Texto disponível no site: http://www.dataterra.org.br/Documentos/leonilde.htm


REFORMA AGRÁRIA: concepções, controvérsias e questões

Leonilde Servolo de Medeiros(*)
Setembro de 1993

ÍNDICE

Agradecimentos

1- Introdução

2- As heranças do debate
2.1- As primeiras críticas ao latifúndio
2.2 - O debate dos anos 60
2.3 - Os marcos institucionais-legais
2.4 - Uma cultura de violência

3 - Os trabalhadores do campo, as diferentes faces da luta por terra e a emergência de novos termos para o debate
3.1 - A modernização da agricultura e seus efeitos
3.2 - As propostas das organizações sindicais e movimentos
3.2.1- A proposta de reforma agrária da CONTAG
3.2.2 - A crítica à concepção contaguiana e os movimentos de luta por terra
a) Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
b) Movimento dos Seringueiros
c) Movimento dos Atingidos por Barragens
d) A articulação das oposições sindicais no campo e a CUT
3.3 - As rupturas com a herança
3.4- Pressionar/negociar: os dilemas da relação com o Estado
3.5 - A derrota da Proposta de PNRA e suas conseqüências institucionais

4 - Os aliados
4.1- Igreja Católica
4.2 - As centrais sindicais
4.3 - As ONGs

5 - Os empresários e a reforma agrária: modernização e direito de propriedade

6 - A viabilização político-institucional
6.1 - A nova institucionalidade
6.1.1 - A dimensão legal
6.1.2 - As propostas governamentais nos anos recentes
6.1.3 - A cultura institucional do INCRA
6.2 - A reforma agrária e os partidos políticos
6.2.1 - Os diferentes significados da reforma agrária para os partidos
6.2.2 - As votações no Congresso Nacional
6.3 - O papel dos militares

7 - Os novos termos do debate

Notas

Bibliografia


Agradecimentos

Este texto retoma e amplia algumas reflexões realizadas durante a preparação do "Seminário sobre Reforma Agrária", no âmbito do Programa Movimento Camponês/Igrejas do CEDI, em especial as contidas em dois dos textos que dão suporte didático à proposta: "Reforma agrária: trajetória de uma bandeira" e "Questões para o debate". Esse Seminário, concebido para ser desenvolvido junto ao DNTR/CUT, foi fruto de diversas discussões com o "grupo de sindicalismo" do Programa. Agradeço a essa equipe, nas pessoas de Aurélio Vianna, Clara Evangelista, Guillermo Rogel, José Roberto Pereira Novaes, Luciano Padrão, Mariana Pantoja Franco, Maria Cecília Iório, Neide Esterci, Regina Novaes e Regina Bruno, pelo muito que aprendi nas acaloradas e valiosas discussões que nesse processo fizemos.
No IBASE, Sérgio Pereira Leite e Francisco Menezes, proporcionaram-me a oportunidade de financiamento que viabilizou a elaboração da sua forma atual.
Francisco Menezes, Maria Emília Pacheco, Regina Bruno, Regina Novaes e Sérgio Pereira Leite discutiram comigo uma versão preliminar deste trabalho. A eles agradeço os importantes comentários e sugestões.
Um agradecimento especial devo a Regina Bruno que discutiu comigo, em diversos momentos, algumas das idéias centrais nele contidas.


1 - Introdução

O tema da reforma agrária está presente no debate político nacional, de maneira mais ou menos intensa, pelo menos desde a década de 20, assumindo formas e significados diferenciados. Concebida como medida necessária para promover o desenvolvimento econômico-industrial; política de combate ao desemprego, à fome e à miséria; política social para impedir a continuidade do êxodo rural e suas seqüelas; sinônimo de resgate da cidadania para os trabalhadores do campo e condição para a democratização do país, a reforma agrária já se associou ao tema da modernização da agricultura, à mudança das relações de trabalho no campo, à desapropriação massiva de terras, à intervenção intervenções, à colonização, ao assentamento de trabalhadores em terras públicas, à criação de empresas coletivas, à "recampenização". Combalida pela derrota na Constituinte das propostas defendidas pelas organizações dos trabalhadores do campo, nos anos 90 ela parece se revitalizar na discussão sobre cidadania e fome, bem como na crescente valorização das questões ambientais.

O modelo nacional-desenvolvimentista, ao qual se articulava intimamente o debate sobre a reforma agrária nos anos 60, de há muito está esgotado. O campo se modernizou no plano das técnicas produtivas, a população rural se reduziu drasticamente em relação à urbana, formas de relações de trabalho que estavam na base da demanda por terra nos anos 60 foram minados, o capital financeiro se dirigiu também para os investimentos fundiários, novos interesses se constituíram, novos personagens surgiram na luta por terra. Também entraram em crise as utopias que preconizavam uma sociedade socialista, obrigando a um profundo repensar das chamadas "lutas estratégicas". No entanto, com todas essas profundas mudanças, a bandeira da reforma agrária ainda é contemporânea. Ela não desaparece das demandas das organizações de trabalhadores rurais e o sonho do acesso à terra continua alimentando o imaginário não só dos recém expropriados como, para surpresa de muitos, até mesmo de trabalhadores já integrados no mercado de trabalho quer rural, quer urbano, como o demonstram diversos episódios de ocupação de terras nos anos recentes.

O que vem dando, nesses anos todos, atualidade à palavra de ordem reforma agrária e a vem constantemente recolocando na cena política, é o fato de que, em todo o país, significativos contingentes de trabalhadores se situam e se fazem reconhecer nos espaços públicos através da luta por terra. "Posseiros", "arrendatários", "foreiros" nos anos 60, "posseiros" na década de 70, "seringueiros", "sem terra", "atingidos por barragens" nos anos 80: personagens socialmente diferenciados, eixos geográficos diversos, identidades sociais e políticas distintas, que indicam a permanência da luta pela terra, mas também mostram que os seus termos mudam e que se transforma o sentido da questão É fundamental, para entender as implicações das diferentes propostas de reforma agrária atualmente presentes no debate, partir do pressuposto de que essa bandeira, em sua trajetória assumiu diferentes significados, em diferentes momentos, para diferentes agentes sociais, adequando-se às novas questões que vão sendo colocadas para as forças sociais em presença, quer em função de alterações estruturais ou de conjunturas políticas específicas que, no plano nacional, impuseram alguns termos para a discussão, quer porque os próprios personagens da luta pela terra (trabalhadores, com suas formas de organização, representação, entidades de apoio e assessoria, o empresariado rural/latifundiários, as instâncias do Estado) também sofreram profundas mudanças. Como o aponta Novaes (1993:4), "podemos nos perguntar até que ponto certas versões da reforma agrária desempenham o papel de um mito por meio do qual se insuflou a energia necessária para que trabalhadores ameaçados de expulsão da terra desencadeassem um combate cotidiano pela posse da terra".

Esse debate, no entanto, se muda em seus termos, carrega consigo marcas de momentos anteriores que, muitas vezes, implicam na constituição de novos significados para velhos termos, bem como o aparecimento de novos termos que atualizam antigos significados.

Este texto tem por objetivo explorar algumas dessas mudanças. Pretendemos, inicialmente, reconstruir aspectos do debate sobre a reforma agrária no momento em que ele ganha significado nacional e identificar algumas de suas heranças. A seguir, trataremos dos termos em que o debate é retomado nos anos 80, procurando distinguir diferentes posições. Para finalizar, apontamos alguns dos temas que hoje estão se impondo para a sua reconfigurado.

2 - As heranças do debate

2.1 - As primeiras críticas ao "latifúndio"

A discussão e denúncia em torno do poder dos proprietários fundiários sobre seus subordinados e sobre os males do latifúndio bem como a defesa de uma reforma agrária não são questões politicamente novas. Já nos anos 20, segmentos dos "tenentes" falavam em transformações fundiárias como condição para eliminar das eleições os vícios que as caracterizavam (1). Segundo a análise de Santa Rosa, a existência do latifúndio estava intimamente relacionada ao "voto de cabresto", ao coronelismo e era a principal razão do atraso político do Brasil. Em decorrência, a reforma agrária aparecia como "indispensável e inadiável para a consolidação definitiva das conquistas sociais da revolução de outubro" (Santa Rosa, 1963:123).

Setores "tenentistas" tentaram garantir condições para uma reforma agrária na Constituinte de 1934, mas foram politicamente derrotados (Camargo, 1981). Iniciativas governamentais como projetos de colonização e a "Marcha para o Oeste", durante o Estado Novo, o debate sobre a extensão da legislação trabalhista e direitos de organização para os trabalhadores do campo durante toda a década de 30 (e, portanto, seu reconhecimento como categoria particular, com interesses próprios, distintos daqueles dos proprietários), a criação de uma Comissão Nacional de Política Agrária e do Serviço Social Rural no início dos anos 50, indicavam a existência de questões a demandar intervenção estatal (Camargo, 1981; Esteves, 1990; Stein, 1991). Indicavam também a permanência de uma crítica socialmente elaborada ao "latifúndio".

No entanto, foi somente no início dos anos 60 que a reforma agrária se tornou uma demanda ampla, proposta disputada por diferentes forças sociais, tornando-se a tradução política das lutas por terra que se desenvolviam em diversos pontos do país.

2.2 - O debate dos anos 60

A incorporação da demanda por reforma agrária pelo movimento camponês que ganhou corpo no Brasil no início dos anos 50 e a transformou em sua principal bandeira de luta, só pode ser pensada a partir das concepções e da atuação do Partido Comunista, importante mediação que então se colocava para as lutas dos trabalhadores rurais.

A rigor, podemos dizer que o que existia no campo nesse momento eram diversos focos de luta, onde "posseiros", "arrendatários", "foreiros" resistiam à ação dos proprietários de terras ou de seus prepostos, visando alterar regras de contratos costumeiros ou expulsá-los da terra. Era muito comum ainda a resistência às tentativas de expulsão por parte de pessoas que não eram reconhecidas como proprietários legítimos e que passavam a ser socialmente identificados como "grileiros" (Grynszpan, 1987). A expansão da fronteira agrícola, a introdução de novas culturas, a substituição da agricultura por pecuária eram algumas das razões que promoviam essa expulsão. Em outros casos, a permanência na terra era justificada através da crítica a contratos de arrendamento cujas condições (porcentagens elevadas a serem pagas ao proprietário da terra; obrigação de sair do lote, após três anos de uso, deixando capim plantado; possibilidade de requisição da terra a qualquer momento, sem indenização de lavouras ou benfeitorias) deixavam de ser vistas como naturais pelos trabalhadores.

Para o PCB, a demanda por reforma agrária, no entanto, não foi definida estritamente a partir desses conflitos. Quando esse partido assumiu, como um dos traços de sua linha política, a tarefa de tentar acompanhar e atuar sobre as lutas de resistência que se davam no campo, o fez informado por uma concepção anterior sobre o significado do latifúndio e da luta contra ele. Esta era, segundo os intelectuais do PCB, um dos passos necessários de um conjunto de transformações pelas quais o país deveria passar no processo de uma revolução democrático-burguesa. No centro dessa concepção, estava a idéia de que o campo brasileiro era fortemente marcado pela existência de restos feudais (formas de dominação pessoal, exigência de que os trabalhadores pagassem renda pelo uso da terra etc.), que entravavam o livre desenvolvimento das forças produtivas. Como a situação de exploração e miséria em que viviam os trabalhadores rurais impedia que estes se constituíssem em mercado para os produtos industriais que então começavam a ser produzidos no país, o PCB acreditava que uma vasta reorganização da estrutura fundiária, eliminando o poder dos latifundiários, que representavam o "atraso", contaria inclusive com o apoio dos segmentos industriais. Assim, os trabalhadores do campo, termo que envolvia uma enorme diversidade de categorias sociais como, por exemplo, "arrendatários", "parceiros", "meeiros", "moradores", "ocupantes", "sitiantes", "colonos" etc., passaram a ser politicamente referidos como "as massas exploradas do campo" ou, mais comumente, "camponeses". Os proprietários de terra, independentemente do tipo de produto (café, cana, algodão, cacau, pecuária) ou do uso dado à terra (plantio para exportação, para mercado interno e/ou especulação), eram classificados como "latifundiários" e principal força a ser combatida.

Sob essa ótica, a reforma agrária era entendida como a eliminação dos latifundiários enquanto classe e divisão das terras entre os que nela quisessem trabalhar. Tal medida seria o primeiro passo em direção a um modelo de desenvolvimento que promoveria um mais rápido desenvolvimento das forças produtivas, tanto no campo como na cidade, e criaria condições para uma revolução socialista.

A ação do PCB no campo voltava-se, de um lado, para o encaminhamento de lutas mais imediatas (melhores salários, direitos trabalhistas, abolição de "vales" e "barracões", apoio à resistência na terra, demanda por maior prazo e garantia de renovação de contratos de arrendamento, diminuição do seu valor, diminuição de impostos e fretes) e, de outro, buscava estimular a luta por reforma agrária, o que supunha um conjunto amplo de alianças políticas. Dentre elas, era valorizada a aliança com a burguesia industrial, considerada como interessada em mudanças estruturais que ampliassem o "mercado interno".

Nesse mesmo quadro político, gestou-se uma outra concepção de reforma agrária, que tinha por porta-voz a principal liderança das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Partindo de análise semelhante à feita pelo PCB sobre a situação do campo, Julião acreditava que a reforma agrária, quebrando o poder do latifúndio e introduzindo o campesinato como ator político crucial, constituía o primeiro passo para uma revolução socialista no país. Não seria, pois, possível contar com o apoio de nenhum segmento da burguesia a essa luta.

Disputando espaço com essas forças, a Igreja também se posicionava sobre o tema. De acordo com Paiva (1985:14), "a ação da Igreja brasileira no campo e seus pronunciamentos sobre a questão agrária desde o pós-guerra estiveram marcados por valores e ideais que fazem parte da tradição católica (que se manifestaram, por exemplo, na defesa da pequena propriedade rural como base para a estabilidade da família), mas sofreram o impacto da intensificação da urbanização e da industrialização substitutiva de importações dos anos 40/50 e viam-se influenciados pelo nacionalismo e pelo desenvolvimentismo que caracterizaram o período... Ela respondeu especialmente à constituição do campesinato como classe social emergente no cenário político a partir de meados dos anos 50 e à transformação das relações sociais no campo brasileiro desde então - em que pese a heterogeneidade de posições e ações desenvolvidas pelos seus diferentes setores". Para a autora, reagindo à ameaça de penetração de "ideologias alienígenas" no campo, a Igreja passou a denunciar as condições de vida da população que ali vivia, apoiar o acesso à terra e recomendar a formação de uma classe média rural. Defendia, assim, o direito instituído de propriedade, mas reconhecendo a necessidade de uma reforma agrária que fosse feita através de desapropriações com justa indenização. É com essa perspectiva que passou inclusive a disputar a direção política dos trabalhadores rurais, estimulando a criação de sindicatos (Carvalho, 1985).

Em que pese a força que os movimentos camponeses adquiriram nessa conjuntura, através de suas ações de resistência, manifestações de rua, greves, etc., o vigor que a bandeira "reforma agrária" assumiu deve ser buscado também em questões mais gerais da política brasileira e latino-americana. Após a Segunda Guerra Mundial e em plena "guerra fria", colocava-se na ordem do dia, a necessidade de promover o desenvolvimento dos países latino-americanos, o que então significava estimular a industrialização. Nesse contexto, a agricultura voltada para exportação, com base em grandes propriedades, baixo nível de incorporação de tecnologia, era considerada como um obstáculo estrutural ao desenvolvimento. Para a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), que formava os principais economistas e planejadores latino-americanos de então e era um importante fórum elaborador de diretrizes de políticas econômicas, havia necessidade de alterar esse quadro, modernizando a agricultura, estimulando-a a produzir para o mercado interno. Segundo essa ótica, era preciso elevar o padrão de vida das populações rurais, de forma que elas pudessem também se constituir em mercado para as indústrias emergentes.

O que se verificou foi, pois, o encontro de perspectivas distintas e projetos diferenciados apontando para a necessidade de reformas estruturais e convergindo para uma posição crítica em relação à concentração da propriedade fundiária. Essa crítica, potencializada pela enorme quantidade de lutas por terra, levadas à frente por "posseiros" (Goiás, Paraná, Rio de Janeiro), "moradores"/"foreiros" (Pernambuco, Paraíba), "arrendatários" (São Paulo, Goiás, Minas Gerais), trabalhadores "sem terra" que acampavam nos limites das propriedades, demandando terra (Rio Grande do Sul), transformou a reforma agrária, no início dos anos 60, em carro-chefe das "reformas de base" e eixo de um projeto nacional-desenvolvimentista.

No bojo da luta política que então se travava, as diferenças profundas entre as propostas em pauta se explicitavam. Se o desenvolvimento do país, através da intensificação da industrialização era a meta, a aposta dos segmentos industriais mostrava-se muito mais voltada para estimular a modernização da agricultura, sem alterar a estrutura fundiária. Para os segmentos dominantes desse setor, o mercado que a agricultura poderia abrir era principalmente o de máquinas e equipamentos pesados, insumos químicos, etc., o que não pressupunha uma redistribuição fundiária (Medeiros, 1983). Além disso, a indústria nacional tinha vínculos em termos de origem de capital e de redes familiares com a grande propriedade, em especial com a cafeicultura (Silva, 1976).

Do ponto de vista das lideranças dos proprietários fundiários, o que se colocava era também a demanda de modernização e apoio do Estado à produção agrícola. Segundo elas, a melhoria das condições de vida e trabalho dos que viviam no campo seria uma decorrência "natural" do aumento de rentabilidade da agricultura. E se utilizavam fartamente do argumento de que o desenvolvimento da indústria se fazia mediado pelo Estado e às custas do sacrifício da agricultura, penalizada pelo confisco cambial. Com essas alegações, procuravam se defender das críticas feitas principalmente ao atraso tecnológico e secundarizar a concentração fundiária.

É preciso lembrar ainda que a revolução cubana teve fortes repercussões na América Latina e no Brasil, quer sendo percebida como um exemplo a ser seguido por significativas lideranças do campo (Francisco Julião, das Ligas Camponesas, por exemplo), como, no polo oposto, no sentido de alertar os setores dominantes sobre os possíveis riscos da permanência das formas de exploração e da miséria existentes. Um dos resultados políticos desse processo foi a constituição da Aliança para o Progresso, por iniciativa do governo dos Estados Unidos, que encorajava os governos latino-americanos a realizarem programas preventivos de reforma agrária, que eliminassem a concentração fundiária e se encaminhassem na direção da criação de uma classe média rural. Dele também resultaram os compromissos assumidos pelo Brasil na reunião de Punta del Este(2) (Camargo, 1981).

Em que pesem as pressões internacionais e as lutas por terra existentes de norte a sul do país, no entanto, os diversos projetos de reforma agrária, de diferentes matizes, apresentados ao Congresso Nacional foram sucessivamente derrotados, graças à enorme capacidade de articulação política dos proprietários fundiários que, desde cedo, contaram com o apoio dos representantes da indústria contra as tentativas de "subversão" do "sagrado direito de propriedade"(3).

Foi nesse contexto que se fixaram politicamente alguns significados que marcaram o debate sobre a reforma agrária, definindo palavras-chaves carregadas de conteúdo que lhe dão, até os dias de hoje, importantes referências. A mais significativa delas talvez seja "latifúndio", que se constituiu não só como equivalente de grande propriedade, de atraso tecnológico e improdutividade mas também, e talvez principalmente, como sinônimo de relações de poder, de opressão, de ausência de direitos (Palmeira, 1968). Como aponta Regina Novaes, referindo-se às lutas camponesas dos anos 60 na Paraíba, "o latifúndio a que se opõem (os camponeses) não é uma propriedade com tais ou quais características, é antes de tudo um conjunto de normas, atitudes e comportamentos atualizados pelo conjunto dos proprietários rurais, respaldados nas instâncias do poder local" (Novaes, 1987:98)(4).

Foi nesse contexto de crítica generalizada ao "latifúndio" que se constituiu socialmente e ganhou legitimidade no terreno político a concepção de que a alteração na estrutura de propriedade seria condição para vencer o atraso, tanto econômico (entendido principalmente como aumento de produção) como político, com alteração das relações de poder. Ao mesmo tempo, no interior das principais forças que disputavam a direção das lutas camponesas, a reforma era entendida como condição necessária para o desenvolvimento e, portanto, como parte da questão nacional. Assim, ela aparecia como eliminação de resquícios feudais, etapa essencial da revolução democrático-burguesa ou mesmo como caminho para o socialismo, sempre significando um impulso ao desenvolvimento das forças produtivas no campo e, ao mesmo tempo, rompimento das estruturas de dominação tradicionais. Também foi nesse contexto que passou a ser valorizada a produção familiar, tanto por influência do PCB e da Igreja, como da Aliança para o Progresso.

2.3 - Os marcos institucionais e legais

O perfil e o ritmo de criação de mecanismos institucionais e legais para tratar da questão agrária são indicativos de como o Estado absorvia e selecionava formas de tratamento do tema (Offe, 1984).

Se, na Constituição de 1946, a pressão da bancada comunista conseguiu introduzir a concepção de que "o uso da propriedade está subordinado ao bem-estar social" (art. 147), as desapropriações quer por utilidade pública, quer por interesse social deveriam ser feitas mediante prévia e justa indenização em dinheiro (art. 141, parágrafo 16). Apesar desses limites, já no final dos anos 50, alguns governos estaduais realizaram desapropriações, em resposta a tensões sociais ou promoveram assentamento de trabalhadores em terras públicas(5).

