Aqui estão alguns dos relatos de pessoas que participaram das "comemorações" dos 500 anos do descobrimento do Brasil.

Algumas delas puderam perceber que o termo comemorações foi levado ao pé da letra, talvez até lacanianamente demais, pois, enquanto uns comiam vatapá de caviar regado à molho demi-sec-rosê-brut-chu-shu-xu, outros, privados do direito de ir e vir, só puderam "comer orações" que os ajudavam a aguentar a barra com paciência e garra para não serem presos ou se darem muito mal!!!!!

Peço que escutem seus relatos para sabermos, dos que lá estiveram, algo um pouquinho diferente do que imaginávamos como "festa" para nosso país.


Os interessados em receber estes e outros relatos podem se inscrever na lista "relatosoutros500-subscribe@egroups.com" enviando um email em branco para o endereço.


Outros 500?

por Eduardo Rombauer Von den Bosh para a lista Informeatividade

Esta mensagem é fruto de indignação de quem esteve presente na manifestação indígena, negra e popular em Coroa Vermelha, Bahia. Imagino que todos acompanharam as últimas notícias estão por dentro do absurdo que foi este fato. Gostaria de enriquecer o conhecimento de todos com minha experiência pessoal neste episódio, relatando alguns fatos e cenas que presenciei:

- Os policiais espancaram 2 estudantes da USP na manhã do dia 22 APÓS CHAMÁ-LOS PARA CONVERSAR. Na ocasião, lhes disseram: CORRE PRO MEIO DO MATO, seguindo-os e batendo com cacetetes e jogando-os contra o arame farpado. Temos gravado em video seu depoimento, entre outros, 20 minutos após o incidente. Não havia ninguém da imprensa no local. 1 km adiante, na entrada da estrada do acampamento quilombola 141 estudantes foram mantidos detidos durante mais de 3 horas.

- Enquanto isso, os índios em euforia discursavam na preparação para a marcha, pintavam-se cada povo com seus traços e cores. Animados com o sucesso de sua conferência (que reuniu cerca de 3.000 índios), e a primeira oportunidade na história de realizar um ato público, tinham muito pouco conhecimento do que se passava no mundo de fora, pois durante os 5 dias da conferência não circularam jornais, nem se tinha muito conhecimento da situação dos outros movimentos que iriam participar da passeata.

- 2 ônibus com jornalistas foram impedidos de chegar em Coroa Vermelha. Um dos poucos que conseguiram, disse que conseguiu "fugir do curral", ao recusar um dos ônibus oferecidos pelo governo.

- A polícia grampeou os telefones do comitê da conferência indígena, conta Paulo Maldos do CIMI, que disse ter recebido informe da própria polícia.

O Clima

Momentos antes da saída, os Xavantes, que concentravam-se em roda, formaram uma fila que seguia ao lado direito da marcha. Os Yanomamis, os Pataxós e outros povos seguiram na marcha entoando coros e dançando. Não havia carro de som, nem qualquer discurso de guerra: o consenso geral foi de realizar uma manifestação totalmente pacífica. Logo após cruzar o local onde se situavam os detidos (que passaram despercebidos pela euforia dos índios), uma curva, e 100 metros adiante um batalhão da tropa de choque da polícia militar aguardava.

Não imaginávamos que pudesse ser tão brusco. A marcha sequer teve tempo de parar, a maior parte dos manifestabtes estava ainda antes da curva, quando as bombas e balas de borracha começaram a ser atiradas. Não houve reação senão ficar parado ou voltar correndo. Muitos índios ficaram totalmente perplexos, não faziam a menor idéia do que estava acontecendo!! Os Kaiapós, angustiados, tiraram suas roupas e gritavam as poucas palavras que conheciam do português: "Roupa podre! Branco podre!". Os Xavantes voltaram chorando de mãos dadas. Víamos índios pela estrada em estado de choque, chorando.

Enquanto atirava bombas, um militar dizia "É disso que eu gosto" (relato de alguns jornalistas). Tirei uma foto de outro que dava gargalhadas em cima de um carro dos bombeiros, jogando água para piorar o efeito do gás lacrimogênico.

