Psicologia

ISOLAMENTO, SOCIEDADE E ARTE
junho/91
Professora Inês Loureiro


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho foi originalmente elaborado para a disciplina de Psicologia, ministrada pela professora Inês Loureiro na Escola Superior de Propaganda e Marketing durante o primeiro semestre de 1991.

A proposta deste trabalho é questionar o modo como são conduzidos os relacionamentos no mundo contemporâneo, procurando através de exemplos do cotidiano ilustrar os três conceitos-chave abordados: isolamento, sociedade e arte.

Enfim, este trabalho se propõe a analisar a interação dos três fatores no campo da psicologia. Procurei não me ater demais ao campo teórico, de modo que a inclusão da parte ilustrativa destina-se a imprimir uma forma um pouco mais prática e perceptível do conteúdo abordado.

Assim, foi tomada como base a própria evolução da psicologia no ser humano, a partir do nascimento até o momento em que ele se vê como ser independente e dotado de livre arbítrio.


O SER SOCIAL

O conceito de ser social encontra-se numa situação bastante delicada nos dias de hoje. A sociabilidade do homem atual está se complicando, se não se deteriorando, sendo uma das essências do próprio comportamento instintivo do ser humano a se desgastar. Dela depende a manutenção, por exemplo, da própria estrutura familiar, dos grupos de referência e de afirmação do indivíduo. A degradação desses fatores pode reduzir o homem ao estado de animal incomunicável, irrelacionável... irracional! O ser humano está cada vez mais se fechando em si mesmo, caracterizando um ser entediado, solitário, solteiro. Pior que isso: cada vez mais inatingível em seu seio psicológico.

Ocorre que o isolamento gera profundas transformações no campo da relação social, no conceito de "eu, você, eles e elas" e, conseqüentemente, na sexualidade desde tenra idade. Tais mudanças são, talvez, analisáveis pelas ações conscientes e inconscientes para que se auxilie um número cada vez maior de pessoas que sofrem do problema e querem sair dele, mas não sabem como.

Veja bem, não quero apresentar a "cura do isolamento e da irrelacionalidade individual ou coletiva", mas essa é uma questão que deixa claro o seguinte: há um círculo vicioso onde seres isolados dão origem a uma incrível massa de seres isolados, e essa massa paulatinamente vai engolindo pessoa a pessoa, grupo a grupo de seres isolados, que formarão uma massa mais incrível de isolacionismo. Será essa uma tendência reversível? É difícil responder, talvez impossível.


DESDE O INÍCIO

O ser humano, para se inserir numa sociedade qualquer, deve possuir sempre dois lados: um padronizado, criado à imagem e semelhança dos seres que com ele convivem e que, propositalmente ou não, moldam seu caráter de forma que este seja adaptável em um determinado contexto da sociedade. O outro é aquele lado do indivíduo que guarda a personalidade, os diferenciais, os elementos de conduta pessoal, que diferem nos demais indivíduos mas que não se opõem radicalmente a eles. E o ideal é que haja um equilíbrio entre eles, pois a exacerbação de um dos lados pode gerar fatores incompatíveis com a socialização ideal de um indivíduo. É perigoso para ele tanto ser um clone como um mutante.

Assim, o indivíduo sociável pode ser definido como aquele que absorve elementos de acordo com pontos de referência, elabora-os e os expõe através de sua conduta, sua personalidade, de forma atraente para o grupo social. O oposto gera rejeição e preconceito.

Quando o indivíduo nasce, a referência é a família, sobretudo os pais. Estes inserem gradativamente em sua personalidade um modelo que será seguido futuramente quando essa criança tornar-se adulta. Se nesse aspecto ocorrer uma desreferencialização ou uma distorção de conceitos e relações, os fatores relacionados a amor, sexualidade, parentesco, casamento podem contribuir para que "distúrbios e anomalias" (termos pesados mas não preconceituosos) como, por exemplo, complexo de Édipo, homossexualismo e pedofilia surjam tanto latente como ativamente, em doses variáveis.