Por outro lado, a criação de comissões, como a Comissão Nacional de Política Agrária (CNPA), criada no segundo governo de Getúlio Vargas, ou de um organismo como o Serviço Social Rural (SSR), com apoio das entidades patronais do campo, eram indicadores de que o Estado buscava intervir de alguma forma sobre a questão, mesmo que a definindo como objeto de assistência ou educação(6).

A intensificação da demanda por reforma agrária no início dos anos 60 gerou a criação da SUPRA - Superintendência de Política e Reforma Agrária- e a subsequente extinção do INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização) e do SSR. O novo órgão trazia uma novidade: sua independência em relação ao Ministério da Agricultura, espaço onde era tradicionalmente exercido o controle dos proprietários fundiários. Como veremos, essa independência se constituiria em uma reivindicação recorrente das organizações de trabalhadores do campo. Ao mesmo tempo, travou-se uma acirrada disputa no Congresso no sentido de aprovação de uma emenda constitucional que viabilizasse o pagamento das indenizações, em caso de desapropriação por interesse social, através de títulos da dívida pública.

A ruptura institucional de 1964 abafou as demandas emergentes dos trabalhadores mas, de alguma forma, incorporou a crítica, proveniente dos mais diferentes segmentos sociais, ao "latifúndio". Logo após o golpe militar, o mesmo Congresso Nacional que havia bloqueado dezenas de projetos de reforma agrária, acabou por aprovar uma emenda constitucional que permitia o pagamento das terras desapropriadas com títulos da dívida pública e a suspensão da exigência de que essa indenização fosse prévia. Foi também aprovado o Estatuto da Terra, produto mais acabado da incorporação que mencionamos acima. Constituía-se, assim, o espaço legal para a viabilização de transformações na estrutura fundiária.

O novo documento foi definido pela mensagem presidencial que o acompanhou ao Congresso como sendo "mais do que uma lei de reforma agrária", uma lei de "desenvolvimento rural". Compunha-se de duas partes bem distintas: uma referente à "reforma" e outra ao "desenvolvimento". Coerente com essa divisão, tipificavam-se os imóveis rurais em "minifúndios", imóveis com área inferior a um módulo rural (7) e, portanto, incapazes, por definição, de prover a subsistência do produtor e de sua família; "latifúndios por exploração", imóveis com área entre um e seiscentos módulos, caracterizados pela subexploração; "latifúndios por extensão", imóveis com área superior a seiscentos módulos, independentemente do tipo e características da produção neles desenvolvida; e "empresas", imóveis entre um e seiscentos módulos, caracterizados por um certo nível de aproveitamento do solo, racionalidade na exploração, cumprimento da legislação trabalhista e preservação dos recursos naturais. O objetivo da reforma agrária seria a gradual extinção de "minifúndios" e "latifúndios", fontes de tensão social no campo. A "empresa", que poderia inclusive ser familiar, tornava-se o modelo ideal da propriedade fundiária. O caminho para que o "latifúndio" se convertesse em "empresa" seria a desapropriação (somente em casos de tensão social), a tributação progressiva e medidas de apoio técnico e econômico à produção. A lei estabelecia ainda, indiretamente, uma área máxima para as propriedades rurais, quando definia o latifúndio por extensão (e que deveria ser objeto de desapropriação) como a propriedade que ultrapassasse 600 módulos rurais.

Através do Estatuto da Terra, alguns dos termos que haviam se politizado no debate ganharam o estatuto de categorias legais, com critérios relativamente precisos de definição em termos de tamanho de área, formas e grau de utilização da terra, natureza das relações de trabalho etc. Essa categorização cristalizou o estigma que pesava tanto sobre o "latifúndio" como sobre o "minifúndio" e estabelecia como meta sua extinção, em nome da racionalidade da exploração agrícola.

No entanto, o espaço legal que se abria para a realização de transformações na estrutura fundiária estava sob estrito controle de um Estado autoritário, que propiciou a privatização de espaços públicos (O'Donnell, 1986). Com os movimentos sociais duramente reprimidos, lideranças perseguidas, sindicatos sob intervenção, a nova lei pouco significou em termos de medidas concretas em direção às demandas por terra dos trabalhadores.

No processo de disputa política no interior dos segmentos que apoiaram o golpe militar, os interesses vinculados à propriedade fundiária se fizeram prevalecer e, mais uma vez, ela permaneceu intocada. Fortes estímulos foram concedidos pelo Estado para a modernização tecnológica do que a lei classificava como "latifúndio", de forma a viabilizar sua transformação em "empresa", mas não se verificou nenhum incentivo ou fiscalização para que fossem obedecidos os princípios definidores da empresa rural: obtenção de índices de produtividade regionalmente definidos, observação da legislação trabalhista, preservação do meio ambiente. Mais adiante retomaremos o tema para indicar como, nessas condições adversas, o Estatuto da Terra tornou-se um importante campo de disputa política.

Do ponto de vista institucional, em 1965, coerentemente com o espírito do Estatuto da Terra, foram criados dois organismos para cuidar da questão agrária: o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) e o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA). Com eles, ganhou corpo uma cultura institucional, cujas raízes remontam ao próprio debate sobre a reforma agrária, onde a questão agrária se constitui como esfera de ação do governo federal e onde se separava questão agrária e questão agrícola (8). Isso implicava não só uma concepção do que deveria ser a reforma agrária, como também traduzia uma disputa pelo controle do poder de intervenção sobre a questão. Essa disputa se colocava não só em termos de um órgão próprio para realização da reforma agrária, sua subordinação ou não ao Ministério da Agricultura (disputa que vai permear os anos 70 e 80), mas também referia-se ao poder dos governos estaduais, uma vez que, no período imediatamente anterior ao golpe, os estados perderam o poder de tributar a propriedade territorial e só detiveram a possibilidade de desapropriar por utilidade pública.

A extinção do IBRA e do INDA em 1972 e sua substituição pelo INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, manteve essa separação e promoveu a junção, em único órgão, de duas questões distintas, indicando o sentido que concretamente estava sendo dado à problemática da reforma agrária no regime militar. Instituía-se, assim, uma vertente que levaria à recorrente tentativa de antepor à crítica à estrutura fundiária uma saída através da ocupação dos "espaços vazios", as terras públicas das fronteiras (9). No proposta dos organismos estatais, reforma agrária tornava-se "colonização".

2.4 - Uma cultura de violência

Um outro componente importante para ser trazido à luz, quando se quer marcar a herança com que o debate sobre reforma agrária hoje tem que se enfrentar, diz respeito a uma cultura política marcada pelo recurso à violência patronal. O confronto direto com os "patrões", com o "latifúndio", através da luta de resistência na terra, em grande parte dos casos assume caráter local e individualizado e tende, quase sempre, a ser resolvido pelo poder dos grandes proprietários, na esfera de seus domínios, privatizando o conflito, sem mediação dos instrumentos legais e institucionais disponíveis.

Nos anos 50 e 60, os proprietários fundiários se organizaram e apareceram na cena política demandando apoio do Estado para a modernização da agricultura. Nos anos 70 e início dos 80, verificou-se, de um lado, um processo de organização de perfil mais corporativo e, de outro, uma pressão direta dos setores mais modernos sobre o Estado, buscando privilégios (Grzybowski, 1989). Nos anos 80, os empresários voltaram a aparecer de forma organizada e reivindicativa. No entanto, em que pese essas diferentes formas de comportamento na esfera pública, no interior das propriedades manteve-se, sem grandes alterações, o mesmo padrão de dominação, marcado pela violência sistemática contra os trabalhadores. E, como o aponta Bruno (1993), não se trata apenas de manutenção de antigos padrões de comportamento, mas de sua incorporação pelas "novas elites", originárias do segmento mais moderno que investe no campo na esteira dos incentivos fiscais, do capital financeiro. As estatísticas sobre violências físicas, torturas e assassinatos de trabalhadores, lideranças sindicais, agentes de pastoral são os indicadores mais significativos de uma cultura política em que a figura do pistoleiro de aluguel é uma presença forte.

Cabe lembrar ainda que, quando falamos da herança da violência como um dos componentes do debate sobre a reforma agrária, não queremos nos referir exclusivamente à violência física e impune contra os trabalhadores, mas temos em vista um outro aspecto que vem alimentando as tensões sociais e a crítica ao "latifúndio": o descumprimento de toda e qualquer forma de legislação que constitua "direitos" para os trabalhadores. É o caso, por exemplo, da legislação trabalhista e dos regulamentos legais dos contratos de arrendamento e parceria. A ênfase na modernização tecnológica dos anos 70, no geral, obscurece essa dimensão da prática dos proprietários fundiários, constantemente tornada pública através das inúmeras denúncias de entidades de organização e de apoio dos trabalhadores do campo.

3 - Os trabalhadores do campo, as diferentes faces da luta por terra e a emergência de novos termos para o debate

3.1 - A modernização da agricultura e seus efeitos

A modernização que se verificou nos processos produtivos na agricultura brasileira nos anos 70 mostrou claramente que a reforma agrária não era condição sine qua para o desenvolvimento econômico, tal como se pensou nos anos 60 (10). No entanto, no bojo das transformações que implicaram em modernização tecnológica, aumento de produtividade, agroindustrialização, redução drástica da população rural em relação à urbana, expansão da fronteira agrícola, a demanda por terra permaneceu. Ao contrário, porém, dos anos 50/60, quando a reforma agrária contava com o apoio principalmente de intelectuais e forças políticas vinculadas ao projeto nacional-desenvolvimentista, nos anos 70, transformou-se em uma demanda embutida principalmente na persistência da luta pela terra, nas demandas do movimento sindical e de assessores e intelectuais a ele ideologicamente ligados. Deixou assim de aparecer como um tema nacional, que pudesse configurar um espectro mais amplo de alianças (11).

Nos anos 70, as lutas por terra tiveram como personagem mais característico, embora não exclusivo, o "posseiro", acuado pelos grandes projetos incentivados, em especial na Amazônia. Elas ocorriam em todo o país, de forma dispersa e localizada, alimentadas por um ideal camponês que se configurava no modelo familiar de produção. Do ponto de vista político, encontrava respaldo principalmente em duas vertentes de pensamento social: a tradição da esquerda comunista e a da Igreja. Mas principalmente enraizava-se nas experiências dos trabalhadores alimentando suas resistências cotidianas. É mediada por essa tradição que se produziu, a partir do sindicalismo, uma leitura particular e uma apropriação do Estatuto da Terra, legislação que visava, como apontamos mais acima, estimular a empresa rural (mesmo que familiar). Essa apropriação da lei se enfrentava com o modelo dominante, marcado pela valorização do progresso tecnológico, por uma concepção de modernização através da ampliação das escalas de produção e, consequentemente, da concentração fundiária.

No final dessa década e no início dos anos 80, surgiram novos personagens na luta por terra: os "atingidos por barragens", no processo de ampliação das fontes geradoras de energia e conseqüente construção de usinas hidrelétricas; "pequenos produtores", excluídos dos benefícios da modernização que, ou perderam suas terras ou percebiam que seus filhos dificilmente teriam acesso a ela, e constituíram o contingente que acabou por conformar a identidade política de "sem terra"; "seringueiros" que resistiam à destruição dos seringais nativos em decadência e sua substituição por pastagens (12), etc. Nesse quadro, novamente a questão da reforma agrária era colocada na ordem do dia, mas ganhando novos parâmetros. Produziu-se um encontro singular entre as transformações sofridas pelo meio rural brasileiro e a herança que alimentava as lutas.

Além disso, outras reivindicações emergiam e requalificavam a questão agrária. As demandas de parcelas de pequenos produtores, que conseguiram se tecnificar, por melhores preços para seus produtos, por crédito etc., e as mobilizações decorrentes mostravam a existência de um vasto segmento que, embora detentor da propriedade de terra e, em alguma medida, beneficiário do desenvolvimento tecnológico dos anos 70, necessitava de políticas específicas de apoio para garantir suas condições de produção e tornavam o Estado objeto de interpelação. Surgiram, ainda, formas novas de confronto desses segmentos modernizados com as agroindústrias, em torno da fixação de preços para seus produtos e das condições estabelecidas nos contratos.

Os assalariados, por sua vez, quer através das denúncias sobre o crescimento dos níveis de miséria nas áreas onde os "bóia-frias" eram a forma predominante de trabalho, quer, a partir do início dos anos 80, através de mobilizações e greves, traziam a público uma outra face da modernização: as precárias condições de vida e trabalho (emprego sazonal, salários baixos, extensas jornadas de trabalho, condições inseguras de transporte, falta de registro profissional e a conseqüente não garantia de direitos trabalhistas básicos, como descanso remunerado, férias, décimo-terceiro salário, licença-maternidade etc.).

No bojo da luta contra o regime militar e pela redemocratização do país, que envolvia diversos segmentos sociais e diferentes temas, mais uma vez emergia a situação de exclusão das benesses do desenvolvimento a que estavam submetidos, embora de forma bastante diversificada, o conjunto dos trabalhadores do campo. Com isso, voltava a ocupar os espaços públicos a demanda por reforma agrária, constituída durante todo esse período como bandeira unificadora, "cimento ideológico" de uma diversidade de lutas (Palmeira, 1985).

O sindicalismo rural, hegemonizado pela CONTAG, realizava atos públicos, idas massivas aos INCRAs estaduais pedindo desapropriação das áreas de conflito. Ao mesmo tempo, "posseiros" resistiam na terra; "atingidos" embargavam obras de barragens, exigindo "terra por terra"; "sem terra" acampavam à beira de estradas e realizavam ocupações de áreas improdutivas; "seringueiros" "empatavam" a derrubada da floresta. Nesse processo, geraram-se "oposições" para combater as direções sindicais que "não assumiam a luta", formou-se o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento dos Sem Terra, o Conselho Nacional dos Seringueiros. Numa conjuntura em que as lutas populares se constituíam numa dimensão essencial do processo de abertura política que iria conduzir ao fim do regime militar, e em que os trabalhadores do campo reocupavam a cena pública, a questão agrária se redefine, mostra novas faces e acaba por levar à emergência de novos termos para o debate sobre a reforma agrária.

3.2- As propostas das organizações sindicais e movimentos

Diferentes propostas de reforma agrária emergiram com a visibilidade que as lutas por terra adquiriram nos anos 80: numa conjuntura marcada pela emergência de novos personagens e possibilidade de expressão de distintas forças políticas, puderam vir à luz toda uma gama de projetos.

Essa diferenciação constituiu o terreno em que se verificou uma intensa disputa em torno de qual seria a proposta mais representativa dos "verdadeiros" interesses dos trabalhadores do campo. Nela estava em jogo, além da disputa pela representação desse segmento, também um repensar da herança dos anos 60. Ela indicava alguns dos novos termos do debate sobre a reforma agrária para os anos 90.

Neste item, apontaremos os principais traços da concepção de reforma agrária do sindicalismo rural, quer na vertente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), quer na do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da Central Única dos Trabalhadores (DNTR/CUT) e de movimentos que se constituíram nos anos 80 e que têm sido impulsionadores da revitalização e, ao mesmo tempo, da redefinição da bandeira reforma agrária.

3.2.1 - A proposta de reforma agrária da CONTAG

A reforma agrária foi a principal bandeira de luta da CONTAG, desde sua origem, em 1963. Quando essa entidade, no final dos anos 60, após o período de intervenção que se sucedeu ao golpe militar, iniciou sua reorganização, fez do Estatuto da Terra um respaldo para o resgate do que fora o principal móvel das lutas camponesas no período anterior e passou a demandar desapropriações de terra em áreas de tensão social. Apoiando-se no aparato legal existente para dar legitimidade às suas reivindicações junto ao Estado, a CONTAG passou não só a divulgar entre suas bases o Estatuto da Terra e estimular o recurso a seu potencial desapropriador, como a recorrentemente se valer das definições e diretrizes explícita ou implicitamente contidas nele ou na legislação complementar (13).

Numa conjuntura repressiva e a partir da concepção de que era necessário abrir canais de diálogo com o Estado, a CONTAG, do ponto de vista das formas de luta a serem empregadas, sempre enfatizou a busca de caminhos institucionais, valorizando as demandas e as denúncias ao próprio poder público como forma de pressão para o cumprimento da lei; e a possibilidade de ocupar espaços nas instâncias deliberativas para fazer valer suas propostas (a "participação" das lideranças e assessorias ou aliados em comissões e órgãos técnicos), dentro da ótica de que ações mais incisivas dos trabalhadores (ocupações massivas de terra, por exemplo) acabavam por dificultar as negociações. Priorizando esses caminhos, a CONTAG se opunha a qualquer revisão no Estatuto da Terra, na medida em que, frente à particularidade da correlação de forças dos anos 70, entendia que alterações nesse instrumento legal significariam um retrocesso quanto às possibilidades de realização de uma reforma agrária (14).

Durante toda a década de 70, a CONTAG, informada por essa concepção, procurou fazer a ligação de cada conflito particular com a demanda mais geral de reforma agrária (e de aplicação do Estatuto da Terra), numa postura pedagógica de divulgação de uma determinada concepção de direitos. Ao mesmo tempo, constituiu-se num dos poucos canais de publicização e denúncia dos conflitos existentes no País (15). Conseguiu, assim, manter viva essa palavra de ordem, principal símbolo das lutas dos trabalhadores do campo no período pré-golpe, e procurou fazer dela o elo unificador das demandas dos diferentes segmentos cuja representação pretendia obter e que eram genericamente chamados de "trabalhadores rurais"(16).

Evidentemente, se o recurso à lei representou um importante suporte para suas demandas, na medida em que significava um respaldo legal num contexto autoritário, também implicou numa progressiva redefinição do conteúdo da reforma agrária, vinculando-a à aplicação do texto legal e privilegiando a mediação estatal. No entanto, esse fato não implicou num deslocamento da oposição ao "latifúndio", uma vez que este se definia, para a CONTAG, não a partir da estrita ótica legal, mas fundamentalmente com base nas concepções cristalizadas nos anos 60, quando esse termo se constituiu em um símbolo de dominação e sinônimo de concentração fundiária.

Em seu III Congresso, realizado em 1979, algumas mudanças importantes ocorrem. A CONTAG, ainda defendendo a aplicação do Estatuto da Terra, insistia, no entanto, em que a reforma agrária desejada deveria ser ampla, geral e massiva, no sentido de que, para merecer esse nome, precisaria atingir todo o território nacional, os diferentes segmentos de trabalhadores do campo ("assalariados", "parceiros", "arrendatários", "posseiros", "pequenos proprietários" etc.), em contingentes significativos. O estoque de terras para tal deveria ser buscado através da desapropriação de terras, com pagamentos em títulos da dívida agrária. Assim se posicionando, a CONTAG, em resposta ao perfil das políticas agrícolas e agrárias do Estado nos anos 70, e opondo-se à transferência de trabalhadores para regiões distantes das de sua origem, como forma de resolver conflitos fundiários, também enfatizava que reforma agrária era diferente de colonização (17).

Por esse caminho, negava o modelo de desenvolvimento que se firmava e o alegado caráter empresarial da agricultura. Em decorrência, reiterava sua ênfase na produção familiar como modelo a ser buscado para a agricultura brasileira, relacionando-a com a valorização da produção alimentar, voltada para o mercado interno (18). Se isso implicava em acentuar o significado produtivo da pequena produção e, consequentemente, os frutos econômicos de uma reforma agrária, a entidade também passou a fazer, em especial a partir de seu III Congresso, um resgate da dimensão política dessa bandeira, associando reforma agrária e democracia. Na perspectiva defendida pela CONTAG, somente uma redistribuição fundiária seria capaz de romper com as bases do poder do "latifúndio", termo recorrentemente usado nos documentos sindicais para se referir à forma predominante e concentrada de propriedade da terra e às formas de dominação prevalecentes no agro.

Embora a CONTAG tenha feito da reforma agrária a bandeira unificadora do conjunto das lutas no campo, uma espécie de síntese de categorias e demandas diversificadas, e tenha sido capaz de, através da apropriação do Estatuto da Terra, constituir o acesso à terra em direito, foram poucos os resultados concretos a que conseguiu chegar no início dos anos 80. A conjuntura adversa, a fragmentação das lutas, a "interiorização das lutas de classe" (Palmeira, 1979), o isolamento político dos trabalhadores rurais, uma base sindical extensa e diversificada, sindicatos dominados pelo poder local ou predominantemente voltado para funções assistenciais, o desenvolvimento da figura do sindicalista "prudente" (Novaes, 1987) são alguns dos elementos que podem ser lembrados para explicar esse fato, em que pese o seu esforço em promover uma espécie de ressocializaçao da bandeira reforma agrária (19).

Em meados da década, no processo de constituição de um forte campo de disputa em torno da política sindical e também em torno dos caminhos para a reforma agrária, a CONTAG, como veremos, apostou fortemente nas possibilidades da Nova República. A derrota da proposta reformista, nesse contexto, implicou numa aproximação, pelo menos aparente, entre forças opostas que concorriam pela representação dos trabalhadores rurais. Mais adiante voltaremos ao tema.

