Cultura

O MITO DO ETERNO RETORNO
Arte, Moda, Estilo, Retomada, Criação
abril/92
Professor Eduardo Oyakawa


INTRODUÇÃO

Este trabalho visa abordar conceitos básicos do "Mito do Eterno Retorno", título da obra de Mircea Eliade que serviu de base para toda a abordagem. Esta é composta de quatro capítulos independentes entre si, cuja ordem não é importante, mas sim o conteúdo. Os aspectos analisados se referem à moda, à arte e ao estilo adotado pelas pessoas e delineados pelos conceitos da obra, relacionando-os com minhas observações: ciclicismo, arquétipos, heroísmo, idolatria, história e afins.


A ARTE CÍCLICA

A arte é, acima de tudo, uma manifestação das percepções do ser humano, um reflexo daquilo que seus sentidos recebem, organizam, transcodificam e analisam conforme seus instintos e sua razão. Assim, pressupondo que cada ser humano é dotado de instintos e razão que delineiam uma personalidade particular, tão particular quanto uma impressão digital ou uma seqüência de DNA, a manifestação de suas percepções, ou seja, sua arte deveria ser sempre particular, pessoal, com uma base comum dentro de sua sociedade mas com um "toque" original. Mais que isso. Considerando que através dos milênios a razão do homem evoluiu, aumentando o ângulo de suas impressões, o grau de diferenciação e a evolução dessas manifestações deveriam acompanhar esse processo numa proporção coerente. Mas o que percebemos e encaramos com uma certa impotência é o fato de que a criatividade do homem está se esvaziando, sua arte, sua moda e seu estilo estão se tornando repetitivos, onde as fases históricas tidas como criativas apenas são retomadas, intercalando-se umas nas outras e às vezes se misturando, um pouco que seja.

Nunca se disse tanto a velha máxima: "Não há nada mais a ser inventado". Ou ainda: "Isto é estilo anos 50, ou 60, ou 70, ou 40..." Ao que tudo indica, a arte não consegue mais ir além da constante repetição de seus anteriores tempos de glória comprovada. O desencanto provável do homem moderno com a história e o (suposto) liberalismo fazem com que ele tenha medo do futuro e descrença na novidade, acomodando-se no eterno resgate do passado puramente revisado e adaptado. Essa visão, bastante remexida com a vinda dos anos 80 fez com que essa década possuísse nos anos 90 a conotação de "era de trevas e desesperança", principalmente no palno cultural em geral, onde a releitura do passado, recente ou remoto, nunca foi tão acelerada e desordenada, bombardeando a população mundial através de meios de comunicação e daí pelas próprias pessoas, através do way of life de cada um.

O que parece ser mais assustador é que a repetição cíclica da arte está chegando a um ponto culminante agora: há quinze anos atrás surgia na Inglaterra e nos EUA a semente do movimento punk, inserido num contexto ideológico e artístico bastante peculiar, no qual a interação entre os dois aspectos foi crucial para seu desenvolvimento, ainda que de vida efêmera. Ocorre que certos valores do punk e do pós-punk estão de certa forma sendo retomados, sobretudo na música e na arte (o punk agressivo de bandas como o Nirvana e as esculturas de sucata e lixo de Bill Woodrow). O resultado disso tudo é que esta arte está inserida num contexto diferente de seus "arquétipos" há 15 anos atrás. Se estes tiveram vida curta (menos de quatro anos de auge) imagine suas reedições. Algumas ocorreram no Brasil em momentos totalmente diversos dos momentos americanos e ingleses para o punk (75 a 79). Foram em 82, 85 e 88, anos em que o país passava pelas mesmas épocas de tensão social que aqueles países sofreram - assim, havia um contexto histórico propício ao estilo.

O que ocorre agora é a existencia de um espetáculo sem um palco destinado a ele, e com uma platéia apática e entretida pela velocidade das "mudanças", ainda que sem novidades. A novidade é o "velho", revisitado, um velho cada vez mais recente e rapidamente descartável.

