Ritos da Insensatez
Após quatro anos, o diretor americano David Lynch retorna ao longa-metragem com "A Estrada Perdida", em cartaz em São Paulo, filme radical em que ele rompe com a narrativa tradicional e constrói um mundo feito de absurdo, pesadelo e desamparo
JURANDIR FREIRE COSTA
(Jornal "Folha de São Paulo", 27/04/97)
David Lynch voltou a acertar o passo. ''A Estrada Perdida'' retoma o criativo filão de ''O Homem Elefante'', ''Veludo Azul'' e ''Twin Peaks'', deixando de lado o tropeço de ''Coração Selvagem''. A fórmula é simples: o estranho, o extraordinário, está a um palmo do nariz. Basta um pouco de distância, e ele, subitamente, pode aparecer como um desvario apavorante.
Utilizando, uma vez mais, as obsessões circulantes na cultura americana, Lynch volta-se para o fenômeno das personalidades múltiplas. Sua leitura, entretanto, nada tem de psicológica. ''A Estrada Perdida'' é uma metáfora da insensatez que ronda a imprevisibilidade da vida. Estamos todos na estrada. Vamos em frente, perseguindo o que desejamos, evitando o que tememos, conhecendo o que ignoramos e, no final, somos apanhados de surpresa por algo que destroça nossas previsões e supera nosso entendimento. Esta é a verdadeira ''personalidade múltipla'', a que mostra quão insano é o impulso narcísico para controlar racionalmente o que nos leva a desejar, fazer ou falar.
O artifício cinematográfico de Lynch é impecável. Inicialmente, somos expostos à insipidez da civilização ''high tech'' e dos antídotos do mercado capitalista para combatê-la: sexo, droga, violência e romantismo sentimental. De repente, este cinzento torpor é desmontado pela ameaça de morte. A vida, que parecia em coma, acorda, aguçando olhos e ouvidos. Neste ponto, entra em jogo o fascínio de Lynch. Ao contrário do que se espera, os previsíveis esconde-esconde, correrias, tiros no escuro e cadáveres fora do lugar não acontecem. A ação rocambolesca dá lugar a um frio ritual de suspeitas e inquéritos, no qual as personagens buscam defender suas vidas, mais por hábito do que pelo valor daquilo por que lutam.
Por fim, o desfecho e o espanto. Nem ''happy end'' nem ''unhappy end''. Tudo continua como se nada houvesse ocorrido. Os indivíduos e as histórias se repetem com variações insignificantes, até que outro pique de sexo, violência, droga e romantismo reacenda a louca esperança de que a vida burguesa possa mascarar sua aridez com alegrias de carnaval.
Brecht disse, certa vez, que o crime e o adultério eram as aventuras que restavam ao homem burguês. Bela tirada, mas que não resistiu ao tempo. Nem os gênios escapam da incerteza do futuro. Se vivesse hoje, ele com certeza veria que mesmo estas mesquinhas aventuras foram varridas da cultura. Crime e adultério só seduzem quando são exceções à regra; quando as transgressões à lei reconhecem, ''ipso facto'', a lei e são vividas como desafio à culpa ou sentido de responsabilidade dos que consentem em obedecê-la.
No universo moral visto por Lynch não existe nem uma coisa nem outra. O que ele mostra não é apenas o retrato da maldade, como nos magníficos filmes ''noir'' (1), ou os tempos de violência, como em Quentin Tarantino. Sem muito ketchup, culto ao ''trash'' ou cenas de remorso por traição, vai direto ao que importa: será que a violência da morte é maior do que a violência da vida? Será que ambas não são irmãs gêmeas do absurdo que é a própria existência? Será que não vivemos um tremendo faz-de-contas, quando escondemos, compulsiva e sofregamente, o esqueleto dentro do armário?
No cinema atual, poucos descrevem com tanta força o desencantamento do mundo contemporâneo. Lynch conduz sua narrativa de modo a apresentar o mundo como um desesperado vaivém entre o tedioso hábito e o desamparo em face do acaso. Ou vivemos no limite do pânico ou no mais assassino conformismo. Nos dois casos não há saída, pois estamos sempre prestes, pelo medo ou pela indiferença, a compactuar com a banalidade do mal. O mundo, em seu diagnóstico, não é o lugar do maravilhoso recomeço; é o lugar da inutilidade precoce de tudo que podemos querer ou inventar. Donde o aspecto fantasmagórico das pessoas e situações.