3.2.2 - A crítica à concepção contaguiana de reforma agrária e os movimentos de luta por terra

As dificuldades do sindicalismo contaguiano não significaram ausência de tensões no campo e de reação por parte dos trabalhadores. A proliferação dos conflitos fundiários; os efeitos da modernização da agricultura inviabilizando a reprodução de setores do campesinato, em especial na região do sul do país, e gerando contingentes desprovidos de terra; o impacto das grandes hidrelétricas, como é o caso da Itaipu, também expulsando populações, somados aos parcos resultados da ação sindical e a um trabalho da Igreja de apoio e justificativa religiosa à luta por terra resultaram no aparecimento de novas vozes buscando falar pelos trabalhadores do campo e encaminhar suas demandas. Entre elas destacavam-se movimentos que se apresentavam como uma alternativa às concepções contaguianas mas, principalmente, à sua prática em relação aos conflitos. É o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), das "oposições" sindicais que se organizaram através da CUT e constituíram o Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais (DNTR/CUT).

a) Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra

Originado no sul do país e agregando trabalhadores que ficaram à margem do processo de modernização agrícola, o MST, embora se definindo como uma articulação no interior no movimento sindical, desde logo se caracterizou por uma identidade própria e uma linha de ação distinta da CONTAG (20). Crítico em relação às formas de encaminhamento da questão da terra até então adotadas pelo sindicalismo contaguiano, esse Movimento fez da pressão direta, através de acampamentos e ocupações massivas sua principal forma de luta, posicionando-se frontalmente contra "vias administrativas" de encaminhamento dos conflitos. Com isso, criou fatos políticos significativos e passou a ser progressivamente visto como interlocutor necessário quer por entidades de apoio às lutas do trabalhadores do campo, quer pelo próprio Estado.

Estruturando-se formalmente em 1984 e realizando seu primeiro congresso em 1985, o MST defende desde então uma reforma agrária sob controle dos trabalhadores (a CONTAG falava "com a participação"), desapropriação de todas as propriedades com mais de 500 hectares, expropriação das terras das multinacionais, extinção do Estatuto da Terra e criação de novas leis "com a participação dos trabalhadores e a partir da prática de luta dos mesmos". Para obter a reforma agrária, o caminho escolhido foi a ocupação de terras: "terra não se ganha, se conquista" constituiu-se no lema do Movimento.

Na concepção do MST, o motor da luta por reforma agrária são as lutas por terra que, no entanto, apresentam um caráter corporativista e precisam ganhar um caráter massivo, permanente e classista. Trata-se, para viabilizar uma transformação fundiária, de incentivar as lutas de massa e uma política de alianças com outros segmentos da classe trabalhadora, uma vez que ela está vinculada a uma estratégia revolucionária, à mudança do atual sistema econômico e terá necessariamente um caráter socialista (MST, 1991:20). Sob essa ótica, as ocupações "e outras formas massivas de luta por terra" são vistas como ações educativas "para a necessidade da tomada do poder e implantação de um novo sistema econômico: o socialismo" (:20) (21).

Para o MST, os interessados num processo de reforma agrária são todas as categorias de trabalhadores rurais, desde camponeses com pouca terra, camponeses sem terra, assalariados rurais e sub-empregados urbanos. Segundo ele, "também aos operários interessa a realização da reforma agrária, seja do ponto de vista da solução de seus problemas econômicos e sociais, seja pelo caráter político de aliança com os camponeses para a tomada do poder" (:20).

Inicialmente de caráter localizado, com fortes bases no sul do país, o MST, a partir de meados dos anos 80, se estendeu nacionalmente, promovendo ações de ocupação de terra, criando fatos políticos e se impondo como referência para um conjunto expressivo de conflitos que se davam por todo o país. Conseguindo algumas desapropriações e assentamentos de trabalhadores nos anos 85/86, o MST passou a desenvolver uma política voltada para a garantia das "áreas conquistadas", que se configurou na proposta de "cooperação agrícola". Nesse processo, ao lema "ocupar e resistir" se agregou a expressão "produzir", e novas preocupações emergiram: reforma agrária deveria significar implicar também em mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento atual da agricultura, envolvendo não somente a estrutura da posse e uso da terra, mas dos meios de produção, crédito, assistência técnica, política de preços e relações com a agroindústria (MST, 1991:23).

Ressalta na proposta do MST a defesa das unidades cooperadas, vistas como uma forma superior de produção, que não só permitiriam ganhos de escala como a superação do que consideravam o "individualismo" inerente à produção camponesa.

b)O Movimento dos "Seringueiros"

É nessa mesma conjuntura de ampliação dos espaços de conflito, que emerge, também da resistência na terra, um outro movimento que ganha perfil próprio, autonomizando-se em relação ao sindicalismo.

Acossados pelas grandes empresas agropecuárias que estavam promovendo a derrubada dos seringais nativos, especialmente no Acre, os seringueiros, através da organização sindical, procuravam, utilizando-se dos "empates", embargar o desmatamento, ao mesmo tempo em que lutavam pela desapropriação das áreas em questão (22).

Algumas experiências de desapropriação de seringais, ainda nos anos 70, e assentamento de seringueiros em lotes individuais mostraram-se inadequadas à preservação do modo de vida e trabalho desse segmento social, resultando em abandono da terra e maior pauperização. O resultado da constatação desse fenômeno foi a proposta de um modelo de exploração da terra calcado na experiência das reservas indígenas. Nesse sentido, no Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros da Amazônia, realizado em outubro de 1985, em Brasília, e que resultou na criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (23), apareceu a exigência de uma política de desenvolvimento para a Amazônia que tivesse como referência os interesses, direitos, experiências e cultura dos "habitantes da floresta" e de que os projetos de desenvolvimento incluíssem a preservação das matas ocupadas e exploradas por eles.

No Encontro apareceu, explicitamente, a demanda por reforma agrária, entendida como desapropriação dos seringais nativos, demarcação das colocações pelos próprios seringueiros, através das estradas de seringa, não divisão da terra em lotes, não pagamento de indenização das áreas desapropriadas e definição legal das áreas ocupadas pelos seringueiros como "reservas extrativistas". Caberia ao Estado assegurar a regularização fundiária dessas áreas e estabelecer políticas voltadas para o apoio às atividades econômicas e sociais reivindicadas pelo movimento, garantindo-se, por esse caminho, a viabilização da implantação das reservas extrativistas. O CNS promoveu, assim, a articulação da questão fundiária com a questão ambiental e redimensionou a sempre debatida questão da viabilidade econômica das áreas de reservas, na ótica de que a floresta tem mais valor em pé do que derrubada.

Com esse tipo de formulação, o movimento dos "seringueiros" aponta para uma das dimensões centrais da redefinição do sentido da reforma agrária nos anos 80: a defesa do respeito às peculiaridades locais, em contraposição a um modelo nacional único de reforma agrária, com base na propriedade familiar, que parecia ser o eixo da proposta defendida pela CONTAG. Ao mesmo tempo, interpelou a concepção dominante de desenvolvimento, recusando a modernização a qualquer custo e colocando em pauta a questão da preservação ambiental (24).

c) O Movimento dos Atingidos por Barragens

O final dos anos 70 e início dos anos 80 assistiu o nascimento de conflitos envolvendo trabalhadores (pequenos produtores, posseiros, arrendatários, parceiros) deslocados de suas terras em virtude da construção de grandes projetos hidrelétricos. De lutas localizadas (Itaipu, no Paraná, Itaparica em Pernambuco, Alto Uruguai, no Rio Grande do Sul, Tucuruí no Pará etc.), que demandavam, num primeiro momento, indenização justa para os atingidos pelos reservatórios, as reivindicações caminharam na direção de "terra por terra", posteriormente para o "não às barragens" e acabaram por questionar toda a política energética do governo.

O Movimento Nacional dos Trabalhadores Atingidos por Barragens (MAB) constituiu-se como tal em 1991, como articulação desses movimentos locais e regionais, demandando profundas reformas nas atuais políticas energéticas e de implantação de projetos de irrigação, resolução dos problemas ambientais gerados pela construção de barragens e da situação das populações afetadas.

Do ponto de vista que nos interessa neste momento, as lutas dos "atingidos" tem questionado o processo através do qual se dá a remoção dos trabalhadores das áreas afetadas e insistido na demanda de "terra por terra", o que implica a exigência de uma política de reassentamentos. Essas demandas específicas encontram-se em todos os documentos dos encontros de "atingidos". É a partir delas que se insere no Movimento a questão da terra e a defesa da reforma agrária, em diversos momentos em íntima articulação com o sindicalismo rural (25).

Por outro lado, o movimento dos "atingidos" passou a elaborar, na sua trajetória, na medida em que interpelava diretamente o setor energético, uma crítica ao modelo de desenvolvimento vigente, apontando a exclusão dos trabalhadores dos processos decisórios de planejamento e implantação dos programas do setor. Ao mesmo tempo em que o fazia, também colocava em questão a idéia de progresso que dava suporte às políticas de Estado.

d) a articulação das "oposições" sindicais no campo e a CUT

O DNTR/CUT, criado em 1989, é resultado de uma articulação que se constituiu a partir de "oposições" sindicais em diferentes pontos do país, no início dos anos 80, e que iriam se agregar através da CUT, inicialmente formando uma Secretaria e, num segundo momento, um Departamento. Algumas dessas oposições surgiram a partir de lutas por terra; outras, de lutas de pequenos produtores.

Em que pese a enorme diversidade de situações concretas que geraram essas "oposições", o que as articulava era uma crítica às práticas da CONTAG, em especial no que se refere à condução das lutas por terra. Intimamente vinculadas ao MST, trouxeram para o interior da CUT as propostas desse movimento, no que se refere à concepção de reforma agrária (26). Dentre elas, vale destacar, no contexto do debate sobre o PNRA da Nova República, em meados dos anos 80, uma leitura extremamente negativa do Estatuto da Terra.

A progressiva solidificação dessa vertente sindical, em oposição às concepções do sindicalismo contaguiano, acabou por desaguar na constituição, no interior da CUT, de um Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais.

No seu I Congresso, realizado em 1990, embora haja um reconhecimento do papel político da CONTAG, no sentido de manter vivas algumas das bandeiras centrais dos trabalhadores, entre elas a reforma agrária, o DNTR colocou-se como alternativa sindical a essa entidade e buscou diferenciar sua proposta.

No que se refere ao conteúdo da reforma agrária, ela aparecia como tendo caráter estratégico para a tomada do poder. Daí a importância da construção de alianças mais amplas que a viabilizassem, em especial com trabalhadores urbanos.

Para o DNTR/CUT, a vanguarda da luta pela terra seria o MST, mas caberia à Central Sindical a globalização dessa luta para dar-lhe o necessário alcance político. A reforma agrária seria, pois, compreendida como eixo de mudança do modelo de desenvolvimento, baseando-o na produção familiar e visando a distribuição de renda, a democratização política e dos recursos tecnológicos, assim como a mudança da estrutura fundiária e de mercado. Dessa ótica, tratava-se de evitar o isolamento político, pois, segundo o DNTR, enquanto a reivindicação da reforma agrária não for decididamente assumida pelo conjunto do movimento, sempre permanecerá com o caráter de uma luta particular dos "sem-terra" pela conquista da terra. Era também sempre colocada a necessidade de massificar as lutas, articular a elas os "posseiros", desenvolver a produção nas áreas conquistadas.

O DNTR propunha, para viabilização da reforma agrária, a desapropriação de todos os latifúndios e, segundo as resoluções do seu 1o. Congresso, ocupações em massa "para se contrapor ao Plano de reforma agrária do governo".

Resguardando a ênfase na ocupação massiva de terras, o DNTR, no entanto, também valoriza os campos institucional e ideológico, como esferas onde se deve travar a luta por reforma agrária.

3.3 - As rupturas com a herança

Como se pode verificar, em meados dos anos 80, num momento de intensa mobilização popular, quer em torno de demandas específicas, quer de questões políticas gerais (movimento das "diretas já"), a luta por terra apresentou facetas diferenciadas e foi conduzida não só pelo seu tradicional porta-voz, o sindicalismo rural contaguiano, como por outros movimentos, de caráter mais ou menos localizado, que indicavam as formas específicas através das quais essa luta se desenvolvia. Surgem também, nesse processo, leituras diferenciadas em torno da sua natureza, dos seus objetivos, das formas mais adequadas para atingi-los.

O início dos anos 80 apareceu assim como um momento de explicitação do diverso, onde, numa acirrada disputa política, era constituída a identidade de cada um desses movimentos, através da afirmação de projetos distintos e da defesa de formas de ação diferenciadas. No entanto, é sempre necessário enfatizar que esse diverso não excluiu alianças e a busca de unidade de ação em momentos politicamente decisivos. O melhor exemplo seria a emergência da Campanha Nacional pela Reforma Agrária que, desde sua criação, em 1983, vem exercendo o papel de articulador de propostas comuns, de divulgador do tema e de espaço de discussão e problematização dos rumos da reforma agrária.

Um dos momentos cruciais das disputas que mencionamos ocorreu no IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, promovido pela CONTAG em maio de 1985, na mesma ocasião em que o governo da Nova República anunciava a sua Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária. Em acirrados debates entre posições diferentes em torno da atitude a ser tomada em relação à Nova República e às suas iniciativas, e que implicavam e afirmar publicamente posturas e identidades sindicais distintas, discutiu-se intensamente a atualidade do Estatuto da Terra enquanto instrumento capaz de viabilizar transformações fundiárias.

Embora as forças ali presentes tenham chegado a um consenso a nível do que deveria constar do documento final do Congresso, apresentando o Estatuto da Terra como ponto de partida para uma reforma agrária, reconheceu-se a necessidade de elaborar uma nova proposta a ser apresentada à Constituinte, proposta onde estavam contidas uma série de pontos debatidos no Congresso e que implicavam não só em alterações profundas na lei vigente, como também numa inversão de seus objetivos. Propunha-se, entre outras coisas, a possibilidade de desapropriação de empresas rurais, o pagamento de benfeitorias das terras desapropriadas em títulos da dívida agrária, estabelecimento de uma área máxima, definida em módulos rurais, perda sumária da propriedade acima de três módulos quando 50% de sua área agricultável não fosse utilizada, confisco de terras griladas ou com titulação duvidosa, distribuição gratuita de terras aos trabalhadores beneficiados pela reforma agrária etc.

Ampliando os objetivos do Estatuto da Terra, a proposta em pauta radicalizava o distributivismo, na medida em que ampliava substantivamente as possibilidades de desapropriação. Ao mesmo tempo em que mantinha o ideal da unidade familiar, mencionava a possibilidade de propriedade coletiva e, nos casos de grandes unidades produtivas, especificamente da cana-de-açúcar, referia-se à sua gestão coletiva pelos trabalhadores.

Reiterava também o vínculo entre reforma agrária e democracia, considerando que o acesso à terra era a primeira condição para superar a secular exclusão dos trabalhadores do campo.

O conjunto das resoluções trazia, assim, um rompimento com os parâmetros do Estatuto da Terra, principalmente através da ampliação do campo possível de desapropriações e das propostas de confisco e de perda sumária. Num momento de intensa mobilização dos trabalhadores rurais pela reforma agrária e de euforia com as possibilidades da Nova República, esperava-se poder influir decisivamente nos rumos da Constituinte, apostando principalmente na capacidade da pressão popular e do espectro de alianças que poderia ser construído a partir dela.

Através da luta dos "seringueiros" e dos "atingidos por barragens", a discussão ambiental também começou a ser associada à reforma agrária, a partir da concepção de formas de trabalho que tivessem uma relação menos predatória com a natureza e de um outro modelo de desenvolvimento, cujos parâmetros não fossem o progresso tecnológico a qualquer custo.

3.4 - Pressionar/negociar: os dilemas da relação com o Estado

Se por ocasião do IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais foi possível um acordo a nível de propostas entre forças políticas distintas, no momento seguinte há um novo espaço de diferenciação.

O anúncio da Proposta do PNRA aparece aí como crucial. Esse documento, cuja elaboração se deu logo no início da Nova República e contou com a ativa participação quer de conhecidos defensores da reforma agrária, como é o caso de José Gomes da Silva, fundador e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), quer de dirigentes e assessores sindicais vinculados à CONTAG, simbolicamente foi dado a público durante o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais. Nele a reforma agrária aparecia consignada como uma das prioridades do novo governo. Entre os seus pontos de destaque, mencionamos:

a) a desapropriação por interesse social era considerada o principal instrumento de reforma agrária, marcando uma ruptura com todos as propostas e medidas dos governos militares, que tenderam a encará-lo como último recurso;

b) a indenização das terras desapropriadas seria feita com base no valor declarado para fins de cobrança do imposto territorial rural. Sendo este um preço reconhecidamente abaixo do vigente no mercado, a Proposta assumia, de forma explícita, a concepção de penalização dos proprietários fundiários pelo não cumprimento da função social da terra;

c) o programa básico da Proposta era o de assentamentos (colonização, regularização fundiária, mecanismos tributários, apareciam como complementares). Propunha-se o reconhecimento das formas de organização da produção e o sistema de apossamento preexistentes, o estímulo à exploração cooperativa, condominial ou comunitária da terra, da produção, da comercialização e da transformação agro-industrial e assumia-se a necessidade de evitar o deslocamento dos beneficiários de seus lugares de origem;

d) dever-se-ia assentar, no prazo de quinze anos, sete dos dez e meio milhões de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra (número estimado). Os restantes estariam empregados no setor empresarial da agricultura, como assalariados (27);

e) estava prevista a participação das organizações representativas dos trabalhadores em todas as fases do processo;

f) embora com objetivos econômicos, a Proposta era considerada como um programa da área social do governo.

Levando às últimas conseqüências as possibilidades desapropriatórias do Estatuto da Terra, a Proposta, enquanto tal, encontrou resistências do MST que, no entanto, não só foi chamado a dar sugestões no momento de sua elaboração como, em momentos críticos que se seguem a seu anúncio, acabou por lhe dar um certo apoio tático. A CUT também a denunciou como sendo a versão rural do "pacto social", em diversas circunstâncias proposto pelo governo Sarney.

Neste momento politicamente decisivo, a disputa no interior da representação dos trabalhadores passou a se dar não apenas em termos do que deveria ser a reforma agrária (tratava-se agora de conseguir o "possível"), mas fundamentalmente sobre a natureza das formas de pressão para viabilizá-la. Assim, se a CONTAG privilegiou a negociação e confiou na possibilidade de execução do Plano, tendo em vista a composição das direções do MIRAD e INCRA (28), o MST optou pelas ocupações massivas de terra, com a perspectiva não apenas de que a reforma agrária deveria ser feita pelos trabalhadores, mas principalmente de que a pressão direta e a política de fatos consumados seriam a garantia de que não haveria retrocesso por parte do governo.

Se foi possível, pois, no IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais construir um "consenso" a nível do documento de resoluções, na prática, as diferentes forças afirmavam suas concepções, marcando posições e buscando ganhar espaços numa conjuntura que parecia abrir múltiplas possibilidades políticas. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer o fato de que parece ter havido uma certa conjugação de esforços para que o Plano tivesse algum avanço, especialmente a partir do momento em que ele passou a ser profundamente questionado por diferentes setores políticos e rarefez-se sua base de sustentação (29).

3.5 - A derrota da Proposta de PNRA e suas conseqüências institucionais

Não cabe aqui desenvolver todas as discussões que tiveram lugar em torno da Proposta do PNRA (30). Gostaríamos apenas de assinalar que elas, bem como a posterior derrota da Proposta, introduziram novos termos para o debate.

A ênfase na negociação como substituto à desapropriação eliminou o caráter punitivo que as desapropriações teriam, na medida em que previam utilizar como base de avaliação o valor fiscal da propriedade. A polêmica que se abriu em torno do que é imóvel "produtivo" levou a que, na redação final do PNRA (e nos documentos subsequentes), ficasse preservado todo o imóvel rural, fosse latifúndio por exploração ou dimensão, desde que cumprisse a função social prevista no Estatuto da Terra. Como o indica Graziano da Silva (1985:17), abria-se uma brecha para que, havendo uma parte produtiva, todo imóvel fosse preservado da desapropriação. Inicia-se, assim, a nível dos termos legais, a descaracterização do "latifúndio". Inverteu-se a leitura contida no Estatuto da Terra sobre os imóveis que tivessem alta incidência de arrendatários ou parceiros. Nesse caso, desde que os proprietários cumprissem os princípios legais reguladores dos contratos, não se fariam desapropriações. Com isso, criavam-se condições para a revalorização de formas de exploração da terra que se mostravam, de há muito, geradoras de conflito e que sempre tiveram a marca da precária utilização e do absenteísmo patronal, traço característico do que se considerava "latifúndio". Como veremos, o desdobramento posterior dessa resolução seria a institucionalização das bolsas de arrendamento e parceria como alternativa para o acesso de trabalhadores à terra. Um outro aspecto foi a retomada da preocupação com a utilização das terras públicas, o que se agrega à tendência de não dar peso político às desapropriações. O decreto 7363, de outubro de 1987, que previa a extinção do INCRA e a exclusão das "áreas em produção" da possibilidade de desapropriação, consolidaram essa tendência.

O passo seguinte da redefinição das condições de luta e dos espaços institucionais da reforma agrária verificou-se na Constituição de 1988, da qual trataremos mais adiante.

A derrota do PNRA, com as sucessivas alterações pelas quais passou, bem como a derrota das reivindicações dos trabalhadores na Constituição de 1988, implicaram, por um lado, num refluxo do movimento de ocupações de terra, visto que foram praticamente desmontadas as bases legais que viabilizavam as desapropriações das áreas de tensão. Por outro, as desapropriações realizadas nos anos 85/86, nos primeiros momentos do PNRA, colocaram novas questões para se pensar a reforma agrária, entre elas a da viabilização dos assentamentos existentes, das reservas extrativistas, dos experimentos associativos, etc. Atualizou ainda o debate sobre o lugar e o significado da pequena produção.

4 - Os aliados

Na demanda por reforma agrária, diversas forças se aliaram aos trabalhadores do campo. Dentre elas, destacaremos, neste capítulo, a Igreja Católica, as Centrais Sindicais e as ONGs.

