenêutica. Sem dúvida, não se pretende induzir a um novo milenarismo, como fez alguém no final do primeiro milénio; pelo contrário, quer-se suscitar uma particular sensibilidade por tudo quanto o Espírito diz à Igreja e às Igrejas (cf. Ap 2, 7ss), como também aos indivíduos através dos carismas ao serviço da comunidade inteira. Deseja-se, assim, sublinhar aquilo que o Espírito sugere às várias comunidades, desde as mais pequenas como a família, até às maiores como as nações e as organizações internacionais, sem transcurar as culturas, as civilizações e as sãs tradições. A humanidade, não obstante as aparências, continua a esperar a revelação dos filhos de Deus e vive de tal esperança como na aflição dum parto, segundo a expressiva imagem utilizada por S. Paulo na Carta aos Romanos (cf. 8, 19-22).
24. As peregrinações do Papa tornaram-se um elemento importante no empenhamento pela realização do Concílio Vaticano II. Iniciadas por João XXIII, quando estava já iminente a inauguração do Concílio, com uma significativa peregrinação a Loreto e a Assis (1962), tiveram grande incremento com Paulo VI, o qual, depois de se ter deslocado em primeiro lugar à Terra Santa (1964), cumpriu mais nove grandes viagens apostólicas que o levaram ao contacto directo com as populações dos vários continentes. O pontificado actual aumentou ainda mais tal programa, começando do México por ocasião da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla no ano 1979. Em seguida e naquele mesmo ano, deu-se a peregrinação à Polónia durante o jubileu do IX centenário da morte de Santo Estanislau, bispo e mártir. As sucessivas etapas deste peregrinar são conhecidas. As peregrinações tornaram-se sistemáticas, atingindo as Igrejas particulares em todos os continentes, com uma atenta solicitude pelo progresso das relações ecuménicas com os cristãos das diversas confissões. Sob este último perfil, revestem-se de um relevo particular as visitas à Turquia (1979), Alemanha (1980), Inglaterra com as regiões de Gales e Escócia (1982), Suíça (1984), Países Escandinavos (1989), e, ultimamente, aos Países Bálticos (1993). Entre as metas de peregrinação vivamente desejadas no momento presente, conta-se, além de Sarajevo na Bósnia-Herzegovina, o Médio Oriente: o Líbano, Jerusalém e a Terra Santa. Seria muito expressivo se, por ocasião do Ano 2000, fosse possível visitar todos aqueles lugares que se encontram no caminho seguido pelo Povo de Deus da Antiga Aliança, a partir dos lugares de Abraão e de Moisés, passando pelo Egipto e o Monte Sinai, até Damasco, cidade que foi testemunha da conversão de S. Paulo.
25. Na preparação do ano 2000, têm um papel próprio a desempenhar as diversas Igrejas locais, que, com os seus jubileus, celebram etapas significativas na história da salvação dos vários povos. Entre esses jubileus locais ou regionais, constituíram eventos de suma grandeza o milénio do Baptismo da Rússia em 1988,11 com também os quinhentos anos do início da evangelização no continente americano (1492). Ao lado de acontecimentos de tão vasta incidência, sem chegarem todavia a ter alcance universal, há que recordar outros não menos significativos: por exemplo, o milénio do Baptismo da Polónia em 1966 e do Baptismo da Hungria em 1968, e ainda os 600 anos do Baptismo da Lituânia em 1987. Além disso, ocorrerão proximamente os 1500 anos do Baptismo de Clóvis, rei dos Francos (496), e os 1400 anos da chegada de Santo Agostinho a Cantuária (597), início da evangelização do mundo anglo-saxónico. No que respeita à Ásia, o Jubileu trazerá ao pensamento o apóstolo Tomé, que já ao início da era cristã, segundo a tradição, levou o anúncio evangélico à Índia, onde depois, por volta do ano 1500, chegariam de Portugal os missionários. Ocorre este ano o VII centenário da evangelização da China (1294), e preparamo-nos para comemorar a difusão da obra missionária nas Filipinas com a constituição da sede metropolita de Manila (1595), bem como o IV centenário dos primeiros mártires no Japão (1597). Em África, onde também o primeiro anúncio remonta à época apostólica, juntamente com os 1650 anos da consagração episcopal do primeiro Bispo dos Etíopes, S. Frumêncio (c. 340), e os quinhentos anos do início da evangelização de Angola no antigo Reino do Congo (1491), nações como os Camarões, a Costa do Marfim, a República Centro Africana, o Burundi, o Burkina-Fasso estão a celebrar os respectivos centenários da chegada dos primeiros missionários aos seus territórios. Outras nações africanas celebraram-no há pouco. Como não mencionar ainda as Igrejas do Oriente, cujos antigos Patriarcas se apelam, tão de perto, à herança apostólica e cujas venerandas tradições teológicas, litúrgicas e espirituais constituem uma enorme riqueza, que é património comum de toda a cristandade? As múltiplas ocorrências jubilares destas Igrejas e das Comunidades, que nelas reconhecem a origem da sua apostolicidade, evocam o caminho de Cristo ao longo dos séculos e desembocam elas também no grande Jubileu do fim do segundo milénio. Vista sob esta luz, toda a história cristã nos aparece como um único rio, onde muitos afluentes lançam as suas águas. O Ano 2000 convida a encontrarmo-nos, com renovada fidelidade e mais profunda comunhão, sobre as margens deste grande rio: o rio da Revelação, do Cristianismo e da Igreja, que corre através da história da humanidade a partir do sucedido em Nazaré e depois em Belém, há dois mil anos. É verdadeiramente aquele « rio » que com os seus « braços », segundo a expressão do Salmo, « alegra a cidade de Deus » (4546, 5).
