Razões de Estado? UM MINISTRO angolano acusou Mário Soares e João Soares de estarem entre os «principais beneficiários do tráfico ilícito de diamantes e de marfim levado a cabo por Jonas Savimbi». Convém não nos distanciarmos da acusação precisa que está no centro de toda a polémica para podermos avaliar melhor a gravidade do que foi dito, assim como o monumental exercício de hipocrisia em que se tornou toda a conversa sobre o assunto dali em diante. Desde as reacções moles e dúbias de António Guterres e do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao comentário tardio - e verdadeiramente assassino para João Soares - em que se traduziu o comunicado do Grupo Parlamentar do PS; desde o complacente silêncio do PCP à muito notada inquietação do PP - e de Basílio Horta em particular - com a imagem da «referência democrática» que é Mário Soares; desde a reacção indignada da federação do PS da Suíça (!) - a primeira a dizer alguma coisa, já que a direcção socialista propriamente dita, embora desafiada a fazê-lo há uma semana, só nesta quinta-feira teve tempo para se pronunciar - até à insuspeitada preocupação de Alberto João Jardim com a família Soares, talvez explicável por razões que terão mais a ver com esses amigos comuns, simpatizantes da UNITA, apoiantes do PS e grandes investidores na Madeira que são Horácio e Fátima Roque. A dignidade supostamente ofendida do Estado português tem sido invocada para evidenciar a maior das incomodidades dos sinceros amigos de Soares, o maior dos cinismos de alguns supostos amigos políticos e os mal disfarçados ajustes de contas de certos adversários, dentro e fora do PS. Que a dignidade do Estado sirva de pretexto e cobertura para tudo isto ao mesmo tempo, eis o que dá que pensar. Se o Estado português foi ofendido, é dos seus representantes - Parlamento, Governo, Presidente - que tem de se exigir uma resposta clara e à altura dessa ofensa. Ora, o que tivemos até agora foi um protesto público de Jorge Sampaio, com uma carta ao seu homólogo angolano que é a medida justa daquilo que se pode esperar do Presidente da República, não sendo ele o responsável pela condução da política externa. Tivemos uma conversa de surdos no Parlamento, com a oposição de direita indignada e a fingir que defendia Soares, enquanto o PS se remetia a um estranhíssimo mutismo, só quebrado dias depois com o já citado e não menos estranho comunicado. E tivemos críticas vagas do Governo, também com uma carta do primeiro-ministro para Angola, de conteúdo desconhecido, e a ausência de qualquer gesto diplomático que desse um vago sinal de protesto. Quer num primeiro momento, em que a intervenção do ministro angolano ainda podia parecer desgarrada, quer perante a escalada de insinuações e críticas que se seguiu e tornou clara a intenção do regime de Luanda de pôr Soares em xeque por todos os meios. Se as cautelas do Governo na primeira hora ainda podiam justificar-se com alguma dúvida sobre o enquadramento e o verdadeiro alcance da intervenção isolada de um ministro, o silêncio desta semana já precisa de outra explicação. Mário e João Soares não representam o Estado, é certo. Mas são ambos membros do Conselho de Estado, entre outras coisas, e um deles era Presidente ainda há menos de quatro anos. Compreende-se mal que, perante as insinuações e ameaças de que são alvo, a diplomacia portuguesa não tenha mais nada a fazer do que exprimir «surpresa e desagrado». Assim como custa a perceber que, no meio de tanta indignação, a ninguém pareça interessar a verdade, dispensando-se todos de exigir ao regime de Luanda que faça prova das suas acusações para poderem ser conferidas. Tudo visto e ponderado, fica claro que, ao contrário do Presidente da República, o Governo e o PS consideram que a tão falada dignidade do Estado não foi suficientemente ofendida. E que as suas tímidas reacções apenas alimentam a dúvida, dando força às insinuações do regime de Luanda. Toda a gente percebe que assim é. O que falta saber é se essas reacções timoratas terão sido ditadas apenas por razões de Estado que aconselhem prudência no tratamento do caso, ou se também há, em tudo isto, muito de cálculo partidário. Os dois Soares são figuras incómodas para o guterrismo - Mário porque ainda faz sombra, João porque já não esconde a ambição. E isso pode ajudar a explicar muita coisa. Com amigos destes no PS, nem Mário nem João precisam de inimigos. Expresso