4.1 - A Igreja Católica e a reforma agrária

Se, desde os anos 50, a Igreja Católica vinha se posicionando no debate em torno da reforma agrária, foi nos anos 70 que ela passou a se identificar mais claramente com a questão, incentivando e apoiando as lutas de resistência dos trabalhadores rurais, em especial nas áreas de posseiros. Foi através da prática da Igreja no campo que muitos dos conflitos por terra vieram a público e os trabalhadores neles envolvidos ganharam aliados e fôlego para resistir à pressão que sofriam. O resultado concreto dessa prática foi a criação, em 1975, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), como um "serviço" específico.

O marco mais recente das preocupações doutrinais da Igreja Católica com a questão agrária foi, no entanto, o documento Igreja e Problemas da Terra, aprovado na 18a. Assembléia da CNBB, em 1980, e que passou a informar suas concepções sobre o tema. Nesse documento, a Igreja denunciava a injustiça social, uma injustiça institucionalizada, que "acontece quando a propriedade é um bem absoluto, usado como instrumento de exploração. Essa situação tornou-se exacerbada com o caminho do desenvolvimento econômico que vem sendo percorrido em nosso país, escolhido sem a participação popular" (CNBB, 1980:13). Criticava ainda o modelo econômico vigente, o perfil da modernização, o grau de exploração dos trabalhadores e fazia a defesa da função social da terra e dos meios de produção. Com base em documentos papais, afirmava que "toda propriedade privada está de certo modo penhorada, gravada pelo compromisso de sua destinação social" (:29).

A defesa da função social da propriedade desaguou na distinção entre "terra de exploração" ou "terra de negócio", "terra de trabalho" e "terra de produção". A "terra de exploração" era aquela da qual o capital se apropriava para gerar sempre novos e crescentes lucros, que podiam vir tanto da exploração do trabalho daqueles que perderam a terra e demais meios de produção (ou que nunca tiveram acesso a eles) quanto da especulação. "Terra de trabalho" era a apropriada por quem nela trabalhava. Não era terra para explorar os outros nem para especular. Segundo o documento, a concepção de "terra de trabalho" aparecia fortemente no direito popular de propriedade familiar, tribal, comunitária e na posse. Essas formas de uso, consideradas alternativas à exploração capitalista, viabilizavam o trabalho comunitário, até em áreas extensas, e a utilização de uma tecnologia adequada, tornando dispensável a exploração do trabalho alheio. Quanto à "terra de produção", tratava-se da "propriedade rural que respeita os direitos dos trabalhadores, segundo as exigências da doutrina social da Igreja" (:30). O documento introduzia, pois, uma diferença entre formas de propriedade, baseada no fato de ser ou não instrumento de exploração, e valorizava a "terra de trabalho", com base no princípio de que o trabalho legitimava a sua posse e que a propriedade era condição indispensável para o homem ser livre e ter criatividade.

A partir desses elementos, a Igreja assumiu o compromisso de denúncia das situações de injustiça, apoio às iniciativas e organizações dos trabalhadores, à sua participação consciente e crítica em sindicatos, associações etc., e às iniciativas em direção à reforma agrária, que lhe possibilitassem "o acesso à terra e condições favoráveis para seu cultivo. Para efetivá-la, queremos valorizar, defender e promover os regimes de propriedade familiar, da posse, da propriedade tribal dos povos indígenas, da propriedade comunitária em que a terra é concebida como instrumento de trabalho"(:34).

Na ótica da CNBB, enquanto o sistema político-econômico estivesse a favor dos lucros de um pequeno número de capitalistas e enquanto o modelo educacional servisse de instrumento de manutenção do sistema, inclusive desestimulando a vida rural e seus valores, não poderia haver solução verdadeira para a situação de injustiça e de exploração do trabalho da maioria (:37).

Segundo Novaes, é a proposta de união entre fé e vida que movimentava o setor da Igreja que vinha apoiando a luta por terra: "a utilização da Bíblia para fundamentar o direito à terra não é apenas um detalhe. Trata-se de difundir um modelo de sociedade, de comunidade cristã (de acordo com o presidente da CNBB nem comunista, nem capitalista). O caráter messiânico de luta pela terra prometida foi a garantia de ressonância da pedagogia do "trabalho de Igreja" junto aos agricultores ameaçados de expulsão, assim como foi o que garantiu a eficácia de sua atuação na medida em que suas denúncias e apelos repercutiam junto a diferentes setores sociais" (Novaes, 1985:62)

Num plano mais geral, a Igreja defendia a reforma agrária no mesmo registro em que diversas forças sociais a situavam: ela deveria ser acompanhada de uma política agrícola adequada e de indispensáveis medidas complementares, apresentando-se como saída, tanto para a crise política, econômica e social do país, como para a fome. A redistribuição fundiária aumentaria a produtividade e a oferta de alimentos para o consumo interno; baixando a inflação e o custo de vida, proporcionaria mais empregos, evitaria o êxodo rural e impediria as invasões precipitadas no campo, o inchaço das cidades, diminuindo a violência urbana. Também na sua concepção, a descentralização da propriedade e, consequentemente, da renda e do poder, seriam fundamentais para firmar a democracia.

Para além das questões doutrinais e dos recorrentes pronunciamentos de parte da hierarquia da Igreja Católica em favor da reforma agrária, no que diz respeito ao apoio concreto à luta por terra, assumiu um papel central para as lutas por terra a presença da CPT, enquanto "serviço evangélico", que se dispunha a atender às necessidades dos movimentos populares no campo. Como tal, a CPT não pretende ter o "seu" projeto de reforma agrária, propondo-se a aderir ao "projeto agrário popular" presente nas lutas pela terra. A tarefa que a CPT se coloca é a de colaborar no crescimento político dos trabalhadores, fazendo análise de situações, de conjuntura e a crítica da ideologia dominante.

No que diz respeito à reforma agrária hoje, a CPT tem enfatizado a preocupação de não isolar a questão agrária, fazendo dela o eixo central da luta pela democracia. Também tem apresentado o que ela chama um "novo enfoque", que parte da concepção, desenvolvida por José de Sousa Martins, de que a proposta de reforma agrária derrotada na década de 80 não foi a dos trabalhadores, mas a dos grupos de mediação, que reduziram a reforma agrária a uma questão econômica. De acordo com a CPT, o novo enfoque da reforma agrária é mais complexo, "valoriza mais a pessoa humana - as pessoas marginalizadas e suas necessidades". Amplia a concepção de conflito, que deve dar conta da problemática social da década de 90: o conflito hoje é o que opõe as grandes massas sem possibilidades de vida ao pequeno número de beneficiados que cercam a terra. Dessa forma, reforma agrária implica numa transformação de toda a sociedade, das relações sociais em que os trabalhadores do campo são, cada dia, mais excluídos de tudo. Ter escola, ter assistência médica e hospitalar, ter lugar e tempo para descanso, celebração e festa, ter o direito de ser diferente, ter o direito de participar e decidir, ter o direito para assegurar para os filhos um futuro com dignidade. Envolve um conjunto de reformas sociais para preservar a vida, os camponeses e sua cidadania" (CPT: 1991). A CPT prega também uma alternativa tecnológica de produção e comercialização. Nesse sentido, sob a ótica de valorização da produção familiar, aposta na implantação de experiências alternativas de agricultura: "os pequenos produtores não podem interferir nos mercados e preços internacionais. Mas podem ir criando e implantando na sociedade novos conceitos de agricultura, novos modelos que valorizem os recursos da natureza e os consumidores da região" (CPT, 1992: 1).

É importante mencionar ainda a crescente importância que os assalariados vem assumindo no trabalho da CPT que, hoje, define como uma de suas linhas de ação aprofundar com eles a discussão sobre a importância da conquista da terra.

4.2 - As centrais sindicais

No início dos anos 80, a luta pela liberdade e autonomia sindicais também se traduziu na constituição, à revelia da legislação então vigente, de centrais sindicais. Essa luta se deu em meio a uma intensa disputa entre as diferentes forças políticas que procuravam hegemonizar o sindicalismo. Do ponto de vista que nos interessa desenvolver aqui, é importante assinalar a marcante presença da CONTAG e das "oposições sindicais rurais" já nos primeiros momentos das articulações para criação da central (31).

Em virtude dessa forte presença rural, desde o I CONCLAT, na Praia Grande, em 1982, bem como no congresso de criação da CUT em 1983, a questão da reforma agrária esteve presente, nos moldes em que ela se colocava pelas diferentes forças que disputavam a representação dos trabalhadores rurais. Mais do que mera retórica, ela ganhava significado também porque a presença dos "rurais" era fundamental na difícil correlação de forças que então se estabeleceu e era um dos componentes das disputas que se delineavam entre as diferentes forças políticas presentes nesses encontros sindicais.

Assim, se num momento de intensa mobilização, a questão da terra aparecia como uma bandeira politicamente crucial, por outro lado, a legitimação de uma central passava também pelo peso que os "rurais" pudessem nela ter. É por aí que se pode entender a batalha que se trava pelo controle da presença dos "rurais".

A CUT constituiu-se no espaço principal de articulação das "oposições" à linha de ação da CONTAG, realçando temas como estrutura sindical, formas de luta, etc. (Medeiros, 1989; Novaes, 1991). No que se refere à reforma agrária, as forças que convergiram para a CUT, defendiam algumas posições semelhantes às da CONTAG, como, por exemplo, a de que essa demanda se constituía em uma luta pela democracia e contra a concentração de terra, poder e renda. Nessa perspectiva, a luta pela terra teria um caráter nacional, amplo e somente os trabalhadores da cidade e do campo poderiam levá-la até o fim. A CUT se diferenciava, no entanto, demandando garantia da propriedade da terra para quem nela vivesse e trabalhasse; desapropriação, sem indenização, dos latifúndios; assentamento nas terras conquistadas sob a coordenação das organizações dos trabalhadores e propondo-se a apoiar e organizar coletivamente ocupações de terras promovidas pelos trabalhadores sem terra.

No seu II Congresso, realizado em 1986, a CUT buscava marcar sua posição, distinta da assumida pela CONTAG em relação ao PNRA, defendendo que esse documento era o instrumento de realização de um pacto social para o campo e tinha por finalidades principais tanto frear as lutas que estavam para acontecer, como isolar os setores mais combativos do movimento e as lutas mais radicalizadas.

Na sua concepção mais geral a respeito do tema, a CUT também se diferenciava em relação à CONTAG e CONCLAT: a concepção de reforma agrária que defendia era aquela que apontava para a acumulação de forças como bandeira geral de luta contra a "opressão capitalista". Dessa ótica, na perspectiva da CUT, embora a reforma agrária pudesse ser iniciada no capitalismo, não se concluía nele, visto que colocava em questão a hegemonia das classes dominantes.

A CONCLAT e posteriormente a CGT também colocaram-se favoravelmente em relação à reforma agrária, em termos próximos aos da CONTAG. Isto, no entanto, não garantiu a adesão formal desta última entidade a qualquer das centrais sindicais, embora, a sua principal liderança, José Francisco da Silva, acabasse por ocupar o cargo de vice-presidente da CONCLAT.

Mais recentemente, a reforma agrária continua a figurar entre as principais bandeiras das centrais. A CUT assume as posições do DNTR; a CGT, sem expressão política no meio rural, defende a desapropriação de áreas de conflito, promoção de novos assentamentos, para promover o real aproveitamento dos recursos humanos e materiais investidos. Também demanda uma política agrícola voltada para a produção de alimentos, baseada no cooperativismo, tanto na produção como na distribuição. Propõe ainda que sejam contempladas a regionalização e as vantagens naturais, tecnologias apropriadas para baratear custos e uma clara defesa da renda agrícola que leve a melhores condições de vida.

Quando se constituiu a Força Sindical, embora essa central também não tivesse implantação no campo, inevitavelmente colocou-se a questão da reforma agrária, embora em novos termos, distintos dos que permeiam as discussões entre as entidades de representação dos trabalhadores rurais. No Congresso de criação dessa entidade, realizado em março de 1991, afirmou-se como princípio a "retomada da reforma agrária sob a ótica da contemporaneidade, sem ideologização da luta, buscando detonar de imediato o processo institucional de aproveitamento das terras devolutas, com prioridade para a produção e distribuição de alimentos" (DIEESE, 1991).

A adoção, por todas as centrais sindicais, da bandeira reforma agrária, indica quer o significado político do tema, quer a importância, para uma central sindical no Brasil de hoje, da adesão dos trabalhadores rurais. Essa adesão, no entanto, claramente não se refletiu numa capacidade mobilizatória dos segmentos urbanos em defesa dessa palavra de ordem e nem na sua presença ativa nas lutas por terra. Na verdade, ela sempre apareceu como uma questão dos "rurais".

Esse fato indica também uma ruptura com os anos 60, a mostrar como, na década de 80, a reforma agrária passou a ser tratada como uma questão para um segmento e não para o conjunto da sociedade, em que pese a tentativa mais ou menos intensa, conforme o caso, das centrais sindicais em fazer essa ligação no plano mais geral de suas reivindicações. A questão agrária no cotidiano das centrais parece ganhar relevo unicamente a nível da denúncia eventual de sua manifestação mais dramática: a violência que se abate sobre o campo.

4.3 - As ONGs

Os anos 70 tiveram como uma de suas características a consolidação das organizações não governamentais (ONGs), de diferentes perfis. Realizando trabalhos de "assessoria" e "formação", participando diretamente da "organização popular", elas tiveram um papel decisivo no revigoramento das lutas populares nos anos 80, em especial no que se refere ao campo (32). De acordo com Landim (1988:49), "numa sociedade onde o Estado é forte e autoritário, marcando sua presença na quase totalidade dos espaços sociais, as ONGs brasileiras surgem radicalmente voltadas para a sociedade civil. Redutos de iniciativas que caracterizavam uma resistência à ditadura militar, num primeiro momento; espaços institucionais voltados para a rearticulação de uma 'sociedade civil popular', num segundo: é a partir daí que se define o papel das ONGs".

Essas entidades, nas palavras de Fernandes (1988:11/12), "estimularam uma variada gama de iniciativas dirigidas às bases da sociedade com o objetivo explícito de torná-las (as iniciativas e as bases) mais independentes em relação ao Estado. Tornaram-se, nesta medida, um fator de organização das classes populares (ou da cidadania) diferente, pois que não definiam sua atividade como um meio para a conquista do poder. A originalidade das ONGs foi justamente esta: dedicar-se, por definição institucional, aos movimentos que ocorrem nos níveis intermediários e inferiores do corpo político e social".

No que se refere especificamente à questão agrária, elas desempenharam um papel importante, quer de suporte direto, através de atividades ligadas à assessoria e formação, como de publicização das lutas, num esforço de construção de um ampla rede de apoios. As publicações da ABRA, CEDI, FASE, IBASE, NOVA são alguns exemplos disso. Elas tiveram também um papel central no que se refere à socialização de experiências locais.

A ABRA, por exemplo, que surgiu para funcionar como "núcleo de pressão" pela reforma agrária, foi criada já em 1967 (Gomes da Silva, 1992:8). Intimamente articulada com o sindicalismo rural, foi, nos anos 70, um dos significativos canais que manteve aceso o debate sobre a reforma agrária, constituindo-se, desde então em espaço de intervenção, crítica e denúncia das questões ligadas ao campo.

A FASE também foi um desses espaços, quer promovendo debates e socializando-os, através de suas publicações, quer atuando, por meio de suas regionais, diretamente nas experiências de organização de pequenos produtores e assalariados.

Também o CEDI, no final dos anos 70, criou seu programa Movimentos Camponês e Igrejas, no bojo do qual se produziram importantes análises sobre experiências de organização de trabalhadores rurais, tendo ainda uma intervenção direta, através de assessorias, participação em seminários, cursos etc. na conformação do sindicalismo cutista no campo e no Movimento dos Atingidos por Barragens.

No que se refere ao IBASE, desde sua origem, no início dos anos 80, pautou-se pelo monitoramento de políticas públicas e denúncia das desigualdades sociais e da violência no campo, constituindo-se ao mesmo tempo no espaço articulador de um conjunto de instituições na defesa da reforma agrária, através da sua presença decisiva na concretização de uma Campanha Nacional pela Reforma Agrária, criada em 1983.

Além das chamadas "grandes ONGs", os anos 80 viram a disseminação de várias entidades de caráter local, voltadas para trabalhos específicos e que são fundamentais para se entender a vitalidade da proposta reformista.

O tema da atuação das ONGs na organização dos trabalhadores rurais e de seu papel como espaço de divulgação e denúncia ainda está por ser investigado. Talvez seja difícil buscar nessas entidades uma posição clara em termos de conteúdo de uma proposta de reforma agrária. Algumas delas, como a ABRA, define-se claramente por uma diversidade de posições a nível de sua diretoria. Em outras, é visível o alinhamento com um ou outro segmento do sindicalismo ou dos movimentos populares. Outras ainda pautam sua ação pelo acompanhamento do tema e produção de informações e conhecimentos, sem maior aproximação com um ou outro grupo. Em qualquer dos casos, elas têm sido durante as duas últimas décadas um personagem nem sempre muito visível mas, no entanto, bastante importante no cenário das lutas no campo e referência para os diferentes movimentos, que encontram nelas parceiros privilegiados. Têm sido ainda espaço onde se aprofunda a discussão sobre a organização dos trabalhadores, dimensões culturais e ambientais de suas práticas e, como tal, vêm contribuindo para configurar os novos termos que a questão agrária vem assumindo.


5 - Os empresários e a reforma agrária: modernização e direito de propriedade

Já nos anos 50/60, a mobilização dos trabalhadores rurais por reforma agrária provocou forte reação das classes dominantes. Para além do já conhecido recurso à violência e articulações políticas para se confrontar no espaço institucional com o poder que se gerava na ação dos movimentos sociais, é preciso também lembrar que o debate sobre a inadequação da agricultura ao projeto de desenvolvimento nacional (33) e um certo consenso antilatifundiário que se constituiu nesse contexto, atingiu os proprietários fundiários. Esse segmento, ao mesmo tempo em que combatia, por todos os meios à sua disposição (34), as propostas de reforma agrária baseadas numa distribuição de terras, absorvia o tema e apresentava a sua versão sobre ele, que consistia basicamente na modernização da agricultura com o apoio do Estado. Na ótica das entidades de representação patronais de então, a alteração da base técnica da agricultura não ocorria porque eram os recursos provindos desse setor que sustentavam a industrialização do país, enquanto as atividades agrícolas se descapitalizavam e necessitavam de crédito, assistência técnica, apoio à mecanização etc. Esse quadro deveria ser revertido, para permitir a superação do "atraso" e a melhoria das condições de vida do "homem do campo".

A aprovação do Estatuto da Terra recebeu fortes críticas dos setores vinculados à propriedade fundiária, que chegaram mesmo a ameaçar "pegar em armas contra a revolução que ajudaram a fazer". No embate político que se seguiu, foi a perspectiva desse segmento que acabou vencedora, como o demonstram os mecanismos de apoio à agricultura que então se criaram (crédito farto e barato, apoio aos produtos voltados ao mercado externo, mecanismos de preços, pesquisa agrícola, etc.) e que levaram um forte estímulo à agroindustrialização. Por outro lado, os incentivos fiscais e os "projetos especiais" fizeram da aquisição de terras um excelente negócio. Nesse momento, os grandes capitais, vinculados a atividades financeiras e/ou industriais, se voltaram para o campo com o objetivo de obter, a baixos preços, terras cujo destino nem sempre foram as atividades produtivas. Diversos analistas apontam que a pecuária extensiva foi a fachada que permitiu o acesso a recursos creditícios fartos, à exploração predatória de madeiras de lei, a riquezas do subsolo etc. (Delgado, 1985; Palmeira, 1989).

Parcela dos setores ligados à propriedade da terra encravaram seus interesses no interior do aparelho de Estado, controlando decisões ali tomadas (Grzybowski, 1989 c). Sua principal expressão organizativa até então, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), entidade sindical de representação, e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), tradicional canal de expressão da cafeicultura e da pecuária, deixaram de ocupar espaço preeminente na cena pública. No lugar delas, ganharam terreno as associações por produto ou multiproduto, representando interesses específicos, e as grandes cooperativas, expressão do processo intenso de modernização da agricultura, especialmente no centro-sul. Umas e outras passaram a atuar como grupos de pressão e lobbies, barganhando diretamente seus interesses nas ante-salas do Ministério da Agricultura (Graziano da Silva, 1992a). Dessa forma, as demandas dos trabalhadores por desapropriações, nos anos 70, caíam no vazio.

Com a retirada, mesmo que parcial, dos subsídios à agricultura, no início dos anos 80, os empresários rurais voltaram a tomar a iniciativa no sentido de reivindicar o apoio que temiam perder. As primeiras manifestações contra a política de confisco da soja, envolvendo a mobilização de grandes e pequenos produtores, ocorreram nessa época. No entanto, é com a Nova República, o anúncio da Proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária e, principalmente, o revigoramento da demanda por terra com ações diretas dos trabalhadores, através de ocupações de áreas em diversos pontos do país, que os proprietários fundiários atualizaram suas práticas. Resultado disso foi a criação de novas entidades de representação, como é o caso da União Democrática Ruralista (UDR), a realização de grandes eventos tais como congressos, acampamentos em Brasília, leilões de gado para promover arregimentação política e arrecadar fundos para a campanha antireformista, e o aumento das ações de violência contra expressivas lideranças de trabalhadores. Foi possível também perceber a eficaz utililização de seus enclaves no interior do Estado e de seus lobbies junto ao Congresso Nacional e a busca de alianças com setores empresariais urbanos, que se relaciona com a tentativa de criação de um movimento em defesa da livre iniciativa, o MDU, Movimento Democrático Urbano (Tavares, 1989). O resultado é conhecido: pouco sobrou da Proposta do PNRA e as bases legais e institucionais para realização de desapropriações progressivamente se estreitaram. À luta por terra, os proprietários fundiários responderam novamente com a defesa da inviolabilidade do direito de propriedade e com o discurso da valorização da "produção", argumentando que reforma agrária se faz com crédito, tratores e máquinas e não com "agitação".