Não é racional nem muito menos lógico ser radical a esse respeito, mas o fato é que nos EUA, por exemplo, não foi permitida a adoção de crianças órfãs por casais homossexuais (masculinos ou femininos) apesar de constantes reivindicações por parte dos grupos interessados, por não se conhecer ainda os prováveis efeitos no desenvolvimento da sexualidade na criança.

Afinal, até os dias de hoje não se definiu como se estrutura biologicamente o mecanismo de impulso e preferências sexuais, ou melhor, em que ponto a questão deixa de ser biológica para se tornar psicológica, e a partir de qual momento o ambiente social influi na formação da sexualidade.

Mas ao contrário do que possa parecer, uma estrutura familiar muito rígida, "quadrada", pode causar tantos problemas quanto seriam causados por uma estrutura familiar não-convencional. Isso porque "fechar" o indivíduo dentro do molde familiar "papai, mamãe, irmãos" pode fazer com que o ele, pouco a pouco, crie um vínculo demasiado com essa tríade, enquanto a sociedade incorpora elementos que transcendem esses pilares, mesmo sendo formada por um conjunto infindável dos mesmos.

Muitos jovens, no momento em que necessitam se libertar do vínculo familiar para enfrentar a sociedade, não conseguem fazê-lo de forma ideal, criando uma repulsa à socialização. Afinal, a sociedade é composta por uma gama muito maior de tipos psicológicos do que a família pode proporcionar. Se durante o processo de formação da personalidade do indivíduo este não tem um contato balanceado com os dois lados (familiar e social) ele pode ter dificuldade em transitar por entre eles. Sim, temos que encarar a questão numa mão dupla, pois se o convívio social se sobrepõe ao convívio familiar, o resultado é que o indivíduo não incute em si o conceito de formação de família. A deterioração da tradicional estrutura familiar, o declínio do casamento como instituição e o desinteresse no envolvimento emocional mais profundo se refletem nos dias de hoje através da queda gradativa no tempo de duração dos casamentos e dos namoros.

Mesmo o namoro está sendo banido da vida das pessoas, numa época em que todos querem "ficar", sem se comprometer em termos de emoções ou espaço de tempo. As pessoas querem se prender cada vez menos umas às outras. Nesse processo, parece que o amor caminha para um fim masturbatório (não no sentido auto-erótico): se não queremos nos prender ou amar os outros, acabamos amando a nós mesmos (narcisismo)! Assim começa a se desenvolver uma onda de individualismo que acaba por envolver os seres humanos numa quebra das relações pessoa a pessoa, enclausurando cada um dentro de si mesmo. É algo grave: pode ocorrer o "amor narcisista" ou "individual", levando a uma manifestação que culmina em autodestruição - o suicídio.


SEXUALIDADE

Ao que tudo indica, o sexo está sobreposto ao amor nos veículos de comunicação e nas relações humanas já há um bom tempo. A última grande manifestação do amor incondicional foi o da contracultura dos anos 60, mas que já prenunciava a institucionalização maior do sexo através da revolução sexual. Essa institucionalização parece ser quase irreversível, pois a Aids não reverteu o processo como se esperava. Ainda que a liberdade sexual tenha que ter sido restringida nos últimos dez anos, as relações afetivas estão se deteriorando e ficando mais superficiais.

Mas a sexualidade e o amor são fatores parcialmente instintivos do ser humano. Será que o isolamento das pessoas em si mesmas reduziria os indivíduos à condição de ser "sexualmente e amorosamente" irracional? Em caso afirmativo, isso envolveria a própria eliminação da psicologia do ser humano, onde o conceito de "eu" seria amplificado até o momento em que ele se tornasse único, total, sem lugar para o conceito de "você, nós e eles". Se os mesmos não existem, o próprio conceito se degrada, desaparecendo. Afinal, nós temos consciência do claro porque conhecemos também o escuro.


