OPINIÃO:

Sonho para comprar, pesadelo para pagar!

 

EMPRÉSTIMOS IMOBILIÁRIOS

Sonho ou pesadelo

 da casa própria

 

 

duelo desigual:

salário

prestações + saldo devedor

 

 

 

 

         O freguês pega uma grana em banco para pagar em 30 meses, a fim de comprar um carro, por exemplo. Nas parcelas mensais fixas já estão incluídos os juros (nos quais se inclui também a inflação).  Se estes são de 3% ao mês, eles acabam por elevar a dívida em mais de 50%. 

         Se do citado empréstimo 20 prestações foram pagas em certa data, resta um saldo devedor de 10 quotas a pagar, inclusive, se for o caso, multa e juros de mora. É o quanto deve o cidadão na hipótese. Em qualquer tempo,  o devedor sabe quanto tem a pagar: basta multiplicar o valor da parcela pelo número delas a pagar. Pagas as trinta quotas, obtém a quitação do débito. Muito fácil  de entender a coisa. Difícil pode ser pagar.

 

Fácil também

 

         Do mesmo jeito é o crédito direto de uma construtora na compra de um imóvel em 60 meses, por hipótese. Esse tipo de operação, em regra, não tem juros.   Mas já estão cobrando até juros de imóveis em construção, amparados em decisão legal, embora não exista a figura do capital a gerar juros. A onerá-la era só o aumento das prestações, em geral feito pelo INCC. No decorrer do contrato, o saldo devedor é igual ao valor atualizado da parcela multiplicado pelo número delas a pagar, contados aí, se for o caso, os acréscimos por atraso. É o que falta pagar. Quitadas as 60 quotas, o imóvel está pago e o felizardo pode cuidar da escritura definitiva. Muito fácil também de entender. Difícil pode ser liquidar.

 

 

Diferente

 

          Na compra de um imóvel com crédito do Sistema Financeiro de Habitação pelo plano de equivalência salarial, a coisa fica muito mais difícil de entender e, sobretudo, de pagar. Deveria se aplicar aí o mesmo raciocínio dos casos anteriores, mas não se aplica. Veja-se um exemplo prático:  

         O sujeito obtém um crédito de 50 mil reais para aquisição da casa própria, com liquidação em 15 anos ou 180 parcelas mensais reajustáveis (para mais, claro). Com juros de 12% a 16% ao ano (habituais no caso), começa com uma prestação de R$600,00 a R$734,00. Só os juros aí elevam a dívida em 116% a 164%. 

         Ao cabo de cinco anos, restam 120 quotas a pagar. Se o valor atualizado desta é de R$850,00, o saldo devedor deveria ser de R$102.000,00 (850 x 120). Deveria, mas não é. Em geral, é muito mais. Pior: pagas as 180 parcelas (quando consegue isso), o empréstimo não está quitado, o devedor não está livre do fardo. Ainda tem conta a pagar: o saldo devedor.  Há ainda outras comissões e o seguro, cujo percentual varia de banco para banco. Isso tudo encarece muito o financiamento.

Bola de neve

 

É comum no caso anterior pagar um bocado de prestações, estar em dia e ver o saldo devedor subir ao invés de descer. Mas esse saldo, além das parcelas a pagar, não deveria surgir em hora nenhuma, como nos demais empréstimos. Ele faz a dívida crescer em bola de neve. Afinal, pega aumento sobre aumento e, às vezes, juros sobre juros. Até 1993 havia um fundo que o liquidava, mas de lá para cá liquidaram o fundo.  -- Por que isso?  

Por quê?

 

         As prestações são aumentadas, em geral, de acordo com a variação salarial, a fim de que o devedor possa pagar o empréstimo. Nada mais lógico. Como o dinheiro emprestado aí  vem, sobretudo, da caderneta de poupança, o aumento das prestações tem de ser feito pela remuneração básica da poupança (rendimento menos juros), mais ou menos a inflação, para o sistema não quebrar. O lucro do banco está no residual de juros: paga 0,5% ao mês na poupança e cobra 1% mensal no financiamento, no mínimo. Ganho, portanto, de 100%, pelo menos.

         Mas, no clima de achatar salários em voga no País, o salário sobe muito pouco ou nada. É a  tal desindexação que faz o trabalhador perder porque o pau sempre quebra no lugar mais fraco. Agora, bancos não perdem nada, em princípio, porque põem em seus aumentos a inflação passada por inteiro. Claro! O pau não quebra no ponto mais forte. Lucro de banco não pode cair. Trabalhador é que pode ter queda em seu salário real, ou seja, ter menos comida na mesa. Isso de desindexar é pra salários, pra bancos, não! É a regra que parece existir.