Essa nova ofensiva teve como uma de suas facetas a constituição de organizações portadoras de uma leitura extremamente crítica da política agrícola, como é o caso da Frente Ampla da Agropecuária Brasileira (FAAB), que reunia em seu seio as principais lideranças empresariais rurais do país.

Vale ressaltar que, no auge do debate sobre o PNRA e na Constituinte, a crítica à especulação fundiária esteve sempre presente nos documentos das entidades patronais. Ela era o contraponto necessário à valorização da atividade do "produtor" rural, identidade politicamente construída nesse momento (Bruno, 1993). Defendiam, inclusive, que as terras voltadas para esse fim deveriam ser desapropriadas. Ao mesmo tempo, alargavam o conceito de propriedade produtiva, considerando como tal até mesmo as terras que estivessem "em vias de serem utilizadas". Chama a atenção também o fato de que, na disputa que então se travou, eles se colocaram como guardiães do Estatuto da Terra, numa cristalina exemplificação da discussão, da qual Thompson é um dos principais expoentes, sobre como a lei pode se constituir em campo de disputas (Thompson, 1987).

Em linhas gerais, em que pesem as diferenças internas ao empresariado rural, o discurso de suas entidades de representação vem se pautando pela defesa do direito irrestrito de propriedade, da utilização de terras públicas para assentamento de trabalhadores e principalmente da primazia da política agrícola sobre a agrária. Segundo eles, o apoio à produção, melhorando as condições de rentabilidade da agricultura, se reverteria em favor dos trabalhadores.

No bojo dessas demandas, revigoram-se antigas práticas, como é o caso da parceria, que vem sendo reativada inclusive como caminho para escapar ao imposto territorial rural e dar utilização a terras antes inaproveitadas. Segundo matéria do jornal O Estado de São Paulo, "ela agora está sendo praticada em larga escala por empresas do porte nada menos que uma Norberto Odebrecht. Na mesma trilha já estão cerca de 300 empresas do setor rural...entre eles se destacam os produtores de cacau da Bahia, cafeicultores e bananicultores do sul de Minas, pecuaristas do Triângulo Mineiro e Goiás e considerável número de fazendeiros de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul" (ESP, 10/7/91). Essa forma de uso da terra também já vem sendo defendida por José Eduardo de Andrade Vieira, do grupo Bamerindus, que, argumentando contra as propostas reformistas da campanha presidencial de 1989, afirmava: "que me perdoem os sonhadores, mas o grande avanço a promover no campo é retroceder - com as devidas correções- à situação anterior ao movimento de 64 e ao Estatuto da Terra. Permitir a volta dos arrendatários e meeiros, dos trabalhadores rurais às fazendas onde tinham, no mínimo, moradia e sustento e criar parâmetros para que não sejam explorados pelos donos da terra" (FSP).

Sobre esse conjunto de temas, é possível falar numa convergência entre os setores considerados mais atrasados tecnologicamente e os setores mais modernizados, as "novas elites", de que fala Bruno (1993).

Essa autora enfatiza que as "novas elites agrárias", para recusar o distributivismo, inerente ao conceito de reforma agrária, argumentam com o padrão de desenvolvimento já consolidado na agricultura e com os riscos de desorganização da produção. Segundo essa ótica, a reforma agrária pode ser inclusive palatável, desde que assuma a forma de política social. E "o discurso sobre o social tem como objetivo descaracterizar a reforma agrária enquanto questão política e negar qualquer possibilidade de fundamentação e atualização da bandeira da reforma agrária a partir de um programa sócio-econômico mais amplo" (Bruno, 1993:18).

A recente constituição da Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG) é indicativa tanto da visão das "novas elites" quanto da dificuldade que se tem hoje em falar de um setor agrícola stritu senso. Reconhecendo os níveis de miséria existentes no país, essa entidade defende a descentralização dos pólos de desenvolvimento, a necessidade de distribuição de renda através da geração de mais empregos, e a constituição do agribusiness como nova alavanca de desenvolvimento. Faz da segurança alimentar um dos eixos de sua intervenção, uma vez que "depende da eficiência do agribusiness a SEGURANÇA ALIMENTAR do país, pedra fundamental de seu desenvolvimento como sociedade justa" (Araújo, 1993:3, grifo do autor). Com essas teses e propondo-se a não se envolver com desacertos setoriais, nem exercer lobbies específicos, a ABAG ratifica as posições centrais das "novas elites agrárias" e se coloca como um forte polo a disputar, na arena política, concepções e rumos do desenvolvimento, onde uma reforma agrária pode existir, mas como política periférica.

Para finalizar este item, uma referência ao empresariado industrial. Nos anos 60, embora as forças de esquerda e as ligadas ao nacional-desenvolvimentismo se alimentassem do mito de um apoio da burguesia industrial na luta contra o "latifúndio", desde logo ficou claro que esse apoio não viria. O período assinalado evidenciou um forte pacto de interesses entre a propriedade fundiária e o capital industrial, pacto esse que se fortaleceu, como já foi apontado, nos anos 70.

Os elaboradores da Proposta do PNRA, marcados pelo mito do caráter antilatifundiário da burguesia industrial brasileira, esperaram o apoio desse segmento. Como se viu, no entanto, ele não ocorreu. A agroindustrialização, os investimentos especulativos em terra consolidaram uma postura que, na verdade, já vinha desde os anos 60 e que somava com a dos empresários rurais na defesa da propriedade (35). Pesquisa por nós realizada em publicações da FIESP mostra um estranho silêncio sobre o tema. Nas poucas manifestações existentes, as sugestões foram no sentido do aproveitamento das terras públicas e de intervenção nas terras "improdutivas". Para exemplificar, no calor do debate sobre a Proposta do PNRA, a principal publicação da entidade dava destaque a uma entrevista com o presidente da Federação das Indústrias do Mato Grosso, onde ele ressaltava os méritos da ocupação do estado por empresas colonizadoras. Através delas, "o empresário do sul veio com a tecnologia, com o conhecimento, com o know-how adquirido em investimentos semelhantes no sul do país, norte do Paraná, e aqui implantou o embrião das cidades. Hoje, elas estão recebendo um contingente muito grande de colonos do sul do país e já se transformaram em municípios com prefeitos eleitos, perfeitamente integrados ao desenvolvimento, contribuindo com a produção agrícola e já apresentando um indício do processo de implantação de agroindústrias no nosso estado... (Canavarros, 1985:16). Aparece também a crítica às desapropriações, atualizando o velho argumento de que é necessário antes preparar o trabalhador: "não se pode pensar em redistribuir terras sem uma ação conjunta de valorização da mão-de-obra rural, a título de infra-estrutura educacional, saúde e remuneração, de forma a manter o homem vinculado à terra e estimular a reversão do êxodo rural... Toda essa infra-estrutura exige volume de recursos muito grande e incompatível com a situação econômico-financeira que o Brasil experimenta atualmente (Maitan, 1985: 34). No geral, destaca-se a ênfase na agroindustrialização e seus resultados, o que se traduziu, recentemente, na criação de um departamento especializado na FIESP.

Quando tomamos outros segmentos do empresariado industrial, que vem se destacando pela crítica às formas tradicionais de organização do setor e se impondo na cena pública através da defesa de valores democráticos, podemos encontrar algumas nuances, mas que não apontam para o rompimento da matriz de pensamento. Destacamos aí o movimento empresarial conhecido por PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais). Segundo seu coordenador nacional, Emerson Kapaz, a prioridade número um do país é o combate ao desemprego, o que só pode ser feito através da recuperação industrial. Na sua ótica, embora a reforma agrária apareça como uma das questões nacionais, o fundamental hoje é estimular a agroindústria e a tecnologia no campo, de forma, porém, a beneficiar o pequeno e o médio produtor, para quem devem se voltar os incentivos do Estado. Sem dúvida, essa é uma diferença importante em relação às propostas da FIESP. Porém, no que se refere à concentração fundiária, embora seja mencionada a necessidade de "cercar" as terras improdutivas, não há explicitação dos caminhos através dos quais isso pode ser feito, e o recurso à desapropriação é descartado: "não que se vá desapropriar essas terras, mas criar um sistema onde elas tenham possibilidade de punição, distribuição ou obrigação de segmentação para começar produzir"(36). Por esse caminho, mais uma vez se explicita a proximidade das lideranças empresariais urbanas com os setores mais modernos no campo, que se expressa na "sintonia fina" (sic) que Kapaz aponta existir entre o PNBE e o pensamento da OCB e da SRB (37), e os limites de qualquer apoio a uma proposta de reforma agrária que signifique real alteração na estrutura da propriedade fundiária.

6 - A viabilização político-institucional

Num quadro de mobilização dos trabalhadores rurais, o tema da reforma agrária reocupou a cena pública. Impôs-se como um dos pontos programáticos da Aliança Democrática e, como vimos, sofreu sucessivas redefinições, explicitando a gama de projetos diferenciados que se abrigavam sob uma mesma palavra de ordem.

Resta refletir um pouco sobre as condições da viabilização política da reforma agrária, tentando perceber o seu significado para os partidos políticos, bem como a sua trajetória no interior do Estado, através dos caminhos institucionais que emergem a partir da Nova República, e que vão estabelecer os marcos da discussão sobre o tema no início dos anos 90.

6.1 - A nova institucionalidade

A atualização da bandeira da reforma agrária, fruto do agravamento dos conflitos fundiários, impôs ao Estado, mesmo durante o regime militar, novas formas de tratamento da questão. Um olhar atento mostra que o tema nunca saiu de seus programas de ação, o que indica a necessidade de respostas mais ágeis, principalmente frente à crescente publicização dos conflitos por terra e, principalmente, a necessidade de lhes impor sua leitura, através de mecanismos de "seletividade" (Offe, 1984). Isso implicou, inclusive, em que, no governo Figueiredo, fosse atribuído um estatuto ministerial ao tema, com a criação do Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários.

A Nova República, atendendo a antigas demandas dos movimentos populares, em especial da CONTAG, no sentido de subordinar o tratamento da questão agrária diretamente à Presidência da República, criou um Ministério específico, o Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (MIRAD), ao qual estaria subordinado o INCRA. Também extinguiu o GETAT e o GEBAM, organismos localizados de intervenção fundiária e que, como foi apontado por alguns analistas (Martins, 1984), eram uma das expressões da militarização da questão agrária.

A centralização decisória não se constituiu, no entanto, em garantia de ampliação dos espaços para realização da reforma fundiária. A análise da trajetória da Proposta de PNRA até a aprovação do Plano e, num segundo momento, do processo Constituinte, não só trouxeram à luz poderes que pareciam fragilizados ante o crescimento urbano-industrial, por um lado, e dos movimentos sociais no campo, por outro, como explicitaram tanto para os atores presentes no processo como para os pesquisadores do tema, a complexidade do jogo de forças que se desenvolvia no interior das diferentes instâncias do Estado. Conforme apontamos anteriormente, a presença de "aliados" ocupando diversos cargos decisórios não foi suficiente para garantir a realização das transformações desejadas pelos trabalhadores do campo. A ausência de uma base parlamentar simpática a essa tese, a forte presença de lobbies empresariais, não só no Congresso, mas em todos os corredores de salas onde decisões importantes eram tomadas, uma cultura institucional cuja marca era a contemporização e burocratização do tratamento dos conflitos fundiários foram também alguns dos fatores explicativos das dificuldades em encaminhar um processo reformista.

6.1.1 - A dimensão legal

Com a derrota da Proposta do PNRA e, consequentemente, de uma leitura desapropriacionista do Estatuto da Terra, a grande batalha no sentido de institucionalizar canais que viabilizassem a realização de transformações significativas na estrutura fundiária deu-se na Constituinte (38).

A Constituição de 1988 tem inscrita em seu texto a reforma agrária (39), como um tema do capítulo da "Ordem econômica e social". Nela foi assegurado que a propriedade deve atender à sua funcho social (art. 5, XXIII), com uma definição explícita do que se entende por tal (aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e trabalhadores). Isso não impediu, no entanto, que a Carta Magna contivesse um conjunto de mecanismos de bloqueio à reforma agrária. Entre eles, destacam-se:

a)as desapropriações devem ser feitas mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis em até 20 anos, a partir do segundo ano. Com isso, consolida-se a tendência dominante, mas que fora questionada em meados dos anos 80, através da proposta do PNRA para que a desapropriação não tivesse o caráter de púnico pelo não uso adequado da terra;

b)tornam-se insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária a pequena e média propriedade rural bem como a propriedade produtiva. As definições dessas categorias seriam objeto de legislação própria.

c)o caráter ambíguo e vago dos critérios de cumprimento de funcho social (exceto no que se refere ao item III, referente à observância das disposições que regulam as relações de trabalho).

Com essas restrições, a Constituição tornou o "latifúndio" insuscetível de desapropriação, pelo menos até que fosse regulamentado o tema através de uma "lei agrária", e eliminou o caráter punitivo, reivindicado pelos movimentos populares, às desapropriações (40).

Em que pesem as denúncias das entidades de representação e de apoio dos trabalhadores do campo, articuladas em torno da CNRA, sobre os óbices que a nova Constituição trouxe à reforma agrária, apontando para as contradições internas do texto, até mesmo a regulamentação da questão foi sendo adiada (41). Foram necessários quase cinco anos para que essa regulamentação fosse feita e, quando sua discussão se iniciou, nova batalha parlamentar se travou, fazendo reviver o "bloco ruralista".

A "Lei Agrária" (lei 8629, de 25/02/93) tal como aprovada pelo Legislativo, definiu que a propriedade que não cumprir sua funcho social é passível de desapropriação; manteve os critérios constitucionais para definição da funcho social; estabeleceu que as terras rurais públicas (de domínio da União, dos estados ou municípios) passariam a ser destinadas preferencialmente à execução da reforma agrária; confirmou o banimento dos termos da lei da categoria "latifúndio", substituído por um critério menos politizado de tamanho, definido modularmente. O critério de produtividade (que já estava contido no Estatuto da Terra, para definir categorias de imóveis) explicitou-se com maior precisão (artigo 6).

Na disputa pela regulamentação, travada nos estreitos termos da Constituição de 1988, as entidades representativas dos trabalhadores conseguiram que o Presidente da República vetasse alguns artigos mantidos pela Câmara e que oporiam óbices ainda maiores a processos desapropriatórios. Referimo-nos em especial do artigo 17, que estabelecia uma escala de desapropriação segundo critérios de produtividade a nível nacional. O veto restabelece a escala de micro-região, meso-região e grande região, alegando que, nos termos da lei, a imposição legal de que "a ordem vocacional das propriedades eleitas para assentamento não pode ferir a preferência de localização na região dos beneficiários". Um outro veto refere-se ao artigo que determinava que o proprietário teria a posse do imóvel desapropriado até o trânsito em julgado da sentença proferida nos autos da ação de desapropriação.

Em que pesem os vetos apostos à lei agrária e a aprovação ainda em 1993 da lei do rito sumário, parecem ter permanecido alguns entraves, na medida em que há alguns pontos controversos, passíveis de discussões judiciais. O mais significativo deles diz respeito à tensão existente entre os requisitos para cumprimento da funcho social e a definição de que terras produtivas não podem ser desapropriadas. Além disso, como bem apontou Guedes Pinto, ao contrário das desapropriações por utilidade pública, onde o proprietário só tem condições de discutir na justiça o valor fixado para ressarcimento, no caso das terras para fins de reforma agrária, o proprietário pode levar à justiça o julgamento do mérito (42).

Apesar da lei agrária ter acentuado o pessimismo de muitos analistas, alguns outros têm chamado a atenção para algumas novidades que ela contém e construído uma interpretação distinta de suas potencialidades. Segundo Fachin (1993), a incorporação do conceito de funcho social à lei ordinária implica na produção de uma espécie de "estribo jurídico" para fazer com que a funcho social da propriedade transcenda a questão das desapropriações por interesse social. Isso implica, de acordo com esse jurista, que a propriedade rural que não cumpra simultaneamente os requisitos inerentes ao conceito de funcho social, deixa de ter proteção jurídica de qualquer espécie, notadamente a proteção processual. Em última instância, torna-se possível sustentar que a propriedade deixou de ser o exercício de uma funcho privada.

A discussão da dimensão institucional legal não pode prescindir de alguns comentários sobre o Poder Judiciário. Para além do texto da lei, há, como vimos, uma prática da lei, uma cultura jurídica que tem marcas particulares. A esse respeito, Fachin (1993) acentua que "o juiz que julga hoje um conflito agrário, é um juiz do Código Civil, ..., é um juiz do Código de 1804 da França,..., é um juiz do direito de propriedade como absoluto, perpétuo, irrenunciável, imperdível, quase que imprescritível, admitindo por exceção o usucapião". Sob essa ótica, a criação de uma justiça agrária poderia contribuir, embora não automaticamente, para superar essa cultura, que tem como decorrência um certo descaso com o conhecimento da realidade e com a possibilidade de formar jurisprudências a partir de situações concretas.

Uma nova batalha se coloca frente à revisão constitucional e há algumas propostas para ela. Do ponto de vista das entidades representativas dos trabalhadores do campo, em que pese sua posição contrária à revisão, trata-se de buscar obter, apesar da claramente desfavorável relação de forças, a limitação da dimensão da propriedade rural, a arrecadação sumária dos bens vagos e ociosos, pagamento de indenização integralmente em títulos da dívida agrária, em 20 anos, e limitado ao valor base do ITR, a imissão imediata na posse do imóvel desapropriado, garantia de apoio técnico e creditício aos assentamentos e aos pequenos agricultores e participação direta dos trabalhadores rurais em todas as etapas do processo de reforma agrária. No entanto, não por acaso, a perspectiva da revisão parece ter apontado para a possibilidade de um renascimento da UDR. É desse grupo a proposta de supressão das TDAs, o que implicaria que qualquer indenização teria que ser feita em dinheiro, inviabilizando definitivamente qualquer proposta de transformação fundiária.

O processo constituinte, que se desdobrou na regulamentação e agora na revisão constitucional, revelou a vitalidade de poderes que se julgava estarem combalidos. Isso é particularmente visível quando se fala na questão agrária e se verifica a constituição de um forte "bloco ruralista" no Congresso, extremamente ágil e eficiente quando o que está em jogo é a defesa do monopólio da propriedade (Bruno, 1993).

Por outro lado, o crescimento da participação dos partidos de esquerda no Congresso e, na atual legislatura, a presença de um certo número de deputados com vínculos orgânicos com o movimento sindical rural ou com o MST vitalizaram o parlamento como um importante espaço de disputa política em torno dos interesses dos trabalhadores do campo. Colocou-se, através dos termos em que se dá essa disputa, um novo desafio para a relação dos movimentos com a institucionalidade: o aprendizado das nuances do processo legislativo e de como operar através de suas brechas. Se esse repto já esteve posto durante todo o regime militar, implicando em saber como explorar as possibilidades da lei, agora a novidade é que os movimentos reconhecem alguns dos parlamentares como seus representantes diretos, permitindo-lhes uma participação de outra qualidade nesse espaço.

6.1.2 - As propostas governamentais de reforma agrária nos anos recentes

A vitória das forças antireformistas que se expressou quer no decreto 2363 de outubro de 1987, quer na Constituição de 1988, não conseguiu tirar o tema da reforma agrária da pauta política. Nem mesmo o curto governo Collor, com seu perfil neoliberal e numa conjuntura de relativa desmobilização dos trabalhadores do campo, pode passar alheio a ele. Extinguindo, no processo da reforma administrativa, o MIRAD, subordinando novamente o tratamento da questão fundiária ao Ministério da Agricultura e nomeando para sua direção Antônio Cabrera, reconhecido publicamente como porta-voz dos interesses dos "produtores rurais" e acusado de vinculações com a UDR, o presidente eleito em 1989 acabou tendo que fazer uma profissão de fé, mesmo que retórica, em torno da importância da reforma agrária.

No entanto, além da negativa de negociar com as lideranças das ocupações de terra, uma das medidas sinalizadoras das concepções do governo foi a criação do Programa Parceria, que visava formar uma grande "bolsa de terras" que permitisse aos "agricultores profissionais" (sic) encontrar áreas a serem arrendadas ou trabalhadas em contrato de parceria. Embora o documento de divulgação do programa explicitasse que ele não fazia parte do Programa de Reforma Agrária, era apresentado como "fundamentalmente um instrumento jurídico que permite melhor aproveitamento das terras produtivas" e todo o texto falava em terras inaproveitadas.

Com essa proposta, deu-se continuidade a uma tendência, que já apontamos anteriormente, de revalorização dessas relações de trabalho como caminho para dar acesso a terras cuja propriedade permaneceria concentrada.

No final do governo Collor, foi divulgado o II Plano Nacional de Reforma Agrária. Nesse documento, quando eram mencionados os agentes da reforma agrária, apontavam-se a Secretaria de Assuntos Estratégicos e o Gabinete Militar, justificado pelo fato dessa medida ser "uma das macroestratégias nacionais, bastante sensível no âmbito psicosocial e que afeta não apenas o desenvolvimento, como a própria Segurança Nacional". Embora não tenha havido tempo para se avaliar que dimensões desse plano seriam desenvolvidas, seus objetivos indicavam uma preocupação com o combate à especulação fundiária, ênfase na descentralização das ações referentes à infra-estrutura e com a negociação como encaminhamento prioritário das ações fundiárias (43).