COMPLEXO DE ÉDIPO

Uma sociedade conturbada como a atual, principalmente nas grandes metrópoles, faz com que o indivíduo fique às vezes bem mais restrito ao círculo familiar. O complexo de Édipo pode participar nesse processo de diferentes formas, a saber: pais e mães superprotegem seus filhos, temerosos do que o mundo lá fora possa proporcionar a eles. Se a criança não possui alguma referência quanto à socialização e a relação dela com a formação dos objetos de desejo (mais precisamente a substituição desses objetos durante a infância) pode ocorrer a manutenção das figuras paterna e materna como objetos de desejo, simplesmente porque não foi dada a ela a chance de perceber as alternativas possíveis desses objetos. Simplificando, se um menininho não conhece menininhas, a sua mãe tenderá a ser objeto de desejo durante a formação da sexualidade e se fixar como tal. Idem para a menininha e seu pai!

Dessa forma, uma das conseqüências pode ser o incesto, não exatamente na prática, mas como desejo latente. Afinal, o próprio complexo de Édipo nada mais é do que um desejo incestuoso latente, e que pode se manifestar tempos depois de forma direta ou indireta (como, por exemplo, interferindo nas relações amorosas/maritais/sexuais futuras). Existem casos comprovados de casamentos que acabaram porque, tempos depois do casal se unir, a esposa descobriu o porquê do marido insistir em morar com sua mãe, a "três", depois de casado! Ironicamente, há uma explicação lógica para esse desvio psicológico.


HOMOSSEXUALISMO E BISSEXUALISMO

Estendendo a questão do complexo de Édipo e do incesto, podemos chegar à questão dos desvios no comportamento sexual convencional. O isolamento do indivíduo, como foi dito, pode acarretar a inclusão deste indivíduo em um grupo de afirmação onde só haja pessoas do mesmo sexo. O não-contato com pessoas do sexo oposto pode fazer com que o desenvolvimento da sexualidade se molde no conceito da existência de um só sexo, o próprio. Em adolescentes, isso pode se manifestar devido ao fato de que nessa fase é que a sexualidade se torna algo mais concreto, mais importante na vida da pessoa. Já na criança, isso pode ocorrer devido ao fato de que nessa fase estão se formando os objetos de desejo sexual, ou melhor, a própria sexualidade. Eis aí apenas uma das explicações possíveis para certos casos de homossexualismo, tanto temporário como permanente.

O bissexualismo seria também decorrente dos mesmos fatores que induziriam ao homossexualismo, mas num tom menos intenso, talvez diluído no processo de formação da sexualidade e sua ambigüidade quanto à preferência.

É importante salientar que, principalmente no aspecto da sexualidade, as idéias aqui relacionadas exibem possibilidades, ou seja, o que pode acontecer em decorrência de cada fator explorado até a máxima intensidade, sem que tais coisas ocorram necessariamente se o indivíduo estiver inserido nas situações descritas.


GRUPOS DE AFIRMAÇÃO

Os indivíduos em geral, principalmente durante a adolescência, dependem da inserção em algum grupo de referência para desenvolverem em si o processo de socialização. Um jovem que não convive com um grupo para se empatizar tende a desenvolver o processo de isolamento abordado anteriormente. Há duas formas:

1. O isolamento pela rejeição, com conseqüente atrofia na elaboração da comunicabilidade do indivíduo com os demais (o resultado pode ser a formação de grupos de pessoas que se unem, inconscientemente, para afirmarem-se entre si face a rejeição - é uma "segregação".

2. O isolamento pelo individualismo, relacionado a um caráter egocêntrico, de auto-referência, egoísta e narcisista, onde o indivíduo não é segregado em meio à inferioridade, mas se isola na confiança em sua superioridade.

Uma das conseqüências do desejo de auto-afirmação dos indivíduos seria evidente no fato de que agora, mais do que nunca, a busca da padronização da aparência e da ideologia é uma constante da adolescência e se estende pela idade madura e a pré-adolescência. O modismo, o consumismo, o status quo, a valorização da forma e da juventude (ainda que artificial) refletem um medo extremo de se diferenciar da maioria. E o fato da adolescência ser o epicentro do processo não é aleatório: é nessa fase que o indivíduo sente a necessidade de fazer parte de um todo, e não ser uma peça única, diferente, original.