Há assim o receio de que o homem, cansado de retomar os anos 50, e os 60, 70... comece a retomar os 80, ou dos 40 para trás, ou seja, épocas já marcadas pelo desencanto mais explicitamente ou então já muito distantes de nossa realidade e nossa atualidade. O mal-estar resultante destas retomadas seria de fato amargo, causando estagnação ou involução, dependendo do tempo revisitado. A esperança que poderia surgir seria a de que o mal-estar viesse acompanhado de uma insatisfação que apresentasse ao homem uma única alternativa: deixar a repetição da história para trás e daí buscar, de qualquer maneira, uma visão de futuro promissor quanto à criatividade, por que esta atitude seria a única e melhor maneira de fazer da existência humana uma passagem mais indolor. Pode parecer utópico. Mas, quem sabe, se esse "toque"  ocorresse num momento, num contexto histórico propício, as chances de sucesso poderiam ser bem melhores que agora. Esse estalo que pairaria sobre a humanidade pode ser impraticável hoje, mas a História mostrou que o tempo é implacável e causa reviravoltas tremendas. Até o ser humano mais sagrado sabe que "dando-se tempo ao tempo" muitas revoluções acontecem.

O ser humano tem sua certa ingenuidade, mas a História vai, quem sabe, lhe mostrar sua experiência prévia e a importância de enfrentar o futuro de peito aberto. Lembremos de algo: o homem da atualidade tem ao seu lado a experiência e a mídia, que de uma forma ou de outra atinge a todos. Mesmo corrompidas, as ideologias atingem as populações, e mais cedo ou mais tarde a mídia e a experiência podem até criar uma nova consciência no homem moderno*, uma consciência que o faça encarar e aceitar melhor a sua finitude e sua condição de homem como parte da História, e esta como parte do homem, indissolúveis.

"O passado é uma lição para se meditar, não para se reproduzir!"
       Este foi um dos lemas da Semana de Arte Moderna de 1922.


O MONOPÓLIO DA ARTE

Um dos fatores que mantém a Arte, a Moda e o Estilo estagnados ou "rodando em falso" é fato de a indústria artística atual possuir interesse em fabricar e sacrificar formas e símbolos sucessiva e exaustivamente, fazendo-os agir puramente de acordo com seus objetivos mercadológicos. De quebra, toda uma pseudo-consciência se forma e domina, ou é dominada, por esse sistema, e suas idéias interferem de modo crucial na mídia, na intelectualidade, no cotidiano e na vida em geral de uma população gigantesca.


MITO, HISTÓRIA E DISTORÇÃO

A razão de uma forma de arte (ou moda ou estilo) ser perpetuada, idolatrada e retomada nos induz à mesma razão dos feitos dos deuses, heróis e ancestrais serem perpetuados e revividos constantemente. A arte é repleta de elementos que arrebatam a atenção de um público que com ela se identifica, e isso faz com que um artista ou uma obra fiquem como um marco histórico, classificado como um mito. A própria sucessão do tempo lapida essa arte ou a vida do artista de forma que sua história seja deturpada em favor do valor e da necessidade que seu público tem de idolatrar o mito (idealizado) e não a história (real). O público repete, revive e idolatra o que o artista ou a arte representam, não exatamente aquilo de foram concretamente.

A deturpação da arte pelo tempo é perceptível no filme "The Doors", de Oliver Stone (1991). Apesar do diretor ter afirmado que a fita consiste apenas numa visão pessoal sua sobre o mito da banda The Doors e em especial sobre a figura do vocalista Jim Morrison, o público tomou a história como realidade quase absouta, realidade esta baseada em depoimentos e informações fragmentadas de diversos contemporâneos de Jim, o que já nos remete à idéia de "quem conta um conto aumenta um ponto". Neste caso a história, que na geração da época já estava mitificada, agora surge ainda mais distorcida. Mesmo assim, a retomada do mito The Doors, agora amplificado e em pleno 1991, se concretizou demonstrando que os constantes retornos ao passado da arte e dos modismos poderá até mesmo destruir sua real história, dando a eles significados e atribuições incoerentes e absurdas.


