<%@ Language=VBScript %> Democracia em excesso, decisões em recesso (conto político)

 

 

Democracia em excesso gera decisões em recesso

 

  Democracia demais

 

   

 

 

Aconteceu no Reino da Cajolândia 

(decisão de menos)

(conto político)

 

 

             Um tipo curioso da Cajolândia é o Dr. Jacobino Batucada. Não só pelo nome, mas pelas convicções também. Ele é convicto de que o processo democrático de discussões deve ser levado a todas as decisões, desde as políticas nos governos às do interior dos lares. A reunião – diz ele – é a base da democracia. Não é à toa o sentido que pode ter o nome dele. O prenome pode ser partidário exaltado da democracia. É o que Jacobino, de fato, é, sem tirar nem pôr. O sobrenome pode referir-se a reunião. Ambas estão em mim, dentro do meu próprio nome – diz. Apenas sou fiel ao nome que ganhei na vida -- completa.

            Jacobino é eleito síndico do edifício onde reside. Aproveita para por em prática suas idéias. Marca reuniões ou batuques (como ele costuma chamá-las) para todas as noites. Hoje é dia de batucada:

  • Temos uma longa pauta com vários itens a discutir. Vamos pelos mais simples: Assuntos Gerais. Vamos batucar? Vejamos a questão dos vigias.

  • Dr. Jacobino, os vigias devem ou não trabalhar armado?

  •  Isso é o que todos os presentes vão decidir no voto. Quem for a favor da arma, fique sentado.

            Minutos depois, volta o síndico:

  • Vejo que a opção um é vitoriosa. A aprovação conduz a esta pergunta: Com que tipo de arma?

          Respostas diversas:

  • Revólver 22!

  • Revólver 38!

  • Pistola automática!

  • Rifle papo-amarelo!

  • Espingarda 12!

  • Escopeta!

  • Pau-furado!

  • Espingarda soca-soca!

  • Facão!

  • Peixeira!

  • Cassetete!

  • Vamos fazer uma eleição. Queiram todos, por favor, colocar num papel seu voto por escrito e pô-lo na urna aqui a meu lado – orienta o sindico.

           Feita a apuração, eis os resultados:

  • 1º lugar: revólver 22;

  • 2º lugar (1a suplência): pistola automática;

  • 3º lugar (2a suplência): espingarda soca-soca;

  • 4º lugar (3a suplência): Cassetete.

  • Por que só quatro, seu síndico?

  • Por praticidade. O revólver 22 não tem no mercado. A pistola automática tem preço alto e venda restrita. De todo modo, vocês aceitam rateio extra?

  • Não! Não! Não!

  • Resta a 2a suplência como uma das opções de custo menor. Mas parece que a falta dela no mercado vai empurrar muito seu preço para cima.

  • Não aceitamos rateio extra. Se o Condomínio não puder comprar a espingarda soca-soca, o que se vai fazer, Dr. Jacobino?

  • Resta a 3a suplência, o cassetete, opção de menor custo.

  • Cassetete! Cassetete! Cassetete!

  • Vocês querem votar outra vez?

  • Não! Queremos Cassetete!

  • Então, cassetete para todos! Se surgir o revólver 22 no mercado, vocês querem ainda ficar com ele?

  • Não! Queremos cassetete!

            A reunião continua. Itens diversos são votados, com impasses aqui e ali, sem que o síndico possa vencê-los. A coisa passa pela forma de redigir a ata, uso de materiais de limpeza, entrega de correspondências, brincadeiras de crianças, namoros na escada e outras questões do gênero. Acesas discussões! Mais de onze da noite, o sono vence a quase todo mundo. Retiram-se todos, menos três: O síndico, um fazendeiro e uma mulher a cochilar o tempo todo.

  • Doutor síndico, o senhor ficou o tempo todo falando em arroz-doce. Não teve tempo pra falar no feijão-com-arroz. O arroz-doce podia ter ficado pra o fim ou o senhor podia ter resolvido tudo sem bate-boca -- fala o fazendeiro.

  • Questão de método, cidadão! Amanhã, vamos continuar com a pauta. Está encerrada a reunião!

           Dita a última frase, a mulher desperta de mais um cochilo. 

          Depois, Jacobino ocupa o cargo de diretor de sua repartição. Não faz outra coisa, senão reunir-se e telefonar.  Discute a reciclagem de papel higiênico usado e de palitos em idêntico estado, dentro sua idéia de reduzir custos. Para trabalhar mesmo, não lhe sobra tempo. As reuniões noturnas no Condomínio continuam. No fim de semana, para variar, vai aos infindáveis debates do partido político a que pertence. Em casa num sábado de manhã aplica também a “democracia das decisões”. É, segundo ele, “o exemplo de uma micro reunião com apenas seis pessoas, mas plena de democracia". Ele, a mulher e quatro filhos adolescentes participam da batucada:

  • Vamos discutir e aprovar o cardápio da semana, gente! O almoço em cada dia! – inicia Jacobino o batuque

  • Eu quero peixe todo dia! – grita o filho mais velho.

  • Já eu quero peixe só na sexta-feira! No domingo, bacalhau! Na segunda, galinha. Nos outros dias, carne! – brada o mais novo.

