Fernando
Pessoa
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Fernando
Pessoa
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha
alma não tem alma
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho
ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração
de ninguém.
Fernando
Pessoa
Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.
Fora disto, que é nada, sob o azul
Do lado céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor
Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.
Fernando
Pessoa