Os policiais haviam prometido não agredir os índios, haviam alertado que impediriam apenas os "baderneiros" (outros movimentos) que se juntassem à manifestação. Mesmo assim, os que se juntaram foram muito poucos, nem esse "motivo" seria cabível. A única bandeira vermelha (do PSTU) presente pertencia a um policial disfarçado, que revelou sua identidade ao retirar índios de um hotel, no qual alguns manifestantes se refugiaram das bombas. Os demais manifestantes foram detidos por mais de uma hora dentro do hotel.

Vi e ouvi relatos de muitas outras cenas nesse dia que não podem ser perdidas no tempo. Alguns manifestantes trocaram telefones para compartilhar as fotos e outros registros, bem como 3 equipes que realizavam documentários sobre a conferência indígena, todos se mobilizaram para compartilhar seus registros. Se alguma pessoa que receber esta mensagem tiver algum registro ou conhecer alguém que esteve presente neste evento, ou até mesmo quiser ajudar a organizar estas informações, por favor entre em contato comigo. durombauer@hotmail.com

Este é apenas um breve relato após a longa viagem de volta para casa. Aqueles que quiserem uma cópia da carta final escrita pelos índios na conferência, peça no seguinte endereço: outros500@sulbanet.com.br

Seria esta a cena 6 do psicodrama de Marisa?

Dudu


500 anos de Encobrimento do Brasil


Psicodrama da auto estima dos brasileiros

des-cobrindo o Brasil


por Marisa Nogueira Greeb

Cidadã Brasileira


Historia do Brasil em 5 cenas:


Cena 1: Locus nascendi: Uma terra imensa, saudável, fértil e diversificada.Muita água potável e salgada. Pedras preciosas, ouro, petróleo e muito mais. E o clima? Tropical ! Muita praia, muita mata. Índios na vida como ela se dá. Alegres, saudáveis, inocentes e fortes.

Cena 2: Gente à vista !?

Solilóquio: Porque sempre nos ensinaram : - Terra à vista !? Eram os colonizadores chegando e desde aí nos ensinam a fala do colonizador, o jeito do colonizador, o desrespeito, o roubo e a corrupção do colonizador. Nossa Matriz foi marcada, e produziu-se nossa subjetividade colonizada. Fomos capturados, nossas almas e corpos...

A subserviência foi inaugurada e o colonizador em nós se instalou. Os povos e nações que aqui tinham seu habitat só serviram para ensinar o caminho do ouro... (Não confundam: estou falando dos primórdios que estão sendo tão comemorados)

Cena 3: O clima tropical, quente e úmido, gerando transas com todos e entre todos. Holandeses com índias, portugueses com negras capturadas na África e assim ....

Cena 4: Nasce o Brasileiro. Bastardo. Um povo que é Ninguendade ( a voz de Darci Ribeiro ). Nenhum Pai. Nenhum Estado. Nenhum compromisso com Édipo. Nenhum compromisso com o Mesmo. Nem portanto com a reprodução do Mesmo . Consequentemente sem Lei. Criativo. Livre. As leis são normas criadas pela espontaneidade coletiva. Sua tribo é composta de diferenças.

Solilóquio : Ah ! Então o que falta é a afirmação da diferença, mas isto é uma questão de auto-estima ! De respeito a sua Singularidade !

Cena 5: Conflito. O Brasileiro é atravessado por forças que produzem subjetividades, que produzem modos de ser: colonizadores , escravos , bastardos / anarquistas e até quilombolas e poucas vezes índias ( ex. no impeatchement do Collor, depois sumindo na selva ). Conflito de forças que lutam entre si buscando dominância e se submetendo. Quase sempre um personagem colonizador na fala e escravo nas ações é que se apresenta no palco do cotidiano brasileiro. É a hegemonia do colonizador em nós.

Solilóquio : Aqui foi descoberto, não um terceiro mundo com desejos de primeiro, mas um novo mundo a ser descoberto pelos brasileiros.

Está aí nossa "menos valia". Devedores e culpados, pagando a dívida do mundo globalizado que nos coloca como salvadores do sistema financeiro perdido entre falsos papéis e completamente descolados da produção. Dada nossa baixa auto-estima estamos complementando e colaborando com a política da exclusão e do extermínio, e já já engolindo os transgênicos que alimentam a vida com a semente da morte !