26. Na perspectiva da preparação do ano 2000, situam-se também os Anos Santos do último quartel deste século. Ainda vivo na memória está o Ano Santo que o Papa Paulo VI proclamou em 1975; na mesma linha, foi celebrado sucessivamente o ano 1983 como Ano da Redenção. Eco talvez ainda maior teve o Ano Mariano de 198788, muito ansiado e profundamente vivido nas diversas Igrejas locais, especialmente nos santuários marianos do mundo inteiro. A Encíclica Redemptoris mater, então publicada, pôs em evidência o ensinamento conciliar sobre a presença da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja: há dois mil anos, o Filho de Deus fez-se homem por obra do Espírito Santo e nasceu da Imaculada Virgem Maria. O Ano Mariano foi quase um antecipação do Jubileu, contendo em si muito de quanto se deverá exprimir plenamente no ano 2000.
27. Torna-se difícil não assinalar que o Ano Mariano antecedeu de perto os acontecimentos de 1989. São fenómenos que não podem deixar de surpreender pela sua vastidão e, especialmente, pela sua rápida evolução. Os anos oitenta foram- -se sobrecarregando de um perigo crescente no contexto da « guerra fria »; ora, o ano 1989 trouxe consigo uma solução pacífica, que teve quase a forma de um desenvolvimento « orgânico ». À sua luz, é-se levado a reconhecer um significado mesmo profético à Encíclica Rerum novarum: aquilo que o Papa Leão XIII ali escreve sobre o tema do comunismo, encontra naqueles acontecimentos uma precisa confirmação, como sublinhei na Encíclica Centesimus annus.12 De resto, era possível vislumbrar como, na trama de tudo o sucedido, estava em acção a mão invisível da Providência, com cuidado maternal: « Esquece-se porventura uma mulher do seu menino...? » (Is 49, 15). Porém, depois de 1989 levantaram-se novos perigos e novas ameaças. Nos países do ex-bloco de Leste, após a queda do comunismo, apareceu o grave risco dos nacionalismos, como infelizmente mostram as vicissitudes da região Balcánica e de outras áreas vizinhas. Isto obriga as nações europeias a um sérioexame de consciência, com o reconhecimento de culpas e erros historicamente cometidos, no campo económico e político, no confronto de nações cujos direitos foram sistematicamente violados pelos imperialismos tanto do século passado como do actual.
28. Actualmente estamos a viver, no rasto do Ano Mariano e com idêntica perspectiva, o Ano da Família, cujo conteúdo está estritamente ligado ao mistério da Encarnação e à própria história do homem. Pode-se, pois, acalentar a esperança de que o Ano da Família, inaugurado em Nazaré, se torne, como o Ano Mariano, uma posterior etapa significativa na preparação para o Grande Jubileu. Nesta perspectiva, dirigi uma Carta às Famílias, onde quis repropor a substância do ensinamento eclesial sobre a família, levando-o, por assim dizer, até ao seio de cada lar doméstico. No Concílio Vaticano II, a Igreja reconheceu como uma das suas tarefas a valorização da dignidade do matrimónio e da família.13 O Ano da Família pretende contribuir para a actuação do Concílio nesta dimensão. Por isso, é necessário que a preparação para o Grande Jubileu passe, em certo sentido, através de cada família. Não foi porventura através de uma família, a de Nazaré, que o Filho de Deus quis entrar na história do homem?



- Parte 3

Escreva para nós! Cartas para Rodrigo Carioca e Vitor Clemente.
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