<%@ Language=VBScript %> Fatalidade - conto tirado da Mala de Histórias

A tragédia manda recado?

Fatalidade

 

 

 

(matar ou morrer)

 

(conto tirado da Mala de Histórias)

 

 

         

           Evitar o inevitável, impossível! No início dos anos 60 não havia diversão em Serra Escura, lugarejo perdido no Nordeste. A televisão lá ainda não havia chegado. Cinema, só uma vez ou outra quando surgia o ambulante. Esporte, quase nenhum. Apenas a caça de rolinhas.  Rádio até que existia se havia luz, mas o motor da usina elétrica estava quebrado há quase um ano.

           Seus mil habitantes acordavam e dormiam com os passarinhos.  Dedicavam-se a uma difícil agricultura de subsistência. Vez por outra, vinha uma seca, deixando atrás de si um rastro de miséria com retirantes na beira da estrada. A partir do meio do ano, homens e mulheres costumavam ir para o Sul do estado à procura de trabalho na cana-de-açúcar. Os mais novos migravam o tempo todo para São Paulo em busca de vida melhor.  Ficavam lá somente os que não podiam mais se aventurar a isso pelo peso da idade.

           Fortunato e Josias, cerca de 40 anos cada, compadres e muito amigos, moravam lá. O segundo, no começo da noite, vinha à casa do primeiro tirar um dedo de prosa antes de dormir. Nos domingos ambos iam caçar rolinhas por diversão e para melhorar a escassa alimentação. 

           De tanto freqüentar a casa do amigo, começa um namoro secreto entre Josias e Cida, mulher de Fortunato. Apenas trocam olhares atraídos por uma força meio demoníaca. Ele, em princípio, tenta evitar a traição ao amigo. Porém, os flertes sucessivos descambam para encontros furtivos. Daí partem para a audácia maior: encontro dos dois em casa dela numa noite escura em que Fortunato viajara para longe. 

           A muito custo, Josias vai na hora acertada, protegido pela escuridão. Uma chuva insistente completa o escudo protetor a afugentar eventual passante. A casinha de Cida está com o combinado pano branco na janela da frente,  a indicar ambiente livre, sinalizando a ele que pode bater de leve na porta de traz, sem receio. É o que faz:

           -- Pode entrar! -- murmura ela depois do primeiro toque como quem estava o tempo todo atrás da porta a escutar qualquer barulho.

            -- Tou molhado! Feche a porta logo!

            Na salinha mesmo, de onde se vê a cama do casal, abraçam-se e beijam-se durante uns cinco minutos. Um medo enorme toma conta dele:

            -- Alguém viu eu entrar na casa de Fortunato, duas horas da madrugada? . Ninguém viu. Mas como “matos tem olhos e paredes tem ouvidos ...” — pensa e fica calado por momentos.

           Nesse instante, Cida pergunta:

            -- Que é que você tem, homem? Pensando na morte da bezerra?

            -- Tou pensando nessa traição. A gente não pode fazer isso com Fortunato.

             -- Besteira! Ele não vai saber.

            -- Se ele sabe, vai querer beber o seu sangue e o meu! Conheço muito ele. Vai ser uma desgraça. Vou ter que matá-lo se ele não me matar antes. Não posso fazer isso com meu melhor amigo. Não! Não dá!

            -- Besteira! Como é que ele vai saber?

            -- Sei lá! Alguém pode ter olhado. Você acha que ele desconfia?

            -- Ninguém viu nada! Nessa noite escura todo gato é pardo. Por cima de tudo, essa chuva. Desconfiar de que, se não teve nada ainda, só namoro de jacaré, se olhando de longe? Deixa de moleza! Vem logo pra cama!

            -- De quem é aquele facão no armador?

            -- De Fortunato.

            -- E ele não levou o facão?

            -- Levou, mas ele tem dois. Um ele anda com ele. O outro fica em casa pra usar no que for preciso.

            -- Não posso mais ficar!  Parece que tou vendo o compadre com o facão na mão, querendo me matar! Vou embora! Não adianta ficar. Aperreado como tou, não vou fazer nada.

            -- Vai não, homem! Isso é besteira! Quando você tiver no serviço, vai esquecer. Vai ser bom! Venha! Acredite!

            -- Até nunca mais! -- diz ele, largando-se dos braços dela para abrir a porta dos fundos, sem antes olhar pelo buraco da fechadura para o lado de fora a fim de sair sem ser visto.

            Sem pressa e com cuidado, sai pelo quintal. Não passam dois minutos tem uma surpresa: dá de cara com o fofoqueiro Zé Preto, vindo em sentido contrário, talvez de uma carraspana ou da casa de Mocinha, mulher-errada do lugar.

            -- Diga, Josias! Que tá fazendo por aqui por essa hora? – dispara Zé Preto.

            -- Tou vindo do meu sítio, Zé Preto. Fui dar uma vista nas ovelhas. Você sabe como é. Tem cabra roubando criação por aí. E você donde vem?

            -- É isso mesmo! Tem muito roubo por aí, mas está tudo em ordem? Adivinhe donde eu venho!

            -- Tá tudo em ordem! Você vem da casa de Mocinha.

            -- Isso mesmo! Que bicho adivinhão! Pode jogar no bicho hoje, que vai acertar!

            -- Vou jogar no macaco, que a primeira cara que eu vi na rua foi a tua.

            -- Quá-quá-quá! E eu vou no cachorro.

            -- Por que cachorro?

            -- Porque ele é sabido como tu. Até logo, Josias!