Para se opor a isso, há pessoas que tentam se diferenciar quanto a idéia e estilo: já são classificados de "exóticos", assim, num "balaio de gatos"! Caminhamos assim para a formação de uma sociedade povoada por clones e mutantes, onde a individualidade doentia se opõe à sociedade saudável. Os indivíduos estão isolados ou dentro de uma redoma de vidro, de onde se pode assistir o mundo, mas não participar, para se proteger. Muitas vezes são elementos produzidos em série, geralmente por um dos tubos de ensaio do capitalismo: a TV.


INTROSPECÇÃO

Finalmente chegamos num ponto fundamental do indivíduo isolado. A introspecção e a introversão causam um redirecionamento da atenção a ser dispensada inicialmente ao exterior para o interior do indivíduo. Isso resulta num aprofundamento do indivíduo em seu seio psicológico de uma forma muito mais densa, evidenciando o fato de que muitas pessoas até se tornam notórias quando tiram proveito de sua própria introspecção. Ela pode levar a pessoa a uma sensibilidade excepcional quanto ao "eu" mais interior e que a maioria das pessoas "mais sociáveis" não tem meios de atingir, e se surpreendem.

A manifestação dessas percepções se faz clara sobretudo através da arte (música, pintura, literatura), pois esta requer uma sensibilidade peculiar quanto à psicologia e os fatores que a ela se relacionam face ao indivíduo. Afinal, os artistas são, em sua maioria, pessoas que têm uma extrema sensibilidade quanto ao exterior, ou quanto ao interior. A esses últimos atribuímos um valor bem significativo. E um valor maior ainda aos que dominam ambos os lados. Isso é raro!

A partir de agora abordaremos três ícones da música como arte, como psicologia, como retrato de uma sociedade doentia e confusa quanto a todos os fatores concernentes à individualidade e à relacionabilidade, ao sexo, ao amor, e à existência: Jim Morrison, Ian Curtis e Renato Russo.

JIM MORRISON

James Douglas Morrison foi um dos grandes expoentes da contracultura, um movimento que primou pela contestação do establishment pela arte e pelo estilo. Talvez a principal característica que fez com que a contracultura chocasse tanto o mundo fosse a intensidade com que ela atingia o lado interior, instintivo do ser humano. Jim sabia fazer isso como ninguém. Era bastante performático e expansivo, não escondia as emoções, vivendo-as intensamente numa época em que a exploração das sensações extrapolavam qualquer limite, através da arte, do sexo e das drogas.

Hoje em dia parece que nada se cria em relação ao futuro. Pelo contrário, recicla-se o passado como jamais se fez antes. E a volta do mito Jim Morrison pode ser um começo para que os valores do passado recente sejam lembrados (não necessariamente resgatados) e postos em paralelo com a atual situação psicológica das pessoas, suas ações e suas posturas. Jim Morrison pertence a uma época em que o amor dominava (teoricamente) a idéia de relacionamento.

Como se explica o fato desse mito retornar e chocar uma sociedade que não quer mais viver em grupos (como os hippies) mas sim isolada em si ou em círculos fechados? E ainda, que valoriza o número de conquistas e a superficialidade das relações, e não a qualidade delas? Contraste? Talvez! O diferente, o oposto sempre chama a atenção. Mas será que promovem reais reflexões? Vejamos alguns trechos de canções do grupo The Doors:

"This is the end, beatiful friend
This is the end, my only friend, the end
It hurts to set you free
But you'd never follow me (...)
The end of laughter and soft lies
The end of nights we tried to die
This is the end (...)
The killer awoke before down
And he walked on down the hall
Father? Yes, son?
I want to kill you!
Mother, I want to fuck you..."

The End

 "Este é o fim, bela amiga
 Este é o fim, minha única amiga, o fim
 Dói te libertar
 Mas você jamais me acompanharia (...)
 O fim das risadas e mentiras suaves
 O fim das noites em que tentamos morrer
 Este é o fim (...)
 O matador acordou antes da aurora
 E seguiu pelo corredor
 Pai? Sim, filho?
 Eu quero te matar!
 Mãe, eu quero te foder..."

