* FREUD TAMBÉM EXPLICA "BLADE RUNNER"

*Adélia Bezerra de Meneses

(Fonte: Jornal "Folha de São Paulo", 19 de maio de 1990)

 

 

"Fale-me das boas cosias sobre sua mãe" - é assim que o investigador de "Blade Runner" formula o que acabou sendo a última questão de um interrogatório que tinha como objetivo testar se o seu interlocutor era um humano ou um andróide" ("replicante', como se diz no filme").

"Minha mãe.... devo falar sobre minha mãe..." - não apenas a pupila de Leon não se dilata nem se contrai sob emoção, mas o andróide nesse momento reage a uma lembrança que ele não possuía e a uma história que ele não poderia apresentar com um tiro: assassina o investigador.

Essa é a cena inicial do filme de Ridley Scott (1982), levado às telas aqui como "O Caçador de Andróides'" estrelado por Harrison Ford (o policial Deckard), mas que literalmente deveria ser traduzido como "O que corre ao fio de uma navalha".

Projetados para imitar os humanos, com exceção das emoções (e com um prazo de vida de 4 anos), os replicantes da fase Nexus, após algum tempo, passaram a poder desenvolver emoções próprias: ódio, amor, medo e inveja. Superando em força e agilidade, mas iguais em inteligências, aos engenheiros que os criaram, eles eram enviados pelos humanos para as colônias espaciais, para trabalharem como escravos, e de lá não poderiam nunca sair.

No entanto, um grupo deles, da fase Nexus, se rebela, extermina a população de uma nave e volta à terra, a essas alturas quase desabitada, um lugar fétido e poluído, com uma constante chuva e uma mixórdia de raças e culturas, habitado somente, como se diz no filme, por dois tipos de gente: tiras ou gentalha.

E qual o objetivo dessa volta? Vai-se descobrindo aos poucos, ao longo do filme: é procurar respostas para as mesmas questões que nos atormentam: de onde vieram, quando foram "ativados" (e, portanto, até quando durariam) e, pateticamente, rebelarem-se contra a arbitrariedade de uma vida tão curta. Mas esse pequeno grupo de replicantes retornados, infiltrados entre os humanos, deveria ser exterminado, após identificação. E para isso existiam os testes: perguntas que implicariam em respostas emocionais.

A grande questão do filme é a da criação de uma "história de vida" para cada um dos replicantes, de atribuir-lhes um passado, aquilo que Freud chamaria de "o romance familiar" de cada um.

"Memórias. Você fala de memórias. Replicantes não tem família", diz Deckard.

Por que, então, alguns deles guardavam "fotos" com uma suposta família, com mãe, pai, irmãos e infância? (Fotos: não foi Freud que se preocupava com um aparelho mental que exercesse a função de um "espelho telescópio" ao mesmo tempo que a de uma "chapa fotográfica"? Pois bem, trata-se aqui de uma espécie de memória externalizada, de cenas infantis "materializadas" em fotografias).

"Se lhes for dado um passado, será criada uma base para a emoção", é a resposta do policial Bryant, que convoca Deckard para a caçada aos andróides. "Replicantes não deveriam ter emoções. E 'Blade Runners' também não", objeta esse último.

Mas acontece que Deckard começa a se envolver com Raquel, uma das replicantes que deveria ser eliminada. E apesar de Raquel ser uma "replicante" de tipo especial (não tinha prazo fixo de vida, ignorava, ou melhor, "desconfiava" de sua condição de andróide, tinha recebido implantes cerebrais, o que lhe possibilitaria "saber" algumas coisas das quais não tivera experiência, como por exemplo tocar piano), ela andava angustiadamente à busca de sua própria identidade.

Ora, um dos suportes essenciais da identidade é a memória, como diz um historiador, Ulpiano Bezerra de Meneses:

"O conceito de identidade implica semelhança a si próprio, formulada como condição de vida psíquica e social. Nessa linha, está muito mais próximo dos processos de reconhecimento do que de conhecimento. (...) A Antropologia e a Sociologia, por sua vez, nos informam que a identidade, quer pessoal, quer social, é sempre socialmente atribuída, socialmente mantida e também só se transforma socialmente. (...) Isto é, não se pode ser humano por si, por representação própria: os valores, significações, papéis que me atribuo necessitam de legitimidade social, de confirmação por parte de meus semelhantes. Pode-se dizer, assim, que é em virtude de definições que existem indivíduo e sociedade. Dentro dessa ótica, é fácil entender que o processo de identificação é um processo de construção de imagem, por isso terreno propício a manipulações" (1).

É por isso que Raquel necessita tão desesperadamente perguntar a Deckard se ele acreditava que ela era uma replicante. E mostrava fotos, apresentava retalhos de uma história pessoal, de seu "romance familiar".

"Se lhes for dado um passado, será criada uma base para a emoção", repete-se ao longo do filme. Consequentemente, numa cena em que estão os dois a sós, no apartamento dele, e em que já se capta uma aura de erotismo infiltrada entre ambos, diz Deckard a Raquel:

"Lembra-se de quando tinha 6 anos de idade, e você e seu irmãozinho foram ao porão de um edifício desabitado, brincar de médico? Ele mostrou o dele a você, e quando chegou a sua vez, você se acovardou e fugiu? Lembra-se?"

É uma pungente tentativa de oferecer a ela um passado, uma fantasia infantil, que logo na cena seguinte seria "ressignificada", quando ele a acaricia e a atrai para si, e ela meio que se esquiva. E avançando nesse processo "humanizador" e de criação de uma memória emocional, a ser imediatamente reativada, Deckard a beija. E ela não reage. (Em termos do jargão "psi", trata-se da criação de um "traço mnêmico", imediatamente traduzido em imagens verbais, e, na seqüência, reatualizado - ressignificado - pela cena que se segue entre o casal).