O CICLO DO NOVO

O "novo" nunca esteve tão classificado como raridade como agora, e o "novo" que causa surpresa atualmente nunca foi tão "batido", pois de novo não há nada. Quem sabe as misturas sejam diferentes, mas tudo é como uma receita de bolo onde não há nenhum novo ingrediente, mas muda-se levemente a quantidade de um ingrediente ou de outro, apenas o suficiente para que ele seja aceitável aos paladares a ele destinados. A moda e a arte estão nesse pé. A mídia atual se resume a apresentar uma gama interminável de regresso às diferentes fases da arte (mais perceptível na música) surgidas desde o início do século XX (ou até antes).

Já que foi citado, vejamos a trajetória da música. O blues e o jazz surgiram nos EUA (na forma mais contemporânea) nas décadas de 30 e 40. O blues evoluiu até os anos 50, dando origem ao rock'n'roll, sendo os dois muito semelhantes (durante a transição, quase iguais). Dele surge, após transição, o psicodélico (o melhor exemplo disso são os Beatles). Do psicodélico, após outra transição, veio o rock progressivo. Com o desgaste do progressivo surgem a discotheque e a new-wave (elitizados) e o punk e o pós-punk (marginalmente). Após isso, inicia-se uma sucessão de estilos, misturas e reinvenções que se acelerou e continua até hoje.

Agora vamos tirar a prova? O blues dos anos 30 e 40 é o resultado de uma evolução e lapidação da cultura e da musicalidade do povo negro americano e seus cânticos religiosos e folclóricos (seu sagrado). Anos depois, a juventude burguesa dos anos 50, cheia de energia e entusiasmada com os anos dourados do pós-guerra viu no rock'n'roll (1955) a síntese de seu espírito.

Essa geração (1963) atingiu a maioridade e com um pouco mais de romantismo sentiu nos Beatles seu reflexo, sua imagem. Nesse período, a contracultura se instalou (1967) trazendo a permissividade quanto ao sexo e às drogas (LSD, hippies, pílula) e à contestação (beatiniks, Jack Kerouac, Easy Rider, Route 66, Folk, Bob Dylan, Rolling Stones). Estava em voga o psicodelismo, com os Beatles como MCs e o Pink Floyd como rebentos. O Floyd veio na virada dos 60/70 até 1983 como guru magno do progressivo, este já uma incorporação do requinte e rebusco da música clássica à lisergia climática do psicodelismo. O auge do progressivo se deu durante meados da década de 70 quando o Pink Floyd lançou "The Dark Side of the Moon" e "The Wall" (posteriormente filme de Alan Parker).

A sonolência e a embromação do progressivo foram ofuscadas pelo alto-astral da discotheque (com o funk negro ganhando espaço junto com a própria consciência negra e até o plágio dos brancos, como o Blondie) e depois a new-wave, retomando o colorido do psicodélico com ritmo e tecnologia (o Devo é um bom exemplo). Estamos em 1978. O punk, que era uma resposta à "burguesia-disco", está em decadência e o pós-punk já começa a caminhar por sobre os escombros.

Em 1982, mais ou menos, a facção marginal se une à elite e inicia-se uma geléia-geral caótica (retorno à desordem primordial) que marcará os anos 80 como um liquidificador de idéias, imagens, estilos, modismos, linguagens, algo já presente como situação na própria televisão (vide os vídeos do Clash e outros takes de Don Letts, principalmente seu trabalho com o Big Audio Dynamite em 86/87).

Já é perceptível que nos anos 80 não haja mais uma linha evolutiva sendo traçada nem etapas ou transições. Há um retorno contínuo aos elementos passados, mas os ambientes atuais não justificam satisfatoriamente suas presenças; eles decaem como forma e seu conteúdo perde seu eco. Ele volta quando quiserem que ele seja estimulado, e assim sucessivamente, com cada moda e cada estilo. O prefixo neo- é largamente utilizado (neo-rockabilly: Stray Cats e Guanabatz; neo-psicodélico: Deee-Lite, Happy Mondays, Soup Dragons, e por aí afora).

É claro que a renovação é necessária. Emerson, Lake & Palmer alimentavam um rock progressivo agonizante em pleno 1986 com recriações a partir de Mussorgsky. O The Cars tentou se manter na esteira da new-wave até cinco anos após sua decadência. A arte necessita de sangue novo; por melhor que seja uma forma de arte, ela não é totalmente insubistituível. Oa artistas, talvez alguns deles. Mas isso também se torna cada vez mais raro.
 

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