| CONTO DE VIVALDO LIMA | 
      Faça com a esquerda sem que a
      direita tome conhecimento
                                     
      - Bem,  Seu
      Nonato, serei breve e bastante claro: o senhor realmente é esquerdo?                        
      - Oras, mas é claro...                        
      - Veja bem, o senhor não precisa entrar em
      detalhes, basta apenas que confirme, sim? Creio que o senhor tem as exatas
      noções de que nossa empresa é uma empresa bem democrática e acompanha
      a evolução dos tempos...                        
      - Sim, mas...                        
      - Peço que não me interrompa, por favor!... e se
      possível, fale o quanto mais baixo melhor.                        
      - Doutor, escute...                        
      - O senhor bem sabe que eu não sou doutor merda
      nenhuma! Se consegui estar a frente disto que é isso aqui hoje, foi
      porque tive que saber adaptar-me
      a todo tipo de situações: fui moderno com JK, esperançoso com o Jânio
      e ufanista com os militares. Só não me rendi ao Jango; e bem fiz, pois não
      tava aqui para trabalhar e entregar o meu suor nas mãos de desocupado
      algum... depois, se não lutei para uma abertura democrática, chorei com
      a morte do Tancredo e aliei-me
      aos partidos do poder fortalecendo o caixa em suas eleições. Hoje, meu
      filho, o senhor não imagina o que se faz com uma boa empresa de lobby.                        
      - Senhor...                        
      - Olha, vou adverti-lo: estou tendo muita paciência com o senhor,
      contudo não tolerarei mais que o senhor corte o fluxo de meus
      pensamentos. Eu me preparei por um dia inteiro para ter esta conversa que
      estamos tendo agora, Seu Nonato; e o senhor, de certa forma, poderia até
      considerar-se na rua,
      uma vez que... Está vendo? O senhor acaba me tirando do sério. Não é
      este o meu propósito, e eu espero que o senhor entenda perfeitamente.                        
      - ...?                        
      - Esquerdo. O senhor é um esquerdo!...                        
      - Eu prefiro que me chamem de canhoto! É mais
      apropriado.                        
      - Sim, sim... tudo bem. Desculpe-me, era esse
      mesmo o termo que eu ia utilizar, no entanto...                        
      - O senhor não precisa explicar-se, eu compreendo...                        
      - Grato. Muito grato. Apesar de jovem você me
      parece uma pessoa um tanto ajuizada. É até difícil acreditar que o
      senhor realmente seja es... canhoto! Em outros tempos era bem mais fácil
      identificar vocês, pelo modo de
      agir, agora não se nota diferença alguma. Parece mesmo que se tornou
      moda ser esquerdo neste meu mundo de Deus, vão lentamente invadindo as
      tevês, os cinemas e os teatros... Aliás, diga-se de passagem que o
      teatro já foi um ambiente estritamente familiar; ou pelo menos era, na
      cidadezinha onde nasci. Não tinha história de Nelson Rodrigues, não.
      Sacanagem nunca foi coisa pra se assistir; é pra se fazer ali: duas
      pessoas e quatro paredes. As peças eram todas coordenadas pela Igreja,
      com temas cristãos, que é o que é o certo. Isto era arte! Com “a”
      maiúsculo. As crianças vestidinhas de anjo e o pequeno coral repetindo o
      refrão... Ah, como tenho saudades daquele tempo! Discutir política então,
      era coisa só para gente séria. Bunda-suja que fosse se lavar na sua própria
      casa; lavrador, lavrar; capataz, cuidar; porque tradição de família não
      se obtém duma hora pra outra. Família que manda, ou esteja disputando
      com outra, tem a benção de Deus para isso... Coisas de es.. canhotos? A
      gente ouvia falar. Posso até dizer que já usei dessa mão, quando era
      pequeno, mas quando se é criança faz-se as coisas sem maldade, não é
      mesmo? Se os pais ficassem sabendo davam baita surra... E se eu souber do
      meu filho dou surra também... Não leve para o lado pessoal, Seu Nonato,
      eu não sou esse poço de ignorância que o senhor está pensando. Eu leio
      coisas de cultura geral; é importante a gente conhecer do comportamento
      humano; sei que gente famosa como Leonardo da Vinci foi canhoto, e sei que
      a lista não para por aí. É por isso que eu estou lhe dizendo tudo isso,
      para o senhor saber que, mesmo sendo canhoto, o senhor não será
      despedido, ouviu? O senhor pode ficar tranqüilo. Nós acompanhamos a
      evolução...                        
      - Tudo bem, Seu Otaviano. Eu entendi. A propósito,
      o senhor sabe que há uma lei que proíbe a discriminação de canhotos?                        
      - Sei, sei... e é por isso...                        
      - Seu Otaviano...                        
      - ... o que é, Seu Nonato?...                        
      - O senhor não precisa se preocupar.                        
      - Eu? Preocupar-me? Com o quê?...                        
      - Eu não falarei nada...                        
      - Não...                        
      - Não falarei nada a respeito de tê-lo visto no
      Clube usando a mão esquerda.                        
      - ...                        
      - ...                        
      - O senhor pode sair, Seu Nonato.      |