Vertigo e Psycho, Hitchcock e a Psicanálise
Sara Bizarro
(Fonte: http://www.terravista.pt/Guincho/2644/vep.html)
"Na série televisiva,
"Os homens que faziam os filmes", Hitchcock disse, e cito de memória,
"Os psiquiatras acreditam que se traçarmos a origem de um problema até à
sua origem na infância de um individuo, resolvemos esse problema, mas eu acho
que isto não é verdade"". Dervin, Daniel, Through a Freudian Lens Deeply, p. 47-48
Hitchcock foi muitas vezes
acusado de apresentar uma caricatura da psicanálise nos seus filmes. Mas, esta
caricatura pode ser entendia como um comentário crítico deliberado dirigido à psicanálise.
Neste ensaio vou analisar dois filmes de Hitchcock, o Vertigo e o Psycho e
mostrar que eles podem ser vistos como apresentando argumentos fortes contra a
psicanálise freudiana.
Nos seus primeiros textos Freud
defendia a psicanálise enquanto terapia. Seguindo esta estratégia a avaliação
da psicanálise seria levada a cabo olhando apenas para os seus resultados terapêuticos:
se funciona seria uma boa terapia. Desta maneira saber se a psicanálise era uma
boa teoria sobre a mente humana seria uma questão em aberto. A partir do
momento em que ela se mostra como uma terapia eficaz isto seria suficiente para
que possa ser justificadamente usada pelos médicos.
Mais tarde, e perante algumas
falhas terapêuticas da psicanálise, a estratégia de Freud mudou. Ele passou a
defender que mesmo perante essas falhas terapêuticas a psicanálise era uma boa
teoria acerca da mente humana.
Os dois filmes de Hitchcock de
que vou falar confrontam a psicanálise nas suas duas encarnações: enquanto
terapia e enquanto teoria. À questão de saber se a psicanálise é eficaz
enquanto terapia Hitchcock responde (em Vertigo - A Mulher que Viveu Duas
Vezes) que não só não é eficaz como é mesmo perigosa. À questão de saber se a
psicanálise é uma boa teoria acerca da mente humana Hitchcock responde (em
Psycho) que a psicanálise não consegue explicar uma das coisas principais às
quais se propunha - explicar os "demónios do irracional" (usando as
palavras de Spellbound - A Casa Encantada).
O plot do filme Vertigo é,
resumidamente, o seguinte: Elster quer livrar-se da sua mulher e prepara uma
armadilha a Scotty (James Stewart) de forma a que este possa ser testemunha do
suicídio simulado dela. Para o fazer contrata uma rapariga e transforma-a numa
loira. Elster constrói uma personagem femenina, Madleine (Kim Novak)
irresistível para Scotty e rodia-a de mistério e neuroses num crescendo que
culmina com o suposto suicídio de Judy do qual Scotty é testemunha. Na
realidade é a mulher de Elster que caí da torre da igreja e não se trata de um
suicídio genuíno. Scotty, sem saber o que realmente se passou, fica tão
perturbado que tem de ser internado numa instituição psiquiátrica para se
recuperar do choque. Quando finalmente recupera encontra na rua uma rapariga
parecida como Madleine, mas morena - Judy. Scotty transforma esta rapariga de
forma a ela ficar semelhante a Madleine - pinta-lhe o cabelo de loiro, muda-lhe
a roupa e a maquiagem. A semelhança entre Madleine e Judy é tão grande que
Scotty começa a suspeitar que se trata da mesma pessoa. Para descobrir se é
esse o caso Scotty leva Judy à mesma torre onde a cena do suicídio se passou de
forma a repetir a cena anterior e descobrir a verdade -- mas desta vez a
Judy=Madleine morre realmente.