  • Idiota! Bacalhau é peixe...!  Já eu não quero peixe dia nenhum. É carne todo dia! No domingo, pra variar, churrasco! – berra o terceiro.

  • Eu quero só bicho do mar e da maré: peixe, camarão, siri, ostra, lula, sururu, caranguejo, goiamum e mais, de domingo a domingo! – grita o último.

  • Só fazendo eleição, gente! Mas o número de opções é grande, talvez maior que o de votantes. Imaginem que ainda falta discutir o prato de cada dia!  Mas só a discussão democrática conduz ao consenso!  Necí, mulher, falta você falar. Vamos ouvir sua opinião sobre o assunto – declara Jacobino

  • Isso é uma grande besteira! Quem deve escolher a comida é a cozinheira, de acordo com o que tiver, com o que vocês comprarem.

  • E a democracia onde fica, Neci?

  • Cada um venha passar um tempo na cozinha e faça sua democracia, escolhendo o que cozinhar! Vamos acabar com essa reunião besta, Jacobino, que eu ainda tenho de fazer feira pra preparar o almoço!

  • Vamos suspender o batuque do cardápio! O debate, agora, mais urgente é sobre a feira. Vamos definir em que devem ser usados os recursos para a feira semanal! – informa Jacobino.

  • Em feijão, arroz, carne, açúcar, farinha, frutas, verduras etc., essas coisas de feira! – diz logo Neci.

  • Não é simples assim, Neci! Não basta citar itens de oitiva. É preciso colocá-los numa escala de prioridade.

  • Pois faça logo isso, homem!

  • Tenho, aqui, três relações para batucar, as quais vocês já viram com antecipação.

  • Eu fico com a primeira relação!

  • Eu, com a terceira!

  • Eu, a segunda!

  • Melhor é votar. Vamos?

  • Vamos! Vamos!

  • Pronto, eleita a segunda! A primeira fica em segundo lugar. A terceira, em terceiro.

  • Jacobino, me dá logo o dinheiro, que eu quero fazer logo a feira, que ainda tem o almoço pra preparar! – grita Neci,

  • Não tenha pressa, mulher! Não seja inimiga da perfeição. Temos agora de discutir cada item da relação aprovada. São só 25.

  • Ah, Isso vai demorar muito! Vou preparar o almoço. Vou sair! Já é quase 11 horas!

  • Você não pode sair, Neci! Não cometa esse erro!

  • Jacobino, você tem dinheiro pra almoçar fora? Você quer almoçar hoje?

  • De fato, não tenho recursos para esse tipo de despesa. É claro que queremos almoçar hoje. Pode ausentar-se para fazer o almoço. A reunião continuará!

           Mais debates sobre mais feijão, menos carne ou menos feijão e mais carne, coisas desse tipo.

  • Acaba com isso logo, Jacobino!  Daqui a pouco, a feira vai acabar! – insiste Neci.

  • Tenha calma, mulher! Daqui a alguns minutos se chegará ao consenso final sobre todos os itens.

  • Estou sem paciência para esperar!

  • Pronto, Neci! Aqui estão um salário-mínimo e os 25 itens em que deverá ser usado esse valor. Os quantitativos terão de ser obedecidos.

  • E se, durante a feira, eu tiver de alterar isso, gastando no total o mesmo dinheiro?

  • Nessa hipótese, Neci, cada alteração terá de ser antes submetida ao batuque de todos! Isso implica em modificar a natureza do gasto, embora sem mexer no montante.

  • Quer dizer, Jacobino, que tem que haver essa amarração? Gastar de acordo com o papelzinho?

  • Claro, minha filha!

  • Quer saber de uma coisa, Jacobino? Vai tu mesmo fazer tua feira ou manda quem tu quiser fazer, que eu só faço se tiver liberdade de gastar o dinheiro como eu acho que devo! Toma o dinheiro!

  • Que é isso, mulher! Tome o dinheiro! Vá fazer a feira como você quer, mas saiba que isso é uma exceção. Fica a lição: o empirismo não pode continuar!

  • Me dá logo esse dinheiro, Jacobino!

      Minutos depois, volta Neci:

  • Quero falar!

  • O que é, Neci? Pode falar!

  • Essas besteiras de vocês podem ser muito bonitas. Agora, dinheiro que é bom não tem.

  • Não seja simplista, mulher! O caixa receberá o reforço na hora certa.

  • Tenho outra coisa a dizer!

  • Bote o almoço primeiro, Neci, por favor, e diga!

  • Que almoço? Nada tem! Não achei nada na feira porque  saí atrasada por causa dessa reunião idiota. Vamos comer fora!

  • E o dinheiro? Sobrou recurso?

  • Que nada! Sem fazer feira, resolvi comprar gás, pagar a conta do açougue e da bodega! Trago só um quilo de feijão. Não tenho mais nem um tostão! Estou lisa mesmo! Só não estou lesa e louca!

  • Está ruim!  Também estou com o caixa zerado aqui e no banco! Nem cheque tenho mais! Os cartões de crédito sumiram! E agora?

  • Sabe o que é isso, Jacobino?

  • O que é, Neci?

  • Comida demais faz mal. Bebida demais embebeda. Democracia demais engasga...!

FIM

Recife, maio/2002


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cajolândia - país fictício.

 

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Página editada em 05/04/2004