Cena 6: ????????????????????????

Solilóquio: Poderíamos com nossa diferença, deixando expressar nossa subjetividade bastarda, quilombola , índia , até então tão reprimidas, des -cobrirmos o Brasil em nós ? E oferecer ao mundo sementes de vida ??????????



TESTEMUNHO SOBRE A MARCHA INDÍGENA

Quem é “fascista”, afinal?

por: - André Murtinho Ribeiro Chaves (estudante de mestrado em Biologia - Unicamp) RG: 892861
- André Valente de Barros Barreto (sociólogo) RG: 17298556-0
- Daniel Tygel (estudante de mestrado em Física - Unicamp) RG: 277433110-x
- Daphne Cristina Menezes Fucks Vieira (estudante de graduação em Educação Artística - Unicamp)RG: 24899896-1
- Patrícia Guerrero (estudante de mestrado em Antropologia – Unicamp) RG: 19283654
- Tereza Cristina Ribeiro (estudante de mestrado em História – PUC-SP) RG: 1827790

Somos estudantes de graduação e pós-graduação das universidades Unicamp e PUC-SP e profissionais, e estivemos presentes na marcha indígena que se dirigia de Coroa Vermelha a Porto Seguro em 22 de abril. Não fazemos parte de nenhum movimento social instituído: fomos simplesmente como cidadãos brasileiros prestigiar e participar, pacificamente, deste ato histórico.
Chegamos a Coroa Vermelha na manhã do dia 21 de abril, após passar por 6 barreiras da polícia militar, no trecho entre Eunápolis e Porto Seguro. O fato de termos fretado um ônibus executivo da empresa São Geraldo, virmos de São Paulo e não portarmos nenhuma identificação partidária ou do MST, facilitou em demasia a nossa entrada na cidade.
Em Coroa Vermelha fomos alojados no acampamento “Quilombo dos Palmares”, organizado pelos movimentos negro e popular. Vivemos um dia tenso e confuso, devido ao desencontro de informações (até mesmo sobre o horário da marcha no dia seguinte), ao sitiamento total de Coroa Vermelha (não entravam nem saíam mais ônibus), e à ostensiva e provocativa presença da polícia militar (o alojamento foi continuamente “visitado” por viaturas e camburões cheios de policiais, criando um clima de terrorismo sobre todos nós).
Após tensas conversas no acampamento, foi decidido que acordaríamos às 5h, e sairíamos todos às 6h da manhã rumo ao local onde se alojavam os índios para partirmos juntos na marcha.
Uma pequena parte do grupo, inclusive nós, saiu antes das 7h30, mas a maioria ainda se encontrava no acampamento, desmontando as últimas barracas e fazendo as malas. Cruzamos por policiais do batalhão de choque da PM e os saudamos com um cordial “bom dia”, sem imaginar o que viria a acontecer: mais tarde, o restante do grupo – umas 1000 pessoas -, ao partir em direção ao local combinado, foi barrado de forma gratuita e truculenta pelo batalhão de choque sob chuva de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha (algumas pessoas do nosso ônibus foram testemunhas deste ato, além de serem detidas, não conseguindo participar da marcha, se contentando em ficar sentadas na lama, cercadas de policiais até o fim da tarde).
Ficamos esperando em frente ao alojamento indígena, recebendo mais uma vez muitas informações controversas a respeito da marcha, do “estado de sítio”, das barreiras policiais etc. O tempo todo, helicópteros do governo da Bahia e do exército nos sobrevoavam. De repente, pouco antes das 11h da manhã, os portões do alojamento se abriram e os índios, organizados por tribos, se colocaram na estrada, determinados, rumo a Porto Seguro. Estavam todos ornamentados e pintados segundo suas tradições, além de portarem faixas, bandeiras e em alguns casos camisetas com dizeres referentes a suas demandas mais prementes: demarcação de terras, direito à vida e a uma existência digna enquanto cidadãos brasileiros.
A beleza, força e diversidade de culturas nos marcou profundamente. Não nos esqueceremos de seus rostos determinados, das mãos e braços dados, mães com os filhos no colo – ligados ao coração -, cantos em diferentes línguas, passos marcados no ritmo dos cantos e ao som dos maracás, os caciques com seus lindos cocares. Foi maravilhoso ver como diferentes segmentos da sociedade brasileira se juntavam à marcha: movimento negro, sindicatos, turistas, moradores, anarco-punks, estudantes, idosos, trabalhadores rurais sem-terra (uns poucos que conseguiram passar pelo bloqueio de Eunápolis), pessoas de diversos estados brasileiros e de outros países. Foi um momento único em nossas vidas, ver a sociedade brasileira marchando unida, pacificamente, num clima leve, de satisfação e determinação. Sentíamos na pele o significado potencial desta tão falada democracia. Sentíamo-nos plenos, vivos, em comunhão. Éramos um no meio de toda aquela diversidade da qual nossa nação é formada. Vivemos por um momento a nação brasileira e seu poder de transformação.
De repente, uma parada. Pessoas correndo e gritando. Um violento estrondo e um monte de fumaça. Alguém nos dizia que era gás lacrimogêneo (nós nunca havíamos visto nem sentido uma dessas antes!). Achávamos exagero, pedíamos calma. Chamávamos as pessoas de volta à pista, o barulho das bombas tinha parado. Alguns segundos depois, novos estrondos, um atrás do outro. Os helicópteros nos circulavam, voando baixo. Ainda não conseguíamos acreditar em perigo, e nos mantínhamos na pista, até que aquela cena monstruosa se desenhou na nossa frente. Não víamos soldados humanos, mas sim simplesmente uma parede cinzenta-esverdeada, envolvida pela fumaça que ela própria criava, e que avançava impassível, lançando aquelas bombas sem parar nem hesitar um instante. Vimos alguns índios lá na frente, parados corajosamente, tentando defender seus parentes através de diálogo, ou de sua presença firme, digna e silenciosa. Eram ignorados e atropelados por aquela máquina desumana de terror. “Pra que tudo isso? Não podem fazer isso! Por quê? Por quê? Por quê?” eram gritos que se ouviam e sumiam em meio às explosões, à multidão atordoada, e ao som dos helicópteros e das sirenes. O gás queimava nossos olhos e gargantas, nos angustiando física e psicologicamente (afinal entendemos o que quer dizer “bombas de efeito moral”). Nos raros momentos de reflexão, lembrávamos do que nossos pais e livros de história contavam sobre os anos de ditadura no país. Uma sensação de impotência e injustiça, covardia, violência injustificável e gratuita irrompia dolorosamente de nossos peitos.
Esse poderia ter sido o início dos “outros 500”, um novo tempo construído em conjunto, respeitando as diferenças não como ameaças, mas como a fonte mesma de vida e criatividade de um povo. Infelizmente não foi dessa vez. O que o nosso presidente quis dizer com “fascismo”, afinal?


