Ridley Scott adapta obra de ficção e filma o grande noir dos anos 80

Marcos Strecker

(Fonte: Jornal "Folha de São Paulo", 19 de maio de 1990)

 

"Blade Runner, O Caçador de Andróides" foi tratado após eu lançamento como um grande cult - foi mesmo um dos criadores desta expressão - e chocou pela maneira como recriava a imagem do futuro, até então unânime entre as ficções científicas.

Qualquer filme que previsse o futuro mostrava um mundo limpo, livre de todas as imperfeições humanas. Também invariavelmente mostrava os homens prisioneiros de sua própria eficiência tecnológica, já que os computadores de última geração seriam capazes de se sobrepor ao desejo e à determinação do homem.

"2001, Uma Odisséia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick, um dos maiores representantes dessa linha, foi realizado quando a tendência era a construção de computadores cada vez maiores.

"Blade Runner", adaptação não muito fiel do livro "Do The Androids Dream of Eletric Schep?", de Philip K. Dick, mostra a realidade dos anos 80, quando a chamada "revolução dos pequenos", a criação do microcomputador, pulverizou a estrutura armada pelos grandes fabricantes.

Não é à toa que os criadores de tecnologia no filme de Ridley Scott são pessoas que usam pequenos laboratórios caseiros, apesar da existência onipresente do grande fabricante, uma multinacional.

"Blade Runner" prevê um futuro com grandes cidades sujas e superpovoadas, onde o homem conviveria com uma mistura caótica de línguas e raças. Enquanto filme, tem estrutura simples. É uma recriação dos filmes noirs dos anos 40 e 50, em que uma história de amor é desenvolvida num meio adverso e selvagem e onde a fotografia tem um grande papel na caracterização do clima, invariavelmente tenso e desesperançado.

Uma grande corrente de críticos considera, no entanto, "Os Duelistas" (1977) o melhor filme de Ridley Scott. Ambientado na época napoleônica, seu enredo gira em torno de dois oficiais do exército francês que se enfrentam por anos em sucessivos duelos.

Quem assistiu se lembrará de uma de suas seqüências, em que os dois vão se enfrentar de espada na mão em cima de seus cavalos.

Como aconteceu em outras ocasiões, tudo é estudado de forma a criar um clima de tensão e raiva entre os dois personagens.

Mostrando ousadia e maestria na direção, a seqüência alterna planos dos personagens sucessivamente parados e em movimento, uma edição que deixaria qualquer montador arrepiado e que, no entanto, só enriqueceu o longa-metragem.

"Os Duelistas" projetou Ridley Scott numa área que não é o seu forte. É uma adaptação de um livro de Joseph Conrad, um clássico que exige uma boa caracterização de época, localização de personagens dentro do contexto histórico (elogiá-lo já seria uma ofensa para os mais ortodoxos, sabendo-se que Ridley Scott é um grande diretor de filmes publicitários, antes de ser um grande cineasta).

É uma característica especial, já que "Blade Runner" e "Alien, o Oitavo Passageiro" (o segundo filme de Ridley Scott, realizado em 1979) são duas ficções científicas, um gênero que é desprezado (por críticos e produtores, de olho em produções baratas).

"Os Duelistas", também evidencia um aspecto que talvez seja uma unanimidade entre os analistas da obra de Scott. Ele é um grande construtor de imagens - "Os Duelistas", em especial, é considerado um filme com uma fotografia muito boa -, e todos os seus trabalhos têm um ótimo tratamento plástico e uma direção de arte muito bem realizada.

Mas nem todas as produções de Ridley Scott - que tem uma filmografia relativamente pequena, de seis longas-metragens - são, grandes obras. "A Lenda" (1985), uma fábula baseada no clássico "A Bela e a Fera", foi considerado uma grande decepção e "Perigo na Noite" (1987), um policial apenas mediano, foi encarado como sinal definitivo de decadência do diretor.

Com o lançamento de "Black Rain", ano passado (1989), Scott se reabilitou e transportou sua visão pessimista - realista, talvez - do futuro para o Japão, onde Michael Douglas ia caçar um grande traficante de drogas.

Muito criticado por ter pretensamente reabilitado a construção plástica de "Blade Runner", "Black Rain" foi violentamente acusado de racista, por dar uma imagem muito negativa do Japão (o calcanhar de Aquiles da economia norte-americana atual) e de sua cultura. É um exagero. Ridley Scott é um grande cineasta e "Blade Runner", por mais que o tempo mostre rugas antes imperceptíveis, já ficou marcado como o grande filme noir do anos 80.