O caso "A Rainha Margot": Psicanálise
e História
"É apenas após o reconhecimento do historiador
pelo que a psicanálise tem de potencial para explicar o comportamento grupal e
a interação contínua entre mundo e mente, que ele pode sentir-se pronto para
incorporá-la aos seus métodos de investigação e integrá-la a sua visão do
passado."
(Peter Gay)
Por Arthur Prado Netto
(Fonte: Revista “Olho na História”-
http://www.ufba.br/~revistao/o3margot.html)
A Psicanálise vem, ao longo do século,
demonstrando ser um instrumento indispensável para a investigação do passado
humano. No entanto, ao se pensar sobre o movimento historiográfico dessas
últimas décadas, o que se verifica é uma rejeição, por parte dos historiadores,
por vezes até mesmo beirando a histeria, é uma rejeição do método
psicanalítico, sejam estes porta-vozes do "positivismo", do
"marxismo" ou de outras linhas teóricas do pensamento histórico. Seu
argumento, muitas vezes, era de que não se poderia aplicar um método que é
essencialmente individual (a psicanálise clínica) na análise de fenômenos que
são originariamente coletivos, além do fato, "evidente", de não se
poder analisar "os mortos" porquanto a história se reporta sempre ao
passado, seja ele remoto ou imediato.
No entanto, refletir/pensar apenas sobre a importância da análise individual é deixar de lado grande parte da existência humana. Como integrar esse ponto de vista, por exemplo, quando se observa/pensa que, na formação da civilização, criou-se o recalque que, secularmente, avança na vida emocional da sociedade? Na pré-história, as relações se configuravam por atos animalescos. Os Hordas primitivos — que não tinham noção de consangüinidade e de parentesco, vez que existiam apenas machos e fêmeas em busca da sobrevivência — não se conduziam por leis que regessem suas "pulsões" (instintos). Com o início do sedentarismo, o homem se vê diante da propriedade privada e da importância da preservação de seus bens para seus descendentes. E é nesse período que se institui a monogamia enquanto regra social, e os homens passam a "abrir mão" das "pulsões" para constituir a humanidade.
Nesse momento, estabelece-se a Lei de Interdição,
possibilitando o surgimento da vida em sociedade. O sujeito dessa fase passa a
ser regido pelo "recalque" que progrediria sucessivamente no decorrer
da civilização. Por outro lado, a religião, nessa conjuntura, é algo que se
estabelece a fim de sustentar as desigualdades sociais, em conseqüência do
advento da propriedade privada. A crença na "Força Superior"
integraria o indivíduo na sociedade, estabelecendo sua posição em relação aos
seus superiores. Mas essa sociabilidade não se verificou plenamente. Como
afirma Peter Gay:
"Para Freud, o homem é um animal social sem ser
um animal inteiramente socializado, a sua natureza social é em si mesma a fonte
de conflitos e antagonismos que criam resistências à socialização através de
normas de qualquer sociedade que possa ter existido no curso da história
humana."
Sem querer entrar na discussão, longa e complexa,
da validade do método psicanalítico para a investigação histórica, visto que
isso ultrapassaria por demais os limites deste pequeno ensaio, apenas se
pretende lançar, para o universo dos historiadores brasileiros, a discussão,
tão pouco explorada, sobre as possibilidades de utilização do método
psicanalítico no ofício do historiador, ou, pelo menos, para aqueles que
admitem o papel desempenhado pela mente na formação das ideologias, da política
e da estrutura social. Evidentemente, esse campo — que teria que traçar trilhas
diferentes do da análise clínica — ainda se encontra carente de uma teorização
mais completa e de exemplos que olhe validem enquanto método. Desse modo, o que
está em questão é nada menos que a projeção da psicanálise nas experiências
humanas e, através delas, a sua relevância para o trabalho do historiador.