Pois Deckard não somente a beija e a abraça, mas lhe diz "te quero" e a faz repetir "beije-me", "te gosto". Ao que ela responde "I can not rely on that" (2). Uma consulta ao "Webster's Dictionary of Synonyms" pode ser útil: "Rely usually connotes a judgement based on previous experience and, in the case of persons, actual association".

Raquel confessa, assim, que "não tinha prévia experiência", daquilo que estava vivenciando; mas, tendo-lhe sido brindada a cena sexualizada entre os dois irmãozinhos, ela, logo em seguida, vivendo a experiência do beijo e a emoção subsequente, a nível de percepção sensitiva, recebe a tradução daquela emoção em palavras, a ressignifica e a vivencia. Tudo ao mesmo tempo: a vida dos replicantes era muito curta.

A emoção provocada pelo ato pode, assim, ser ligada a uma reminiscência, artificialmente forjada: memória manipulada.

Não será inevitável, aqui, que a gente se reporte ao "Recordar, Repetir e Elaborar", de Freud?:

"Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram na infância muito remota e não foram compreendidas naquela ocasião, mas que subseqüentemente foram compreendidas e interpretadas (3).

Deckard fornece a Raquel uma lembrança de uma "experiência que ocorrera em infância muito remota, e que não fora compreendida", mas que se constituíra num "traço mnêmico" que será ressignificado quando ele, ao mesmo tempo que "verbaliza" essa significação (me abrace, me beije, te quero), provoca nela sensações sexualizadas. Há aqui, importantíssima, uma ligação do "rememorar" com o "colocar em palavras":

"Uma apresentação que não seja posta em palavras, ou um ato psíquico que não seja hipercatexizado permanece a partir de então no Inconsciente, em estado de repressão" (4).

Esse "traço mnêmico" ("recordado") de uma cena sexualizada infantil - e edipiana - em que, por sinal, a personagem foge, é "repetido" no momento em que Raquel se esquiva a Deckard; em seguida, é "elaborado" na cena em que ela toma a iniciativa de beijá-lo e em que, na seqüência, é sugerida a realização de um ato sexual entre os dois. (Apenas sugerido, pois após o beijo a cena sofre um significativo corte).

Nesse meio tempo, entre o fugir da menina e o esquivar-se da mulher adulta, processou-se a ressignificação do traço mnêmico (a lembrança infantil) que possibilitaria à replicante a viabilização da emoção, pois se estabeleceu uma conexão entre a cena, a idéia e seu significado emocional.

Só que, repito, a criação do traço mnêmico quase que coincide com sua ressignificação. Passado e presente se superpõem: na vida de um replicante, por falta de tempo (foram "ativados" já adultos), o passado tem que ser criado junto com a experiência do presente.

Deckard humaniza sua amada, cada vez mais, dando-lhe um passado. Só que o "vazio de memória que permeia os primeiros anos da infância", para falarmos com Freud, aqui se deve não à ação da repressão, mas à inexistência da experiência, a inexistência de passado.

Deckard, além do seu papel de "humanizador" (aquele que "cria" essa instância fundamental do humano, que é a memória), também representa aqui o papel de psicanalista: não é tarefa do psicanalista "tornar consciente tudo que é patogenicamente inconsciente"?

O problema é que, com os replicantes, não haveria nada de patogênico, "pois não havia repressão", não havia o Édipo.

"Replicantes não têm família". Mas a engenhosidade de Deckard foi exatamente esta: fornecer a Raquel uma fantasia que já contivesse o elemento "repressão", a saber: o sentimento de vergonha que a faz "acovardar-se e fugir", numa cena alusivamente edipiana (o complexo incestuoso irmão/irmã sendo um derivativo do complexo fundamental de Édipo). Com efeito, o pudor é, classicamente, uma formação reativa sustentada pelo investimento anteriormente colocado num sentimento sexual. Em todo o caso, é isso um tratamento psicanalítico: não tanto a busca da lembrança, mas o recordar - no seu sentido forte, aqui também, etimológico: colocar (de novo) no coração.

Evidentemente, o filme não se esgota nesses traços levantados, sobre a criação de um passado, de uma história e de uma memória, lido à luz de Freud. Aí estão questões - não psicológicas, mas antes filosóficas - que cada um de nós se coloca: a arbitrariedade da duração da vida, a experiência de conviver com a finitude e com o medo, a busca da identidade, a crítica ao racionalismo ("Penso, logo existo", diz ironicamente uma das replicantes, algumas cenas antes de ser eliminada, ou melhor, no linguajar do filme, "removida"), a dor de morrer e a dor do esquecimento: "Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo como lágrimas na chuva" - são as palavras agonizantes do líder dos andróides, quando para ele chega a "hora de morrer".

"Os andróides não viverão. Mas quem vive?", pergunta um dos policiais do filme. Somos todos "Blade Runners": corremos ao fio de uma navalha..

 

* Adélia Bezerra de Meneses é professora de Teoria Literária da Unicamp e da USP

NOTAS

* Esse texto constitui originalmente parte de um trabalho apresentado no "Seminário sobre Histeria" (coordenado por Miriam Chnaiderman), do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em 1989.

 

  1. Ulpiano Bezerra de Meneses, "Identidade Cultural e Patrimônio arqueológico", in "Cultura Brasileira", organização de Alfredo Bosi, editora Ática, 1987, capítulo 12, páginas 182 a 191.
  2. Agradeço a Araceli Martins Elman pela observação sobre a inadequação da tradução legendada desse momento do filme, o que obrigou a atenção ao diálogo original.
  3. Freud, "Obras Completas", Editora Imago, vol. 12, página 195.
  4. Idem, ibidem. Vol. 14, página 230.