 

Pulo do gato  

 

         Como fazem os bancos nessa história? Simples: o que não pode cair em cima da prestação em face de o aumento ser limitado à variação salarial ou a outro número, cai sobre o saldo devedor, de modo que eles, os bancos, nada percam. O pé-quebrado entre a variação do salário e a inflação faz surgir e crescer o tal saldo devedor. Mais se comprime o salário, mais toma corpo o saldo devedor.   

Dois rabos

 

          Pode ser difícil entender por que o empréstimo tomado para comprar imóvel pode ter regras tão duras contra o devedor. Porém, o motivo aritmético parece evidente. A coisa é como se fosse um bicho com dois rabos: o principal e o acessório. Corta-se o primeiro, mas o outro também cresce. O paciente devedor, com um só salário apertado, tem de cortar as duas caudas por inteiro para ser dono do imóvel. É o osso da casa própria.

 

Analogia

 

         Veja-se esta historinha: Abílio da Valsa é prestamista. Vende utilidades domésticas nos bairros de uma cidade grande, às portas das casas. Parcela tudo em até doze meses, mas aumenta pela inflação as parcelas e o que ele chama de saldo devedor. Diálogo entre Abílio e uma de suas freguesas:

  • Comprei 100 reais para pagar em 12 meses. Paguei a última prestação no valor de 15 reais. Quer dizer que não devo mais nada, seu Abílio?

  • Deve, madame, só uma laminha...

  • Que laminha é essa?

  • O saldo devedor corrigido pela inflação, de acordo com o contrato.

  • Quanto é essa laminha?

  • Só 25 reais, madame.

  • Mas eu vou ter de pagar isso, seu Abílio?

  • Vai, madame, em cinco meses.

  • E depois?

  • Fica uma laminha menor, madame.

  • De quanto?

  • De uns 10 reais, madame.

  • E aí, seu Abílio?

  • Se a madame pagar os 10 reais de uma vez no tempo certo, fica tudo certo, tudo pago.

  • E se não pagar?

  • A laminha continua, madame.

  • Mas seu Abílio, receber mais de uma vez não é certo, não. Isso é coisa de ...

         Tem um doce quem adivinhar o substantivo final da fala da madame. A "laminha" de seu Abílio tem alguma semelhança com o saldo devedor do Sistema Financeiro de Habitação.

Asneira

 

          São tantos os casos de inadimplência, de devolução e retomada de imóveis financiados, que o Sistema Financeiro de Habitação, na prática, pode ficar inviável se já não é.

         É isso: esperteza demais pode virar burrice. Resta saber quem é mais tolo: o sistema que engole o pé-quebrado e banca o esperto para não perder, mas acaba por perder adiante ou deixar de ganhar porque na outra ponta o devedor fica sem poder pagar, ou é o arrocho salarial que, vivo também, causa o pé-quebrado e inviabiliza a política de habitação, derruba o consumo, as vendas, os empregos, os lucros do capital e coisas mais? Eis aí uma parelha a merecer reflexão para saber quem mais se destaca em asnice.  

 

Dupla loteria

 

          A casa própria já é uma espécie de loteria, daí a idéia de "sonho". Botar prêmios de sistemas de capitalização nisso é jogar loteria em cima de loteria. Tais sorteios já existem. Não precisa vinculá-los à questão. Pode ser, porém, que o objetivo principal seja vender esses produtos financeiros. Aí a coisa, de fato, tem sentido.  

Mais um para Lula

 

         Não há no País uma política séria de habitação, sem dúvida. Mas, pelo menos, as regras dos financiamentos imobiliários deveriam ser semelhantes às de outros comuns no que se refere à liquidação da dívida. Os devedores deveriam ser obrigados a pagar apenas as prestações, já com juros, comissões, seguro, correção e tudo mais. Pagar só isso. Que se ache uma fórmula, com ou sem fundo, para chegar a esse feijão-com-arroz. É o que sonho da casa própria espera para livrar-se do pesadelo na hora de pagar a dívida. Esta aí, entre tantos, mais um desafio para o governo Lula.

 

INCC - Índice nacional de preços da construção civil.

 -Laminha - resto, coisa pequena, insignificante.

 

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Atualizada em 15/04/2004