A reflexão histórica, em especial sobre alguns
acontecimentos passados, leva-nos a crer que o processo histórico não é apenas
"comandado" por forças estruturais ou conjunturais — sejam elas econômicas,
políticas, culturais ou mesmo a síntese de todas estas — e nem mesmo por ações
apenas conscientes. Assim como o curso individual de cada ser humano é, muitas
vezes, guiado por ações inconscientes, também o é o curso da história. E como
se investigar esses acontecimentos sem se adentrar no terreno da análise do
inconsciente e, dessa forma, no terreno da psicanálise (ou de outro método que
se reivindique para ddo estudo do inconsciente)? Não seria tal atitude
semelhante àaa dos historiadores positivistas do século XIX que não cogitavam a
idéia de investigar um universo que não fosse o do político e do factual?
Um dos acontecimentos, por exemplo, que nos faz
pensar na ação do inconsciente no curso da história é o da "Noite de São
Bartolomeu" e de toda a conjuntura que lhe é contemporânea. E o que pôde
suscitar essa reflexão foi a análise de um filme que, não obstante esteja nos
limites do ficcional e do não-ficcional, possui um forte sentido histórico.
Tomemos como exemplo, agora, o filme A Rainha Margot, vislumbrando
mesclas do contexto histórico e psicanalítico dos fatos evidentes nos
primórdios da Idade Moderna, quando a Europa convivia com a ascensão da
burguesia e com a consolidação do absolutismo. Baseado no livro de ficção La
Reine Margot, de Alexandre Dumas, publicado em 1845, o filme traz uma
versão realista da história, revelando a psicologia das personagens, seus atos
e gozos sexuais desregrados.
Durante o século XVI, precisamente no ano de
1572, católicos e protestantes se enfrentavam em uma guerra civil intermitente.
Nesse contexto, a rainha Catharina de Médici e Jeanne D’Albert, com o objetivo
de consolidar a paz e estabelecer uma aliança entre os Valois (protestantes) e
os Bourbons (católicos), firmam o casamento de Margerithe de Valois e Henrique
de Bourbon (rRei de Navarra).
Em seu contexto político-religioso, encontramos
dois partidos de interesses opostos: os "huguenotes" (liderados por
protestantes e chefiados pelo Almirante Colgny, o melhor amigo do rei) e o
"Papista ou Santa-Liga" (formado por católicos e chefiado pelos
Guise). No período que sucede o casamento, que a princípio traria a paz para a
França, ocorre o episódio que mata mais de trinta mil protestantes na madrugada
da comemoração católica pelo Dia de São Bartolomeu, quando, para evitar um
golpe huguenote, a rainha Catharina ordenou o assassinato de Colgny e seus
seguidores, num massacre conhecido como "A Noite de São Bartolomeu",
evidenciando a rivalidade política dos partidos que usavam a religião como "pano
de fundo" para encobrir outros interesses.
Numa visão psicanalítica, a Família Real sofria a
ausência da Lei de Interdição (ou seja da Lei do Pai). A figura materna, ora
representada por Catharina, vivenciava uma relação incestuosa, uma vez que não
havia a presença do Pai (aquele que controlaria as pulsões sexuais),
representando uma "mãe-fálica", aquela que exerce uma postura forte
no exercício do poder, acarretando a ausência do "feminino".
Entretanto, ela alimentava uma forte ligação com seu filho, Anjour, que faz
extrapolar o limite do Édipo imaginário, exercendo o amor incestuoso e real. Há
também comportamentos sexuais perversos dos sujeitos masculinos; tratando-se de
uma outra estrutura (a "perversão"), na qual o desejo é tomado de
modo diferente na sua dialética com o falo, ou seja, o desejo é colocado como
imperativo de gozo ( um "imperativo superegóico").
O amor , no contexto real da corte, era algo que
não se podia demonstrar, um meio fácil de poder atingir o outro através do
sujeito apaixonado. Toda liberdade que se tinha disponível para o sexo entrava
em contradição com a forma de amar, pois o amor só poderia existir no âmbito
familiar. O personagem La Molle, por exemplo, sempre insinuou a beleza e a
liberdade do amor em Navarra, visto que, naquele reino de poder, era perigosa a
relação amorosa entre ele e Margot, sendo este sentimento comparado à morte (a
forma encontrada para destruir alguém). Outro momento importante no filme que
representa o que afirmamos acima é o que trata do amor de Henrique de Bourbon
por Charllote, que no decorrer da história só não lhe trouxe a morte devido `à
interferência de Margot que o salva do beijo envenenado e afirma: "aqui
não se pode demonstrar a quem se ama; esta é a forma que eles acham para te
destruir, com quem se dorme". Seria o amor sinônimo da morte?