EM RITMO DE GUERRA

por Cassiano (FEA-USP), Danilo (FEA-USP), Isadora (FAU-USP), Pedro (FEA-USP)

A viagem que estava prevista para durar cerca de 25 horas, se prolongou para 35 horas. Saímos da USP por volta das 23h30, do dia 19 de abril, chegando em Santa Cruz Cabrália por volta das 10 da manhã do dia 21. No caminho, éramos informados por telefone de ônibus barrados, revistas minuciosas e apreensões de faixas e material gráfico; nem talher estava passando. Fomos abordados nove vezes pela polícia e os dois ônibus multados em R$1600,00 cada.. Os policiais federais e estaduais sabiam todos os nossos passos e eles mesmos nos alertavam que o problema maior seria dentro do território baiano, o que de fato ocorreu.

Chegamos ao Quilombo Palmares (ou Central) e nos juntamos a um grupo de pessoas formado principalmente por militantes de movimentos negros e estudantes em geral. Os principais estados presentes eram SP, RJ, ES, BA e MG. Assim, estavam formados no sul da Bahia três grandes núcleos de manifestantes: Conferência Indígena (cerca de 3,5 mil índios - mais de 1% da população indígena brasileira); Quilombo Palmares (cerca de 2 mil estudantes e militantes negros) - esses dois núcleos bem próximos um do outro, nos arredores de Coroa Vermelha, em Cabrália. O terceiro núcleo era o do MST em Eunápolis, 62 km de Porto Seguro, com cerca de 5 mil militantes espalhados em diversos acampamentos.