            Um grilo fica na cabeça de Josias: Zé Preto teria visto ou não quando ele saiu da casa de Fortunato? Se viu, Fortunato vai saber logo. Mas não deve ter visto, pois antes ele olhou com cuidado para saber se o campo estava limpo mesmo. Mas o malandro podia estar escondido numa moita. Por que aquela história de dizer que “tem muito roubo por aí” e que eu sou “sabido”? São dúvidas a assaltarem a cabeça de Josias.

            -- Bem-feito, não tinha que mexer com mulher alheia! Aliás, nem mexeu. Só quis fazer isso. Não tinha em casa sua Corina, sem aperreio nenhum? -- vive a dizer para si nas freqüentes apreensões em silêncio, a ponto de sua mulher indagar:

            -- Que é que você tem, homem? Anda desanimado, triste como um animal que levou uma cipoada?  É doença?

            -- Não é nada, não, Corina! É só uma meia agonia que tou sentindo na barriga.

            -- Vou fazer chá pra ver se você melhora.

            Chás sucessivos são feitos, mas o homem continua abatido. Em oito dias depois do acontecido, continua o mesmo.

           Fortunato é do tipo calado, misterioso, capaz até de matar um sem perder a calma. Isso é o que mais preocupa o ex-conquistador. Ele pode muito bem está a tramar a morte do amante de sua mulher. Amante que nada fez. Mas quem o viu sair àquela hora da casa de Cida não pode pensar que saiu com a barriga vazia, reflete.

           Fortunato continua a bater papo com ele, mas sempre com poucas palavras. Tem feito os mesmos convites:

            -- Compadre Josias, vamos fazer uma caçada no domingo?

            -- Posso não, compadre! Vou trabalhar.

            -- Trabalhar todo domingo por quê? Tem mais boca pra dar de comer?

            -- É não! É serviço de casa. É a necessidade -- responde,  ao esconder o real motivo em três domingos sucessivos.

            Simples convite para caçar ou armadilha a fim de matá-lo? Será que Fortunato sabe da traição e quer eliminá-lo com um tiro de espingarda? Se não sabe de nada, por que essa de dizer “mais boca pra dar de comer?” É seu pensamento. No quarto domingo, Fortunato vai à casa dele e fala devagar e firme:

            -- Vim aqui pra gente ir caçar agora! Pegue logo sua espingarda!

            -- Desculpe, mas não posso ir! Vou ter que trabalhar.

            -- Vamos mesmo, compadre! Se você precisar de milho ou de feijão, posso lhe arranjar, que minha safra foi boa. Até pouco dinheiro, eu posso lhe arranjar. Vamos logo, que não sou homem de muita conversa.

            -- Sei disso!

            Josias não tem mais como resistir. Pega a espingarda, pendura-a no ombro e ganha a estrada com o amigo. Parte resignado como o carneiro ao matadouro. O sítio onde vão caçar, que dista apenas meia légua, lhe parece longe demais, embora ele esteja habituado a vencer caminho muito maior. Andam emparelhados. Para vencer um pouco o medo, fuma seguidos cigarros. Fortunato lhe parece sisudo demais, fazendo-o desconfiar de que arma uma arapuca pra ele. Pressente que Fortunato tem algo a dizer, preso em sua garganta, como se tivesse dificuldade em sair.  

            -- Que é que o compadre quer dizer e não diz? -- indaga Josias a todo instante para si, ao tempo em que tenta quebrar um pouco o gelo entre os dois:

            -- Fortunato, hoje tá bom mesmo de caçar com pouco sol e sem chuva.

            -- É.

            -- Hoje tá fazendo um calor brabo. Dever ser muita chuva que vem por aí.

            -- Tá. É.

            Outras observações são tentadas em vão, obtendo sempre respostas monossilábicas.

            -- Por que Fortunato não diz logo o que tá dentro dele pra acabar com essa agonia? -- continua Josias a questionar consigo mesmo.

            Afinal, chegam ao destino sem nada de grave acontecer. Enfim, Fortunato começa a falar:

            -- Compadre vamos sentar um pouquinho debaixo desse pé de imbu pra matar a sede?

            -- Vamos, Fortunato -- responde o outro, imaginando que pode acontecer ali o sacrifício. De qualquer forma, se ocorrer o pior, ele, Josias, vai ter que se defender e até matar se for preciso, pensa.

            Sentados sob o umbuzeiro, põem-se a chupar alguns umbus, enquanto Fortunato continua sua fala, fazendo crer que, agora, abriu o bico de vez:

            -- Compadre, eu venho notando que você anda meio aperreado? Com quê? Tá com medo de alguma coisa?

            -- Não tou com medo de nada. É só aperreio com o trabalho, safra ruim, essas coisas. O compadre sabe....

            -- Sei bem, Josias. Agora, eu tenho uma pergunta pra lhe fazer desde que saí da rua, que está entalada aqui na garganta, mas ainda não tive coragem de fazer.

            Nesse instante, Josias vê a hora da fatalidade em que uma desgraça pode acontecer. Percebe bem a mão direita de Fortunato a repousar sobre o gatilho da espingarda carregada. Tem vontade de descarregar logo a sua nele para defender-se do ataque. Contém-se. Apenas, de forma discreta, levanta um pouco sua espingarda e aproxima seu dedo do gatilho, a fim de ser mais ágil no momento decisivo.

            -- Pode fazer a pergunta, compadre Fortunato. Eu vinha notando que você queria dizer uma coisa desde que a gente saiu de Serra Escura. Pode dizer – diz ao reunir muita coragem.

            -- Sabe o que é, compadre? Não gosto de falar essas coisas, mas não me controlo mais. É o jeito perguntar: 

            -- Você pode me arranjar um cigarro?

  FIM

Recife, fevereiro/2002

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Página revisada em 05/04/2004