O Fim

"Cancel my subscription to the ressurection
Send my credentials to the house of detention
I got some friends inside (...)
A feast of friends, alive she cried"

When the Music's Over

"Cancelem minha vaga reservada à ressurreição
Mandem minhas credenciais à casa de detenção
Eu tenho uns amigos lá dentro (...)
Um bacanal entre amigos, viva ela gritava"

Quando a Música Terminar

"Come on baby, light my fire
Try to set the night on fire"

Light My Fire

"Venha, meu bem, acenda meu fogo
Tente incendiar a noite"

Acenda Meu Fogo

"People are strange when you are a stranger
Faces look ugly when you are alone
Women seem wicked when you are unwanted
Steets are uneven when you're down"

People Are Strange

"Pessoas são estranhas quando você é um estranho
Rostos são hediondos quando você está só
Mulheres parecem malvadas quando você não é desejado
Ruas são acidentadas quando você está por baixo"

Pessoas São Estranhas

Jim Morrison morreu em Paris em 1971, vítima de overdose aos 27 anos.

IAN CURTIS

Ian Kevin Curtis foi o líder, letrista e vocalista do grupo Joy Division, um verdadeiro marco na transição dos anos 70 para os 80. Suas letras primam pela sensibilidade, poesia e dramaticidade. Curtis foi o tipo de pessoa com os olhos voltados principalmente para dentro de si, vislumbrando uma agonia que não era realmente só sua, mas que só ele sabia perceber.

Já não estamos mais na contracultura e na revolução sexual; estamos no pós-início do período de esvaziamento do ser humano desiludido, insociável, claustrofóbico, descrente dos sentimentos e autodestrutivo. Eis algumas passagens pela obra de Curtis:

"When routine bites hard and ambitions are low
And resentments rides high
But emotions won't grow (...)
Love, love will tear us apart again"

Love Will Tear Us Apart

"Quando a rotina bate forte e as ambições andam baixas
E o resentimento escala as alturas
Mas emoções não querem crescer (...)
O amor vai nos separar rasgando de novo"

O Amor Vai Nos Separar Rasgando

"Procession moves on, the shouting is over
Praise to the glory of loved ones now gone (...)
Stood by the gate at the foot of the garden
Watching them pass like clouds in the sky"

The Eternal

"Procissão passa, a gritaria se perde
Glória nas alturas aos entes queridos agora mortos (...)
Ao pé do portão no fundo do jardim
Os via passar como nuvens pelo céu"

O Eterno

"Existence, well, what does it matter?
I exist on the best terms I can
The past is now part of my future
The present is well out of hand
Heart and soul, one will burn..."

Heart and Soul

"Existência, bem, o que importa ela?
Eu existo da melhor maneira que posso
O passado faz agora parte de meu futuro
O presente está totalmente fora de controle
Coração e alma, um deles há de arder..."

Coração e Alma

Ian Curtis enforcou-se a 18 de maio de 1980, na Inglaterra.

RENATO RUSSO

Renato Manfredini Jr. começou há cerca de quinze anos em bandinhas de colégio em Brasília. Hoje, é o líder de um dos melhores grupos de rock já surgidos no país: o Legião Urbana. Russo é o principal "discípulo" de Ian Curtis no Brasil (incorporando o estilo vocal e a dança). Da mesma forma que seu ídolo, Russo soube muito bem se observar, assim como o mundo exterior, e de uma forma muito inteligente. É perceptível nas letras de Russo toda a problemática existencial da juventude em um Terceiro Mundo tão complexo, intelectual e socialmente.

Talvez seja aqui que a pós-modernidade seja encarada numa realidade bem próxima de nosso país e nossas particularidades. E do ponto de vista artístico, a fórmula faz sucesso - porque é sincera! E não é de hoje, muito menos terminará amanhã cedo. Vejamos por onde passa o universo do pensamento de Russo:

"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar, na verdade não há
Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo, são crianças como você
O que você vai ser quando você crescer"

Pais e Filhos

Aqui percebemos que nossa realidade está ainda bem distante do "fundo do poço" em termos de sociedade, comunicabilidade, etc. Porque aqui, tanto o conceito de amor como o de família ainda mantém uma empatia com as pessoas que ouvem e cantam essas canções - e não são poucos. Mas será que é tão simples?