A violência que atinge as personagens não é só trivializada pelo hábito; é transfigurada numa potência esmagadora que devasta tudo e todos, sem que ninguém possa dizer ''não!''. Este sentimento de impotência é o espelho do narcisismo de hoje. Porque reduzimos nosso tamanho moral, agigantamos o fetiche do sexo, das paixões, do mercado, da solidão, da violência, das drogas e, por fim, de palavras como ''vida'' e ''morte'', que se tornaram o último argumento cínico contra os que permanecem acreditando no poder da vontade humana para construir um mundo melhor: o que quer que você faça será igualmente inútil!
Nosso cotidiano é o de um campo de concentração ao ar livre, cujas cercas de arame farpado são nossos minguados corpos, apertados em músculos, regimes ou etiquetas impostos pelo marketing e neste museus de cera do futuro que são os shopping centers. Toda intensidade e potência criadora que podemos ter ou são domesticadas por drogas e consumo, como tão bem observou Renato Janine Ribeiro, ou drenadas para sentimentalismos volúveis e orgasmos padronizados via Internet ou via ''pulp fiction'' politicamente correta ou incorreta, com ou sem recheio ''científico''.
Fizemos um enorme esforço para nos rebaixarmos moralmente, mas não encontramos coragem e incentivo para abrir mão desta mesquinha vida, medida pelo que de menor fomos capazes de inventar. Mas, se pensarmos num presente em que nosso próximo seja um parceiro para a vida e não um substituto da ''pílula de orgasmo'' que ainda não foi comercializada ou um legume humanóide onde possamos pendurar qualquer idiotice da moda, então sexo, droga e violência deixarão de ser Darth Vaders do Império para serem problemas que criamos e que podemos resolver sem precisar de nenhum Jedi.
Neste mundo, Lynch certamente terá seu nome inscrito como um grande artista. Mas seus pesadelos terão, talvez, caído em desuso. Poderemos, assim, ver a imagem da estrada perdida como mais um curioso e infeliz produto da história de transmitir às novas gerações a alegria contida no que Hannah Arendt um dia escreveu: ''Mesmo se não há nenhuma verdade, o homem pode ser veraz, mesmo se não há nenhuma certeza confiável, o homem pode se confiável''.
Nota:
1. Ver, a este respeito, o belo ensaio de Sebastião Uchoa Leite sobre o tema em ''O Jogo da Maldade'', in ''Jogos e Enganos'' (Editora 34/Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995).
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; é autor de ''Inocência e Vício - Estudos sobre o Homoerotismo'' e ''A Ética e o Espelho da Cultura''.
E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br
OS FILMES DE LYNCH
. "Eraserhead" (1976) - Uma narrativa fantástica com toques de humor negro sobre um homem que se casa com a namorada após tê-la engravidado e descobre que o bebê é um monstro. O filme não foi lançado em vídeo no Brasil.
. "O Homem Elefante" (1980) - Um homem com deformações físicas é explorado como atração de circo na Inglaterra vitoriana. Foi o filme que tornou o diretor conhecido do grande público. Disponível em vídeo.
. "Duna" (1984) - Adaptação milionária da ficção-científica de Frank Herbert. Três povos disputam o controle da água num planeta desértico. Disponível em vídeo.
. "Veludo Azul (1986) - Um jovem descobre uma orelha num matagal e entra num universo de perversões sexuais e violência. Disponível em vídeo.
. "Twin Peaks" (1989) - Piloto da série de TV concebida por Lynch sobre garota morta numa pacata cidade do interior. Disponível em vídeo.
. "Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer" (1992) - Versão cinematográfica da série de TV. Disponível em vídeo.
. "Coração Selvagem" (1990) - Lynch venceu o Festival de Cannes em 1990 com este "road movie" regado a sexo e violência. Um casal é perseguido nos EUA por criminosos contratados pela mãe da garota. Disponível em vídeo.