No dia 21, a movimentação foi intensa. Às 10 horas aconteceu no Quilombo uma Coletiva para a imprensa nacional e estrangeira, que durou cerca de duas horas. Paralela e posteriormente à Coletiva, entre "rangos" comunitários, os diversos grupos ali presentes se reuniram para discutir estratégias e posições políticas para as manifestações. No caso dos estudantes, nos reunimos por volta das 16 horas para discutir questões que levaríamos para a Assembléia Geral prevista para 17 horas. No entanto, a Assembléia acabou sendo adiada para 19 horas e os estudantes permaneceram discutindo até este horário. Neste meio tempo, a companhia teatral "Alegria, alegria" do Rio Grande do Norte apresentou a peça Brasil Outros 500.

Na Assembléia as intervenções giraram em torno do trajeto e horários da marcha a ser realizada no dia seguinte. Depois de grande polêmica, ficou decidido que sairíamos do Quilombo, às 6 da manhã, em passeata até a estrada, nos juntando aos companheiros indígenas (achávamos que a presença deles evitaria a repressão policial, ingênuos...) em direção à Coroa Vermelha. Lá permaneceríamos até as 13h, quando daríamos início a grande marcha de quinze quilômetros rumo à praça principal de Porto Seguro.

Depois da Assembléia, voltamos a nos reunir, agora com mais estudantes que na primeira vez. Nesta ocasião, decidimos principalmente questões organizacionais, e elegemos responsáveis por segurança, saúde, alimentação, etc. Deste momento em diante, por volta da 23h, começa a repressão policial. Diversas viaturas e um helicóptero da PM baiana passaram a rondar o acampamento alegando estarem ali para proteger - "custe o que custar"- o presidente. Na madrugada do dia 22, por volta das 3h, começaram a utilizar megafones e holofotes para acordar o acampamento, com frases do tipo: "revolucionário acorda cedo", "hora de ir para a luta, companheirada". Os policiais ameaçaram invadir o acampamento duas vezes, instaurando muita tensão e uma sensação de impotência entre os presentes.

"Acordamos" por volta das 5h da manhã, e começamos a desmontar nossas barracas, preparar o café e pôr toda bagagem nos três únicos ônibus disponíveis. Esperávamos um dia difícil... Aproximadamente 2000 pessoas saíram às 6h30 rumo à rodovia, ansiosas para encontrar os índios e, juntos, construirmos aquele dia histórico. Não deu tempo nem para o aquecimento... ao chegarmos na rodovia, andamos cerca de 400m ocupando a pista da direita. Após alguns minutos, às 6h45, as bombas de gás pimenta, efeito moral e balas de borracha começaram a rasgar o céu: o corre-corre foi geral dispersando as pessoas instantaneamente.

A partir do bombardeio, foram trinta minutos muito intensos. Neste momento, a maioria dos manifestantes dispersou, e boa parte foi obrigada, devido à truculência dos policiais, a adentrar uma "aldeia" Pataxó recém-construída (?) pelo governo. Dentro da aldeia os manifestantes foram mal recebidos e ninguém estava entendendo direito porque os índios queriam expulsar-nos de lá. Cerca de trezentos insistentes ainda acreditavam na possibilidade de resistência e permaneceram na pista. O chefe da tropa de choque, então, chamou duas pessoas para "negociar". Dois rapazes caminharam em direção à tropa e iniciaram um diálogo grotesco:
- Nossa ordem é impedir qualquer tipo de baderna que ameace a segurança do presidente!, afirmou furioso o soldado.
- Nosso movimento é pacífico, não há ninguém com paus ou coisa do tipo. Estamos caminhando tranqüilamente, de forma organizada em duas colunas. Só queremos mostrar o sentimento popular, disse Pedro Barros, aluno de Economia da USP.
- Não tem conversa!!! Nós vamos dar porrada em qualquer um que tentar passar!
- Não, mas...
- Não tem conversa!!! Corre, moleque!!! Corre pro mato, moleque!!