Perante este plot parece que o
tópico psicológico principal do Vertigo é o da "repetição
compulsiva". Segundo Freud, a repetição compulsiva é a tendência para
tentar "tornar reais os traumas psíquicos, para viver uma vez mais uma
repetição desses traumas; se se tratar de uma relação afectiva antiga ela é
revivida de uma forma semelhante com outra pessoa" (Freud: Dictionary of
Psychoanalysis, p. 157). Este fenómeno da repetição compulsiva é considerado
por Freud como um dos fenómenos psíquicos mais fortes da natureza humana:
"Nós podemos postular que o princípio da repetição compulsiva localiza-se
no inconsciente, baseia-se em actividades instintivas e provavelmente está
embutido na própria natureza dos instintos - é um princípio tão poderoso que
consegue derrubar o princípio do prazer, dando a algumas partes da mente o seu
carácter demoníaco" (Freud: Dictionary of Psychoanalysis, p. 157).
No filme Vertigo a repetição
compulsiva pode ser encontrada em várias formas. A um nível mais óbvio Scotty
tenta tranformar a Judy em Madeleine (pintando-lhe o cabelo de loiro,
mudando-lhe as roupas e a maquiagem) de forma a repetir uma "relação
afectiva" anterior. Mas, parece muito provável que a primeira relação
entre Scotty e Judy já é ela também uma repetição de uma outra relação afectiva
ainda mais antiga. Talvez seja possível que, uma vez analisada a origem dessa
relação, encontremos algo do tipo: a relação que Scotty tinha com a mãe, ou
outra mulher presente na sua infância, adolescência ou juventude (isto
explicaria a facilidade com que Elster inventa a personagem de Madleine para
manipular Scotty -- provavelmente Elster casou-se com uma ex-paixão de Scotty
-- quando os amigos se encontram Scotty admite não ter conheido a mulher de
Elster).
Outra forma de repetição
compulsiva presente em Vertigo é representada na sugestão de que a única forma
de Scott curar a acrofobia (medo das alturas) é de alguma forma repetir a
experiência traumática incicial que a provocou e estar numa situação de
"queda eminente". Este é de facto o método terapeutico proposto pela
psicanálise: não se trata apenas de recordar mas também de re-viver de alguma
maneira o trauma original. De facto a estratégia da psicanálise é a de utilizar
a tendência natural para a repetição compulsiva com uma finalidade terapeutica.
Para levar a cabo este processo o teraputa assume o papel do objecto do trauma
permitindo ao paciênte repetir todo o processo traumático num ambiente
"seguro":
"O neurótico começa o seu
tratamento porque acredita no seu analista, e acredita nele porque começa a ter
determinados sentimentos em relação a ele. A actitude é de facto - sem meias
palavras - uma atitude de enamoramento. O doente repete, ao apaixonar-se pelo
analista, as experiencias psiquicas pelas quais ele passou antes; ele tranfere
para o analista as atitudes psuquicas que estava dentro dele, e que estavam
intimamente ligadas com a origem da sua neurose. Ele repete também o seu
sistema de defesa anterior e tenta repetir todas as vicissitudes deste periodo
já quase esquecido na sua relação com o analista. Desta forma ele mostra-nos o
verdadeiro amago da sua vida privada; ele reprodu-la como se se estivesse a
passar na altura, e não se limita a recordá-la". (Freud: Dictionary of Psychoanalysis, p.7)
Assim, nalguns tipos de neuroses,
a doença e a cura são semelhantes. No filme Vertigo Hitchcock aponta para o
problema no amago deste tipo de método. A repetição de experiências dolorosas
pode levar a mais experiências dolorosas e não há garantia de que isso tenha
algum valor terapeutico. Para além disso, se esse método for exercido fora do
divã do psiquiatra as consequências podem ser desastrosas: no fim do filme a
morte de Judy=Madleine representa a seriedade das consequências deste método.
Scotty utiliza Madleine=Judy na tentativa de curar a sua neurose -- tanto a da
acrofobia como a sua neurose amorosa e o resultado desta tentativa é a de que
embora a acrofobia desapareça os problemas que ficam são muito mais sérios que
a neurose original.
Isto é o oposto do que Freud
prentendia quando desenvolveu o seu método psicanalítico: "A finalidade de
todo o trabalho de Freud era a de ajudar as pessoas a compreenderem-se a si
mesmas, de maneira que nós não fossemos guiados por forças desconhecidas, vivendo
vidas de descontentamento, ou mesmo de total infelicidade, e tornando os outros
também infelizes, o que também nos prejudica a nós" (Bruno Bettelheim,
Freud and Man's Soul).