A queda de Collor parece ter dado um novo alento às forças simpatizantes da reforma agrária, no que se refere às possibilidades de atuação do Estado. Recentemente, no governo Itamar Franco, alguns fatos merecem destaque. Além dos já mencionados vetos a alguns itens da Lei Agrária aprovada pela Câmara, deve ser lembrada a nomeação, para a presidência do INCRA, de Osvaldo Russo, um conhecido defensor da reforma agrária e ex-assessor da CONTAG. Paralelamente a essas medidas, foi elaborado um Plano Emergencial prevendo, até o final do governo, o assentamento de mais de cem mil famílias, quantidade modesta frente às demandas das entidades de representação dos trabalhadores, porém equivalente aos assentamentos realizados durante toda a vigência do I PNRA da Nova República. Nesse plano, há o reconhecimento de que a agricultura de base familiar nunca teve no Brasil o tratamento que outros países capitalistas lhe conferiram, e aponta para ela como tendo um papel estratégico no desenvolvimento econômico com distribuição de renda. O documento faz ainda a crítica da concentração fundiária, apontando que a terra no Brasil sempre foi fonte de privilégios, matriz do poder político e de desigualdades sociais. A defesa de um modelo com base na propriedade familiar é entendida como possibilitando uma política mais barata de geração de empregos. No Programa Emergencial, os já assentados e aqueles a serem assentados "terão o apoio institucional para resgatar e reforçar a comprovada viabilidade do assentamento enquanto unidade produtiva/ empreendimento empresarial".

A orientação básica expressa no programa é no sentido de desburocratizar, descentralizar e agilizar a implantação dos projetos e garantir os serviços de apoio aos assentamentos (infra-estrutura básica, assistência técnica, educação, saúde e crédito), com a participação efetiva dos beneficiários e dos demais órgãos federais, estaduais e municipais envolvidos. O texto ressalta a importância da descentralização, através do deslocamento do eixo de responsabilidade também para os poderes estadual e municipal, como forma de resgatar e atender a expressão da diversidade de alternativas viáveis para a implementação da Reforma Agrária, oriundas das ricas diferenciações existentes na realidade brasileira.

Na última parte deste texto retomaremos essas propostas, como indicativas da incorporação de novos temas no debate sobre a reforma agrária. Neste momento, queremos apontar uma dimensão recorrente que é a da direção dos aparatos do Estado. Se a ida de Osvaldo Russo para o INCRA reacendeu as esperanças reformistas e, sem dúvida, indica pelo menos uma sensibilidade do novo governo para o tema, não se pode esquecer os inúmeros entraves institucionais existentes, o que leva à constrição em torno de práticas que não se adequam a qualquer perspectiva de estender a reforma agrária para além de medidas pontuais. Por outro lado, há que se considerar o dinamismo dos interesses ligados à propriedade da terra, agora revitalizados com a emergência das novas "elites agrárias" e , ainda, a cultura institucional que permeia os organismos encarregados de executar a política fundiária.

6.1.3- A cultura institucional do INCRA

Diversos analistas vem chamando a atenção para as dificuldades apostas à possibilidade de realização de uma reforma agrária pela cultura institucional do INCRA. Fachin (1993) chama a atenção para o fato de que essa instituição passou por uma pedagogia da anti-reforma agrária por muitos anos, no sentido de levar a que a maioria dos seus funcionários "não se mobilizassem e não mobilizassem seus recursos e conhecimentos nessa perspectiva". Palmeira (1989) indicou como a própria máquina administrativa era recortada por interesses privados ligados à propriedade da terra e sugere como esses interesses encravados no interior do aparelho de Estado podem se constituir num bloqueio cotidiano ao andamento de processos desapropriatórios.

A marca autoritária que compõe o perfil do INCRA impede também que esse órgão possa incorporar à sua prática as experiências em curso nos assentamentos, por exemplo. Encarando-os como "unidades administrativas", ignora as diferenças internas

neles existentes e as formas de organização que não tenham suporte jurídico. Nas palavras de um de nossos entrevistados "é como se a existência dos assentamentos não afetasse a definição de reforma agrária".

Por outro lado, é nesse mesmo organismo aparentemente calcificado que se desenvolveu a interessante experiência de constituição de uma Associação de Servidores da Reforma Agrária (ASERA) que, além de uma instituição corporativa, destinada a defender os interesses dos funcionários lotados no INCRA, propõe-se, como o próprio nome o indica, a aliar-se à demanda por reforma agrária, quer através de uma série de atividades destinadas a "mexer com a cultura institucional", tais como cursos, seminários, edição de um jornal, quer através de uma aproximação com o MST e com o sindicalismo (44).

6.2 - A reforma agrária e os partidos políticos

Espécie de palavra mítica contra a qual ninguém se pronuncia, a reforma agrária vai aparecer na pauta programática de diferentes partidos políticos e também na fala de seus porta-vozes, embora com diferentes conteúdos, refletindo, de alguma forma, a pluralidade de significados que se gestaram nos anos 80. O fato de o tema estar presente, ainda que de forma breve e vaga, já é indicativo, em si mesmo, das dificuldades que as diferentes forças políticas, mesmo que contrárias a alterações na estrutura da propriedade fundiária, têm de ignorá-lo e, portanto, da importância política de que se reveste. Assuntos como a especulação fundiária, a ociosidade das terras, baixa produtividade da agricultura, etc., passaram a exigir um posicionamento. Mesmo na campanha eleitoral de 1989, imediatamente após a derrota na Constituinte dos defensores de uma intervenção fundiária mais incisiva, o tema perpassou as falas dos diversos candidatos (45).

Se abordar a reforma agrária na ótica dos partidos é difícil pelos seus múltiplos significados, não menos importante é lembrar a sempre apontada fluidez programática dos partidos brasileiros. Frente a isso, trataremos da relação entre reforma agrária e partidos políticos em duas etapas. Na primeira, tentaremos alinhar algumas diferenças de significado do tema no interior de alguns partidos, sem preocupação de sermos exaustivos, mas sim de buscar ilustrações para a nossa afirmação mais geral. Na segunda, através de comentários sobre as votações na Constituinte e regulamentação da lei agrária, apontar como se dispõem, em relação ao tema, as forças políticas no Congresso Nacional.

6.2.1 - Os diferentes significados da questão agrária para os partidos

Todos os grandes partidos brasileiros, de alguma forma, abordam a questão agrária. Partidos como o PDS (hoje PPR) e PFL, que, nos momentos de votação, sempre adotaram uma postura radicalmente anti-reformista, mencionam, mesmo que brevemente, o tema em seus programas. No caso do PDS, aparece uma menção à necessidade de desenvolver o setor agropecuário através de uma adequada política de crédito e assistência técnica. Quanto à questão agrária, tratava-se de promover a regularização fundiária, instituir a tributação progressiva sobre terras ociosas, desenvolvimento de programas de colonização e remanejamento dos minifúndios, consolidando-os em unidades familiares. Recentemente, sua ênfase tem sido na importância de estimular o desenvolvimento das agroindústrias, como ficou evidente no programa televisivo produzido para o horário eleitoral gratuito, do primeiro semestre de 1993.

No que se refere ao PFL, a proposta agrária resume-se a "dar utilização social a propriedades improdutivas e ampliar a fixação do homem no campo, melhorando as condições de vida dos que trabalham na terra".

No caso do PMDB, as ambigüidades são maiores. A reforma agrária aparece inscrita em seu programa para ser realizada "em especial onde coexiste o latifúndio improdutivo com o minifúndio inviável, redistribuindo-se a propriedade da terra em favor dos que trabalham". No entanto, essa definição é precedida, no texto, por um conjunto de propostas voltadas para o desenvolvimento da agricultura, que envolvem uma alteração nos rumos da política agrícola, de modo a atingir pequenos e médios produtores; política de crédito, armazenamento, instituição do imposto territorial progressivo, para penalizar a ociosidade e a especulação, ampliação da assistência técnica, criação de organismos estatais de comercialização; capacitação do trabalhador rural. Esse tipo de ordenação permitiu que, em diversas circunstâncias, parcela da bancada do PMDB, tendo em Roberto Cardoso Alves um de seus principais expoentes, defendesse que, no programa do partido, a reforma agrária era apenas um apêndice da política agrícola. Para esse parlamentar, a intervenção fundiária deveria ser feita em terras ociosas e improdutivas, especialmente nas áreas de fronteiras. Em termos do conceito de funcho social, a leitura era estritamente econômica, afirmando que a propriedade teria que produzir o máximo e o melhor: "então, é adequar-se o tamanho dessa propriedade ao tipo de atividade que vai ser exercida por aquele que chegou a sua posse e fazê-la produzir. Portanto, facilitar o seu acesso àquele que pode produzir, procurando otimizar essa produção" (CEDEC, 1987:5). Como veremos adiante, nas votações referentes ao tema, o PMDB apareceu sempre dividido.

No espectro do que se convencionou chamar de "esquerda", o PDT caracteriza-se pela ênfase nacionalista. No seu programa, defende a "democratização do uso e posse da terra através de uma reforma agrária que, atendendo às diversidades regionais, assegure o acesso e a posse da terra aos que nela trabalham; crie formas associativas de exploração agrícola...; nacionalize as empresas agrícolas e agro-industriais na mão dos grupos internacionais". Nele há também uma preocupação maior com o pequeno e médio produtor e com a valorização dos produtos agrícolas necessários ao consumo popular e à indústria nacional. Em momentos críticos do debate sobre a reforma agrária, como foi o caso da Constituinte, uma de suas principais lideranças, Amaury Muller, aparecia defendendo uma reforma agrária "radical e massiva", que tivesse como ponto de partida o latifúndio, a grande empresa nacional ou estrangeira que não tivesse um perfil de produtividade adequado às necessidades nacionais. Defendia ainda a indenização em títulos da dívida agrária, com base no valor declarado para fins de imposto territorial rural e a perda sumária para o caso de estoques de terra para especulação (CEDEC, 1987:6). Esse tipo de postura não impediu, no entanto, que o PDT tivesse alguns de seus quadros aderindo ao "centrão". Por outro lado, a liderança maior do PDT, Leonel Brizola, em diversas ocasiões, defendeu publicamente a colonização como forma de democratizar a propriedade e explicitou a tese de que a reforma agrária deveria começar pelas terras públicas (aproximando-se dos setores contrários à reforma), e pelas propriedades dos grandes grupos econômicos de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e bancos (Brizola, 1989).

No PSDB, partido de formação posterior à Constituinte, e que agregou vastos segmentos do PMDB, inclusive os considerados mais "combativos", a referência à reforma agrária é bastante vaga. No programa, defende-se que ela "assegure a exploração racional da terra, subordinada à sua funcho social e contribua para elevar os níveis de emprego e renda dos trabalhadores rurais. Tal política terá de combinar tributação progressiva e desapropriações de acordo com as peculiaridades de cada região, de modo a garantir melhor distribuição das terras". Nas votações da lei agrária, no entanto, o partido se associou àqueles que procuravam garantir espaços desapropriatórios. Mais recentemente, segmentos do partido defendem uma ampliação do conceito de reforma agrária, que deve ser entendida "como um conjunto de políticas fundiárias destinadas a melhorar a distribuição da propriedade e da riqueza no campo, incluindo a desapropriação de terras, a tributação e os impostos, os mecanismos de acesso à posse e uso, a legislação trabalhista e as políticas sociais compensatórias (Graziano, 1993). Isso porque, segundo essa ótica, o distributivismo agrário é ineficaz como política de redução das desigualdades e de combate à miséria. Propugnam, no entanto, a implantação de grandes projetos de assentamento, especialmente nas fronteiras. A proposta em elaboração do PSDB para revisão constitucional defende a inscrição na Constituição da possibilidade de desapropriação de terras em perímetros delimitados, mesmo que nele possam constar propriedades produtivas. No caso de cumprirem sua funcho social, o pagamento da desapropriação seria, no entanto, feito em dinheiro; em caso contrário, seriam indenizadas em títulos da dívida agrária, tal como estabelece a atual legislação (Graziano, 1993).

No debate sobre a questão agrária, o PT ganha um destaque especial, na medida em que para ele vem convergindo expressivas lideranças dos trabalhadores rurais, muitas delas forjadas na luta por terra. Algumas delas se elegeram deputados federais e vem pautando sua atuação pela insistência em trazer suas questões para o espaço parlamentar. Exemplo disso, foi a importância decisiva da "bancada agrária" do PT no encaminhamento das votações da lei agrária. Além disso, desde sua origem, esse partido mantém uma "secretaria agrária" e uma ativa discussão sobre as questões referentes aos problemas do campo.

Esse envolvimento com o tema, no entanto, não significa a existência de consensos sobre a natureza e o papel da reforma agrária. A pluralidade de concepções se explicita principalmente quando se trata de definições no plano programático, e tende a não aparecer quando o que está em jogo é a luta parlamentar e a defesa de consensos mínimos.

No plano programático, ganharam destaque a polêmica entre Claus Germer e José Graziano da Silva e as discussões que se desdobraram com as críticas feitas ao Programa do Governo Paralelo por Maria da Conceição D'Incao e endossadas por vários outros integrantes do partido.

Segundo Germer, "a contradição principal entre os sem terra e as classes dominantes rurais está assentada na questão da terra, e é a reforma agrária que resolve esta contradição em favor dos trabalhadores. Portanto, só a reforma agrária poderá mobilizar politicamente a grande massa dos sem terra, permitir uma articulação das suas lutas com os trabalhadores urbanos e tornar a luta pelo socialismo uma possibilidade real" (Graziano da Silva e Germer, 1987:51). Nessa ótica, a reivindicação da reforma agrária somente adquire uma expressão revolucionária se articulada com um projeto amplo de mudança estrutural, cujo conteúdo é anticapitalista.

No polo oposto, Graziano da Silva afirmava que "a reforma agrária necessária hoje é parte das políticas sociais, para adequar a capacidade de absorção produtiva de nossa população rural à modernização da agricultura. Em imensas regiões do país a questão agrária é hoje uma questão urbana: a miséria rural foi despejada nas cidades e a própria força de trabalho agrícola vem das cidades" (idem: 47). Num plano imediato, sua funcho seria estancar a "lumpenização".

A visão do PT enquanto tal e que pode ser entendida como a que traduz a sua leitura para uma operacionalização imediata da reforma agrária estaria, no entanto, expressa em dois documentos básicos: o programa da campanha presidencial de 1989 e o do Governo Paralelo. No primeiro caso, há uma ênfase na reforma agrária como caminho para romper o monopólio da terra e lançar as bases de um novo padrão de desenvolvimento. Essa reforma agrária deveria respeitar a diversidade de culturas e situações do campo brasileiro e, em especial, a "vontade dos trabalhadores organizados, estimulando sua autodeterminação e seu controle direto sobre o processo de mudança" (PT, 1989:23).

No caso da proposta do Governo Paralelo, enfatizava-se o lugar da reforma agrária no seio da questão nacional: "não há como fugir à necessidade de debater a reforma agrária como parte essencial do quebra-cabeça da questão nacional. Não é possível discutir a sério a retomada do crescimento com distribuição de renda sem discutir reforma agrária. Não é possível política industrial, baixos salários, o desemprego e o subempregos crônicos, o inchaço das cidades e a carência dos equipamentos urbanos, a fome, a tragédia dos meninos e meninas de rua, a violência de classe seletiva e impune contra os trabalhadores rurais, a qualidade de vida, o valor universal da democracia sem discutir a reforma agrária" (Pereira, 1992:57).

A proposta do Governo Paralelo apontou para a reforma agrária como um processo amplo, capaz de afetar grandes espaços, de modo a permitir a instalação de estruturas próprias (cooperativas integrais de reforma agrária, sistemas de irrigação, organizações de beneficiários, armazéns, silos, agroindústrias, escolas, creches, hospitais), de forma a compor todo um "setor reformado". Pretendia-se que o processo atingisse não só a estrutura do mercado de terras, retirando do preço desse bem seu valor especulativo, como também que se tornasse irreversível.

Aproximando-se de um dos pólos do debate anteriormente mencionado, o governo paralelo dava prioridade à reforma agrária como política social, privilegiando os extratos de baixa renda ("os 51% mais pobres do Brasil") e procurando lhes dar ocupação produtiva e adequadas condições de moradia, saúde e educação. No entanto, não descartava os objetivos econômicos (aumento de produção, produtividade, aumento do consumo de alimentos) e nem os políticos, na medida em que ajudaria a construir a democracia a partir da base física da nação, contribuiria para a consecução da cidadania e fortaleceria os direitos individuais. Ressaltava ainda que o processo de reforma agrária seria fundamental para romper os laços de subordinação das autoridades públicas locais (prefeitos, vereadores, juízes, delegados, etc.) e de diversas instâncias estaduais e federais aos grandes proprietários de terras. Constituir-se-ia também em um instrumento de redução da violência no campo.

Esse programa foi duramente atacado por militantes do partido, como é o caso de Maria da Conceição d'Incao, que o considerou um retrocesso em relação ao programa da campanha de Lula. Segundo ela, a formulação deixava de lado a proposta de transformação do modelo de desenvolvimento, fortalecendo o papel do Estado autoritário, paternalista, provedor (Escola Sete de Outubro, 1992:147). D'Incao insiste em que, sem o "reconhecimento prévio do conteúdo das demandas que levaram esses sujeitos a se mobilizarem pela conquista da terra, qualquer Plano de Reforma Agrária inviabilizará a continuidade das relações de negociação que se definem entre elas e o Estado, por ocasião dessas mobilizações. E imporá, necessariamente, limites à participação dos mesmos quando, no bojo das unidades reformadas, tiverem que constituir novas alternativas de produção agrícola ou que se escolher engajados na luta pela transformação mais geral da sociedade" (D'Incao, 1993:32). Sua principal crítica se volta para a transformação que a proposta faz dos diferentes demandantes de terra em "os 50% mais pobres", mecanismo que suprime sua diferenciação interna, diversidade de vivências e projetos (46).

Por essa síntese, verifica-se que, mesmo onde há consenso sobre a atualidade da reforma agrária, não é possível uma homogeneidade de opiniões sobre o seu lugar e objetivos. Evidentemente, a polêmica entre o que é possível e o que não é, o que é programático e o que pode ser a ação do governo no plano imediato mal esconde concepções distintas sobre a natureza da questão agrária, sua importância econômica, social e política, perfil do desenvolvimento brasileiro e papel das forças sociais na definição dos seus rumos.

6.2.2 - As votações no Congresso Nacional

Dois momentos poderiam ser aqui brevemente recuperados a título de ilustração e para indicar sobre que questões incidem as preocupações maiores dos congressistas.

No caso da Constituinte, de acordo com Ferreira e Teixeira (1988) e Bruno (1993), um recorte partidário nas votações em torno da questão agrária colocaria nitidamente de um lado o PT, PCB, PC do B, PDT, PSB, e, de outro, o PDS, PFL e PTB. Perpassando os dois pólos, o PMDB. Este partido teve entre seus parlamentares os que defenderam posições reformistas e conhecidos defensores da reforma agrária, como é o caso de Osvaldo Lima Filho, Vicente Bogo, Haroldo Sabóia e os que tiveram destaque na sua derrota na subcomissão específica, como é o caso de Rosa Prata e Roberto Cardoso Alves, que se caracterizaram por sua proximidade com a UDR, e que, inclusive, foram acusados de ter sua campanha financiada por ela (Ferreira e Teixeira, 1988:132).

Os temas que polarizaram os debates na Constituinte são demonstrativos do que estava em jogo no processo. De acordo com Santos Filho e Mello (1988:33/4), "grosso modo pode-se dizer que a desapropriação-sanção dos imóveis descumpridores de sua funcho social, a indenização com valor abaixo dos preços de mercado e a agilidade do processo expropriatório eram 'pontos de honra' da legislação agrária. Eram apontados como característica da reforma agrária legal por inúmeros teóricos e intérpretes dessa legislação... Eram, sobretudo, pontos colocados pelas propostas que tentavam resgatar o seu sentido original em defesa de um processo de reforma agrária. No polo oposto, as propostas apontavam para a ruptura com os princípios gerais dessa mesma legislação agrária, contrapondo-se-lhe velhos outros princípios do direito civil, para resguardo da propriedade absoluta e livre de ônus".

A constituição de um "centrão" multipartidário, ou mesmo de um "bloco ruralista", composto por membros do PFL, PDS, PL, PMDB, e outros partidos menores, que ganhou vida a partir da Proposta do PNRA e que reaparece a cada matéria significativa referente à propriedade da terra colocada em votação, são indicadores de que os interesses vinculados à manutenção da atual estrutura fundiária permeia grande parte dos partidos e consegue a adesão, em momentos decisivos de votação, da maioria dos parlamentares. Não por acaso, nas votações que se deram no processo constituinte, a questão agrária foi o tema que mais polarizou as posições, permitindo a existência do que Gomes da Silva denominou "buraco negro" (Gomes da Silva, 1988).

A votação da lei agrária que regulamentou a Constituição repete o quadro acima descrito em termos de alinhamento de forças partidárias. Antes de mais nada, há que ressaltar o tempo decorrido entre a aprovação da Constituição e a sua regulamentação no que tange às possibilidades de desapropriação: mais de quatro anos, período em que todas as desapropriações ficaram suspensas, por falta de base legal. Nesse período, o que se realizou eventualmente foi a compra de terras, com base no valor de mercado.

O encaminhamento da lei agrária à votação foi viabilizada pelo empenho da bancada agrária do PT. Não cabe aqui explorarmos sua trajetória, mas é preciso lembrar que sua aprovação, mesmo nos termos em que saiu da Câmara, só foi possível graças à articulação entre PT, PC do B, PSB, PDT, PSDB e parte do PMDB. Da mesma forma que nas votações da Constituinte, este partido dividiu-se entre concepções distintas sobre o tema.