O chefe da tropa de choque ameaçou jogar uma bomba em cima dos negociadores e lançou-as, de fato, nos manifestantes. Novo corre-corre; Pedro foi perseguido, alcançado e muito agredido por dois homens da tropa. O resto do pessoal na pista, que até aquele momento tinha esperança na continuidade da marcha, se entreolhou e correu, conjuntamente, para as mediações da estrada, do lado da praia.

Detalhe: nessas redondezas se localizavam habitações indígenas, tipo um "COHAB-Pataxó", e sentimos a mesma resistência ocorrida na "aldeia", por parte dos que ali habitavam. Uma briga violenta entre estudantes e índios estourou neste lugar, e haviam vários moradores com Walk-talkies indicando nossos passos. Foi então que descobrimos uma das grandes sujeiras oficiais, relatada por próprios índios da região e pelo médico da FUNAI: vinte caciques pataxós da região haviam recebido, além da já citada aldeia de concreto (?), um "agrado" do Ministro Rafael Greca e do comandante Cristovam Pinheiro, com a clara intenção de jogá-los contra o movimento Brasil, Outros 500, inclusive lançando boatos de que éramos integrantes do MST e iríamos invadir suas terras. Assim, além de cinco mil policiais militares e mil e trezentos homens do exército (que não foram requisitados), alguns índios da região também estavam contra nós.

Saímos da estrada e o clima não havia melhorado... Nesta hora, um grupo de aproximadamente 140 pessoas se dirigiu novamente para a rodovia. Lá chegando, os policias os cercaram: tropa de choque de um lado, cavalaria de outro e centenas de policiais militares fecharam o cerco. Os manifestantes literalmente sentaram, "imobilizados" pela grande quantidade de policiais (cerca de 3 para cada um). Estavam presos. Isso ocorreu por volta das 8h, daí para frente, os policiais deram uma pausa para nós respirarmos. Diversos parlamentares (Dep. José Dirceu, Sen. Marina Silva, Sem. Heloísa Helena, entre outros) e líderes sindicais, chegaram com o intuito de libertar os presos, e iniciaram negociação reservada. As pessoas começaram a se aproximar do cerco, a fazer discursos, orações e a gritar palavras de ordem. A imprensa apareceu em massa, principalmente a internacional. O ex-candidato a presidente pelo PSTU, José Maria, fez um discurso inflamado, sendo agredido e preso também.

Duas horas depois, às 10h, avistamos a marcha indígena vindo em direção a nós, convicta, certa de que chegaria a Porto Seguro. A quantidade e diversidade de faixas, vestimentas e recados impressionava, afinal estavam representadas na Conferência 185 tribos diferentes, das cerca de 210 existentes no Brasil. A grande maioria havia preferido o protesto ao almoço "cerimonioso" com FHC, e alegavam estar indignados com a "cara de pau" do presidente de só aceitar recebê-los naquela data, sob tais circunstâncias e tamanha pressão. A marcha dos índios fez uma pausa em frente ao cerco onde se encontravam os estudantes presos e registrou sua solidariedade, com um líder indígena discursando e dizendo "estarmos todos na mesma luta".

Uns quinhentos metros a frente, novo fronte da tropa de choque e muita bomba!!! Boa parte dos índios não arredava o pé da rodovia, afinal era o dia D principalmente para eles, e não cederiam tão facilmente. Foram mais de quarenta bombas lançadas, que explodiam no meio da multidão. O presidente da FUNAI, Carlos Maréas, tentou conter os policiais, ficando entre a passeata e a tropa, de braços erguidos e gritando muito. As explosões, o gás pimenta e as balas de borracha foram tantas que conseguiram dispersar. Tivemos oportunidade de acompanhar a desolada volta da passeata vencida: idosos machucados, mulheres com filho no colo desesperadas, muita gente ferida e chorando muito, de revolta. Passávamos por grandes cordões de policiais, "quase todos pretos, pobres", que baixavam a cabeça diante de nossas iradas broncas e sermões indignados. Estavam muito envergonhados... Muitos turistas desistindo de participar da festa oficial, dando meia volta com seus carros.