Até agora vimos o filme Vertigo como apontando para os problemas envolvidos na tentativa de utilização da psicanálise sem supervisionamento médico. O potencial catastrófico desse tipo de actividade está bem representado nesse filme. Mas o que dizer da psicanálise quando exercida sob o controlo de um médico? Embora o filme Vertigo não trate directamente esta utilização da psicanálise podemos olhar para a crítica que ele faz da ulitização da repetição compulsiva para curar esse mesmo problema como aplicando-se também a casos em que um médico está presente. De facto, na primeira repetição da história amorosa quando Scotty conheçe Madleine ele é muito mais "saudável" do que na segunda quando ele transforma Judy e nada garante que no futuro a obcessão de Scotty não se torne ainda mais profunda.
Se isto é assim, o psicanalista
está a correr um risco muito grande ao incentivar a repetição de acontecimentos
traumáticos anteriores. Talvez neste ramo da medecina, tal como noutros, a
solução mais inteligente é a de desistir de fazer com que os pacientes voltem à
"normalidade" e em vez disso ensinar-lhes e procurar com eles formas
de aproveitarem as suas "a-normalidades" de uma forma positiva. É
muito provável que Hichcock sofresse também de "repetição compulsiva"
e isso está patente, por exemplo, na semelhança de estilo entre os seus filmes,
na fixação no campo dos filmes de suspense, no tipo de personagens que criava,
etc. etc. Mas Hitchcock usou essa tendencia de uma forma artistica profutiva e
isto pode ser considerado a outra "moral" do filme Vertigo - a
perfeição artística do filme mostra como se pode usar um personalidade
obssessiva para contruir uma obra de arte.
Se no filme Vertigo Hitchcock
questiona a validade da psicanálise enquanto terapia, no Psycho ele
questiona-a enquanto teoria. Um dos principios formativos da psicanálise é o de
que "não existe nenhuma distinção qualitativa entre estados de saúde e
estados de neurose" ((Freud, Three Essays, Standard Edition, VII, p. 225).
A psicanálise propõe uma teoria da mente humana e do seu desenvolvimento que se
aplica tanto ás mentes sãs como às mentes perturbadas: "… as pessoas
saudáveis têm de enfrenrar as mesmas dificuldades no controlo da libido - só
que têm mais sucesso do que as não saudáveis" (idem).
Uma das formas principais de controlar a libido acontece
quando a criança ultrapassa o chamado complexo de Édipo. O rapaz começa o seu
desenvolvimento infantil tendo uma relação muito próxima da sua mãe. Depois,
por ter medo da castração por parte do pai o rapaz ultrapassa a sua relação
amorosa com a mãe e faz parelha com o pai passando a líbido a ser focada fora
da família num contexto cultural mais alargado. A maior parte das neuroses são
o resultado de uma falha em ultrapassar o complexo de Édipo, mas todas os
rapazes passam pelas mesmas fases. Nas raparigas o medo da castração não
existe, por isso não existe a principal motivação para ultrapassar o complexo
de Édipo e elas mantêm-se mais tempo neste nível de desenvolvimento: "a
rapariga só abandona esta fase muito mais tarde, e mesmo nessa altura de uma
forma apenas parcial" (Freud: A Dictionary of Psychoanalysis, p. 130-131).
No filme Psycho Hitchcock
apresenta um exemplo de um rapaz que não foi capaz de ultrapassar o seu
complexo de Édipo. Norman Bates, o dono do Motel, é um exemplo de um rapaz que
não teve oportunidade de ultrapassar o complexo de Édipo visto que o seu pai
morreu quando ele era uma criança não podendo incutir o nelo o medo da
castração. Por esse motivo ele teria ficado extremamente ligado à sua mãe de
tal forma que quando ela arranjou um namorado Norman acabou por matá-los aos
dois. Depois desse assassinato Bates transforma-se num serial killer. Assim, se
a história do complexo de Édipo é uma representação verdadeira da mente humana,
este caso seria um exemplo do pior resultado possível causado por um complexo
de Édipo não resolvido.