"Os sonhos vêm e os sonhos vão
E o resto é imperfeito (...)
Há tempos são os jovens que adoecem
E há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem"

Há Tempos

"Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?"

Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto

"Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante (...)
Teu corpo é o meu espelho e em ti navego
E eu sei que a tua correnteza não tem direção"

Daniel na Cova dos Leões

"E eu gosto de meninos e meninas"

Meninos e Meninas

"Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só deus ao mesmo tempo é três
E que esse mesmo deus foi morto por vocês
E só maldade então deixar um deus tão triste"

Índios

Fica bastante clara a observação de Russo quanto à religião, à desilusão, ao sonho, à família e sobretudo à sexualidade (em "Meninos e Meninas" e "Daniel...", sobre homossexualismo). Renato Russo assumiu sua homossexualidade há um ano e continua a ser uma das melhores cabeças da música brasileira e da intelectualidade jovem do país.


RELACIONAMENTO A DOIS NO MUNDO PÓS-MODERNO

Num mundo onde você se encontra numa agenda, onde se marca um encontro não respeitando o tempo próprio do desejo, mas marcando o horário no relógio de alguém, onde as pessoas não pedem mais endereço mas simplesmente o telefone, onde as grandes confidências não são feitas mais pessoalmente, onde as grandes declarações de amor são feitas de forma indireta, a "forma" parece ser o último estágio da incomunicabilidade, em que a idéia de dizer alguma coisa para o outro tenha desaparecido.

Em toda a reflexão sociológica, antropológica, filosófica de hoje para quem se debruça a pensar no campo das ciências humanas... essas questões contemporâneas, não encontrará um pensador sequer que tenha algum tipo de otimismo em relação ao tempo presente e sobretudo ao tempo futuro. Todas as pessoas que param para pensar na realidade dos relacionamentos contemporâneos tem uma grande marca de melancolia, pessimismo, de um mundo onde não há mais referências, sem história, sem significado, desreferencializado. No campo da filosofia, da teoria política, da sociologia, não há sequer um pensador, dos anos 70 para cá, que consiga vislumbrar um futuro com algum tipo de saída ou perspectiva positiva. Na própria produção artística contemporânea, o cinema, a música, a poesia, a literatura, o teatro, as artes plásticas, encontramos hoje muito mais perguntas do que respostas.

Fazendo um passeio pela discografia de grupos de rock brasileiros como Titãs, Legião Urbana, ou até Cazuza e Lobão, notamos um conteúdo, um olhar para as pessoas desolador, marcado pela falta de ideologia, referências. Caminhamos portanto para uma impossibilidade de comunicação ou diálogo com alguém. O retrato de um mundo desolado, absolutamente igual. A grande questão que se faz é a seguinte: será esse o nosso destino? Inexoravelmente estaríamos colocados nesta perspectiva: a tentativa de se libertar e no final de construir como casal mais certinho e conservador possível? Não haveria possibilidade de refazermos nossa própria trajetória de vida?

De acordo com as tendências dos relacionamentos atuais a impressão que fica é a de que nessa passagem dos anos 90 para o ano 2000 haverá um aceleramento desses comportamentos às últimas conseqüências, a tal ponto que as pessoas fiquem absolutamente irrelacionáveis, num estado mais absoluto de solidão que não é mais existencial, mas feita da impossibilidade de você poder se comunicar ou trocar qualquer idéia com qualquer pessoa.

Esse ciclo não se esgotaria, num ponto em que as pessoas buscariam nos relacionamentos outros valores como permanência, profundidade, além dos efeitos de superfície? Talvez, mas por outro lado a grande característica que o mundo pós-moderno coloca é que as coisas não explodem, mas implodem. Explosão é um dado do mundo moderno. Dessa forma, um comportamento inercial parece tomar conta da vida das pessoas e dos relacionamentos. É muito grande a sensação de impotência perante o mundo.