No entanto, a votação da lei agrária trouxe à luz alguns fatos que nos parece importante apontar. O primeiro deles é um certo isolamento dos deputados mais ligados a Ronaldo Caiado. Foram elaboradas doze versões do projeto de regulamentação, sendo que somente a última conseguiu acordo, embora com oposição do chamado "grupo da UDR". O grande contingente da bancada dos "ruralistas" (vinculados principalmente ao PPR, PFL e parte do PMDB), embora não totalmente satisfeito com o projeto que saiu da Câmara, considerou-o aceitável (antes dos vetos do presidente da República). Segundo depoimentos por nós colhidos, essa bancada, que tem algum tipo de vínculo com a propriedade da terra e/ou com a produção agropecuária, vem procurando fundamentalmente uma identificação positiva com a OCB, com a CNA, consideradas por eles entidades "mais qualificadas" e buscando se distanciar da imagem socialmente negativa da UDR e das práticas truculentas de Caiado.

Para além do recorte por agremiações políticas, sobrepondo-se a ele ou perpassando-o de diferentes maneiras, há interesses estruturados que se constituem como acordos suprapartidários. É o caso dos interesses ligados à terra que, no entanto se complexificam a partir dos elementos que estão em disputa. Assim, embora se possa falar que eles permeiam a atuação de um significativo contingente de deputados(47), há todo um bloco que vem procurando falar em nome do "moderno" e que busca se diferenciar através dessa imagem. Esses elementos nos indicam a dificuldade de tratar os interesses vinculados à propriedade fundiária como um bloco único e coeso no Congresso Nacional. Sem perder de vista os laços básicos de solidariedade que unem os diferentes segmentos na defesa intransigente do direito de propriedade, não há como deixar de ressaltar recortes internos que podem ser explorados em termos de constituição de alianças eventuais, em casos de votações particulares. Sem dúvida parece ter sido essa a trajetória da lei agrária, onde se procurou tirar o máximo da Câmara para, num segundo momento, jogar com as pressões para acionar a capacidade de veto do Executivo.

Outro elemento que chama a atenção é o papel do Senado na trajetória dessa lei. Enquanto casa revisora, que se propõe como funcho principalmente dar andamento aos processos, o projeto de lei saiu dela substantivamente melhorado em relação à sua primeira passagem pela Câmara. Assim, algumas das propostas dos segmentos reformistas tiveram apoio no Senado de parlamentares como Esperidião Amim e Josafá Marinho, sempre identificados com posições conservadoras.

6.3 - O papel dos militares

Pensar a trajetória da bandeira "reforma agrária" no Brasil exige que se considere, entre as forças que definem seu destino, o papel dos militares, visto que há uma histórica ligação entre essa categoria e a questão da terra.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o próprio Estatuto da Terra surgiu sob o beneplácito do general Castelo Branco. Durante toda sua trajetória, os diferentes governos militares mostraram uma preocupação constante com a questão agrária, o que se expressa na sua "militarização" (Martins, 1984), culminando com a criação, no governo Figueiredo, de um Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, entregue não por acaso a um general (Danilo Venturini), que acumulava a funcho com a de Secretário do Conselho de Segurança Nacional. Segundo Martins, é dentro desse quadro que se deve entender também a criação do GETAT, caracterizada como "intervenção militar no INCRA" (Martins, 1984:24). Nos termos desse autor, durante os governos militares, procedeu-se a uma destruição das bases institucionais para a reforma agrária, criando mecanismos para intervenções localizadas. O sentido desse procedimento é apontado, ainda por Martins: "para o governo militar, o encaminhamento da reforma agrária pressupõe obrigatoriamente o esvaziamento político do campo. A solução pressupõe a despolitização da luta pela terra, o desenvolvimento de uma estratégia que impeça a transformação da luta pela terra numa luta política, e menos ainda numa luta político partidária" (Martins, 1984:56).

Aparentemente, a Nova República indicava a superação dessa tutela e a desvinculação entre questão fundiária e política de segurança nacional. No entanto, o que se pode observar foi a permanência de uma presença vigilante, que se explicita numa espécie de contraproposta ao PNRA: o general Bayma Denis, secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional no governo Sarney, intervém no debate que então assume dimensões nacionais, propondo a criação de um grupo de trabalho cuja finalidade era apresentar um documento com as ações de governo e os instrumentos necessários para "evitar o êxodo do campo" e "inverter a corrente migratória no sentido da zona urbana para a zona rural". Defendia então que a reforma agrária deveria se voltar para buscar a paz no campo e ter na propriedade sua base principal. Da sua ótica, o país necessitava de uma política de desenvolvimento rural, que pudesse constituir uma classe média estável. Tratava-se de reorientar as migrações internas, no sentido de promover a ocupação dos vazios demográficos, colonizar as terras públicas, estimular os contratos de arrendamento e parceria, promover o cooperativismo e o associativismo (JB, 27/09/1985:5). Essa proposta foi construída a partir de subsídios fornecidos pelos ministérios militares e os jornais da época indicavam que inclusive a retirada da necessidade de indicação de áreas prioritárias da versão final do plano foi produto de pressões da caserna (48). Uma outra indicação do peso que ainda tem a relação questão agrária/militares é o fato de o programa Terra Brasil, do governo Collor, ter sido elaborado no interior da Secretaria de Assuntos Estratégicos.

Entre as questões que preocupam esse segmento estão fundamentalmente as questões de fronteira, de onde a importância atribuída a projetos como o Calha Norte e à questão indígena e a questão da legalidade. Considerando este último aspecto, por exemplo, um dos pontos defendidos por eles foi que não deveria haver desapropriações até que se procedesse a regulamentação da Constituição.

Atualmente, algumas avaliações apontam para uma maior abertura dos militares para o tratamento da temática em novos termos. Exemplo disso, seria a contratação, pela SAE, de consultorias de conhecidos defensores da reforma agrária (49).

7 - Os novos termos do debate

As profundas transformações econômicas, sociais e políticas que, desde a década de 70, vêm se processando no campo trazem novas questões para o debate sobre a reforma agrária. Elas implicam num progressivo rompimento com o modelo de que nos fizemos herdeiros, mas ainda não explicitam a constituição de um novo modelo com o grau de consenso pelo menos em torno de alguns parâmetros, como fora possível obter no início dos anos 60 e, por caminhos distintos, na década de 70. Os traços desse novo padrão aparecem apontados em experiências locais, ainda dispersas, como algumas das que mencionamos no decorrer deste texto, mas que só encontram articulação em fórmulas abrangentes tais como cidadania, participação, democratização, desenvolvimento sustentável.

Tudo indica que está em curso um processo de ressemantização da bandeira, incorporando novos significados, rompendo com alguns dos antigos.

A seguir, a título de conclusão, apontaremos alguns dos temas que, com essas mudanças, emergem para o debate.

a) a reforma agrária ainda é uma questão pertinente para os anos 90?

Tendo em vista os argumentos alinhados no texto, esta questão parece não fazer sentido. Para uma importante parcela dos trabalhadores rurais, ela é uma demanda extremamente viva e atual, expressa nas ocupações de terra, na luta pela permanência nela, na viabilização econômica e social das áreas de assentamento, reassentamento e reservas extrativistas, na reiteração das condições de exploração e ausência de direitos em que parcela significativa deles vive.

No entanto, é possível identificar um progressivo descentramento da demanda, na medida em que, no seu sentido estrito, ela parece estar deixando de ser uma bandeira síntese.

Nos anos 70, como vimos, a reforma agrária constituiu-se num ideal que agregou e cimentou os diferentes segmentos de trabalhadores rurais representados pela CONTAG. No entanto, nesse mesmo período, por força das transformações econômicas que se operaram, pelo fracionamento das lutas e pelas características autoritárias do regime político vigente, ela acabou por se tornar, na prática, uma reivindicação de uma parcela dos trabalhadores e não mais uma questão nacional, tal como aparecia nos anos 60. De um lado, porque a intensa modernização parecia estar arredando o incômodo tema da redistribuição fundiária; de outro, porque a diversificação no campo produzia uma enorme quantidade de novas demandas que, no seu cotidiano, dificilmente conseguiam se articular sob o manto da reforma agrária (melhores salários, direitos trabalhistas, crédito para produção, preços para os produtos etc.).

A redemocratização do país na década de 80, com a constituição de movimentos de diferentes matizes, criação de novos partidos, etc., não mudou esse quadro, o que se expressa na dificuldade, sempre reafirmada pelas lideranças sindicais rurais, assessores de entidades de apoio e intelectuais que acompanham o tema, de mobilização efetiva quer do conjunto dos trabalhadores do campo, quer de outros segmentos sociais, principalmente os trabalhadores urbanos, na defesa dessa bandeira. Os argumentos em torno do aumento da oferta de produtos alimentares, do êxodo rural, inchamento das cidades, muitas vezes esgrimidos pelos porta-vozes dos trabalhadores rurais no sentido de procurar ampliar os seus apoios reais, parecem sempre cair no vazio.

Esse fato, no entanto, não deve ser entendido unicamente a partir de um pretenso conteúdo estritamente rural da bandeira, mas da própria pulverização das lutas dos demais setores populares, uma corporativização de demandas, própria de uma época de crise e recessão, e da inexistência de um delineamento claro de um novo modelo/padrão de desenvolvimento, onde pudessem ser redefinidos alguns temas, entre eles o da reforma agrária (50).

Mas ela também aparece sob ângulos novos, que podem redefinir seu espaço entre as grandes questões nacionais. Hoje a demanda por reforma agrária pode ser vinculada à preservação ambiental, à luta contra a fome, temas que colocam em cheque a eficácia do padrão de modernização adotado e as concepções dominantes de progresso.

b) reforma agrária "social" ou "produtivista"?

O debate sobre o caráter social ou produtivista da reforma agrária tem sido um dos principais eixos a polarizar posições no interior das forças que defendem a existência de uma questão agrária no Brasil.

Ela muitas vezes tem sido apresentada como um meio de geração de empregos, ressaltado seu papel na contenção dos fluxos migratórios e instrumento capaz de evitar a lumpenização do campo (51). No entanto, há uma recusa, por parte de setores significativos das organizações de trabalhadores à idéia de reforma agrária como política social. A CONTAG, por exemplo, criticando essa postura, argumenta que "o assentamento deve ser um conjunto articulado de unidades produtivas rentáveis e não uma generosa esmola que se dá a famílias extremamente pobres" (CONTAG, 199O). Desenvolvendo esse argumento, seu presidente, Francisco Urbano de Araújo, afirma que não é possível separar a dimensão produtiva da dimensão social da reforma agrária, sob pena de resolver as questões urbanas criando favelas rurais, e insiste na concepção de que uma reforma agrária deve ser necessariamente uma medida estrutural. Ou seja, um instrumento capaz de modificar sistemas de poder e distribuição de renda.

O MST também caminha na mesma direção crítica quando agrega ao seu lema "ocupar, resistir" o "produzir" e investe grande parte de suas energias na viabilização econômica dos assentamentos rurais e na montagem de um sistema nacional de cooperação agrícola. Na perspectiva do MST, as desapropriações que se realizaram em meados da década de 80 colocaram a necessidade de diretrizes para a produção nos assentamentos, de forma a garantir, de um lado, a sua viabilidade econômica e, de outro, a coesão política obtida no momento de ocupação da terra. Para esse movimento, nas áreas desapropriadas, não se trata de reprodução pura e simples de unidades de produção camponesas: é necessário criar um novo modelo de produção baseado na utilização de tecnologias adequadas e na organização coletiva, que viabilize economicamente e promova o desenvolvimento social, político e ideológico das famílias assentadas. Trata-se de implementar formas por eles consideradas "superiores" de organização da produção, implantando o sistema cooperativista dos assentados que, além das vantagens imediatas em termos da viabilização da produção, é visto como um espaço educativo, "a única maneira de nós irmos de fato mudando a sociedade e um dia construirmos o socialismo na agricultura brasileira".

Segundo João Pedro Stédile, uma das figuras mais representativas do MST, nos assentamentos deve-se desenvolver ao máximo a mecanização, a tecnologia, a agroindústria: "não é só uma maneira de aumentarmos a produtividade do trabalho. É a única maneira de se desenvolver enquanto assentamento e se colocar como uma contraposição ao modelo da burguesia" (Stédile, 1990:12). Até mesmo o processo de produção integrada é possível nos assentamentos, na medida em que ele se faça em bases políticas diferenciadas. Trata-se também de desenvolver formas próprias de agroindústria, visto que a produção de diversos gêneros não pode ser ampliada sem que haja formas adequadas de processamento industrial (idem, ibidem).

Nesse debate também estão colocadas as possibilidades de pensar a reforma agrária para além da desapropriação pontual e viabilização econômica de alguns assentamentos. Ele impõe a discussão sobre o lugar da produção familiar na agricultura brasileira e suas virtualidades. E nesse ponto parece haver uma convergência das representações sindicais. Tanto a CONTAG como o DNTR/CUT apontam para o fato de que a produção empresarial só se consolidou com forte apoio do Estado e reclamam uma política de apoio ao pequeno produtor. Segundo Avelino Ganzer, do DNTR, este é, inclusive, o momento para o desencadeamento de um grande movimento nacional em defesa da produção familiar, voltada para o mercado interno e para exportação de excedentes, articulada em uma rede de associações e cooperativas.

É importante observar como a questão da busca de formas organizativas (associações de diferentes tipos) que viabilizem a produção tanto de assentados como de pequenos produtores ocupa um espaço crescente na pauta das discussões sindicais, como o indicam o V Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, promovido pela CONTAG em 1992 e o II Congresso do DNTR/CUT, realizado em junho de 1993. Também é essa discussão que permeia o debate sobre a viabilização das reservas extrativistas.

Por outro lado, há que se lembrar que os experimentos de assentamento trouxeram à tona preocupações que vão além das dimensões produtivas e que ganham cada vez mais importância. As tentativas de imposição de modelos organizativos implicaram em diferentes formas de resistência, que trouxeram à tona a necessidade de os movimentos se indagarem sobre as experiências anteriores dos assentados, suas expectativas e, em conseqüência, uma flexibilização de propostas. Além disso, outras necessidades emergiram, como é o caso de dotar os assentados de uma educação adequada, o que levou o MST a investir parte de suas energias na busca de um sistema próprio de educação.

A CPT também vem caminhando no sentido de questionar uma leitura estritamente produtivista da reforma agrária, afirmando a posse da terra como base de um modo de vida, "baseado na precedência do viver sobre o lucrar", e do qual faz parte ter escola, ter assistência médica e hospitalar, ter lugar e tempo para descanso, celebração e festa, ter o direito de ser diferente, ter o direito de participar e decidir, ter o direito de assegurar para os filhos um futuro com dignidade" (CPT, 1991:6). Dessas questões emerge uma outra compreensão do social, que não se confunde com o "assistencial" e que valoriza, inclusive, tanto a dimensão participativa como a cultural, retomando as propostas de "democracia de base" da início dos anos 80.

c) reforma agrária massiva ou parcial?

Hoje parece se constituir um certo acordo tácito em torno do fato de que a modernização tecnológica da agricultura, a instalação de grandes complexos agro-industriais criaram um patamar produtivo que não pode ser tocado. Assim, a idéia de uma reforma agrária parcial ganha corpo. Essa era aliás a proposta do PNRA, quando falava na convivência de um setor "reformado" com um setor empresarial.

Em torno desse modelo, conhecido como bimodal, deve-se chamar a atenção para a natureza do setor moderno e considerado intocável. Como aponta Wanderley, "a modernização da agricultura se efetuou sobre a base de relações sociais que cristalizaram o predomínio do proprietário sobre o produtor. Isto é, a propriedade da terra constituiu no Brasil um elemento organizador da atividade agrícola. O caráter produtivo da agricultura é aqui subordinado à dinâmica gestada a partir da propriedade fundiária" (Wanderley, 1990:2). Decorrente dele, um outro aspecto a ser assinalado refere-se à competitividade entre os dois setores, visto que o primeiro se firmou fundamentalmente com base no apoio do Estado. A pergunta que se coloca é sobre a possibilidade de políticas diferenciais, que apoiem a produção familiar e as condições de sobrevivência, pelo menos de alguns segmentos empresariais, sem o forte aporte de recursos públicos (52), sem utilizar-se de baixos salários e pautar-se pelo não respeito aos direitos trabalhistas. Uma outra questão diz respeito à possibilidade de um setor reformado tornar-se apenas um enclave, o que levaria essa proposta a poder ser aproximada daquela que defende uma reforma agrária "social".

Por outro lado, frente à nova institucionalidade, deve-se perguntar até mesmo sobre a viabilidade de constituição de um "setor reformado", uma vez que a legislação aponta uma concepção fragmentada de reforma, que só pode se dar através de desapropriações localizadas.

Vem-se constituindo um consenso no sentido de que não é possível, nos anos 90, pensar uma reforma agrária ampla e massiva. Frente a essa constatação, trata-se de enfrentar, segundo a CONTAG, as propriedades inexploradas e depois chegar às que não consideram o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores.

d) O significado de produtivo/improdutivo e as novas categorias legais

Como vimos, nos anos 60, houve uma politização da categoria "latifúndio". Com o Estatuto da Terra, ele ganhou também uma definição técnica e jurídica, através da qual passou a ser possível diferenciá-lo da "empresa", modelo ideal de propriedade nos termos dessa legislação. No debate que se sucedeu ao PNRA, o termo "latifúndio" passou a ser qualificado (produtivo/ improdutivo). Na regulamentação da Constituição pareceram voltar critérios mais técnicos, através da valorização de uma combinação tamanho/racionalidade do empreendimento, adotados tradicionalmente na formulação de políticas agrícolas: cada vez mais se fala a linguagem da pequena, média e grande propriedade rural.

Essa mudança de critérios corresponde às novas formas da presença política dos interesses vinculados à propriedade fundiária. Em resposta à sua designação como "latifundiários", em meados dos anos 80, no bojo da luta contra o PNRA, os representantes desses interesses procuraram se constituir na cena política como "produtores" e impuseram o debate sobre a definição de produtividade.

A legislação baniu do seu corpo a palavra "latifúndio". No entanto, ele permanece fortemente presente na fala dos representantes dos trabalhadores do campo não só como sinônimo de improdutividade, mas resgatando o seu significado político, associado a poder, violência, opressão. Dessa forma, a própria permanência da palavra no debate é hoje um objeto de disputa. Conforme assinala Francisco Urbano, da CONTAG, a exclusão do termo do campo legal dificulta que se passe para a sociedade uma das questões que ele envolve, que é a da produção. Sob essa ótica, a classificação das propriedades em pequenas, médias e grandes tenderia a produzir uma despolitização do debate.

e) as formas de luta e o lugar da institucionalidade

As diferentes vertentes dos movimentos, como vimos, têm concepções distintas sobre como encaminhar as lutas por terra. No decorrer do texto já fizemos menção a como essas formas se combinam, com peso diferenciado, segundo a concepção da força política que se considere, de seus alvos e também de uma avaliação de conjuntura. Gostaríamos aqui de ressaltar o lugar das ocupações de terra que, durante toda a década de 80, foi um dos pólos de discordância entre as forças que disputavam o encaminhamento da luta por reforma agrária.

Discretamente colocada no III Congresso da CONTAG (1979), ela aos poucos vai ganhando maior espaço nas recomendações e decisões da entidade. Sem dúvida, a capitalização política da luta pela terra que essa forma de ação propiciou ao MST, bem como os resultados no que se refere a número de desapropriações obtidas (53), fizeram com que a CONTAG também procurasse se colocar nessa arena: nos seus últimos documentos aparece uma ênfase maior nas ocupações, mas sempre a partir da ação e direção dos STRs, com apoio das FETAGs e CONTAG (54).

Sem dúvida, é a partir dessa ótica que se pode entender o fato de que, no seu V Congresso, a CONTAG tenha conciliado com uma série de propostas referentes à questão da terra ali trazidas pelos sindicalistas cutistas (55). Há que se considerar ainda uma certa descrença que vem aparecendo nas falas da direção da CONTAG em torno da luta estritamente institucional e que se manifesta na ênfase no fato de que, sem pressão, através de grandes manifestações e ocupações de terra, e sem apoio urbano não dá para avançar, mesmo na hipótese de um governo popular (56).

Por outro lado, a análise da trajetória do MST tem mostrado como a negociação e a utilização das vias institucionais tem sido um dos caminhos de ação, inclusive indicando uma progressiva valorização da luta parlamentar. Chama a atenção, por exemplo, que, em que pese a recusa do MST aos organismos institucionais existentes, vistos como incapazes de promover a reforma agrária proposta pelo Movimento, e em que pese a indicação de que os trabalhadores, ao ocuparem terras, criem as suas próprias leis e organismos, há o reconhecimento de um espaço institucional a ser disputado, de forma a garantir alguma ampliação de conquistas. É ainda essa revalorização dos espaços institucionais que faz com que o MST também passe a disputar recursos, quer junto ao INCRA, quer junto ao Ministério do Trabalho, para viabilização de sua proposta organizativa junto aos assentamentos.

Paradoxalmente, no entanto, essa aparente convergência se faz num momento em que as ocupações não tem, por razões conjunturais, o mesmo espaço político que conseguiram ganhar em meados dos anos 80. De outro lado, basta acompanhar o noticiário dos jornais para perceber que as ocupações que ocorrem (ou pelo menos as que chegam à imprensa e se constituem como fatos de maior visibilidade) têm sido lideradas pelo MST. São menos expressivos os casos onde a participação sindical é significativa.

 

 

f) beneficiários da reforma agrária

No que se refere aos beneficiários, os documentos sindicais sempre reafirmam sua amplitude: são potenciais beneficiários da reforma agrária os assalariados permanentes ou temporários, parceiros, arrendatários, posseiros, pequenos proprietários e também os trabalhadores rurais expulsos do campo para as periferias das cidades e para outros países, que desejam voltar para a atividade agrícola, como é o caso dos "brasiguaios".