Margot encontra-se perdida entre o seu casamento
imposto e as questões graves refletidas no "feminino". Seu
comportamento sexual predominante é o de se oferecer como objeto, a exemplo do
ocorrido em sua noite de núpcias — ela doa-se ao seu amante e diante da
frustração obtida pelo "não", sai às ruas numa "busca de
homens", assumindo um comportamento sexual, em geral, masculino: o da
procura, da caça ao prazer. Ela aparece entre o "masculino" e o
"feminino", conseqüência de pertencer a uma família de homens com
estruturas perversas (homossexuais). Parece que é interdita redimida ao amor,
até que se apaixona por La Mole (protestante), ao qual se entrega, a princípio
apenas como objeto de prazer. Entretanto, o verdadeiro amor transforma-a em
"sujeito", em alguém apaixonada e capaz de enxergar os limites e as
contradições de sua família, confrontando-se, então, com sua mãe e evidenciando
o ódio entre ambas. O amor a retira da posição de objeto desvalorizado no qual
o gozo assume a dimensão permanentemente masoquista e a torna sujeito, pois a
metáfora do amor exige também a posição de sujeito desejante. Dessa forma,
Margot tem vislumbres de algo do real que outrora não identificava em sua
relação com os irmãos.
Apenas distante da família, Margot poderia amar.
A morte de La Molle traz a dimensão do seu amor ao nada, assumindo, ao
final, a forma de fetiche: a cabeça do amado é preservada, conservada,
fetichizada como objeto significante do desejo. E então, ela parte para
Navarra, onde lhe seria permitido amar. A incriminação de La Molle por
Catharina traz o preço a ser pago por ela ter violado a "lei do
amor", pois se tornara sujeito imperativo, acentuando, como já foi
dito, a rivalidade e o ódio entre ambas. Tal ódio é demonstrado claramente
pelos atos de Catharina que desejava, a todo custo, destruir a feminilidade de
sua filha.
O Rei Carlos IX apresenta, como todos os irmãos,
uma carência paterna intensificada, percebida em sua relação com Colgny e,
posteriormente, com o seu cunhado Henrique de Bourbon (apresentando traços de
homossexualidade). Encontrava-se diante do poder supremo, e o seu amor por
Marie era algo velado, sendo apenas revelada a existência de sua amante e filho
bastardo a Henrique de Navarra no instante em que se estabelece uma grande
amizade entre ambos.
Para além dos efeitos individuais e familiares
que esses elementos psicanalíticos desempenharam — cuja análise é tão
importante para o ofício do psicanalista ou do mesmo do biógrafo —, cabe a nós,
historiadores, perguntarmo-nos acerca dos reflexos que esses mesmos elementos
exerceram no curso dos acontecimentos históricos. Quanto ao filme, e, em
conseqüência, também à própria história do episódio francês, não teria, a
atitude de Catharina e de seus filhos — de ordenar o massacre dos protestantes
— alguma relação com os elementos psicanalíticos acima explicitados? Ou seria
um acontecimento como este, no qual morreram mais de trinta mil
"personagens", digno apenas de uma análise meramente individual da
vida de Catharina?
***
Sendo estsa a segunda versão cinematográfica — a
primeira exibida em 1954, tendo Jeane Moreau no papel principal —, A rainha Rainha
Margot revela-se um bom leit-motiv para a discussão de questões
relativas à documento para o início da Idade Moderna e, em especial, da
"Noite de São Bartolomeu" (que pode ainda ser analisado através da
pintura de François Dubois, artista protestante que testemunhou e retratou tais
acontecimentos, com grande realismo, em sua obra La Saint Bartlhèmy, que
permanece no museu da cidade de Laousanne, às margens do Lago Lémon, Suíça). É,
e além disso, um bom instrumento leit-motif para se pensar a relação
existente entre a Psicanálise e a História.
Arthur Prado Netto é pesquisador da Oficina
Cinema-História, estudante do Instituto Brasileiro de
Psicanálise (Seção Bahia) e do Departamento de História da Universidade Federal
da Bahia.