O comentário de Hitchcock a este
cenário psicanalitico é subtil, mas muito relevante. Quando o psiquiatra
explica as causas do comportamento do Norman Bates referindo a ligação muito
forte que este tinha com a mãe, algo na explicação soa errado. O que está
errado com a explicação do psiquiatra é precisamente que esta história do
complexo de édipo não explica o comportamento de Norman Bates: muitas crianças
cresceram com pais ausentes e com mães que encontram novos parceiros e não se
tornam por isso assassinos. À questão de saber porque é que Norman Bates matou
a mãe o psiquiatra responde que "ele já era muito perturdado". Mas
porque é que ele era tão perturbado? Porque o pai não estava presente para o
ajudar a ultrapassar o complexo de Édipo? De novo, este cenário do pai ausente
é comum e não dá origem a assassinos (senão todas as mulheres o seriam). Como é
que a psicanálise explica então o caso Norman Bates?
Convém recordar de novo que uma
das finalidades da psicanálise é a de não postular "nenhuma distinção
qualitativa entre condições de saúde mental e condições neuróticas". Assim
sendo o comportamento do Norman Bates teria de ser explicado apelando a quebras
no desenvolvimento pelo qual todas as pessoas passam. No entanto, os
acontecimentos da vida de Bates, embora trágicos, não são suficientes para
construir uma explicação destas. O monologo do psiquiatra e a última imagem do
Norman Bates assumindo a personalidade de mãe são uma forma visual de sublinhar
este paradoxo psicanalítico.
Podemos então concluir que os
filmes Vertigo e Psycho sugerem duas críticas importante à psicanálise: o
Vertigo critica-a enquanto terapia e o Psycho enquanto teoria. É interessante
notar que Hitchcock apresenta estas críticas utilizando o próprio contexto
psicanalítico na construção dos dois filmes. De facto, a melhor forma de
criticar uma teoria é encontrando dificuldades inerentes à prórpia teoria,
assumindo a sua validade e olhando para as suas consequências. Se encontramos
consequências absurdas ou não explicadas pela teoria, então algo indica que
estamos perante uma má teoria.
É interessante notar também que
no final dos dois filmes analisados a psicanálise é comparada como aquilo aa
que ela se propunha a substituir: o tratamento da natureza humana fornecido
pela religião (principalmente pela religião cristã): "Freud era optimista
pensando que a psicanálise iria um dia substituir a religião na regulação da
parte moral das nossas vidas. Freud pensava que a civisisação tinha de ultrapassar
a adoração infantil pelo Deus pai" Jefferey B. Abramson, Liberation and
its Limits, The Moral and Political Thought of Freud, p. 99
A tentativa de ultrapassar a
religião tinha a melhor das intenções por parte de Freud - ele queria libertar
as pessoas da actitude relogiosa que ele pensava estar a destruir a vida delas.
Hitchcock, atravez de dois detalhes no fim dos dois filmes, põe em causa os
sucesso da psicanálise enquanto substituindo a religião. No filme Vertigo
aparece uma fereira na torre de onde Judy cai que lança o comentário final:
"Deus tende piedade de nós" (God have mercy).
No Psycho durante o monologo do
psiquiatra está no fundo, na parede, um candeiro com uma forma semelhante a um
crufixo, sugerindo que a explicação cristã que utiliza conceito como Bem e Mal,
Deus e o Diabo, não foi satisfactóriamente substutuída pela explicação
pseudo-científica do psiquiatra. No plano seguinte Hitchcock posiciona o
psiquiatra por baixo do candeiro de forma a sugerir uma figura diabólica. Desta
forma Hitchcock questiona o sucesso do discurso do psiquiatra enquanto
substituição do discurso religioso.
- Fodor, Nandor & Gaynor, Frank (eds),
Freud: Dictionary of Psychoanalysis, Philosphical Library, New York, 1950.
- Abramson, Jefferey B., Liberation and its
Limits, The Moral and Political Thought of Freud, The Free Press, New York,
London, 1984
- Bettelheim, Bruno, Freud and Man's Soul,
Vintage Books, 1982
- Dervin, Daniel, Through a Freudian Lens
Deeply, The Atlantic Press, 1985
- Hurey, Neil P., Soul in Suspense, Hitchcok's
Fright and Delight, The Scarecrow Press. Meuthechen, NJ and London, 1993