Dos anos 60 para os anos 70 houve troca muito cruel do ponto de vista  da mudança dos costumes e valores, que nos custou existencialmente, desaguando nessa absoluta sensação de vazio que as pessoas sentem hoje. Mas afinal que troca foi essa? A mudança do desejável pelo possível, as pessoas se relacionam não mais no nível do desejável, mas ao nível do possível, ou seja, já que é um caos, como viver melhor dentro do caos, e não como superá-lo. Essa troca sutil revela um processo absolutamente radical no seu subterrâneo, relacionado diretamente com essa crise da subjetividade que vemos hoje em dia.

Tal comportamento inercial dos indivíduos mostra que o relacionamento a dois pode ser caracterizado da seguinte forma: "É uma porcaria, eu brigo, mas pelo menos tenho alguém para ficar comigo." Esse tom parece que acaba dando hoje o ritmo dos relacionamentos e da relação das pessoas entre si. É a idéia perigosa do "pelo menos" que não consegue criar condições para sua própria superação.

O problema do narcisismo-inercial: nunca o gerúndio foi tão usado. Ao perguntarmos "como você está?", as afirmações são redundantes: "Indo", "Trabalhando", "Estudando". Respostas inerciais que não querem dizer absolutamente nada. A pessoa fala e faz pelo simples fato de estar falando e de estar fazendo. Como na auto-referência, onde não se remete a uma coisa fora de si, mas a si mesmo o tempo todo. Esse comportamento, devido a sua própria natureza, não cria condições para sua própria superação. O indivíduo no máximo reclama, acha ruim, porém fundamentalmente não consegue encontrar sentido e formas de reinventar a sua própria vida. Esse horizonte parece já ter sido perdido. A possibilidade de você transformar o mundo numa aventura da qual você faz parte e sobretudo poder transformá-lo. A troca da utopia pelo real é que desembocou numa situação meio letárgica onde no máximo as pessoas (nem todas, felizmente) conseguem ser "buracos-negros", a idéia da física, onde nada consegue reverberar, onde você não irradia mas absorve e neutraliza qualquer tipo de conteúdo. Nesse sentido passamos para os anos 2000, sem dúvida, acelerando esse tipo de comportamento às últimas conseqüências, sem retorno, sem história, sem volta, a caminho de uma irrelacionalidade, de uma situação de absoluta solidão, de incomunicabilidade plena. Fingir, atuar. Falar por falar, ouvir por ouvir. Num mundo onde ninguém é o que diz ser é impossível encontrar quem se procura.

Um caso bastante exemplar a esse respeito, que sublinhamos nesse trabalho, é o filme "9 e 1/2 Semanas de Amor". Por que o relacionamento dos dois termina? Ele não termina, porque não começa. Esse mundo onde os relacionamentos não se aprofundam, onde você "passa" pela vida das pessoas, onde não há contato substancial, imperando uma espécie de superfície lisa, uma brancura operacional, sem ranhuras nas pessoas, prova que a médio prazo não existe forma de reverter esse tipo de tendência. Continuando, o que nos espera é um futuro não negro (pois já é o presente), mas absolutamente sem cor, o que seria ainda pior do que o negro.
 

Texto foi escrito a partir de entrevista realizada com  o professor Jair Marcatti em 1991.

BIBLIOGRAFIA

"Sociologia"
Paul B. Horton e Chester L. Hunt
Editora McGraw-Hill, 1981

"A Técnica da Comunicação Humana"
J. R. Whitaker Penteado
Editora Pioneira, 1987

"Cenários em Ruínas"
Nelson Brissac Peixoto
Editora Rocco, 1990

"Conferências de Freud"
4ª e 5ª lições

Revista VEJA (31/10/90)

Revista BIZZ

DISCOGRAFIA

"The Best of The Doors" - The Doors
"Closer" - Joy Division (1980)
"Substance" - Joy Division (1988)
"Dois" - Legião Urbana (1986)
"As Quatro Estações" - Legião Urbana (1989)

FILMOGRAFIA

"Here Are The Young Men"
Joy Division

"Dance On Fire"
The Doors

"Live At Hollywood Bowl"
The Doors

"The Doors - O Filme"
Direção de Oliver Stone, 1991
 

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