Há também, no conjunto dos movimentos, uma ênfase no que diz respeito a fazer com que a reforma agrária torne-se palatável não só para o conjunto da sociedade, como para alguns segmentos rurais. Assim, por exemplo, o V Congresso da CONTAG insiste em que o pequeno produtor deve ser convencido de que ela é uma bandeira também sua e que se divulgue sua importância para toda a sociedade. A CUT sempre reafirma a importância de levar a palavra de ordem até os trabalhadores urbanos.

A reforma agrária, sob essa ótica, é apresentada pelos seus defensores como voltada para a ampliação do nível de emprego na agricultura e a redução do êxodo rural; aumento da produção de alimentos para abastecimento do mercado interno; aumento do nível de renda do trabalhador rural; diminuição das desigualdades sociais e regionais; aproveitamento racional dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente; eliminação da violência no campo e nas cidades" (CONTAG, 1991:64).

No entanto, apesar do esforço do movimento sindical em buscar fazer da reforma agrária uma bandeira do conjunto dos trabalhadores do campo, sem dúvida somente alguns segmentos efetivamente se mobilizam por ela: posseiros e os que, desde o início dos anos 80, vem se aglutinando no MST, o que coloca a reforma agrária como bandeira dos excluídos da terra, numa leitura mais próxima da que faz o MST. Esse fato não exclui que, em conjunturas favoráveis, assalariados rurais (como se verificou em algumas áreas de cana em São Paulo) ou mesmo pessoas com inserção no mercado de trabalho urbano (como ocorreu no Rio de Janeiro e Espírito Santo) possam ver na busca da terra uma alternativa de sobrevivência.

A diversificação provocada nas atividades agrícolas pela intensa modernização do campo e sua progressiva articulação aos complexos agro-industriais também não foi sem conseqüências para a demanda por reforma agrária. Pequenos proprietários, integrados, assalariados de diferentes tipos etc, trazem outros tipos de reivindicações que só podem se agregar sob a bandeira reforma agrária mediante um trabalho político de articulação de um conjunto de reivindicações que implicam, de um lado, medidas pontuais, que recolocam a divisão social e politicamente construída entre o "agrícola" e o "agrário", entre "agrícola" e "industrial", entre "rural" e "urbano" e, de outro, principalmente políticas de Estado que genericamente vem sendo traduzidas na demanda por um "novo modelo de desenvolvimento". Falar em um novo modelo implica em se posicionar contra a experiência concentradora e modernizante que foi experimentada nos últimos 25 anos, mas também significa se afastar do modelo que foi o horizonte das lutas dos trabalhadores pelo menos até o início dos anos 80: o socialismo. Trata-se de inventar o novo, para além das experiências já historicamente forjadas.

 

 

g) a incorporação da diversidade

Os temas acima alinhados indicam que ainda está fortemente presente no debate a dimensão econômico-produtiva da reforma agrária. No entanto, algo que os anos 80 revelaram é a diversidade de leituras frente ao tema colocada pela prática dos movimentos sociais. Os "empates" e a luta pela criação das reservas extrativistas, por exemplo, colocam outras questões para discussão além da estrita viabilidade econômica desses projetos. Talvez neles estejam se esboçando outra noção de viabilidade, regida por lógica distinta.

Ao mesmo tempo, a emergência de novos sujeitos sociais, afirmando-se com suas demandas no cenário político, indicam que não é possível mais falar em modelo único e que qualquer que seja o encaminhamento da questão agrária ele deverá pautar-se pelo reconhecimento da diversidade que não se reduz à diferenciação das formas de produção, mas diz respeito fundamentalmente às experiências acumuladas, em especial à dimensão cultural. Essa riqueza encontra expressão nas lutas dos seringueiros, dos atingidos por barragens, nas experiências associativas que proliferam no país. Como bem o aponta Novaes (1993:4), "o constante surgimento de novas identidades entre os trabalhadores do campo e a existência de situações sociais diferenciadas...fazem presente no campo uma heterogeneidade viva, capaz de causar surpresas em nível político e econômico. Aí estão trabalhadores que se destacaram em lutas pela terra em nível micro, que se fizeram reconhecer falando o dialeto da reforma agrária e hoje disputam localmente cargos executivos e legislativos, enfrentando no jogo eleitoral os tradicionais donos do poder. Eleitos, sentem-se e agem nacionalmente através (do mito, do símbolo, da utopia) da reforma agrária. Certamente tais significados e repercussões eram impensáveis há 40 anos, quando a questão da reforma agrária dominou a cena da política brasileira".

O reconhecimento dessa diversidade e a complexidade das questões que ela propõe (em oposição à univocidade da concepção de uma reforma agrária camponesa ou, no polo oposto, da modernização avassaladora que teria por efeito "purificar as relações sociais no campo) não pode ser mais ignorada nem nas diferentes vertentes do discurso sindical, nem nas propostas de políticas, nem mesmo pelas entidades patronais e cada vez mais comparece na argumentação, embora, nem sempre, nos seus desdobramentos.

 

 

h)a questão ambiental

Há uma ênfase, nos anos recentes, na questão do meio-ambiente como tema a ser articulado à reforma agrária. Fortemente colocada pela proposta de reservas extrativistas, defendida pelo Conselho Nacional dos Seringueiros, e pelo debate em torno de tecnologias alternativas, a questão da preservação ambiental tem sido um argumento constantemente apresentado pelas organizações de trabalhadores em defesa de transformações na estrutura fundiária.

Esboça-se, assim, a articulação de uma demanda já histórica com um tema que vem ganhando crescente importância principalmente no sentido de questionar a idéia de progresso que se constituiu desde o século XIX, calcada no desenvolvimento constante das forças produtivas. Essa junção tem sido pontual mas, de toda forma, tem valorizado o debate sobre a questão tecnológica, a degradação ambiental produzida pelas monoculturas etc. Assim, a questão ambiental requalifica a questão agrária, no sentido de que, como aponta Wanderley (1990:5), esta "se estrutura em torno a duas perguntas absolutamente interligadas: qual a concepção de progresso que é legitimada pela sociedade e que classes ou grupos na sociedade são legitimamente portadores e implementadores dessa posição". Traz ainda para o eixo central da discussão o tema da orientação das políticas públicas voltadas para a pesquisa, extensão, apoio à produção, etc. e, portanto, do próprio modelo de desenvolvimento, hoje fortemente marcado pelo debate pelo debate em torno da "sustentabilidade".

 

 

i) descentralização político-administrativa e novos eixos de luta

A nova Constituição vem incentivando o debate sobre a descentralização e suas implicações. Já no início da década de 80 essa questão se colocou fortemente quando, em 1982, governos de oposição ao regime militar foram eleitos para diversos estados do país e tiveram que se enfrentar com a demanda por terra, sem ter instrumentos adequados para lhe dar resposta. A importância do tema naquela conjuntura específica levou a que muitos governantes utilizassem as medidas possíveis a seu alcance para arrecadar terras destinadas a assentamentos. Herança desse processo é o fato de que a grande maioria dos estados do Brasil hoje possui um órgão de terras. Embora não lhes seja possível desapropriar, eles tem o poder de promover regularizações fundiárias.

Nos anos recentes, a tendência é a uma primazia dos municípios na repartição fiscal (Delgado, 1993), e de possibilidade de terem acesso a diversos fundos de recursos. Sem dúvida esse fato tem implicações importantes na reordenação das práticas dos diferentes agentes, implicando num aprendizado para os movimentos que, tradicionalmente, voltaram às instâncias federais suas demandas de apoio à produção. Novos interlocutores se constituem nesse processo e o exemplo sempre citado é o de pequenas cidades em que a existência de um assentamento, de uma forte associação de produtores pode implicar em uma sensível mudança de correlação de forças em momentos eleitorais. Colocam-se, assim, disputas por recursos que podem (ou não) fortalecer experiências emergentes.


NOTAS

(*) Professora do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP..

(1) Tomamos a posição dos "tenentes" por referência apenas como um marco mais próximo. No entanto, já no debate sobre a Lei de terras de 1850 e por ocasião das discussões sobre o fim da escravidão e seus reflexos sobre as atividades agrícolas, a questão da concentração fundiária e dos seus efeitos sobre a estrutura social e perfil político do país já eram apontados.

(2) É importante ressaltar que a criação de uma classe média rural era a proposta central do projeto de Revisão Agrária do governo Carvalho Pinto, em São Paulo, projeto esse datado de 1960 e que serviria de inspiração para importantes propostas posteriores, como é o caso do projeto do IPES, uma das fontes inspiradoras do Estatuto da Terra (Tolentino, 1990; IPES, 1963).

(3) Análise desse debate e suas implicações podem ser encontradas em Camargo (1981), Medeiros (1983) e Tapia (1986).

(4) Novaes também mostra como o termo "camponês" tornou-se uma identidade política, em oposição a "latifundiário" (Novaes, 1987).

(5) As indenizações referentes a essas indenizações acabaram por não ser pagas, repondo as condições do conflito. No entanto, elas garantiram, em condições políticas mais favoráveis, a permanência de trabalhadores na terra e a ampliação dos espaços de luta. As expulsões só iriam ocorrer em situações politicamente desfavoráveis, como foi o caso do golpe militar de 1964 (Grynzpan, 1987; Tolentino, 1990).

(6) Claus Offe oferece interessantes indicações sobre o processo de decisão no interior do Estado, analisando os mecanismos de seletividade estrutural, que implicam não só na incorporação seletiva de temas, como também na sua redefinição (Offe, 1984).

(7) O módulo rural, regulamentado pelo DL 55891/65, constitui-se numa unidade de medida que exprime a interdependência entre a dimensão, a situação geográfica dos imóveis rurais e a forma e condições de seu aproveitamento. A unidade modular corresponde à área necessária, a partir dos elementos acima descritos, para prover a subsistência de uma família.

(8) De acordo com Gomes da Silva (1993:35), a criação de um organismo específico respondia à concepção de Castelo Branco sobre a necessidade de uma reforma agrária "quimicamente pura". Por outro lado, o INDA correspondia a uma exigência dos setores conservadores que argumentavam em torno da oportunidade de criar novas unidades agrícolas quando existia um grande número delas sem atendimento.

(9) É possível afirmar que, se nos anos 70, as terras públicas se tornaram objeto de projetos de colonização, grande parte delas no entanto foi passada às mãos de grandes grupos empresariais, através de licitações (Palmeira, 1989), tornando a terra um eixo de investimentos extremamente rentável. O trabalho de Delgado (1985) é a referência indispensável para que se possa entender a migração do capital financeiro para os investimentos fundiários.

(10) Sobre esse processo, há uma vasta bibliografia. Entre outros, ver Graziano da Silva (1982), Delgado (1985).

(11) Chama a atenção uma afirmação recorrente entre os defensores da reforma agrária: a necessidade de convencer os segmentos urbanos, em especial os trabalhadores com potencial de mobilização da necessidade de transformações na estrutura fundiária. Daí, muitas vezes a tônica adquirida pelo discurso reformista dos anos 80 e no início dos 90: aumentar e baratear a produção de alimentos, conter o êxodo rural e com isso o inchamento (e a violência a ele atribuído) das grandes cidades.

(12) Sobre esses processos, ver Grzybowski (1987), Medeiros (1989).

(13) Sobre os caminhos pelos quais a CONTAG se constituiu enquanto instância de representação dos trabalhadores rurais no regime militar e suas principais reivindicações, ver Palmeira (1985) e Medeiros (1989).

(14) A menção à possibilidade de uma revisão do Estatuto da Terra aparece no II Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em 1973 e convocado pela CONTAG. Não há indicações, nos documentos a que pudemos ter acesso, sobre a origem de uma possível proposta de alteração e sobre que temas ela incidiria.

(15) Em pesquisa nos arquivos da CONTAG, no interior do projeto "Dez anos de luta pela terra: 1969-1979", verificamos que em nenhum dos estados do país deixou de haver conflitos por terra no período estudado. Ao mesmo tempo, constatamos que o procedimento da CONTAG era denunciá-los a diversas instâncias do Estado, ao mesmo tempo em que procurava aproximar deles sindicatos e federações (CEDEC, 1984). Evidentemente, a divulgação em outras esferas foi muito restrita, em função das características do período, marcado pela forte repressão e censura.

(16) Em diferentes circunstâncias, nas áreas em que a CONTAG realizava um trabalho organizativo mais intenso com assalariados, a luta por salários aparecia vinculada a questões de terra, como é o caso do cumprimento da "lei do sítio". Embora freqüentemente associado à idéia de melhorar as condições de vida frente aos baixos salários, a luta pelo "sítio" mantinha viva a relação entre os trabalhadores assalariados e a demanda por terra (ver, entre outros, Sigaud, 1983).

(17) A crítica à colonização já era feita pela CONTAG no início dos anos 70, aparecendo nos Anais de seu II Congresso (CONTAG, 1973).

(18) A CONTAG chegou inclusive a patrocinar uma pesquisa, baseada em dados cadastrais do INCRA de 1972, que mostrava como em todo o país a pequena produção era responsável não só por uma parcela significativa da produção de alimentos como também por uma expressiva quantidade de produtos de exportação. Ver Graziano da Silva, coord., (1978).

(19) Evidentemente, este é apenas um dos critérios possíveis para falar em "eficácia" (termo bastante enganoso) da ação da CONTAG. Uma análise mais completa de sua ação e de resultados implicaria em analisar os saldos organizativos, o que significou politicamente a existência de uma organização nacional dos trabalhadores do campo, a difusão dos instrumentos legais e de novas concepções de direito, etc. Essa análise ainda está por ser feita. Indicações neste sentido podem ser vistas em Palmeira (1985), Medeiros (1989), Tavares (1992).

(20) Sob a origem do Movimento, suas fases e bases sociais ver, entre outros, Torrens (1992).

(21) É interessante assinalar que, justamente após o fim da União Soviética, o Jornal do MST criou uma seção fixa, denominada de "Socialismo", onde é feita a defesa desse sistema e analisada sua atualidade.

(22) Sobre as lutas dos seringueiros ver Paula (1990); Grzybowski (1989), Costa Sobrinho (1992).

(23) O Conselho Nacional dos Seringueiros não se pretende uma entidade de massa e, nesse sentido, distingue-se da organização sindical. Nas palavras de Mauro Almeida, assessor do CNS, ele é uma espécie de ONG popular, que pretende falar pelos seringueiros articulando a dimensão local com uma universalidade presente nas demandas de preservação da floresta (Almeida, 1992).

(24) É possível localizar nos documentos sindicais, já desde os anos 70, uma crítica ao caráter predatório da agricultura baseada na monocultura. No entanto, essa crítica, nesse momento, não se articula num novo discurso de questionamento ao modelo de desenvolvimento.

(25) A denúncia dos efeitos dos grandes projetos hidrelétricos foi feita pelo movimento sindical desde os anos 70, principalmente através da barragem de Itaparica, elaborando um conjunto de demandas que se articulariam também com os demais movimentos.

(26) Para a relação entre sindicalismo e luta por terra e algumas indicações sobre os complexos vínculos entre o MST e os sindicatos, ver Esterci (1991) e Torrens (1992).

(27) Era subjacente à Proposta a idéia de que, com esse enxugamento no mercado de trabalho, haveria uma elevação salarial e melhoria das condições de vida e trabalho no setor empresarial da agricultura.

(28) Tanto para o MIRAD como para o INCRA foram chamados pessoas próximas ao movimento sindical ou mesmo ligadas a ele organicamente. Se isso significou uma mudança na radical na relação entre os trabalhadores, suas entidades de representação e o Estado, no sentido de que as portas das suas instâncias literalmente se abriram para os trabalhadores, também implicou numa delegação ao Estado pelo movimento sindical das iniciativas em relação à reforma agrária.

(29) A existência de confrontos e de explicitação de propostas distintas não significou inexistência de negociações e acordos. A derrota do PNRA e da sua proposta reformista é fundamental para entender como, num momento seguinte, é possível cerrar fileiras em torno de consensos mínimos, na tentativa de assegurar alguns espaços institucionais/legais.

(30) Os passos da luta em torno do PNRA foi objeto de uma extensa bibliografia. Entre outros, ver: Gomes da Silva (1987), Novaes (1989), Veiga (1990).

(31) Já no III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em 1979, a CONTAG se alinhava com a proposta de criação de uma central única de trabalhadores (CONTAG,1979).

(32) Segundo Landim (1988:42), "os trabalhadores do campo são de longe os mais cotados, em termos do universo de atuação das ONGs no Brasil". Em sua pesquisa sobre o tema, a autora afirma que, em 44,3% dos questionários respondidos pelas ONGs, os camponeses/trabalhadores rurais apareciam como principais beneficiários da sua atuação.

(33) A agricultura brasileira era vista nos anos 50/60 como sinônimo de atraso e "obstáculo estrutural" ao desenvolvimento econômico. Ver, entre outros, Palmeira (1968), Mantega (1984).

(34) A ação dos proprietários fundiários no início da década de 60 teve múltiplas formas: uma poderosa pressão parlamentar, participação ativa na organização de encontros e atos públicos em defesa do direito de propriedade, como é o caso da célebre "Marcha da família com Deus pela liberdade", participação na conspiração contra o regime, violência contra os trabalhadores e suas lideranças. Entre outros autores, ver Dreifus (1981), Medeiros (1983), Novaes (1987), Starling (1986).

(35) Esse ponto merece uma pesquisa aprofundada. Para a posição do empresariado industrial em relação à reforma agrária nos anos 60, ver Medeiros (1983).

(36) Dados de entrevista.

(37) O PNBE tem uma coordenação nacional composta por 20 membros, eleitos entre os participantes do movimento. Dentre esses 20, o único representante do empresariado rural é Pedro Camargo Neto, ex-diretor da Sociedade Rural Brasileira.

(38) As revistas da ABRA do anos 1987 e 1988 acompanharam o processo e apresentam diversos artigos sobre o debate na Constituinte. Para uma leitura apaixonada, mas rica de informações sobre o processo, ver Gomes da Silva (1988). Análises importantes sobre ela também aparecem em Tavares (1989), Santos Filho e Mello (1988).

(39) É a primeira Constituição brasileira em que se dá essa inserção.

(40) A categoria "latifúndio", que marcou todo um debate político e se tornou uma categoria jurídica através do Estatuto da Terra, não por acaso foi banida do texto constitucional.

(41) As entidades ligadas aos trabalhadores (serviço, assessoria e representação, como é o caso da CONTAG, CUT, MST, Ibase, Abra, CPT, Inesc) denunciaram as dificuldades trazidas à distribuição de terras, em carta aberta, datada de 9/6/1988, e insistiram no perfil democrático que a reforma agrária deveria assumir: "a luta pela reforma agrária se inscreve hoje na luta dos trabalhadores rurais - os descendentes sociais dos escravos- pelo direito à cidadania. De nada valerão os direitos individuais e sociais dos trabalhadores escritos no capítulo referente à ordem social se, no capítulo da ordem econômica, nos são tirados os meios materiais para exercê-lo".

(42) Dados de entrevista.

(43) O decreto 433, de 24/01/92, autorizou o INCRA a realizar aquisição de terras em dinheiro para fins de reforma agrária, preferencialmente em áreas de "manifesta tensão social".

(44) Dados de entrevista.

(45) Excetuando-se o liberal Afif Domingues.

(46) Os argumentos de D'Incao foram recentemente retomados e aprofundados por Pacheco (1993).

(47) Estima-se em 175 o número de deputados na Câmara que tem vínculos de origem com a questão agrária/agrícola. Deles calcula-se que cerca de 60 alinhem-se, nos momentos significativos, com uma postura de "esquerda" (PT, PC do B, PSB, parte das bancadas do PDT, PSDB e PMDB). Os demais dividem-se em cerca de 4 usineiros, 11 vinculados à UDR e cerca de 100 que vem se caracterizando pela defesa do produtor rural e se aproximam das propostas da OCB. A maior parte deles estava presente no lançamento da ABAG, no Congresso Nacional, do qual não participou o "grupo do Caiado" (dados de entrevista).

(48) Os bastidores militares do esvaziamento do PNRA ainda não foram analisados e sem dúvida seria importante conhecer melhor esse processo.

(49) Dados de entrevista.

(50) Embora a expressão "novo modelo de desenvolvimento" esteja cada vez mais presente nos documentos sindicais, partidários e das ONGs, na maior parte das vezes ele aparece como oposição/negação das condições atuais, mas sem definição precisa de conteúdo.

(51) Esta é a posição que José Graziano da Silva tem defendido não só no debate acadêmico mas, no que nos interessa, levado para o interior do PT.

(52) O caso mais ilustrativo é o do setor canavieiro, que vem sucessivamente conseguindo renegociar suas dívidas.

(53) No seu plano de lutas de 1990, em breve avaliação da luta por reforma agrária, a Contag reconhece que "a maior parte das desapropriações só foram conquistadas com muita mobilização, organização e ocupações" (CONTAG, 1990b:8).

(54) Para maiores detalhes ver CONTAG, 1990b; CONTAG, 1992, luta por reforma agrária, itens 110, 112, 115, 116, 117, 119, 123, 135.

(55) Com isso, não queremos secundarizar o fato de que o que estava em jogo para a CONTAG nesse congresso era a questão da estrutura sindical e as possibilidades de uma aliança eleitoral com o DNTR.

(56) Dados de entrevista. Esse tipo de atitude vem sendo confirmada pelas declarações do presidente da CONTAG apoiando os saques nas áreas afetadas pelas secas no Nordeste (ver Folha de São Paulo, 20/09/93).