Agora o que mais nos impressionou: muitas tribos tentavam se reorganizar e buscavam arcos, fechas, lanças e porretes para, numa segunda marcha, voltarem para "matar ou morrer". Chegamos até a Conferência Indígena, que foi restabelecida devido ao ocorrido, e a discussão em pauta era o confronto ou não, se não seria importante eles virarem mártir dessa luta. Estavam revoltadíssimos, muitas tribos faziam rituais de guerra, inconformados com a ousadia da PM: "nem na ditadura ousaram agir tão violentamente, fisicamente, diretamente contra os povos indígenas".

11h30, os presos finalmente seriam removidos para o DP. Haviam ficado três horas e meia sentados numa ribanceira e tinha chovido bastante. A polícia até aquele momento alegava (declaração gravada): "45 o número de cercados" e "os manifestantes que não querem sair daqui; nós chegamos, eles sentaram e disseram que vão fazer o protesto deles aqui; estamos tentando tirá-los". Puseram as 140 pessoas encharcadas em apenas um ônibus comum e os levaram para a delegacia de Cabrália. Lá já estavam representantes da OAB e outros líderes, e a liberação não tardou.

Pouco depois do regresso dos "ex-prisioneiros", descobrimos que vários companheiros estavam cercados pela PM dentro de uma pousada ali perto. Explicando: quando estourou o confronto com a passeata indígena, apesar de bastante gente ter ficado na pista, muita gente correu para os lados (praia ou bairro). Entre esses, um grupo entrou dentro de uma grande pousada na beira da estrada. A tropa de choque os passou, e, na volta, depois de dispersarem a passeata, resolveu cercar a pousada junto com a cavalaria. Então, retiraram os turistas hospedados, e, sob pressão de Maréas, retiraram os índios também. O pessoal que sobrou ficou desesperado, com medo de ser agredido ou preso. Chegaram parlamentares e outros líderes para abrir negociações novamente, que duraram cerca de uma hora e meia.
A hipocrisia da PM-BA, encarnada no comandante Müller, se fez presente quando, ao ser entrevistado, declarou que o propósito dos manifestantes era fazer baderna e estes haviam até mesmo agredido os índios (vide suborno do Greca), esquecendo que a poucos minutos tinha ordenado o bombardeio aos próprios índios em passeata. Mais uma vez, ficou claro que não havia constituição, lei, muito menos respeito regendo os policiais naquela data. Um juiz federal ordenou que os manifestantes fossem liberados, alegando que eles tinham três liminares (ou mandatos de segurança) garantindo a continuidade dos protestos, inclusive o livre-acesso a Porto Seguro. O comandante da tropa de choque disse que ninguém iria atrapalhar a festa, e que não liberaria as pessoas. O juiz decretou ordem de prisão ao comandante, que deu risada dizendo que ali ninguém mandava nele além do ACM. Nessa hora as senadoras Marina e Heloísa e o presidente da CUT, Vicentinho, se indignaram e foram empurrados pelo mesmo.
As manifestações tinham sido devastadas antes do meio-dia. Os policiais permaneceram monitorando a região com todo o aparato já citado até o fim do dia, mantendo a intimidação e tensão contínua. O saldo foi os 140 presos da estrada, um militante do movimento negro (o rastafari que apareceu bastante na mídia puxado pelos cabelos) levado preso para o Comando de Operações Especiais (COE) da PM-BA onde foi muito torturado, além das dezenas de feridos registrados ou não por hospitais e afins. Deixamos Cabrália por volta das 21h, esperando apreensivamente por 2 companheiros que haviam sumido o dia inteiro sem dar notícias: um teve que comprar roupas de turistas e passar o dia todo em Porto Seguro, pois havia brigado com os pataxós de manhã e sido ameaçado de morte, a outra tinha sido irresponsável mesmo.
Ironia dessa história toda: a repressão patrocinada pelo Sr. FHC e ACM contribuiu para que todo o país e o mundo - pois a imprensa mundial estava participando em peso- fique sabendo que a democracia neste país, longe de ser real, está apenas no papel.
Nossos governantes podem usar e abusar de sua truculência para intimidar o povo, quando este busca expressar genuinamente seus sentimentos e reivindicar seus direitos. Será que nós, os manifestantes, é que somos fascistas?

 

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28/04/2000